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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo oct./dic. 2015
EM PAUTA
Metapsicologia, cem anos depois
Metapsychology, a hundred years later
Metapsicología, cien años después
Sandra Lorenzon Schaffa
Analista didata e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Este artigo propõe-se a considerar os destinos da teoria freudiana cem anos depois da publicação dos escritos metapsicológicos. Discute a tendência voltada para uma psicanálise mais leve, próxima da clínica, correlativa ao abandono do solo da sexualidade infantil e da teoria das pulsões. Interroga as consequências dos remanejamentos que o dispositivo analítico sofreu uma vez transposto o horizonte epistemológico em que foi pensado por Freud.
Palavras-chave: metapsicologia; pulsão; clínica atual; retorno a Freud.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the future of Freudian theory, one hundred years after Freud's metapsychological writings were first published. The author discusses the tendency towards a lighter psychoanalysis, which is closer to the psychoanalytic practice, and correlative to the abandonment of infantile sexuality and the abandonment of the theory of the instinctual drives. This paper questions the effects of changes in the psychoanalytic device, given that the epistemological horizon in Freud's thinking was crossed.
Keywords: metapsychology; instinctual drive; current psychoanalytic practice; return to Freud.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo considerar los destinos de la teoría freudiana cien años después de la publicación de los escritos metapsicológicos. Discute la tendencia dirigida a un psicoanálisis más leve, próximo a la clínica, correlativo al abandono del suelo de la sexualidad infantil y de la teoría de las pulsiones. Interroga las consecuencias de las reubicaciones que sufrió el dispositivo analítico una vez que se traspasó el horizonte epistemológico en el que fue pensado por Freud.
Palabras clave: metapsicología; pulsión; clínica actual; retorno a Freud.
Então é preciso mesmo que a feiticeira se intrometa.
(Fausto, J. W. Goethe)
Meu trabalho agora toma forma. Terminei cinco tratados:1 aquele sobre "As pulsões e seus destinos", que é sem dúvida um pouco árido, mas indispensável como introdução e que encontra, além do mais, sua justificativa nos seguintes, depois "O recalque", "O inconsciente", "Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos" e "Luto e melancolia". Os quatro primeiros devem ser publicados no recém-iniciado volume anual da Zeitschrift, guardo todo o resto comigo. Se a guerra durar muito tempo, espero reunir mais ou menos uma dezena de trabalhos semelhantes e entregá-los em seguida, em tempos mais serenos, à incompreensão do mundo sob o título: Tratados preliminares à metapsicologia.2 Viena IX, Bergasse 19, 4 de maio de 1915
(Sigmund Freud a Karl Abraham)
O conjunto de trabalhos metapsicológicos, escreve Freud na nota preliminar ao "Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos", propõe-se a "clarificar e aprofundar as hipóteses teóricas sobre as quais um sistema psicanalítico poderia ser fundado" (Freud, 1917/1968, p. 123). A intenção do autor compreende-se no contexto em que esse projeto foi concebido. A determinação psíquica da sexualidade e do inconsciente, desconsiderada por discípulos como Adler e Jung, levava a psicanálise rumo a uma psicologia geral. Era, pois, preciso explicitar os fundamentos da clínica que a discriminassem em relação a outras práticas. Frente à ameaça de dissolução de seu fundamento, Freud empenha-se em restabelecê-lo. O edifício metapsicológico deve assentar suas bases na pressuposição do caráter essencialmente pulsional da sexualidade.
A suspeita de Freud de que sua metapsicologia estaria destinada à incompreensão do mundo, sua consciência do estatuto escandaloso da sua teoria, será declarada de modo categórico em 1926, ao referir-se ao processo sofrido por Reik nos eua de prática ilegal da medicina, que condenava os fatores psíquicos sustentados pela psicanálise: "O analista médico que se abstiver de uma instrução rigorosa tentará melhorar a análise, arrancar-lhe as presas venenosas para torná-la agradável aos pacientes" (Freud, 2015, pp. 54-59).
A aridez que caracteriza o texto "As pulsões e seus destinos" - que introduz e justifica o conjunto da metapsicologia - não é apenas inevitável, mas inerente à própria proposição de Trieb no centro da teoria da sexualidade. "Freud admite pretender fundar sua teoria, mesmo percebendo a necessidade de admitir 'certa dose de imprecisão'. Nesse sentido, Trieb é designado como um conceito fundamental convencional, até o momento bastante obscuro" (Tavares, 2013, p. 77).
