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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo sep./dic. 2014
ARTIGOS TEMÁTICOS: SEXUALIDADE E GÊNERO
O caminho do arco-íris: a esperança perdida
The rainbow path: the lost hope
El camino del arcoíris: la esperanza perdida
Regina Elisabeth Lordello Coimbra
Membro efetivo e psicanalista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Na prática da psicanálise de crianças e adolescentes, o momento da chegada dos pais ao consultório do psicanalista é revelador de emoções muito intensas. Uma das funções mais significativas do papel do psicanalista de crianças é certificar-se da importância de apresentar aos pais as características das condições do desenvolvimento emocional do filho, situação que muitas vezes é desconhecida por eles. Este texto aborda alguns aspectos do encontro analista-Lucas-pais, destacando o papel da função analítica na compreensão dos movimentos emocionais presentes. Os estados emocionais emergentes na avaliação psicanalítica foram considerados a partir da perspectiva da constituição do psiquismo e estados mentais primitivos.
Palavras-chave: psicanálise de crianças; construção do psiquismo e da subjetividade; identidade; identidade sexual e pele psíquica.
ABSTRACT
In the psychoanalysis of children and teenagers, the arrival of the parents at the psychoanalyst's office is a moment of revelation of very intense emotions. One of the most significant roles of a child psychoanalyst is to be sure of the importance of showing the parents the characteristics of the conditions of the emotional development of their child, something often unknown to the parents. This text presents some aspects of the analyst-Lucas-parents encounter, exposing the importance of the analytical function in the comprehension of the emotional movements present. The emergent emotional states in the psychoanalytic evaluation were considered from the perspective of the constitution of psychism and primitive mental states.
Keywords: child psychoanalysis; construction of psychism and of subjectivity; identity; sexual identity and psychic skin.
RESUMEN
En la práctica del psicoanálisis de niños y adolescentes, el momento de la llegada de los padres al consultorio del psicoanalista, revela emociones muy intensas. Una de las funciones más importantes del papel del psicoanalista de niños es asegurarse de la importancia de presentar a los padres las características de las condiciones del desarrollo emocional del hijo, situación que muchas veces es desconocida por los padres. Este texto presenta algunos aspectos del encuentro analista-Lucas-padres, señalando el papel de la función analítica en la comprensión de los movimientos emocionales presentes. Los estados emocionales emergentes en la evaluación psicoanalítica fueron considerados a partir de la perspectiva de la constitución del psiquismo y estados mentales primitivos.
Palabras clave: psicoanálisis de niños; construcción del psiquismo y de la subjetividad; identidad; identidad sexual y piel psíquica.
Eu perco o chão
Eu não acho as palavras
Eu ando tão triste
Eu ando pela sala
Eu perco a hora
Eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim
Eu perco as chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos
Eu estou ao meio
Onde será que você está agora?
("Metade", Adriana Calcanhoto)
Na clínica do atendimento psicanalítico de crianças, a delicadeza necessária para receber pessoas que não nos conhecem, que se entregam e nos entregam seus filhos está colocada. A dor narcísica dos pais preenche a sala e a mente do analista, muitas vezes a partir da expressão de culpa ou, ao contrário, com a expectativa de que o analista diga que está tudo bem. É comum que os pais percebam as perturbações de seu filho, mas não tenham recursos internos para pensá-las.
Recebi Lucas e seus pais. Estavam muito cansados após algumas horas de viagem até a cidade de São Paulo - moram no interior do estado.
Ao dar início ao atendimento, constatei que essa família também havia percorrido muitas horas de visitas a outros profissionais da área da psicologia. Havia neles a expressão de constrangimento, acompanhada de muita angústia: "Lucas é nosso único filho. Ele quer ser uma princesa!" Ele estava com 3 anos e 8 meses.
Neste primeiro momento, aconteceu algo interessante, pelo conteúdo, espontaneidade e premência: o pai de Lucas chamou minha atenção para a semelhança entre o rosto da mãe de Lucas e o das fadas e princesas das histórias infantis. Ocorria-me estar sendo apresentada a algo inexorável: ter o rosto semelhante ao de uma princesa. Qual o valor dessa informação?
