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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016
EM PAUTA
Analista desconcertado: caminho de um pensador da Psicanálise
The disconcerted psychoanalyst: a psychoanalytic thinker's path
El analista desconcertado: camino de un pensador del Psicoanálisis
Leda Herrmann
Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Presidente do Centro de Estudos da Teoria dos Campos. Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento (Casa do Psicólogo, 2007)
RESUMO
Partindo do tema deste número da RBP, o analista desconcertado, a autora localiza na obra de Fabio Herrmann a descrição de um relato clínico em que o analista comete um erro técnico. Toma-o como exemplo de desconcerto de Herrmann na situação clínica e, recorrendo ao próprio texto de Herrmann, compõe um metatexto de citações para mostrar o caminho da construção, por Herrmann, de dois conceitos - erro necessário e mentira original - que, em sua conjugação, armam o caminho para a reflexão de Herrmann sobre o originário do nascimento do humano no homem e na cultura.
Palavras-chave: psicanálise do quotidiano; erro necessário; mentira original.
ABSTRACT
Based on the theme of this number of the RBP, the disconcerted psychoanalyst, the author highlights a clinical vignette in Fabio Herrmann's work, in which the psychoanalyst made a technical mistake. In this paper, the author considers that mistake an example of Herrmann's disconcertment in a clinical situation. By using Herrmann's own writing, the author produces a meta-text of quotations in order to demonstrate Herrmann's steps towards building two concepts: the necessary error and the original lie. The combination of those concepts enabled Herrmann to reflect on the origin of the human side in mankind and culture.
Keywords: everyday psychoanalysis; necessary error; original lie.
RESUMEN
Partiendo del tema de este número de la RBP, el analista desconcertado, la autora encuentra en la obra de Fabio Herrmann la descripción de un relato clínico en el cual el analista comete un error técnico. Toma dicho relato como ejemplo de desconcierto de Herrmann en la situación clínica y, usando el propio texto de Herrmann, construye un metatexto de citas para mostrar el camino de la construcción de dos conceptos - error necesario y mentira original - que conjugados arman el camino para la reflexión de Herrmann sobre el origen del nacimiento de lo humano en el hombre y en la cultura.
Palabras clave: psicoanálisis de lo cotidiano; error necesario; mentira original.
À vista, poderiamos afirmar que o tema deste número da RBP diz respeito a todos nós analistas. Isto é, estar desconcertado é inerente à própria situação clinica que nos investe como analistas e que nos impõe uma forma específica de postar-nos diante do outro na condição de conhecê-lo e curá-lo. É nosso método interpretativo que nos exige um a priori de não supormos nenhum conhecimento para que possa surgir do paciente a própria condição interpretativa, nesse estranho diálogo que uma sessão analitica requer. Assim, estar desconcertado, no sentido de estar sem ferramentas teóricas prontas para serem utilizadas como esquemas interpretativos, seria a condição habitual do analista no campo transferencial em cada momento de uma sessão. O que não deixa de ser também perda de harmonia, tal como o termo é abonado nos dicionários - no nosso caso, perda da harmonia dialogal, que em uma conversa quotidiana obedece ao tema ou assunto proposto por um dos interlocutores.
Mas poderiamos também argumentar que há desconcertos e desconcertos. O que carregamos pela posição de estarmos em atitude interpretativa constitui-se em uma atrapalhação na conversa, atrapalhação que é coerente com a escuta psicanalítica, ou seja, aquela que procura ouvir sentidos para além do tacitamente denotado pelas palavras do paciente. Desse não escapamos seja qual for nossa filiação teórica dentre as contidas na Psicanálise. E há também aqueles que nos atrapalham e podem nos tirar da situação produtiva de cura, da desarmonia metodológica acima descrita.
Pareceu-me um tema desafiador e, em conversa com a editora da revista, Silvana Rea, fui esclarecida de que o interesse do corpo editorial com esse tema era o de recolher situações, clínicas ou não, em que o analista se desconcerta como ponto de partida para repensar sua presença no consultório ou a própria Psicanálise.
Diante do meu interesse em contribuir com um texto, sugeriu-me que buscasse um desconcerto desse tipo na produção de Fabio Herrmann, autor da casa que construiu um pensamento psicanalítico original, registrado na e pela obra que nos legou, conhecida habitualmente pelo nome de Teoria dos Campos.