"Se não pudermos ver com clareza, ao menos vejamos com precisão as obscuridades" (lannini, 2013, p. 109). O aforisma serve-nos de guia no momento em que buscamos apreender como Freud propunha sua Trieb. O caráter distintivo da sexualidade humana opõe-se à vida sexual de outros animais - a sexualidade humana não é regulada como um instinto. O conceito de Trieb desafia inclusive a tradução.3 Lacan insistirá em manter essa distinção e criticará Strachey por obliterá-la na Standard edition. Ao reduzi-la a instinto, suaviza-se a aridez do texto, elimina-se o caráter escandaloso do conceito. A distinção semântica do termo com sua implicação teórica será, contudo, ignorada nas investidas de críticos da metapsicologia contra "as asserções biológicas subjacentes ao pensamento freudiano" (Meissner, 1981).
Nos primeiros parágrafos de "As pulsões e seus destinos", Freud detém-se numa explicitação de cunho epistemológico, discutindo o estatuto científico dos conceitos fundamentais da psicanálise (lannini, 2013, p. 100 ss.); conclui dizendo que mesmo os conceitos fundamentais fIXados pela convenção têm seu conteúdo constantemente modificado: "Um conceito fundamental, convencional a essa maneira e até agora bastante obscuro, mas do qual não podemos abrir mão na psicologia, é o de pulsão" (Freud, 1915/2013, p. 17).4 Nas Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933/1984), Freud reafirma esse caráter de indeterminação: "A doutrina dos Triebe é, por assim dizer, nossa mitologia. Os Triebe são entes míticos, grandiosos em sua indeterminação" (Tavares, 2013, p. 77).
A aridez do ensaio sobre a pulsão deve-se, assim, não à ordem textual de exposição, mas ao que aí está em jogo. O termo pulsão é introduzido por Freud em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.5 A teoria sexual, tal como Freud a apresentou ali, supõe uma não separação da função do saber e da teorização infantil na gênese do psiquismo: "a pulsão abraça a teoria", escreve Michel Gribinski, no prefácio da edição publicada pela Gallimard (1987, p. 18).
A pulsão é o laço que faz cair, a armadilha, o skandalon, ela é como uma catástrofe entre dois estados que ela separa e reúne, que ela não separará completamente, que também não unificará: é um conceito-fronteira, um conceito-contato entre alma e corpo, a vida do espírito e a sexualidade, a realidade psíquica e a biologia, einer der Begriffe der Abgrenzung, um dos conceitos de delimitação e demarcação, a palavra Abgrenzung tem os dois sentidos. [...] E porque ela é ao mesmo tempo conceito-contato e conceito-separador, a pulsão permite pensar a ligação, tanto a amorosa quanto a teórica, em sua perplexidade. (Gribinski, 1987, p. 18)
Metapsicologia: quem precisa dela?
"Metapsychology: who needs it?", pergunta W. W. Meissner (1981). O autor denuncia a situação precária da metapsicologia em nossos dias. Faz uma revisão das críticas que focalizam vários aspectos da metapsicologia e seu papel na teoria em psicanálise, classificando-as em torno de três eixos principais: o ataque às asserções biológicas subjacentes ao pensamento freudiano e ao pensamento psicanalítico; o ataque ao método de teorização da psicanálise; e as questões que foram levantadas quanto à natureza da teoria psicanalítica. A leitura do artigo coloca-nos frente à urgência em discriminar a natureza do pensamento metapsicológico.
Paul-Laurent Assoun (1981) procura apreender a identidade freudiana tomada em sua idiossincrasia histórica e pragmática; discernir a epistemologia que é imanente à forma de conhecimento freudiana.
Freud experimenta a necessidade de formular uma espécie de plataforma epistemológica. [...] Teoriza essa prática em uma "disciplina" específica sui generis para a qual produz um neologismo: a metapsicologia. [...] Enfim, ele não poderia fazer outra coisa, ao forjar os dispositivos originais de seu saber, ao construí-los referindo-os e refratando-os através dos modelos epistêmicos situados e datados que inscrevem o saber freudiano, no seu modo de produção, no universo epistêmico de seu tempo. (pp. 8-9)
No ensaio "Epistemologia da pulsão: fantasia, ciência, mito", Gilson lannini (2013) discute o estatuto epistemológico desse conceito fundamental, contextualizando-o no cenário científico da época.