Entre namoro e casamento, os pais de Lucas estiveram juntos por doze anos. A gestação de Lucas aconteceu no sexto ano do casamento de seus pais, e foi muito desejada. Porém, grandes dificuldades surgiram entre eles a partir do sétimo mês de gravidez.
A separação do casal se deu a pedido da mãe, quando Lucas tinha 9 meses de idade, ocasião em que mãe e filho foram viver na casa dos avós maternos, lá permanecendo até a criança completar 2 anos e meio. A partir desse momento, foram viver em uma casa só para eles, fato que se somou a outro acontecimento bastante significativo na época: Lucas havia mudado de escola, saiu do período integral para o meio período.
Com a mudança para a casa nova, Lucas descobriu um saco de vestidos e outras roupas da mãe. Iniciou-se nesse momento o seu encantamento pelo universo feminino; dizia ser uma menina - mais especificamente, uma princesa. Passou a vestir-se compulsivamente com as roupas da mãe; dava preferência a roupas de cores bem vivas, especialmente um vestido cor-de-rosa. Com o decorrer do tempo, todo o armário de roupas da mãe tornou-se o grande interesse de Lucas.
Essa criança surpreendeu a analista pela precocidade do uso da linguagem verbal, pela presença e pelo uso da capacidade simbólica ao brincar, fatores que fundamentam a clássica técnica lúdica. Assim, o brincar permite que se abra a porta de acesso ao mundo inconsciente infantil. Porém, no transcorrer da observação psicanalítica de Lucas e seus pais, os pontos considerados significativos se sustentaram principalmente nos processos primitivos da construção do psiquismo e do desenvolvimento da subjetividade, localizados em instâncias pré-simbólicas.
Os aspectos que me pareceram importantes em relação às características emocionais de Lucas dizem respeito à precocidade dos desenvolvimentos: linguagem, motor, controle esfincteriano, falta da amamentação natural (em função de cirurgia estética da mãe). Assim que Lucas completou 3 meses, a mãe voltou a trabalhar e ele passou a ser cuidado pela avó materna; a partir de 9 meses, foi para uma creche (período integral), em que ficou até os 2 anos e meio - quando entrou na escola atual (meio período).
Quando chegaram ao meu consultório, os pais viviam angústias muito intensas pelas dúvidas de como se conduzir quanto ao uso das roupas femininas. Recebiam muitas sugestões da escola e de outros profissionais da área da psicologia. As orientações recebidas eram na direção da plena normalidade sobre o que se passava com Lucas, uma vez que as crianças pequenas teriam muitas curiosidades sobre as suas origens, a sexualidade delas e a dos pais. Estávamos transitando no plano das considerações de senso comum, até bastante subsidiadas pela popularização do conhecimento psicanalítico.
Todavia era bem evidente a postura de complacência por parte dos pais, por entenderem tratar-se de um possível caminho do filho para futura "homossexualidade". Acreditavam que haviam adotado uma "atitude politicamente correta" diante do temor da condição preconceituosa ao homossexualismo. Diziam que se a "escolha" do filho fosse essa, eles o aceitariam sem problemas. O pai fazia copiosas preleções sobre pais que seriam opositores às escolhas sexuais de filhos. Queriam deixar claro para a analista como eles pensavam essa questão e faziam extensos discursos sobre a homofobia.
Neste momento, colocava-se a importância da clareza da fundamentação teórico-clínica do psicanalista de crianças. Os pais de Lucas impregnavam a analista, por meio da identificação projetiva, com suas expectativas de receberem dela a concordância com seus preceitos. Porém, bem próximas dessas propostas, outras eram evidentes, quando relatavam longas histórias esperançosas e sugestivas de encontrarem no filho a identidade masculina que eles desejavam.
Dentro do grupo de crianças da sua idade, em sua escola, Lucas era um menino que se sobressaía pelo uso desenvolvido da linguagem, pela facilidade com que entrava e saía do universo das brincadeiras de faz de conta, mas também pelo alto teor de angústias quando suas expectativas não eram aceitas pelos adultos e, principalmente, por outras crianças. Ou seja, suas ideias eram apresentadas como únicas, não suportava qualquer contraste a elas. Tinha momentos disruptivos diante da alteridade.