Claro que a sugestão me agradou e não me surpreendeu, pois, nesses dez anos de ausência do autor,1 tenho sido solicitada pela editoria de nossas revistas - Jornal de Psicanálise, Ide e a própria RBP - a republicar, com introdução e notas minhas, artigos de Fabio nos temas que o respectivo número de cada uma dessas publicações estava tratando e a preparar textos seus que permaneciam inéditos. Estimulada pela conversa, imediatamente considerei que Fabio desconcertou-se diante da produção da Psicanálise do fim dos anos 60, fragmentada em escolas incomensuráveis que, ainda como estudante de medicina, ele começava a descobrir. Argumentei que tal desconcerto levou-o a construir uma obra e um pensamento psicanalítico. Devo esclarecer que conheci Fabio nessa época e, como nosso caso acabou em casamento, pude acompanhar o destino desse desconcerto que o levou a trilhar e explorar os caminhos dos fundamentos da Psicanálise contidos principalmente na obra freudiana. Isto é, o remédio para o desconcerto inicial foi a produção que nos legou.
Passados alguns dias, subitamente lembrei-me que sim houvera uma situação clínica de desconcerto que o levou a construir um importante conceito nesse caminho de volta aos fundamentos, o conceito de erro necessário, explorado na primeira parte de seu livro Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (F. Herrmann, 2001a). O conceito surgiu da reflexão sobre uma perturbadora ou desconcertante situação clínica, e no pensamento do autor vai conjugar-se a outro conceito, o de mentira original, para fundamentar a específica posição que esse pensamento dá às conceituações de realidade e identidade como representações de real e de desejo. Ou, dito de outra forma, a conjugação desses dois conceitos permitiu a Fabio específica reflexão sobre o originário do nascimento do humano no homem e na cultura (L. Herrmann, 2009). O livro propõe-se a uma investigação psicanalítica do mundo, considerando que o objeto da Psicanálise, a psique, "ocorre essencialmente na vida quotidiana dos homens, dentro e fora do indivíduo, na identidade e na realidade ao mesmo tempo" (F. Herrmann, 2001a, p. 9).
Vamos então frequentar um pouco essas reflexões com o disparador do desconcerto de Fabio que a clínica lhe proporcionou.2
O desconcerto e o erro
Um jovem, a quem não hesitaria em qualificar de delirante, ilustra-o de forma exemplar. Sessões inteiras transcorreram sob a primazia de uma comunicação muito indireta. Dos movimentos do sapato do analista e da posição em que este pousava seu cachimbo, o analisando deduzia intenções e comentários acerca de seus relatos. Por exemplo: assim, você está concordando; agora diz que não gosta de mim etc. Numa sessão, contudo, aquela pessoa impulsiva e briguenta narra a experiência de se ter controlado ante uma provocação descarada. Não brigou, não correu, retirou-se com ponderação e dignidade. Imediatamente o analista interpretou a evolução, e o material seguinte já veio superiormente organizado, semelhante a uma conversa entretida com qualquer paciente neurótico. Findo o tempo da sessão, ele quedou-se sentado, atônito, enquanto lágrimas rolavam desconsoladamente silenciosas. Foi preciso muita espera e tolerância para que o jovem e sensível cliente explicasse ter estado a chorar por dentro durante toda a sessão. Fora cortado em dois, com um golpe horizontal, pela interpretação prematura; só lhe restou continuar a falar, usando a parte de cima, enquanto a outra chorava a falta de uma porta de entrada para a sessão.
Este é um erro típico que, fechando a porta habitual para as emoções do analisando, abre contudo outra porta de acesso às condições da realidade deste paciente em particular e, em certa medida, do delírio em geral. Não é exatamente que o analisando fosse incapaz de compreender os sinais mais correntes de emoção no analista - um tom dubitativo ou um movimento de aproximação, por exemplo. Ele os apreendia e decodificava de maneira razoavelmente correta, com certeza, pois a leitura de sapatos, cachimbo e outros instrumentos sintomáticos tinha sempre algum fundamento. Por que desviar-se então para tais sinais tão indiretos e esquisitos? É que, pelo que se pôde depreender, faltava à comunicação verbal e gestual mais corriqueira uma força de asseveramento ou de convicção, que ele só podia encontrar nos sinais indiretos. Dito de outra maneira, embora o paciente fosse capaz de compreender o analista, tal compreensão não tinha suficiente realidade.