Toda a formação científica de Freud foi realizada no ambiente duro do fisicalismo alemão, que deixou marcas em sua maneira de trabalhar. Mas, muito precocemente, Freud percebeu que a natureza do material empírico da psicanálise exigiria do pesquisador algumas habilidades não aprendidas em laboratório. [...] na discussão do caso Elisabeth, ele se surpreende com o fato de que as histórias contadas pelas pacientes deveriam ser lidas muito mais como romances. [...] desde o início, Freud estava advertido quanto à necessidade de forjar um método próprio, que transitasse entre registros discursivos diversos: era preciso combinar pelo menos o rigor conceitual do cientista natural com o rigor formal do poeta. (p. 107)
Especificidade do pensamento metapsicológico
Pierre Fédida, no encontro Metapsicologia e filosofia, Aixen-Provence, 1984, desenvolveu as implicações que são inerentes à metapsicologia, entre pensamento e técnica. A atividade de pensamento metapsicológico caracteriza a ordem de razão que é própria da psicanálise. "Supor uma especificidade de pensamento na psicanálise é interrogar o que se tornou o pensamento uma vez que seu destino se distingue decididamente daquele que a filosofia ocidental compreendeu e que a lógica e a filosofia explicaram" (Fédida, 1985, p. 45).
A metapsicologia não pode ser pensada pelos modelos epistemológicos das ciências, mostra Fédida, situando-a a partir de uma articulação entre techné e epistemé, entre técnica e saber, que era cara a Platão. A epistemologia implícita à teoria freudiana difere de outras disciplinas do pensamento na medida em que se define como um saber não filosófico ao mesmo tempo que implica uma técnica.
Os modelos teóricos assim formados têm a natureza de um pensamento especulativo fantasmático dentro de condições clínicas em que se põe em jogo constantemente a técnica do tratamento.
Não é suficiente pretender conceituar ou modelizar o tratamento e os fenômenos que aí acontecem: num certo sentido, isso diz respeito à competência de um filósofo, que poderia mesmo ser dispensado de ter tido a experiência de uma análise pessoal. Em contraposição, o que nossa prática de analistas nos impõe cotidianamente de modo evidente é pôr à prova nossas representações psíquicas e nossos modos de pensamento - como se fosse necessário ter por incontornável a necessidade de perder nossas seguranças para ganhar certezas inquietas - quero dizer, questionadoras. O questionamento analítico é essa insistência, que tem a ver com a resistência: e nada é mais ameaçador para a atividade da análise que a familiarização, que leva ao enfraquecimento da sensibilidade às resistências. (Fédida, 1985, pp. 47-48)
Para Fédida, a exigência metodológica da escuta impõe-lhe uma negatividade, permitindo dirigi-la o mais próximo do impronunciável do infante. Exigência de renunciar ao que compreendemos, vendo nossos arranjos se desfazerem sob o assalto da violência de o paciente não se querer curar. A exigência que a metapsicologia impõe ao método é a de sustentar uma negatividade do pensamento enquanto este é abraçado, sacudido, atacado pelo pulsional, seja qual for o conteúdo do abalo: perda, separação, luto, castração.
A pós-modernidade: uma psicanálise mais próxima da clínica?