Vinheta clínica
O período da avaliação psicanalítica ocorreu com vários encontros da analista com os pais e Lucas, além das observações de Lucas sozinho.
Nesse encontro, mãe e Lucas chegaram juntos. Ele saiu correndo, tomando a dianteira, sem dirigir seu olhar e atenção para a analista. Deu um grito de satisfação, sentou-se à mesa e fez um desenho: um furacão atacando uma princesa; ao lado, havia o que ele chamou de "polícia"
Esses temas foram representados graficamente por meio de rabiscos, feitos com uma velocidade muito grande, acompanhados por uma verbalização excitada e em tom de voz bastante alto.
A analista disse: "Que perigo esta princesa está vivendo! Você acha que a princesa vai precisar de ajuda? Temos uma polícia por perto. Vamos ver o que vai acontecer"
Ele manteve sua atenção voltada aos desenhos; fez o que seria o vestido da princesa; repetiu isso em outro desenho; fez outro, outro, até que, em um deles, além da repetição do vestido, fez o rosto, o olho e a boca. Imediatamente depois, fez rabiscos rápidos em uma folha de papel, segurando várias canetas na palma da mão - fez o que chamou de "arco-íris" A excitação psíquica tomava conta da cena.
Pegou um carrinho dentro da caixa lúdica; procurou colocar uma bonequinha mulher em seu interior; fez o carrinho seguir o caminho chamado por ele de "o caminho do arco-íris" Este era o momento da excitação máxima.
Em meio a esse contexto, a analista, bastante atordoada, disse para ele: "Vamos conhecer a história desta pessoa que vai seguir pelo arco-íris? Quem será ela?" Imediatamente, ele pintou o carrinho com a caneta rosa, dizendo que ela estaria chegando ao castelo.
Pegou uma caneta dentro da caixa e apresentou-se para a analista como uma fada. Depois bateu a caneta em si mesmo, transformando-se em princesa; a analista virou o homem que dirigia a carruagem, a abóbora virou carruagem. A seguir, Lucas trouxe uma pergunta, sem olhar para a analista: "E o rato, onde está o rato?" A pergunta veio no ritmo veloz de sua excitabilidade psíquica e, rapidamente, ele se virou dizendo que a história ficaria sem o rato. E pronto!
Porém, este caráter resolutivo e de aparente vigor que Lucas apresentava não durou muito tempo. Abruptamente, ele diminuiu o ritmo - parecia cansado de tanta excitação. Dirigiu-se à caixa, como à procura de algo. Lentamente, foi se aproximando dos bonequinhos de pano.
Ocorria-me a seguinte ideia: Lucas acenou com a apresentação de uma historia que sugeria um movimento auspicioso - a princesa estaria chegando a um castelo, mas faltou o rato. A que falta Lucas estaria se referindo? O caminho da princesa foi interrompido. Haveria relação desta interrupção com a possível ação de um "furacão", o furacão Lucas?
A presença da polícia poderia nos indicar traços superegoicos? De que natureza? O indicador de objetos internos parciais e terroríficos? Ou a presença de elementos indicadores de um superego acolhedor e catalizador do encontro do casal parental?
Disse para ele:
Que pena! A fada parecia tão poderosa, mas não conseguiu fazer a mágica para a princesa chegar até o castelo. Acho que ela não conseguiu se encontrar com o príncipe. Eu estou aqui pensando se um furacão pode ter atrapalhado o encontro da princesa com o príncipe.
Lucas pegou uma boneca menina - disse ser a princesa. Outra boneca seria a mãe. Mudou de ideia e disse que a mãe seria a boneca vovó (a de cabelos brancos), enquanto um bonequinho bebê foi colocado à parte, ao lado, na condição de quem estaria de castigo. Durante certo tempo, carregou em uma das mãos o boneco pai; depois o colocou em minha mão dizendo que estava com o rosto triste. Eu segurei o boneco papai por algum tempo e disse-lhe: "Oh, papai, como você está triste! Eu acho que o bebê também está triste. Ele ficou tão sozinho, e ainda mais de castigo! Acho que vou ter que cuidar destas pessoas tristes."