Na vida quotidiana acontecia o mesmo. Ao defrontar-se com situações de contato social, ele não deixava de perceber as intenções convencionais, mas também não conseguia furtar-se à percepção das discrepâncias entre o que as pessoas lhe diziam e certos sinais indiretos de emoções contraditórias no outro. Parte de nossa boa educação psicológica consiste em ignorar os sintomas de emoções discrepantes: seria impossível para o sujeito comum conversar com alguém, se não estivesse apto a desconsiderar os sinais óbvios de ódio, competição, atração sexual, vontade de agradar, desejo de dominação e tantos outros que o interlocutor está continuamente a emitir. Nosso cliente, porém, não se conseguia desligar desse plano sintomático, no convívio habitual, nem muito menos conseguia decifrá-lo adequadamente e dar de ombros com sábia bonomia. Diante das contradições entre as palavras e os sinais afetivos, tornava-se violento, tinha de partir para a briga, como costumava dizer.
O contato analítico era possível e não demasiadamente violento porque o analista dispunha-se a acatar a leitura paralela de indícios emocionais que ele estava sempre a fazer, e dialogar com ela com a máxima honestidade possível. Não partilhava completamente da opinião do paciente acerca do valor diagnóstico de seu cachimbo, mas não por negar seus próprios estados emocionais, ou por negar a possibilidade de as posições do cachimbo expressá-los, mas porque sabia que, além de sapato e cachimbo, seu rosto, seu corpo, os ritmos internos de seu discurso e cem outros elementos também os comunicavam - e que o paciente, com toda a certeza, lançava mão, inadvertidamente, de muitos deles para construir suas hipóteses veritativas e intencionais acerca do terapeuta.
Ora, se é assim, de que serviam realmente cachimbo e sapatos? Não é difícil adivinhar. A passagem obrigatória por este caminho peculiar fazia as vezes de um circuito realizador para o analisando, ou seja, conferia realidade à captação de sentidos emocionais. No dia a dia, o circuito realizador inexiste de forma tão notória para o homem médio. De tempos em tempos, é verdade, alguns circuitos parecidos entram em ação. Uma criança pode pedir aos pais que substanciem as percepções que traz da escola, ou um grupo pode recorrer à sua ideologia ou ao líder que a encarna. Há quem acredite em jornais, como há quem acredite em especialistas, sejam estes economistas ou cartomantes. O simples consenso social e a convergência aparente de percepções distintas, no entanto, costuma ser um circuito que outorga suficiente realidade para o sujeito comum. De todos os circuitos realizadores, o mais ubíquo e categórico em nossa sociedade é, com toda certeza, o dinheiro; figurando como intermediário na maioria das relações, ele não exige um desvio, mas integra-se como um passo necessário em cada ato ou concepção, servindo de selo de realidade, justamente por prestar-se como instrumento de transformação recíproca de categorias vitais diferentes. Talvez por isso, ao falar dos problemas da vida real, as pessoas se refiram a dinheiro: porque dinheiro representa realidade. O que este paciente põe em evidência, porém, é algo um pouco diferente. No fundo, em cada movimento de construção da realidade, as representações mesmas contêm uma espécie de avesso, onde está inscrita a afirmação de que estas são realidade. As regras que conferem realidade a representações diversas são concebivelmente muito diferentes: a realidade da família difere da realidade política, a realidade científica, da realidade mítica, a realidade de uma conversa de bar, da de uma conversa de consultório. Secundariamente, mas não num momento posterior, as regras que garantem realidades diversas são submetidas à ação de uma contrarregra, como já se viu antes, a função da rotina, cuja ação faz das realidades uma só realidade, um todo único e coerente, de aspecto natural e sem alternativas.
Ensina-nos este paciente delirante que as regras de realidade, residentes no avesso de toda e qualquer relação, se não são completamente obscurecidas pela rotina, criam um sério problema posicional: restos ou indícios do campo da relação - da relação intersubjetiva, neste caso - entremostram-se no lado direito da relação, sob forma de uma desconfiança generalizada em sua realidade; por isso, como procedimento defensivo, o analisando concentra-as num setor limitado do espaço de contato e nele opera manualmente, por assim dizer, o circuito realizador que deveria ser operado de forma automática e inaparente - tal é o provável valor da leitura de cachimbo e sapatos. Por outro lado, a eficiência desse circuito para sua economia vital só é garantida pela aquiescência do analista em dele participar; graças ao diálogo analítico, a vida quotidiana recupera alguma realidade.