Mas o que dizer da tendência que se impõe, nos nossos dias, de uma psicanálise mais leve, próxima da clínica? Que consequências esperar do abandono do solo da sexualidade infantil e da teoria das pulsões? Qual o destino da psicanálise ao abandonar a metapsicologia, sua referência matricial?6
A história da psicanálise mostrou novamente como poderia ter sido antecipado, a partir de um conhecimento da natureza humana, que a humanidade tem dois métodos principais de defesa contra as verdades desagradáveis: o primeiro, mais óbvio, e portanto menos perigoso, é a oposição direta, as novas verdades sendo negadas como falsas e denunciadas como execráveis; o segundo, mais insidioso, e muito mais poderoso, é o aquiescer às novas ideias com a condição de que o seus valores sejam descontados, as suas consequências lógicas não sejam inferidas e seus significados diluídos até poderem ser considerados "inofensivos". A oposição à psicanálise, particularmente na América, está assumindo cada vez mais o segundo destes métodos, sob todos os tipos de disfarces falaciosos e com a ajuda de várias expressões sedutoras que apelam para atitudes ou princípios inteiramente legítimos em si mesmos, como "resistência ao dogma", "liberdade de pensamento", "alargamento da visão", "reajuste de perspectiva", e assim por diante. Que esta oposição não somente tenha sido exibida por antagonistas de fora, mas assuma formas sutis também entre aqueles que têm um conhecimento mais próximo do assunto, já foi mostrado em duas ou três ocasiões notáveis e será sem dúvida mostrado novamente no futuro. Uma notável, e talvez única, característica desta segunda forma de defesa contra a psicanálise é que ela esconde sua natureza antagônica negativa fingindo desenvolver uma atitude mais positiva em relação à psicanálise; faz uso de seus termos técnicos, libido, repressão, etc., mas de maneira a tirar-lhes o seu significado intrínseco. (Jones, 1920, p. 3)
A advertência de Ernest Jones, em 1920, cuja inquietante pertinência nos permite citá-la extensamente aqui, é evocada por Laurence Kahn na introdução do livro O psicanalista apático e o paciente pós-moderno (2014). A autora analisa os remanejamentos sofridos pela metapsicologia na produção científica de âmbito internacional da psicanálise desde que optou por uma hermenêutica pós-moderna. Vale-se, além de sua experiência psicanalítica, de sua cultura de historiadora, epistemóloga, de sua leitura germanofônica do texto freudiano.
Através de um exame crítico da produção teórica recente, evidencia como, por caminhos variados, a psicanálise conduziu-se exatamente em direção ao resultado denunciado por Jones, ao pior. O pior não acontece quando a psicanálise está sob o alvo da crítica dos defensores das ciências duras, diz ele, mas quando o inimigo é intimo, quando os próprios psicanalistas ignoram sua especificidade.
Retrospectivamente, pode-se dizer que a firmeza de Jones só é tão justa quanto a sua premonição. Por certo, a paisagem mudou. Mas os caminhos variados do "pós-moderno" em psicanálise conduziram ao mesmo resultado, o afeto está em vias de tornar-se a divisa de uma prática que se quer governada pela sensibilidade, caução de uma experiência viva da sessão e do tratamento, em detrimento do sexual. Liquidando a metapsicologia na velocidade atribuída aos feelings, colocando a verdade sob o signo do relativismo subjetivo e a prática sob o signo do "diálogo", a relação "empática" afirma a existência de um campo interativo, único território possível de uma prática mútua que os analistas ditos clássicos teriam omitido. (Kahn, 2014, p. 8-9)
Desde o título, irreverente, a perspectiva da autora provoca. Trata-se de reivindicar, para a psicanálise, a figura politicamente incorreta do analista apático. Devolver-lhe a dignidade postulada pelo termo freudiano Indifferenz (traduzido por neutralidade em francês, assim como em português). A indiferença na qual se sustenta o método "zomba da coerência e da superfície racional". Para Freud, "essa frieza ia junto com a audácia da especulação e não apenas com o 'domínio da contratransferência'"; ela visa discordancias: "traços do que o inconsciente faz com a lógica quando a censura e a indiferença enérgica se intrometem" (Kahn, 2014, p. 9).
A expressão psicanálise pós-moderna, postulada por analistas, inclusive no âmbito da IPA, toma corpo a partir da conferencia que Arnold Goldberg pronunciou durante um congresso da ipa em Nice, 2001, cujo tema era O método da psicanálise e suas aplicações: "Postmodern psychoanalysis" (Goldberg, 2001).7 Goldberg e, com ele, numerosos autores referem-se a A condição pós-moderna, ensaio crítico de Jean-François Lyotard (1979).
O projeto de Goldberg opõe-se ao que considera o rigorismo de uma inspiração freudiana estrita. Isso inclui a eliminação do modelo da "frieza" freudiana. O abandono da indiferença, sua neutralidade silenciosa, da associação livre e da dissimetria. Desconsidera o dispositivo da transferência e sua referência a um terceiro, optando por um modelo "empático", pela conversa livre de uma dupla. Quais as consequências desses tais remanejamentos? O que resta ainda do dispositivo analítico?