Observei que Lucas não dava sinais de ter se interessado por esse tema, até que fui surpreendida por seu pedido de que eu consertasse o rosto da mamãe. Entretanto, ele se antecipou ao pedido e passou a caneta cor-de-rosa no rosto da mamãe.
A analista disse: "Agora a mamãe está com o rosto todo colorido. Cor-de-rosa parece ser a cor que esconde a tristeza das pessoas!"
A cena vivida mostrava o lugar da analista como cuidadora das pessoas tristes, enquanto Lucas mostrava-se visivelmente insatisfeito após sua tentativa de fazer um suposto conserto que não saiu como ele queria. A analista nomeia esse estado emocional: "Não deu certo. Que pena! Será que eu posso ajudar você?"
Mas ficou evidente seu impedimento em usufruir da companhia dela, característico da criança que precocemente ficou entregue às próprias forças e, por não tolerar encontrar a fragilidade da capacidade de continência do objeto externo, em uma ação rápida, como se fizesse um "deixa comigo", em um ato de quem se apropriou da minha sugestão, juntou os vários bonecos; porém, não sabia qual encaminhamento ia dar.
De repente, ficou parado no meio da sala; parecia não saber o que fazer. A analista disse-lhe: "Que difícil sentir-se como aquele bebê que ficou de castigo, por não conseguir consertar o papai e a mamãe". Por algum tempo Lucas ficou calado e quieto, olhando para o horizonte; surpreendentemente, juntou novamente todos os bonecos e os cobriu com muita cola, fazendo uma grande meleca. Na sequência, rasgou o papel em que havia feito o que chamou de arco-íris e o jogou longe.
A analista falou livremente sobre algumas ideias:
Pensei que fôssemos cuidar daquela mistura de pessoas. Tínhamos um grande trabalho pela frente. Percebi, também, que o caminho do arco-íris não ajudou a princesa a encontrar o príncipe. Nessa história, ficou faltando alguém. Quem? O rato? Agora eu poderia ser o rato Beth para ajudar a compreender por que não aconteceu o casamento da princesa com o príncipe.
Interessante observar a qualidade da relação Lucas-analista: foram raros os momentos em que ele diretamente registrou a presença da analista ou apresentou curiosidade pela presença dela, embora ocorressem momentos sugestivos de apropriação do que a analista oferecia como experiência afetiva.
Qualidade do entorno emocional de Lucas
Em meus encontros com Lucas e seus pais, além dos aspectos já apresentados, observei que os pais ficavam inebriados diante da inteligência e da excitabilidade do filho. Chamava minha atenção a postura de Lucas para falar, a musicalidade da sua voz, a prosódia, muito semelhante à da mãe, marcada por expressões com características precisas, contundentes e assertivas.
As expressões vocais dos pais de Lucas eram trocadas. O pai tinha uma suposta "manhês", mas o conjunto da sua presença expressava considerável desvitalização, ao lado de domínio da linguagem, inteligência e certo teor de sedução.
Lucas precocemente foi apresentado para um entorno emocional em que prevaleciam defesas às angústias depressivas. Sugere pensarmos que seus pais não encontraram recursos internos para estabelecer o acolhimento necessário para um bebê vir a se desenvolver psiquicamente. Fica uma indagação: em um casal constituído há tantos anos, qual o nível de desorganização que o nascimento de um filho poderia ter provocado?
Os contos de fadas anunciam o casamento do príncipe com a princesa, mas não nos apresentam como esses jovens personagens das histórias infantis constituem relações parentais entre si e com os filhos. Quais fatores inconscientes impediram que estes pais se apresentassem para Lucas como o casal parental sexualizado, vivo e criativo?
O pai precocemente ficou órfão de um pai vivo e praticamente desconhecido. O relato de suas instabilidades de humor sugere a hipótese de que a função paterna lhe tenha despertado muitas angústias. Contou que, diante da gestação de Lucas, a vida parecia exigir dele o que não acreditava possuir. Trabalhava excessivamente, percebia um nível de "pobreza" que, equivocadamente, deveria ser preenchida pela fantasia do ficar "rico", estava em plena excitação maníaca. Sentia-se muito solicitado pela mãe de Lucas, a qual se sentia muito sozinha e triste, optando por recorrer aos seus próprios pais para ajudá-la. As angústias depressivas não encontravam espaço para serem elaboradas.