Quando esta realidade readquirida começa a dar frutos, e o paciente pode refletir e afastar-se de uma situação de conflito, o analista, apressadamente, convida-o a desmontar o circuito de que dependia, como se fosse este a doença e não uma tentativa de cura, precária embora. Pois bem, ele consente, na aparência e só com a cabeça - em verdade, com a parte de cima do tórax também, pois é pouco acima do coração que traçou a linha de corte -, mas surge logo em seguida a dor intensa de seu isolamento emocional. A experiência errada não é de todo infrutífera, contudo. Ela permite que o analista se dê conta da importância do sistema desmontado à força e da necessidade de utilizá-lo de maneira mais espontânea. Não seria razoável pôr-se a controlar as posições de cachimbo e sapatos a fim de dizer por meio deles o que queria dizer com palavras; ao contrário, o perigo está, em situações como a que nos ocupa, em não poder mais deixar que estes instrumentos funcionem adequadamente, por neles ter focado muita atenção. O paciente psicótico, nem que seja por uma questão de justiça, tem certo direito a dispor de uma área de interpretação no analista, em paga da extensa área que lhe entrega para interpretar: seu mundo delirante.
Além disso, esta experiência revela algo ainda mais essencial a nossa investigação. Como a realidade quotidiana é uma superfície totalizante, ficamos impedidos de nela usar o recurso psicanalítico básico da escuta num campo diferente. Em que campo seria? O das exceções - sonhos, atos falhos, sintomas - foi utilíssimo para constituir a psicopatologia da vida comum, é certo. Mas, se não queremos desfigurar nosso objeto presente, é forçoso passar da neurose à psicose e recorrer a uma espécie de erro necessário, a uma atitude ligeiramente parecida àquela de nosso desconfiado paciente, supondo intenções ocultas nos menores atos sociais, duvidando sistematicamente de toda e qualquer aparência, concebendo o mundo quotidiano como um absurdo disfarçado de naturalidade. Apenas não se faz mister partir para a briga corporal, pois diferentemente da paranoia do epilético, nossa paranoia interpretativa é um recurso heurístico que deseja tão só desmontar a realidade para melhor respeitá-la, conhecendo que diferenças se escondem na superfície unitária da aparência e como as variadas regras dos campos do real constroem formas de realidade irredutíveis umas às outras, não fosse a força redutora da rotina. Com efeito, é difícil dizer a priori quais são exatamente as regras que se desviam para um dado circuito realizador, em cada caso e em especial no deste paciente. Isto é tarefa da análise pessoal ou da psicanálise do quotidiano. De qualquer modo, já se pode antecipar que tais regras estão embutidas nas relações concretas, no avesso delas, não num reservatório geral inconsciente, que seria indiscriminadamente o mesmo para todo homem. (F. Herrmann, 2001a, pp. 50-54)
Estou citando esse trecho da terceira edição do livro, de 2001. No entanto, ele já fazia parte da primeira edição, de 1985, em uma versão um pouco diferente. O livro já estava pronto há pelo menos quatro anos, mas por questões editoriais só veio a público em 1985. A situação clínica analisada data de meados dos anos 70, ou seja, do início da carreira psicanalítica de Fabio. Lembro-me das conversas que tivemos na época sobre como esse erro técnico o surpreendeu e fê-lo pensar principalmente na questão da interpretação, que viria a ser tema de outro livro seu, publicado em primeira edição em 1991, pela editora Brasiliense, Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. Como está no texto aqui reproduzido, suas reflexões levaram-no a considerar a posição emocional desse paciente. Esse jovem precisava de um intermediário, representado por suas observações sobre o que para ele significavam as posições de sapatos e cachimbo do analista, para poder passar pela experiência interpretativa do encontro consigo através do analista. Um erro técnico, uma interpretação apressada, causou ao autor muita surpresa, um desconcerto mesmo, tal como aquele que a Revista Brasileira de Psicanálise convida seus leitores a refletir neste número. Para o autor, o desconcerto/surpresa levou-o à reflexão sobre a condição de erro na clínica, encontrando para ele a condição de erro necessário para o reencontro do adequado rumo do processo interpretativo. Já nesse texto nos alerta para termos a disponibilidade de espantarmo-nos com nossos erros antes de nos atirarmos à tarefa de remediá-los imediatamente. Desvios técnicos também nos ajudam a aprimorar nossa clínica.
De acordo com o apontado antes sobre estar nos propósitos desse livro a exploração do quotidiano dos homens, a exposição desse trecho de relato clínico vem precedida da consideração de que é impossível abordar diretamente a origem da realidade quotidiana, sem anunciar sua forma de abordagem de pôr um pouco à mostra o avesso dessa realidade pelas considerações primeiro do erro e depois da mentira, aqui em uma fábula mítica em que o erro mostra-se necessário e a mentira assume a posição de mentira original.
