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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo oct./dic. 2015

 

TRABALHOS PREMIADOS

 

O rei e a omelete de amoras1

 

The king and the blackberry omelet

 

El rey y la tortilla de zarzamoras

 

 

Margaret Waddington Binder

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora fala da dificuldade no atendimento de alguns casos difíceis e da necessidade da escrita do analista para a elaboração posterior de aspectos contratransferenciais e sua utilização nestes atendimentos. Traz um caso de uma paciente terminal, que vive uma doença dramática e usa a análise para tentar manter-se minimamente organizada. Fica evidente o enorme trabalho psíquico que deverá ser feito pela dupla, analista e analisando, para lidar com a morte próxima da paciente, quando passa a haver uma grande expansão libidinal, assim como um aumento do seu apetite relacional, enquanto se desenvolve uma relação transferencial profundamente regressiva, exigindo do analista uma boa capacidade de rêverie.

Palavras-chave: psicossomática; paciente difícil; aspectos transferenciais e contratransferenciais; intervenções não usuais.


ABSTRACT

This paper is about the difficulty in treating some difficult cases. The author writes about the need of psychoanalyst's notes, in order to further elaborate countertransferential aspects, and to use it in those therapy sessions. The author brings a case of a terminal patient, who has been suffering from a terrible disease. That patient has used her therapy as a way to keep herself (her mind) reasonably organized. It's evident the very hard psychic work that must have been done by both, therapist and patient, in order to deal with that patient's imminent death. At that time, a great libidinal expansion happened to exist, and the patient's relational appetite started increasing, while a deeply regressive transferential relationship has been developed, which has required from the therapist a great ability of rêverie.

Keywords: psychosomatic; difficult patient; transferential and countertransferential aspects; unusual interventions.


RESUMEN

La autora habla de la dificultad de la atención en algunos casos difíciles y de la necesidad de la escritura del analista para la elaboración posterior de los aspectos contratransferenciales y su utilización en esos casos. Presenta el caso de una paciente terminal, que vive una enfermedad dramática, y utiliza el análisis para tratar de mantenerse mínimamente organizada. Es evidente el inmenso trabajo psíquico que deberá ser hecho por la pareja, analista y analizado, para lidiar con la muerte próxima del paciente, cuando empieza una gran expansión libidinal así como un aumento de su apetito de relacionarse, mientras se desarrolla una relación de transferencia profundamente regresiva que requiere del analista una buena capacidad de rêverie.

Palabras clave: psicosomática; paciente difícil; aspectos transferenciales y contratransferenciales; intervenciones inusuales.


 

 

Existem viagens em que vamos para longe, muito longe. Planejamos roteiros, fazemos malas e vamos. Mas existem viagens em que vamos ainda mais longe, sem mesmo sair do lugar. Desta vez, fui longe, várias vezes. Fui ao Oriente, ver a temporada das cerejeiras em flor, e acabei viajando para dentro de mim e também para o mundo de Akiko.

Surpreendi-me por estar tão longe, viajando, em férias, vivendo quase um sonho, e pensar num caso clínico que havia atendido já há alguns anos. Aquele lugar, aquelas cerejeiras em flor, a magnitude daquele momento me fizeram pensar na vida e em como tudo era passageiro, tal qual aquela florada. Pensei neste e em todos os pacientes difíceis e terminais que venho atendendo ao longo de muitos anos. Dei-me conta de que estes pacientes, em especial, ficam durante muito tempo em nossas vidas, mesmo depois de já terem ido embora.

O que eles buscam quando me procuram como analista? Será que querem dar um sentido àquela doença? Será que buscam sentido para as suas vidas para poderem então suportar a ideia de partir? Ou quem sabe buscam a chance de pelo menos uma última e grandiosa florada antes de morrer? Ou querem que eu diga como podem viver enquanto esperam a morte? Qual é o meu papel nestes atendimentos?