O método torna-se diferente daquele que Freud pensava ser o mais apropriado para favorecer o desenvolvimento da transferência. A prática, sob o signo do diálogo, através do engajamento "empático", "afirma a existência de um campo interativo, único território possível de uma prática mútua que os analistas ditos clássicos teriam omitido" (Kahn, 2014, p. 8). A confiança atribuída aos feelings, colocando a verdade sob o signo do relativismo subjetivo, renuncia à dimensão econômica. "A potência do afeto tanto se impõe que se propõe substituir o ponto de vista pulsional por um ponto de vista afetivo" (Kahn, 2014, p. 9).8
Ao mesmo tempo que o afeto torna-se o foco da atenção terapêutica, a situação é contextualizada na dimensão do "aqui e agora", que substitui pouco a pouco a atenção flutuante. A dissimetria da relação analítica é contestada e, com ela, a frieza requerida por Freud, tanto nas observações sobre o amor de transferência quanto nos conselhos aos médicos. A dissimetria inerente à sustentação da transferência é abandonada em prol da comunicação interpessoal. No lugar da associação livre, uma conversa livre, em que a empatia e a "consensualidade" poderiam dispensar a exigência de conhecimento teórico do analista, a consideração ao conteúdo latente dos sonhos, a divisão fundamental do sujeito, o papel do inconsciente.
O argumento clínico de que as patologias atuais, muito-diferentes-das-neuroses-tratadas-por-Freud, são casos-limite, caracterizando-se por falhas narcísicas de fundo, impõe-se como exigência de uma intervenção construtora, visando a restauração da integridade do eu. Uma relação terapêutica empática, dual, buscaria recompor uma identidade fraturada. Mas que consistência esperar de um tratamento que descarta a referência metapsicológica à pulsão e ao inconsciente, ignorando a reação terapêutica negativa, o masoquismo, a autodestrutividade? Fundar o trabalho da escuta na atualidade das presenças em lugar de considerar a condição sintomática, transferenciai da fala, limitar-se ao registro autodescritivo da fala, referida à experiência relacionai simplesmente, ignorando as forças de repetição, de desligamento, cujo poder de tratamento a metapsicologia atribui ao sonho? O sonho, como atividade de transferência, supõe a inatualidade de sua memória, coloca-se na base de uma dissimetria na escuta. A metapsicologia do sonho despedaça a visão da identidade, é potência de rompimento de ligações sob o regime das transferências que realiza. É nessa medida que se oferece como paradigma do tratamento.
Uma tal crise já fora denunciada por Theodor Adorno, enquanto convidado da International Psychoanalytical Association, no ensaio La psychanalyse revisée (1946/2007), a partir dos desvios teóricos de Karen Horney e Erich Fromm. Adorno chamou a atenção ao esquecimento da "face sombria do homem; sua crueldade, seu irremissível desamparo, sua propensão natural à anulação, em resumo, sua 'realidade inumana' de humano" (pp. 37-39).
Laurence Kahn trata de evidenciar o empréstimo apressado feito a filósofos franceses como Foucault, Derrida, Ricoeur e Lyotard. Empréstimo problemático, mostra, através do qual, por meio de mal-entendidos, incoerências, o relativismo pós-moderno teria liquidado a energética freudiana com o fim de tornar a psicanálise um objeto adaptado à mentalidade dos nossos dias. Ajustá-la a um modelo mais consumível, afeito à nossa demanda. O que se evidencia é um desconhecimento de sua especificidade epistemológica, que antes consideramos com base em Pierre Fédida, uma negligência propícia à realização de operações movidas por determinações ideológicas extrínsecas ao objeto psicanalítico ao custo de um estado de dispersão do dispositivo analítico sob os golpes de seus rearranjos sucessivos.
"Retorno a Freud"?
A problematização feita por Laurence Kahn na tradição dos analistas franceses, inaugurada por Lacan, dá-se como um "retorno a Freud". "Retorno a Freud" cujo sentido é trabalhar o texto freudiano, rigorosamente, no sentido de resistir à simplificação, de um lado, e à dogmatização, de outro.
Em 1998, um volume comemorativo dos cem anos do nascimento da psicanálise reuniu importantes autores da psicanálise francesa, entrevistados por Patrick Froté. Buscava-se ali avaliar os rumos da disciplina desde a sua invenção. Se o "retorno a Freud" é o que dá especificidade à psicanálise francesa, este se fez como um constante aprofundamento.