Iniciando por afirmar que do erro pode ser dito que designa como sendo o que não é, considera:
A arte de errar implica certa dose de sabedoria. É preciso, para que uma resposta se considere errada, e não disparatada, que ela acuse o mesmo tema da resposta que se espera, que respeite seus contornos gerais, acertando tudo, menos alguma distinção final. O aluno que acerta uma questão na prova de história pode tê-la decorado; o que erra discernivelmente compreendeu, localizou o ponto, mas lembrou o que não devia - quem merece mais, o estudante que diz que Colombo descobriu a América ou um hipotético garoto que respondesse ter sido nosso continente descoberto por um navegador genovês a serviço dos Reis Católicos, nos fins do século XV, cujo nome esqueceu? Do processo de erro e correção ressalta uma aproximação ao campo da relação arguida. Uma asseveração que erre a realidade de algo contém suficiente indicação acerca do que visava, para que o cotejamento com a opção tida geralmente como certa ponha em evidência aquilo que funda a comunidade das duas opções: o campo do real ou do desejo que cabe a ambas. [...] No trabalho interpretativo com nossos pacientes, errar é tão ou mais importante que acertar, ou melhor, errar é condição para progredir na compreensão do outro. Quando certa linha de ação mostra-se constantemente satisfatória é avisado experimentar desviar-se um pouco dela, durante uma análise. Só assim se abre a possibilidade de acesso a tudo aquilo que cerca o tema tratado ou o modo de relação em que se está perseverando. (F. Herrmann, 2001a, pp. 48-49)
Quanto à exploração do avesso da realidade quotidiana pela mentira, propõe o recurso da criação de uma fábula para a origem da realidade, nos moldes de outros modelos genéticos da Psicanálise:
Pode-se imaginar a seguinte fábula acerca da origem da humanidade na criança. O filhote humano, recém-nascido, vive ainda no cerco das coisas. Dominado estritamente pelas exigências de sua fisiologia, o bebê tem sua existência no mundo limitada pelo complemento de tais necessidades: alimento para a fome, mais que para o paladar e a gulodice. A conjugação absoluta das exigências fisiológicas com as fontes de satisfação promove um cerco material, um acolamento ao ambiente que, pelo menos na vida fetal, podemos imaginar completo. Mesmo depois, entretanto, o estreito vínculo entre carência e satisfação modela sua apreciação do mundo exterior de maneira peculiar. Tudo se passa como se o mundo fosse mero complemento do corpo, manancial de satisfações fisiológicas, cujo contorno só pode ter a forma inversa daquela das necessidades básicas. Não há então uma relação com a realidade, mas tão somente com seu precursor, a materialidade fisiológica.
De início, pois, o embrião da realidade é sua materialidade. A privação corresponde a uma negatividade. Sobre esta, projeta-se a satisfação alucinatória infantil - tal como Freud a descreve -, desse descompasso, restando uma primeira intuição da realidade. A realidade fisiológica não é objeto de conhecimento, porém, é simplesmente a diferença potencial entre satisfação e alucinação. Qualquer que seja o estatuto atribuído por nós a esse mito de origem - modelo heurístico, série concreta de fatos mentais ou ficção elucidativa da lógica emocional -, o certo é que a realidade que comporta é fundamentalmente diversa daquela que a vida posterior usará. Aquilo que falta à satisfação alucinatória, e cuja falta, experimentada como dor, impulsiona o princípio de realidade, é só o complemento material do próprio corpo: para o bebê, o seio materno deve ser uma fome ao contrário. Por outro lado, a Psicanálise supõe, desde Freud, que no interior desse ser fisiológico desenrole-se um complicado processo psicológico, de início marcado pela satisfação alucinatória de necessidades. Ora, um problema e tanto tem sido saber como o homem sai de tal funcionamento psíquico fechado, onde só haveria satisfação ou privação concretas e uma tentativa de negar esta última. Não há razão teórica para imaginar que o diferencial porventura existente entre satisfação concreta e satisfação alucinatória, funcionando como uma espécie de índice de "realidade fisiológica", devesse crescer espontaneamente, transformando-se diretamente em juízo e pensamento, para construir por fim o mundo quotidiano do adulto. Que sinais promissores de evolução há no diálogo entre a fome do bebê e a oferta da mãe, seu leite, calor e um terno aconchego?