Li há algum tempo um artigo sobre o porquê de escrever sobre o nosso trabalho clínico. Não só o porquê, mas a necessidade mesma de escrevermos sobre nossos pacientes. Este artigo dizia que, quando escrevemos sobre um caso clínico, nos distanciamos dele. É a chance que temos de, após aquele atendimento, recuperarmos novamente a nossa identidade, o nosso Eu. E, de certa forma, também liberarmos espaço psíquico para um novo atendimento. Num trabalho como o nosso, solitário, sigiloso e intenso, poucas vezes temos a oportunidade de elaborar as diversas experiências marcantes que nele vivemos. Estamos sempre no lugar mais neutro, deixando o foco de luz para que o outro possa aparecer, o que não quer, de forma alguma, dizer que estamos fora daquele processo. Nós, analistas, também precisamos elaborar sentimentos, emoções, situações contratransferenciais que foram despertadas durante aquele encontro. Somos peça-chave: nossas emoções, nossas trajetórias são talvez nossa maior ferramenta para fazer daquele encontro tão penoso e difícil um encontro que produza trabalho mental.

Nunca é fácil atender um paciente que nos procura em nosso consultório. Nunca é fácil atender um paciente que, além de estar sofrendo emocionalmente, também sofre fisicamente. Nunca é fácil atender um paciente que está morrendo.

Este é um desses casos.

Akiko é o nome que darei a esta paciente que atendi por dois anos, mas sobre a qual só agora, após uma viagem intensa e impactante, tenho a vontade de escrever - ou talvez, melhor dizendo, tenho condições de escrever.

Dei-lhe este nome por conta de Akiko, a concierge do hotel em que estava hospedada. Havíamos conversado longamente, por e-mail, sobre datas, passeios, lugares. Ao vê-la nos recebendo, tão suave, respeitosa, com uma fala mansa e delicada e um sorriso tímido, tive uma imediata sensação de acolhimento. Estava tão longe, não entendia qualquer palavra daquele idioma, mas imediatamente senti-me em casa e lembrei-me da minha Akiko, quando a vi pela primeira vez em meu consultório. Miúda, delicada, tímida e respeitosa. Pela qual também senti uma empatia imediata. Apesar de estrangeira, falando com sotaque, imediatamente entendi que falaríamos um mesmo idioma, falaríamos a linguagem do afeto.

E assim começavam minhas diferentes viagens.

Akiko me procurou quando estava com 53 anos. Uma estrangeira que estava no Brasil há alguns anos. Havia imigrado apenas com sua família nuclear: ela, o marido e uma filha. Todo o resto da família havia ficado na sua cidade de origem. Trabalhava como executiva de uma grande empresa. Havia descoberto que tinha um câncer gravíssimo, fazia o tratamento indicado, mas achava que não aguentaria. Pensava em desistir. Pelas informações que eu havia recebido, de fato tinha poucas chances ou quase nenhuma.

Vivia o seu câncer como uma traição da vida, afinal, sempre tivera uma vida saudável. Jamais fumou, sempre fez exercícios, alimentou-se de forma saudável, sendo vegetariana há muitos anos. Era budista e a religião tinha um papel importante na sua vida, o que até aquele momento me era difícil de entender. Achava que a sua doença era um carma pendente de uma outra vida e que precisava ser vivido. Mas ao mesmo tempo sentia-se envergonhada por estar doente. Era uma quase atleta, uma quase religiosa, por que estava sendo castigada daquela maneira tão brutal? Tinha raiva dos amigos que atribuíam o câncer ao seu jeito de ser. Uma pessoa mais fechada, discreta nas questões pessoais, tímida. Nunca falou de si ou de seus sentimentos, e estar ali comigo certamente lhe era extremamente penoso.

Sempre trabalhei bastante com este tipo de situação, atendi pacientes em momentos muito difíceis, alguns pacientes terminais como Akiko. E o que me ficou bastante claro é que a morte é talvez o acontecimento psíquico de maior magnitude que vivemos: quando trabalhamos com ela, quando ela está presente em nossos consultórios, certamente nosso trabalho torna-se mais pesado.