Laplanche é um dos autores que mais claramente reconhece a herança lacaniana:
Podemos dizer que a psicanálise francesa - essencialmente na esteira de Lacan - [...] levou a um aprofundamento considerável, um verdadeiro "retorno a Freud". Penso que cabe à psicanálise francesa, ainda hoje - direi: a missão - de ser não o defensor da ortodoxia freudiana, mas o propagador de um pensamento sobre Freud que não deixa cair Freud. Pois é bem o que faz a psicanálise americana: quando ouvimos certos psicanalistas americanos dizer que três quartos da obra de Freud são sem interesse e que, por exemplo, poderíamos abandonar todos os aspectos culturais e filosóficos, e mesmo metapsicológicos, do pensamento de Freud. Além do mais, não leem, em geral, senão o décimo volume da obra freudiana! (Froté, 1998, p. 201).
Para Laplanche, a preocupação com os conceitos leva em conta que a leitura de Freud é sempre tradução. Refere-se a Antoine Berman, A prova do estrangeiro (1984). Essa alusão ao estrangeiro desviante é essencial ao se examinar a ideia de que a psicanálise francesa seria a guardiã do pensamento freudiano. Podemos ouvir a palavra guardiã no contexto em que foi empregada por Freud: o sonho é o guardião do sono. A função de guardião da vida psíquica e de sua capacidade de pensar é o contrário de uma ortodoxia. Trata-se menos de propagar as ideias freudianas que de prolongar o seu questionamento.
O título de seu livro, Depois de Freud, define a posição de Pontalis. O objetivo aqui não é constatar que "Freud está ultrapassado"; "se fosse preciso estabelecer uma constatação, convidaria não a uma ultrapassagem, mas a uma leitura" (1968, p. 11). Pontalis evoca várias maneiras de se situar depois de Freud:
Não se trata de proclamar: "Freud está ultrapassado!", em função do que distinguiremos o joio do trigo, o que está caduco do que merece perdurar. Trata-se, ao contrário, do que seja pensar... depois de Freud. Isso se endereça aos filósofos, porque a obra freudiana, mostrando a existência de "um pensamento inconsciente", conduz, mais que a uma reforma, a uma revolução do entendimento, e podemos, qualquer que seja o domínio no qual trabalhemos, ter em conta essa revolução. (Froté, 1998, p. 498)
Pontalis avalia o que foi seu "retorno a Freud" frente à "palavra de ordem de Lacan", rememorando o momento em que essa palavra de ordem foi efetivamente seguida. Nos anos 1950, Freud era desconhecido, pouco ou mal traduzido, "os psicanalistas faziam referência - reverência - a Freud, citando tal ou tal fórmula, mas não iam ver. O retorno era então isso: vamos lá ver!" (Froté, 1998, p. 498).
O mais impressionante exemplo dessa experiência foi certamente o Vocabulário da psicanálise (Laplanche & Pontalis, 1967). Conta Pontalis que não conheciam a obra freudiana, o que caracteriza um verdadeiro trabalho de investigação: "nós não aplicamos um saber preestabelecido para constituir o Vocabulário, não, nós buscávamos, sendo frequentemente surpreendidos pelo que encontravamos à medida que penetrávamos nos textos e estabelecíamos conexões" (Froté, 1998, p. 499).
Para Pontalis, o que é a metapsicologia?
Eu diria que é o inconsciente da prática. [...] Freud não eliminou toda a psicologia, mas, acrescentando meta, sublinha que o que quer edificar é uma psicologia fundada sobre o primado do inconsciente, não mais o da consciência. Passamos do "eu penso" cartesiano e de seus avatares ao "Isso pensa". Falar, como ele faz, de representações, de pensamentos inconscientes, não é fácil. No entanto, o sonho é a melhor prova de que o Isso existe. (Froté, 1998, p. 501).
A pulsão e o desejo de Freud
Teria Freud achado uma maneira específica de pensar e teorizar a psicanálise - pelo recurso à feiticeira metapsicologia - que, se não o garantiu contra momentos de sínteses e de fechamentos totalizantes, momentos mais resistenciais, conseguiu salvá-lo a cada vez da estagnação doutrinária e de um pensamento homogeneizado em uma coerência "científica", que se poderia tornar uma psicologia, mas jamais a psicanálise? (Menezes, 2008, p. 86).
"Do Trieb de Freud e do desejo do analista", o artigo de Lacan (1966) contemporâneo ao seminário 11, sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, faz emergir a noção de desejo do analista. No horizonte em que se colocava para Freud o ideal da ciência como concepção da análise, Lacan coloca o desejo do analista. Introduz o desejo do analista no lugar do ideal científico, dando espaço na sua elaboração ao sujeito forcluído da ciência. O saber psicanalítico é legitimado pelo desejo que o propulsiona.