No leite e no calor puros talvez nenhum. O aconchego da amamentação, todavia, tem dois lados. Sendo coisa - leite e calor -, representa o cerco das coisas; inegável e fatal, não se pode ignorar sua presença ou escamotear-lhe a pungência. É possível, decerto, operar uma escolha, conquanto muito limitada pela incapacidade motora infantil. Mais leite ou mais calor, fome ou não fome. Mesmo assim, quando a escolha é expressa, só o é por meio de um sistema de sinalização primitivo, choro ou paz, tal como o dedo que o adulto aponta para os objetos circundantes, escolhendo um deles. O problema aqui é muito menos o dedo, ou o ato de apontar, que nem mesmo está ao alcance do bebê, mas o fato de que, apontando, só é possível apontar para coisas, para presenças materiais. Este ato, que não supera a materialidade fisiológica do cerco das coisas, ainda não estabelece uma relação a que se possa chamar realidade. Não há verdade ou mentira nesse nível, há inevitabilidade, a inevitabilidade da premência fisiológica de que o cerco das coisas é o complemento perfeito.
O outro lado do aconchego, porém, é a subjetividade materna. Aqui também o cerco parece estar fechado. A intuição da existência de uma pessoa por trás do fluxo de benesses só poderia corresponder a uma projeção antropomórfica caso houvesse uma protoconcepção fundante da figura humana e de sua intencionalidade. Afirmar que há ou que não há, sem especificar as vias concretas de sua operação, é rigorosamente igual. Muito embora já nascido, o bebê desta fábula ainda não é gente, carece de forma humana, é uma máquina de necessidades acoplada a uma máquina de satisfação. O funcionamento da máquina de satisfação, contudo, não é nada maquinal: a mãe comete seu erro necessário atribuindo uma vida psíquica ainda inexistente no infante e relacionando-se com ela. Tal relação manifesta-se em ritmos de doação e negação, de proximidade e distanciamento, numa espécie de diálogo forçado que a pessoa nutriz estabelece com sua ideia de um homenzinho ou de uma mulherzinha embutidos no bebê. Há aí com certeza um jogo de mentira, que acabará por inventar o homem.
O momento crítico da assunção da humanidade da criança provém, portanto, da fantasia promissória compartida pelos outros homens, a de que aí já está um ser humano completo: segunda concepção para um segundo nascimento. Feito o corpo, biblicamente há que lhe soprar um espírito. Este passo, delicado e crucial, que primeiro projeta um ser completo, para depois construí-lo lentamente, não tem o caráter mágico de um sopro divino ou de um efeito de comunhão entre inconscientes. Ele é feito de oscilações e ritmos intencionais, conscientes ou não, que modulam a relação de aconchego. Posto que a presença ou a ausência de satisfação só possam ter de início o caráter de vagas forças benfazejas ou destrutivas, não personalizadas, seu ritmo e sua modulação entram em fase com os ritmos e modulações da necessidade infantil. A conexão entre o ritmo das satisfações - provavelmente não a presença ou ausência de satisfação, mas a modulação de sua intensidade, constância etc. - e o de certas descargas motoras vem criar vínculos significativos, ou melhor, fantasias de extensão. Isto é, para tais e quais comportamentos, certas mudanças de ritmo advêm; isto aí, para o bebê, é como que um prolongamento do choro ou do sorriso. Aqui, já estamos próximos do segundo nascimento, as condições estão maduras.
O conjunto em aleitamento já se comporta como uma subjetividade dual, existe uma psique em ação, apenas falta que esta se implante na criancinha. A porta de entrada poderia ser chamada de mentira original. Em certo momento, o bebê experimenta o relativo conforto de, ao berrar porque está molhado de urina, por exemplo, receber leite em troca. Isso ainda é muito grosseiro, mas, noutro momento, pequenos movimentos de aceitação e recusa evocam respostas intencionais da mãe, um tanto certas, um tanto erradas, mas contendo todas a suposta participação de um ser pensante e dialogal no outro extremo da cadeia de amamentação e de cuidados. Para assegurar-nos da existência desse jogo de equívocos, basta observar a forma tão comum do arrulho materno que acompanha os cuidados prestados à criancinha; a mãe fala pelo bebê na primeira pessoa: estou com tanta fome, estou tão cansadinho de ficar nessa posição. Não se trata de simples atribuição de palavra ou intenção, mas do sinal exteriorizado de um diálogo interno do adulto, cujo substrato é o diálogo não verbal, porém ativo e eficaz, de movimentos rítmicos de comunicação, estes verdadeiramente de mão dupla; trata-se de uma tradução, que se pode presumir fiel. Ora, a experiência de controle de seus próprios ritmos e modulações expressivos, para provocar certa classe de reação do fluxo de satisfações, introduz-se no bebê como um símile de uma relação de intenções. Assim, devagar, seu grito de fome pode tornar-se um grito para a comida - mesmo na ausência de fome, ou mais exatamente fazendo variar a premência da fome para obter satisfação mais rápida -; o que representa um mundo de diferença, pois agora a criança enganou a mãe, mentiu-lhe acerca de seu estado fisiológico. Por mentira, entenda-se um movimento relativamente simples e primitivo que toma em conta a apreensão protointencional dos ritmos e modulações do aconchego, induzindo uma defasagem ativa entre o ritmo próprio às oscilações da necessidade fisiológica e a oferta de satisfação. Tal descompasso induzido, a mentira original, ainda que figure apenas como fábula ou mito de origem - ou, ainda melhor, como hipótese acerca de um momento de anterioridade lógica em relação à constituição da subjetividade -, parece-me ter importância capital para o desenvolvimento, inaugurando o verdadeiramente humano na criatura pequenina.