Estes são casos que demoram mais a nos deixar, permanecem em nós como se precisássemos de mais tempo para digerir aquela experiência. Cada vez que atendemos um paciente terminal, de certa forma, morremos um pouco com ele. Somos obrigados a enfrentar a nossa finitude, a nossa impotência frente àquela situação, a morte daqueles que amamos. E, principalmente, somos obrigados a não perder de vista que a finalidade de nosso trabalho naquele encontro tão difícil, naquele encontro-limite, é criar psiquismo, condições mentais, estrutura para que aquele paciente possa suportar as agruras do seu viver e também do seu morrer. Com estes pacientes, precisamos manter as portas abertas para nós mesmos, para nossos afetos. Caso contrário, ao invés de pouco, morremos muito com eles. Frequentemente, as pessoas que estão ao redor de um paciente terminal, até mesmo os médicos, acabam afastando-se dele. Um movimento que é, na maior parte das vezes, inconsciente, como uma tentativa de evitar o sofrimento, de escapar da morte. O paciente, por sua vez, faz um movimento contrário, um movimento passional. Na hora em que seus vínculos com o mundo externo vão se desfazendo, se rompendo, se deteriorando, ele começa a superinvestir seus objetos de amor. A proximidade da morte faz com que a sua necessidade de trocar com o outro seja aumentada significativamente. Como se precisasse de um último objeto disponível para, num último sprint, poder colocar-se no mundo por inteiro, sem disfarces, antes de desaparecer. Como se precisasse ter a chance de uma grande florada antes de partir.

Kurt Eissler (1955) fala de uma disponibilidade absoluta: uma morte que é partilhada com outro, que permanecerá vivo e que seguirá vivo, agora carregando consigo aspectos daquele paciente que se foi, afetos daquele encontro, registros daquela história. Dessa forma, aquela dor, agora partilhada com o outro, pode ser mais bem suportada. O paciente, de certo modo, vive isso como uma estratégia, uma maneira de continuar vivo, só que no outro.

O que vemos, então, no consultório é o paciente estabelecer com o analista uma relação transferencial fortíssima, com aspectos bastante regressivos. Aquele paciente se engajando de corpo e alma numa última experiência relacional. Novamente uma díade, desta vez a última díade, que será muito semelhante à primeira díade do ser humano: a díade mãe-filho. E o paciente pode finalmente ficar pacificado ao perceber que aquele último objeto escolhido não vai se esquivar, não vai se furtar àquele encontro tão intenso e, portanto, ele não precisará retirar libido também deste objeto, tal qual vinha fazendo com todos os outros objetos do mundo externo.

Janice Norton (1963) diz que o essencial destas terapias, seu objetivo maior, é ajudar ao máximo, facilitar mesmo, a instalação e o desenvolvimento desta relação transferencial extremamente regressiva - uma forma de proteger o paciente de todos aqueles sentimentos de perda objetal e de angústia frente ao desconhecido, que normalmente está vivenciando.

E lá estava eu com Akiko.

Akiko havia passado por momentos muito difíceis ao longo de sua vida e há anos lutava com um casamento que não lhe trazia qualquer benefício ou prazer. Há anos sem qualquer vida sexual. Mantinha esta relação pela filha e também numa tentativa de ajudar o marido a sair da situação precária na qual havia se colocado. Justo no momento em que conseguia se desvencilhar desta relação penosa, quitar dívidas, arrumar a vida da família, justo no momento em que iria finalmente viver para si, foi surpreendida com este câncer brutal. A vida a traiu, seu corpo a traiu. Um corpo há muito esquecido e que agora despertava exatamente no curso de uma doença tão grave. Ou talvez esta tenha sido a única forma possível de este corpo despertar.

Fomos aos poucos refazendo o seu passado, lembrando a sua infância, sua história familiar. Quando pequena, vivia doente. Ficava em casa, quieta, sem poder brincar nem ir à escola. Sobre o seu corpo, sempre tinha a lembrança de muito mal-estar e febre. Havia deixado seu país de origem, seus parentes, família, amigos, e agora o marido. Muitas separações, rompimentos importantes. E agora aquela doença.

Em algumas sessões, Akiko parecia que voltava no tempo. Falava sem parar da sua cultura, sua terra, sua gente, como se ao fazer aquele movimento regressivo pudesse de alguma forma recuperar a sua história. Estava ficando cega, tinha dificuldades para vir ao consultório, mas insistia. Dava um jeito. Vinha junto com uma amiga ou com a irmã que tinha vindo acompanhá-la na doença. Sua filha, neste momento, já tinha retornado definitivamente para seu país de origem. Seu médico insistia em não falar a verdade sobre a evolução da sua doença.