Observei que a figura de mãe ficou confusa para Lucas; a avó materna contribuiu com o exercício da maternagem, em função do retorno precoce da mãe ao trabalho. Ao ser apresentado para a condição de viver sozinho com sua mãe, aos 2 anos e meio, Lucas se deparou com experiências significativas: o afastamento da avó, a mudança de escola e a premência de entrar em contato com sua mãe.
Comentários gerais
A história de Lucas impõe a indagação sobre as características dos seus objetos internos. A observação da experiência sugere que este menino pode ter vivenciado precocemente a falta básica da atenção materna. Penso que o apego de Lucas ao tema das princesas e vestidos coloridos o tornaria vivo, com a possibilidade de promover o encontro com o príncipe e assim constituir um casal, que viesse a dar sentido à sua história.
Quando Lucas se apresentou identificado com a fada e sua varinha de condão, representada falicamente pela caneta, ele nos mostrava o poder do casal parental combinado, como nos ensina Melanie Klein (1923/1996), nas instâncias do Édipo pré-genital, em que não há discriminação entre a identidade separada de cada um deles, presente na mistura dos bonecos banhados pela cola encontrada na caixa lúdica.
No entanto, suas investidas fantásticas não funcionavam; o caminho mágico do arco-íris expressava as tentativas da reparação maníaca, ao oferecer todas as cores do universo como presente para o encontro do príncipe e da princesa. Acredito que Lucas viveu e vive mergulhado na dor depressiva, por identificar-se com o bebê que pode ter provocado a não constituição do casal parental e por não conseguir fazer o que seria um conserto.
Como tentativa de escapar desses estados emocionais tão expressivos de dor, Lucas fez uso de defesas narcísicas muito precocemente. Assim, por meio do triunfo narcísico, ele poderia ser tudo, ser o próprio criador de si mesmo e, ao transformar-se em uma mulher, seria a mãe, suprindo desse modo a falta da atenção materna primária.
Sua atração pelas cores vivas presentes nas roupas de mulher, ou mesmo pelas toalhas da sala lúdica usadas como vestidos, mostrava a busca algo desesperada pelo contorno corporal, sensorial, e principalmente vivo.
Vamos recorrer aos conceitos teóricos de "pele psíquica", de Esther Bick (1968/1987), e de "posição autística-contígua", de Thomas Ogden (1989/1996), obtidos a partir de observação da relação mãe-bebê e da experiência clínica em psicanálise. A proposta destes autores é ressaltar a função sensorial da pele do bebê e a relação com seus objetos primários, momentos em que as instâncias primitivas da personalidade não são diferenciadas de partes do corpo. Para Freud (1923/1976), o ego inicial é o Ego corporal.
Esther Bick apresenta a proposta de que, nos momentos iniciais de vida, estas partes da personalidade são sentidas como sem forças de ligação: seria o momento de um estado "não integrado", em fragmentos que necessitam ser unidos passivamente por meio de um objeto externo que fará a função da "pele psíquica", a partir do acolhimento sensorial e emocional do bebê.
Thomas Ogden propõe a "posição autística-contígua" como um modo primitivo de dar sentido às experiências sensoriais que vão constituir superfícies delimitadas nas quais se assentará a constituição de self.
Tustin (1990) também apresenta a relação da experiência da pele do bebê com o corpo da mãe, fato que promoveria a sensação de coesão e de ser delimitado por ela, levando ao delineamento de self. Ambos os autores sugerem a noção de que essas experiências sensoriais antecedem os momentos das experiências emocionais das posições esquizoparanoide e depressiva, de Melanie Klein; de identificação projetiva, de W. R. Bion; de espaço potencial e objeto transicional, de D. W. Winnicott, por exemplo, embora mantenham uma relação dialética com estes conceitos.
A introjeção desta função de um objeto continente promoverá a delimitação e constituição de um espaço psíquico que permitirá a construção de subjetividade e identidade.