Com efeito, a mentira original aponta o que não é (fisiologicamente) acusando-o de ser, até aí é erro necessário, mas com um fito nascente, protointencional. Um só ato expressivo, portanto, decompõe a necessidade e seu complemento externo, a coisa, em dois níveis de ser: um fato material, a fome do estômago, e uma possibilidade, a fome fingida, donde poderá evoluir sua dimensão propriamente real, real humano. O fato de que este não ser, a fome que ainda não há, possa tornar-se imediatamente um ser, pois a criança logo estará efetivamente faminta, não nos deve desorientar, nem diminui o valor inaugural da mentira. Bem ao contrário, o que pode haver de previsão na defasagem ativamente induzida não apenas deixa incólume a direção da mente infantil para um não ser fisiológico de valor inteiramente psíquico, como também marca este momento inaugural com uma de suas formas capitais, a dimensão do devir. Ou seja, não se destrói o sentido de não ser fisiológico no diálogo da amamentação, acrescenta-se uma de suas variantes fundamentais, o ser futuro. Uma demonstração de avidez exagerada no aleitamento, que leva a mãe a esforçar-se inutilmente para satisfazer a fome que virá, não perde seu sentido mentiroso quando esta chegar; ao contrário, fazendo parte do projeto materno que antevê o crescimento da criança, este novo ritmo de antecipação vai-se imprimindo nela como expectativa de formas vindouras da realidade. Dito de outro modo, a mentira original descola das coisas fisiológicas sua realidade, numa operação de fino corte, em que a materialidade já não é apresentada só por suas extensões sinalizadoras, mas verdadeiramente significada. Rompido o cerco das coisas, por este ato primogênito que acusa como sendo o não ser e que destaca da materialidade a realidade, o caráter rigorosamente significativo da nova relação altera o valor das manifestações expressivas - do grito, da descarga motora -, elevando-as acima de mero índice de afeto de presença, em direção à designação de possíveis. Sinaliza-se então um outro valor: descolado da necessidade e da coisa fisiológica que se pode apontar, o sistema de sinalização agora inaugurado, ainda que com os mesmos rudimentares instrumentos expressivos, indica a medida da ultrapassagem interna da necessidade e da ultrapassagem externa da materialidade; quer dizer, sinaliza o real, externamente, e, internamente, sua contrapartida, o desejo. E, por acusar medidas de ultrapassagem, indicando um não ser aqui e agora, já é palavra: a linguagem, em sentido estrito, podemos concebê-la como fruto primeiro da mentira original. [...]
Vê-se então que não há qualquer exagero em afirmar que a mentira original inaugura a humanidade na criança. À ruptura externa do cerco das coisas corresponde uma ruptura interna, de que o desejo é a medida, que, apesar de apontar para o exterior do sistema - deseja-se algo -, faculta toda possível relação consigo mesmo. Cria-se o para-si, de que a consciência, desde os seus albores, representará a expressão torturada, sempre em busca de cobrir o espaço entre fisiologia e desejo, revelando constantemente, malgrado seu, a celebração do luto primordial,3 em cada objeto apetecido. Pois em toda e qualquer relação de objeto, o desejo procura a fusão perfeita da máquina de satisfação primitiva, cuja destruição originou-o. Porém, onde há desejo, já está cortada a continuidade entre corpo e mundo, a nostalgia pelo cerco das coisas é um remanescente do estado que, a rigor, nunca foi verdadeiramente experimentado, uma vez que antes faltava o sujeito da experiência.