É bem certo que nenhum psicanalista poderia representar, da forma mais estreita que fosse, um saber absoluto. É por isso, em certo sentido, que podemos dizer que aquele a quem podemos nos dirigir só poderia ser um único. Esse único foi, na sua vida, Freud. Pelo fato de que Freud, no que diz respeito ao inconsciente, era legitimamente o sujeito que poderíamos supor saber [...] mas ele não foi somente o sujeito suposto saber. Ele sabia, e nos deu esse saber em termos que poderíamos dizer indestrutíveis porquanto, depois que foram emitidos, suportam uma interrogação que, até o presente, não foi esgotada. (Lacan, 1973, p. 211)
Se o tomarmos em um sentido radical, o "retorno a Freud" terá sido o de denunciar o rebaixamento do sujeito ao ego e o pensamento às formações de síntese teóricas. A doutrina freudiana transformada em um discurso homogêneo ignora o desejo que a propulsiona. Então é preciso mesmo que a feiticeira se intrometa. Pois, tratando-se da feiticeira, é o desejo do analista que é convocado. Lacan suscitou - instituiu - na psicanálise francesa esse movimento de retorno à obra freudiana com "esse dom que era o seu de acordar a psicanálise de seu sono dogmático" [Pontalis (Froté, 1998, p. 499)], mas como preservar essa inspiração do risco de que se torne um novo dogma a espantar a feiticeira?
Notas
1 Os cinco ensaios que conhecemos sob o título de Metapsicologia: "Triebe und Triebschicksale" ["As pulsões e seus destinos", tradução de Pedro Heliodoro Tavares (Freud, 1915/2013)]; "Die Verdrängung" ["O recalque", tradução de Luiz Alberto Hanns (Freud, 1915/2006d)]; "Das Unbewusste" ["O inconsciente", tradução de Luiz Alberto Hanns (Freud, 1915/2006a)]; "Metapsychologische Ergänzung zur Traumlehre" ["Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos", tradução de Luiz Alberto Hanns (Freud, 1917/2006e)]; "Trauer und Melancholie" ["Luto e melancolia", tradução de Luiz Alberto Hanns (Freud, 1917/2006b)].
2 Seus temas são conhecidos, mas apenas um desses manuscritos, "As neuroses de transferência em geral", foi descoberto (em 1968, tendo sido editado em 1983, sob os cuidados de Ilse Grubrich-Simitis). Os demais - "A consciência", "A angústia", "A histeria de conversão", "A neurose obsessiva" e, provavelmente, "A sublimação" e "A projeção" - nunca foram encontrados.
3 "Decidir-se de modo acrítico por uma tradução descomprometida pode fazer desse Trieb uma espécie de clandestina que cruza as fronteiras para o 'lado' biológico-corporal ou para o psíquico-cultural, naturalizando- se em uma ou outra região. Acontece que Freud não pretendeu naturalizá-lo em qualquer território previamente definido, mas antes preservar sua característica seminal fronteiriça e, portanto, apátrida" (Tavares, 2013, p. 77).
4 Laznik observa que "essa introdução justifica a démarche de Lacan, que começa a abordar um dos pontos de contradição maior no texto freudiano, o da confusão possível entre o registro da pulsão e o da necessidade vital" (2014).
5 Da pulsão ao desejo, a mitologia pulsional constitui o próprio fundamento da metapsicologia freudiana. Freud se refere a ela do "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1950[1895]/2006c) até "Análise terminável e interminável" (Freud, 1937/2010).
6 Como discute Luís Carlos Menezes em seu artigo "O pensamento metapsicológico, referencial matricial da psicanálise" (2008).
7 Ainda: "On the scientific status of empathy" (Goldberg, 1983); "Psychoanalysis and negotiation" (Goldberg, 1987); "Changing psychic structure through treatment: from empathy to self-reflection" (Goldberg, 1988); "It is all interaction" (Goldberg, 1996).
8 Cf. "Incentives for a reconsideration of debate on metapsychology" (Zepf, 2001).
Referências
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Correspondência:
Sandra Lorenzon Schaffa
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Recebido em 01.12.2015
Aceito em 15.12.2015