Nesse aspecto, seria importante a observação sobre a atitude complacente dos pais e dos profissionais próximos a ele ao acreditarem que Lucas simplesmente escolhia uma via de identidade - a homossexual. Diante das organizações defensivas operantes no funcionamento mental de Lucas, será que o fenômeno expressaria o exercício de uma escolha ou da falta de escolha?
Um momento normal e temporário do desenvolvimento emocional do ser humano pode vir a se fixar e se estabelecer patologicamente, constituindo a chamada "segunda pele", a qual se desenvolverá como defesa à ansiedade de falta de coesão interna. Assim, a "segunda pele" poderá se desenvolver e permanecer em funcionamento pelo uso excessivo de superfícies com características de adesividade, como propõe Meltzer (1986).
Quando a experiência da dependência da mãe é substituída pela pseudoindependência, observamos a função da pele continente sendo substituída pelo papel exercido pelos vestidos coloridos, como expressão da definição do entorno pela sensorialidade adesiva. Apresento esta hipótese para a função que os vestidos coloridos teriam na vida mental de Lucas.
Penso que haveria necessidade de investigar, no imaginário dos pais, se esta condição precoce de Lucas favoreceria a realização de desejos alheios a ele e que foram projetados em sua mente, originados de outras fontes emocionais, como transmissão psíquica transgera-cional. Quem desejaria ser uma princesa ou, mesmo, quem procuraria uma princesa como companheira? Estaria Lucas realizando estes desejos?
Na triangulação edípica, podemos considerar que é necessária a participação da mãe para favorecer a apresentação do pai ao filho e vice-versa. Porém, será importantíssima a força da presença do pai como quem interditará a relação mãe-bebê; principalmente, o bebê precisará ter recursos para dirigir sua atenção à mãe e ao pai. No caso específico do pequeno Lucas, este apego excessivo à reparação maníaca, voltada à figura da mãe, poderia complementar a falta de vigor psíquico por parte de seu pai e, assim, favorecer o desencontro do triângulo edípico? Além disso, haveria também considerável tenacidade, por parte de Lucas, para não abandonar a constituição da falsa pele psíquica?
Penso que estes conhecimentos foram fundamentais para a psicanalista propor aos pais o atendimento psicanalítico para Lucas e seus pais.
A função psíquica do analista, ao favorecer a construção de estados mentais comprometidos com a verdadeira experiência emocional, poderia colaborar na elaboração do significado da passividade em relação à manutenção e ao uso das roupas de princesas - muitas vezes, tão confusos para os pais de Lucas. Mesmo que este não seja o foco principal da atuação do analista, poderia oferecer recursos para o conhecimento e a transformação realística de fantasias terríveis. Desta maneira, propiciar que as identificações com objetos internos tão assustadores, como um furacão tão destruidor, venham a ser acompanhadas por condições mais transformadoras e reparadoras, a favor de seu desenvolvimento como pessoa, antes mesmo da constituição de sua identidade sexual.
A importância de se conhecer os estados mentais primitivos deve-se à sua função estruturante, pois na falta desta competência haverá prejuízos na construção da subjetividade.
Referências
Bick, E. (1987). A experiência da pele em relações objetais arcaicas. Jornal de Psicanálise, 20(21),27-31. (Trabalho original publicado em 1968) [ Links ]
Freud, S. (1976). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 13-83) Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923) [ Links ]
Klein, M. (1996). A análise de crianças pequenas. In M. Klein, Amor culpa e reparação e outros trabalhos (A. Cardoso, Trad., pp. 100-128). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923) [ Links ]
Meltzer, D. (1986). Identificação adesiva. Jornal de Psicanálise, 19(38),40-52. [ Links ]
Ogden, T. (1996). Sobre o conceito de uma posição autística-contígua. Revista Brasileira de Psicanálise, 30(2),341-364. (Trabalho original publicado em 1989) [ Links ]
Tustin, F. (1990). Formas autísticas exemplificadas na psicopatologia infantil. In F. Tustin, Barreiras autísticas em pacientes neuróticos (M. C. Monteiro, Trad., pp. 98-113). Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Correspondência:
Regina Elisabeth Lordello Coimbra
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Recebido em 17.11.2014
Aceito em 01.12.2014