Interessa-nos principalmente, contudo, a maneira pela qual a mentira estrutura a realidade. O sentido psicanalítico da realidade reside na unidade do mundo, mais que na possibilidade interna de discriminá-la de alucinação e fantasia. Sob o cerco das coisas, a unidade do mundo era dada por seu caráter de complemento fisiológico. Para uma ameba, no exemplo tão querido de Freud, o mundo circundante só pode ter a unidade de uma imensa ameba invertida: uma membrana que é o reverso da sua, de dimensões pseudopodicamente variáveis e com propriedades complementares - o que, aliás, é inteiramente defensável do ponto de vista de uma ameba aficionada à topologia. A unidade do mundo fisiológico do bebê muito novo pode ser concebida de maneira análoga, mutatis mutandi. Sua unidade é a da fome, da sede, da carência térmica, da extensão projetada dos sentidos musculares e viscerais. Mal nascido, o corpo do bebê derrama-se fisiologicamente pelo espaço ambiente, constituindo um mundo por extensão. Ora, a mentira original introduz um estado radicalmente diverso de mundanidade. É o desejo que agora se derrama sobre o mundo, são as regras determinantes do repertório relacional que, como emoções, impregnam o mundo de sentido humano: as coisas continuam a ser uma extensão do corpo, mas o corpo que lhes dá unidade e sentido é outro, um corpo de sentidos psíquicos, que se cria no real humano ao mesmo tempo que cria seu mundo. (F. Herrmann, 2001a, pp. 55-61)
Penso que deste texto em colaboração (Herrmann & Herrmann) a conclusão mais apropriada fica por conta do leitor. O recurso de Fabio de usar seu atropelo técnico para refletir sobre a específica posição que dá para o erro no trabalho analítico, tanto clínico como de elaboração teórica, não é simplesmente recurso retórico ou estilístico, mas heurístico, pois produz as condições para a elaboração de um conceito psicanalítico e permite-lhe começar o trajeto na exploração de um tema, a psicanálise do quotidiano, inaugurado por Freud e, em sua obra, recuperado para a exploração de um pensamento em que as condições do humano são discutidas em sua presença no homem e no mundo. Penso que o recado mais apropriado que poderia deixar sobre o percurso de um pensador que não se furta ao desconcerto é a transcrição do início do capítulo "Acerca da mentira e do erro necessário", que abriga as reflexões contidas neste texto:
Na raiz de nossa vulgar concepção de quotidiano há uma espécie de neutralidade que este livro procura devassar. Como as paredes pintadas em tons pastel ou a discreta música ambiente dos lugares que se pretendem acolhedores e finos, existe um fundo neutralizado e neutralizador para os acontecimentos do dia a dia, que cumpre a função de lhes proporcionar coerência e unidade à sucessão, plausibilidade ao conjunto, enquanto ele, o quotidiano, se recolhe, pudico, à sombra de si mesmo. O quotidiano cria a sombra que o esconde; o quotidiano é o campo geral de nossas relações mais fundamentais e decisivas, mas é também o mestre ilusionista que retira delas a aparência crucial de vida ou morte - que bem poderiam ter, pois nossa vida inteira aí se joga -, tornando-as comuns. Ele cria algo que, ao tê-lo como fundo, nos parece incriado, natural, irredutível - como os lenços do mágico que se ocultam uns aos outros e à mão ligeiríssima que os manipula. Chamaremos rotina ao número executado; ao ilusionista, que é o próprio palco onde atua, quotidiano; enquanto o aquele algo ou produto resultante, a criação que parece sempre ter lá estado, o leitor já adivinhou que se trata nada menos que da realidade. (F. Herrmann, 2001a, pp. 43-44)
Notas
1 Neste ano de 2016, completam-se dez anos de sua morte.
2 Optei por transcrever trechos do texto original de Fabio Herrmann, o que me permite a condição legal de herdeira de sua obra.
3 Cf. F. Herrmann, Andaimes do real: o método da Psicanálise, terceira parte (2001b).
Referências
Herrmann, F. (1991). Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Herrmann, F. (2001a). Acerca da mentira e do erro necessário. In F. Herrmann, Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (3a ed., pp. 43-66). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, F. (2001b). Andaimes do real: o método da Psicanálise (3a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, L. (2009). Erro necessário: uma construção clínico-ontológica da Teoria dos Campos. Percurso, 21(42),89-94. [ Links ]
Correspondência:
Leda Herrmann
Rua Girassol, 34/102 05433-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3083-4778
herrmannfl@globo.com
Recebido em 01.08.2016
Aceito em 15.08.2016