No dia anterior a uma destas sessões, sua irmã havia me telefonado. Estava muito aflita, pois Akiko estava péssima, não conseguia sair da cama, não parava de vomitar, já não bebia nem água. O médico havia tentado variadas medicações, soro endovenoso, mas ela continuava a vomitar. Pedi que a trouxesse assim mesmo e, caso não conseguisse, dispus-me a ir até sua casa. Akiko estava exausta. Acho que o esforço que vinha fazendo para controlar o que sentia, aquela avalanche de emoções, a estava consumindo e começava a se desorganizar psíquica e somaticamente.

Chegou muito abatida. Parecia exaurida. Tinha emagrecido terrivelmente. Seu médico disse que não tinha motivos para estar assim. Toda a medicação disponível, via oral, injetável, endovenosa, já havia sido tentada em vão. Não havia feito a quimioterapia nas últimas semanas e não tinha motivos para vomitar sem parar.

Akiko me contou que doía muito. Tudo doía por dentro. Não conseguia segurar nada dentro, vomitava tudo o que ingeria. No entanto, pensava sem parar em comer, quase como uma ideia fixa.

"Comer o quê?", eu lhe perguntei. E ela me respondeu quase em desespero:

CARNE. E eu sou vegetariana, há muitos anos. Raramente comi carne na vida. Parece um demônio entrando na minha cabeça. Fico deitada todo o tempo, mal consigo me mexer de tanta fraqueza e mal-estar, mas sonhando o tempo todo com pratos.

"E que pratos são estes?" Ela, então, começou a contar-me de sua infância, quando depois de uma guerra precisara se mudar. Foi com sua família para um vilarejo, juntamente com outros refugiados. Sua mãe só conhecia o arroz, mas ao norte já utilizavam farinha de trigo. E era apenas o que tinham naquele momento, farinha de trigo. Na hora das refeições, a mãe dizia: "Hoje vamos comer uma borboleta", e preparava bolinhos de farinha de trigo em forma de borboleta. No dia seguinte, eram orelhas de ratinho, línguas de gato, estrelinhas do céu, colares da princesa. E nos dias de festa, aniversários e comemorações, comiam pés de galinha ou pés e asas de pato assados. "Era uma delícia", ela me contou. Nunca se sentira pobre ou humilhada, pelo contrário: lembrava-se da sensação de felicidade que sentia quando todos se sentavam e tentavam adivinhar qual seria o prato do dia. Aquilo era o que os deixava felizes. E Akiko foi se lembrando de todo um passado até então esquecido.

Estava muito emocionada e começou a falar no seu idioma natal. Eu levei um tempo para perceber que ela falava no seu idioma, e não em português. E não tive qualquer necessidade de perguntar o que ela me dizia, do que falava. Era como se eu pudesse entender perfeitamente o que me contava. Um diálogo entre dois idiomas completamente diferentes, mas que na realidade era muito mais. Um diálogo entre um bebê muito regredido e sua analista, que naquele momento exercia transferencialmente a função de mãe, fazendo o possível para que ela ficasse um pouco mais confortável com o que vivia. Era a tão falada díade, sendo vivida transferencial e contratransferencialmente, entre uma paciente-bebê e sua analista-mãe.

Ficamos um bom tempo em silêncio e então perguntei se ela conhecia a história do rei e a omelete de amoras - o conto de Walter Benjamim, o qual havia lido recentemente e que surgiu na minha mente como um pensamento selvagem. Resolvi contar-lhe a história:

Era uma vez um rei que chamava de seu todo o poder e todos os tesouros da terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava mais melancólico a cada ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: "Por muito tempo tens trabalhado para mim, com fidelidade, me tens servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti grande afeição. Porém, desejo agora uma última prova de teu talento. Deves cozinhar-me uma omelete de amoras, tal qual saboreei há cinquenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época, meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando por fim topamos com uma choupana. Aí morava uma senhora, que gentilmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão. Não muito tempo depois, estava à nossa frente uma omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a senhora nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a tal omelete de amoras. Se cumprires agora meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro do meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer". O cozinheiro então disse: "Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que o batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer, pois apesar disso minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes e que deixou no senhor esta impressão inesquecível? Faltará o perigo da batalha e a vigilância do fugitivo perdido. Não será a omelete comida com o sentido alerta do perseguido. Não terá o descanso no abrigo estranho e o calor do fogo amigo, tampouco a doçura da inesperada hospitalidade de uma velha. Não terá o sabor do presente incomum e do futuro incerto". Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois consta haver dispensado dos serviços reais o cozinheiro, rico e carregado de presentes. (Benjamim, 1985, p. 219-220)

Ao acabar a história, ficamos um longo tempo em silêncio. Depois eu disse:

Akiko, o que você tem procurado ao longo desta doença é a presença da sua mãe, aquela mãe que conseguia fazer da simples farinha de trigo uma refeição deliciosa e encantada.

Uma refeição cheia de expectativa, criatividade, graça e esperança, que você e seus irmãos compartilhavam. Você tem saudades da alegria das pequenas coisas, da ternura da sua mãe que transformava farinha de trigo em asas de borboleta, orelhas de rato, línguas de gato, colar de princesa e com isso fazia o medo e a fome passarem. Você está com muito medo.

Akiko chorou muito. Mas riu também, como se tivesse ficado confortada com a confrontação de que, embora ela estivesse longe da mãe, tinha tido o privilégio de ter uma mãe como aquela. E, de certa forma, transferencialmente estava de novo perto da mãe. Lembrou-se do seu avô materno: quando ela estava doente e para diminuir sua tristeza, seu avô a colocava no colo e contava histórias infantis. Lembrou-se de como aquilo a acalmava.

Chorando, Akiko me disse que odeia mamão. Naquele dia, antes de ir à sessão, prepararam-lhe um mamão, para ver se ela se animava a comer. Odiava tudo aquilo, odiava tudo na geladeira.

Perguntei então se o que ela odiava não era a sua doença, o sentimento de estar sendo castigada, o mal-estar que vinha sentindo há tanto tempo, a incerteza, o medo do futuro, do que aconteceria com ela. Estava humilhada, pois não lhe diziam a verdade sobre a sua doença. Obrigavam-na a comer carne. Tinha dificuldade em aceitar a indicação deste tratamento. Queria discutir, avaliar se este valia mesmo a pena. Levava trabalhos que havia garimpado na internet sobre o seu câncer, trabalhos estes que eram literalmente ignorados pelo seu médico que desprezava o "Dr. Google". Os médicos sabiam tudo, não tinham que explicar nada. Só não sabiam o que ela estava sentindo, que precisava ser escutada, precisava de argumentos que justificassem a continuidade de um tratamento tão penoso. Estavam submetendo-a a este tratamento sem que a deixassem argumentar, e aquela era a única forma que havia encontrado para se opor a tudo isso.

Ela então se lembrou de quando era criança e levou um castigo na escola. Mandaram-na ficar sentada e ela se levantou. Não se lembra do motivo, mas tinha um motivo para estar de pé e não quiseram saber. Levou um castigo por uma coisa injusta e não quiseram conversar sobre isso com ela. Nunca pôde esquecer este castigo.

Disse-lhe:

Talvez a doença, Akiko, esteja sendo vivida como este castigo, uma coisa injusta que você não pode aceitar. E não pode comer como uma forma de se rebelar, de ficar em pé, dizer que não aceita esta doença. Dizer para o médico que as coisas não estão tão bem como ele quer te fazer acreditar, que você tem o direito de questionar e argumentar.

Akiko começou então a me contar do que gosta de comer: frutas, verduras, legumes, folhas. Não gosta do tempero da sua empregada, mas tem uma vizinha que faz uma sopa deliciosa. E que, embora não coma há anos, adora joelho de porco.

Depois desta sessão, Akiko telefonou-me e deixou um recado na secretária eletrônica. Tinha saído do consultório e parado no Bibi Sucos. Tomou um bom suco e estava se sentindo bem, não havia vomitado. Ia pedir à vizinha que preparasse uma sopa de legumes para mais tarde. Agradeceu-me e disse que viria dali a dois dias para a nossa sessão. Ah, e que havia pedido um joelho de porco no açougue - ela mesma iria prepará-lo.

Fiquei tocada ao ouvir aquele recado e quis crer que Akiko havia tomado um delicioso suco, um suco de amoras.

Na sessão seguinte, Akiko me contou que tivera um sonho. Sonhara com uma mulher no meio de um matagal. Ela estava perdida e assustada. Estava nas Montanhas Rochosas, um lugar em que fora há muitos anos, com todos os irmãos. No sonho, o lugar era lindo, cheio de trilhas: uma trilha que dava num lago, uma que dava numa cachoeira, tudo cheio de neve, pinheiros imensos, difícil achar o caminho. Foi dar uma volta, separou-se do grupo e perdeu-se naquele matagal. Teve muito medo do barulho da água, de cair num buraco escondido na neve e morrer. Então encontrou uma mulher sentada calmamente no caminho. Ela parecia conhecer tudo ali, todos aqueles caminhos. Pediu-lhe ajuda. A mulher disse-lhe que não falava a sua língua, mas mesmo assim podia entender perfeitamente o que ela falava e ia ajudá-la. Não estavam perdidas. Iria acompanhá-la, embora não conhecesse exatamente onde daria aquela trilha. Iriam juntas. E esta mulher andou com ela até o acampamento central, onde encontrou sua família. A noite já estava chegando, o frio aumentando. Quando viram que estavam todos sãos e salvos, a irmã, que é rica e podia comprar qualquer coisa, telefonou para casa e pediu que preparassem para a sua chegada patas e asas de pato. E ficaram todos felizes.

Dou-me conta de que algumas vezes vivemos situações em nossos consultórios que são como uma florada de cerejeiras. Intensas, inacreditáveis, emocionantes, raras e que acabam por nos fazer entender por que escolhemos trilhar este caminho profissional tão difícil, de tanta responsabilidade, mas também tão especial.

Enfim, fiz uma linda viagem, visitei museus, templos, paisagens. Conheci costumes, escutei e aprendi bastante sobre uma cultura rica, nobre e muito peculiar. Pude visitar o mundo de Akiko, e muito do que eu não havia entendido da sua história acabou ficando claro para mim. Seu jeito discreto de ser, sua delicadeza com as suas questões pessoais, sua discrição eram muito mais o jeito de ser de um povo do que propriamente uma dificuldade. Ao assistir a uma pequena cerimônia budista, em que me foi explicado cada passo de todo aquele ritual, pude entender a relativa serenidade de Akiko ao encarar o seu fim. Para ela, não era bem um fim. Era uma passagem, que a assustava muito, mas ainda assim só uma passagem. Pensei na importância dos nomes naquela cultura e sem saber, ou talvez sabendo de outro modo, escolhi dar a esta paciente o nome de Akiko, que significa flor do outono. Estava apropriado: ela era de fato uma flor do outono.

Acredito que estamos todos, em nossos consultórios e em nossas vidas, sempre, buscando a tal omelete de amoras. Tentando recuperar, reencontrar aquele tempo, aquela emoção que um dia nos deixou tão plenos, quando não nos faltava nada, e que certamente jamais encontraremos novamente.

Existem viagens em que vamos para longe, muito longe. Mas existem viagens em que vamos ainda mais longe, sem mesmo sair do lugar. Desta vez eu fui longe, muito longe...

 

Nota

1 Texto vencedor do Prêmio Mário Martins, conferido durante o XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em São Paulo/SP, de 28 a 31 de outubro de 2015.

 

Referências

Benjamim, W. (1985). Omelete de amoras. In W. Benjamim, Rua de mão única (R. R. Torres Filho & J. C. M. Barbosa, Trads., pp. 219-220). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Eissler, K. R. (1955). The psychiatrist and the dying patient. New York: International Universities Press.         [ Links ]

Norton, J. (1963). Treatment of the dying patient. The Psychoanalytic Study of the Child, 18,541-560.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Margaret Waddington Binder
Rua Jardim Botânico, 700, sala 617
22461-220 Rio de Janeiro, RJ
margawb@terra.com.br

Recebido em 18.11.2015
Aceito em 02.12.2015

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