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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo abr./jun. 2017
RESENHAS
O primeiro olhar: desenvolvimento psíquico inicial, déficit e autismo
Maria Thereza de Barros França
Membro efetivo e psicanalista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Autora: Teresa Rocha Leite Haudenschild
Editora: Escuta, São Paulo, 2015, 248 p.
Resenhado por: Maria Thereza de Barros França
Tanto para o desenvolvimento do bebê como para a evolução de nosso papel de analista, os objetos primários são de fundamental importância. Refiro-me às inúmeras oportunidades em que Teresa contribuiu para enriquecer minha formação como analista de crianças e adolescentes, com sua ampla e profunda experiência profissional. É para mim uma satisfação enorme poder demonstrar minha gratidão a ela - a princípio, escrevendo a apresentação de seu livro, e agora resenhando-o.
No entanto, esta resenha será muito mais "onírica" do que convencional. Isso porque o prefácio do livro, feito por Nara Amália Caron, analista didata e psicanalista de crianças e adolescentes da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), dá conta desse aspecto mais formal, detalhando os artigos do volume.
Vou começar, então, fazendo um mergulho nas entranhas do livro pelos olhos. Não apenas os olhos - todos os nossos órgãos dos sentidos podem funcionar como mãos que se estendem em busca de contato, no intuito de formar uma imagem à qual irão se agregar e integrar as diversas sensorialidades, coloridas por tonalidades afetivas na composição de nossos objetos.
E são múltiplos os objetos com os quais nos deparamos ao longo da leitura desse livro: o objeto (total) na concepção de Freud; os parciais, de Klein; o compreensivo, introduzido por Bion, que permitirá o nascimento psíquico ou o desabrochar de um ser, pelo contato e introjeção de um objeto pensante, nos dizeres de Meltzer.
É o encontro com o solo receptivo do útero psíquico do objeto primário que permite a uma semente fértil germinar, desenvolver-se e dar origem a um novo ser.
Entretanto, possíveis desencontros, decorrentes das mais diversas causas, colocam-nos em contato com objetos estranhos, autísticos, buraco negro (Tustin), obstrutores ou mesmo bizarros (Bion), levando a encalhes no desenvolvimento.
O contrário se dá no encontro harmonioso, em que nos deparamos com um objeto privilegiado ou ótimo, melhor ainda se for atraente ou radioso. Isso sem falar do objeto verdadeiro e do estético (Meltzer), que nos põem em contato com a beleza externa do objeto e com a dimensão da profundeza dos significados.
O objeto aglomerador, o necessitado e o tantalizante geram angústia se não puderem se oferecer para saciar nossa sede de contato subjetivante.
Se falhas houve no encontro entre uma semente (mais ou menos fértil) com o útero psíquico inicial (mais ou menos receptivo), o trabalho analítico poderá promover reparos. É assim que Teresa nos mostra como, indo ao encontro de Gabriel, Paula, Nara, Amanda, Ricardo, Marina..., os acompanha e transforma no sentido de seu desenvolvimento, sendo por outro lado acompanhada por Bion, Winnicott, Tustin, Bick, Meltzer, Quinodoz, Athanassiou, Anne Alvarez., analistas que, com suas contribuições, balizam o trabalho de análise, ao mesmo tempo que, como fontes inspiradoras, promovem a criatividade analítica.
O olhar, a escuta e o contato no trabalho com funcionamentos mentais primitivos, tanto em seu caráter desfavorável (como observamos em pacientes muito prejudicados, ou mesmo com características autísticas marcantes) como em seu caráter favorável ao desenvolvimento (como na observação da cocriação do vínculo entre a bebê Sabrina e sua mãe), são descritos e apresentados detalhadamente no livro por Teresa, instrumentando-nos assim para a prática clínica.
Teresa chama a atenção para a necessidade de regularmos distâncias na aproximação com as defesas de nossos pacientes, cuidando para não sermos intrusivos, mas ao mesmo tempo fazendo um apelo ao seu núcleo germinativo, promovendo o surgimento ou o desenvolvimento dos processos de representação e simbolização, estimulando o pensar.
Assim é que Teresa sugere o uso expressivo de frases, palavras ou gestos com tonalidade afetiva pronunciada, e o favorecimento de representações ideográficas de cenas ou desenhos que, associados ao clima emocional, promovam a construção ou o aprimoramento de um espaço psíquico gerador de significados, de pensamentos, que permitam suportar perceber e conviver com a alteridade e firmar a individuação. Ou seja, um analista que ativamente incentive em seus pacientes a capacidade de sonhar, brincar, falar e pensar.
No transcorrer das narrativas de Teresa, acompanhamos as sementes germinarem - crianças que viviam como Pinóquio e que, ao encarnar, transformam-se em crianças de verdade, ganhando corpo sua identidade.
Para os que estranhem essa abordagem e perguntem: "Mas isto é mesmo análise?", Teresa responde com Bion: "Pode se dar que isto seja psicanálise ou não seja - não me preocupo com isto porque neste ponto não me interessa a teoria, mas a prática, a vida" (p. 129).
Tenho viva em minha mente a imagem de Teresa fazendo um leque com os dedos para traduzir os diversos estados de funcionamento mental: primeiro, os mais primitivos de todos, os estados de não integração, com identificações pontuais e adesivas; depois, os estados esquizoparanoides (ligados à posição esquizoparanoide, de Klein), com predomínio das identificações projetivas e riscos de desintegração; a seguir, os estados genitais (ligados à posição depressiva), com maior condição de integração e predomínio de identificações introjetivas; por fim, os estados mais criativos. Vários níveis de funcionamento mental se alternam no decorrer do trabalho analítico, e mesmo numa única sessão ou no nosso dia a dia.
Teresa usa, dessa forma, o seu corpo para falar do nosso psiquismo, assim como a mãe e os psicanalistas, em especial os que atendem crianças, oferecem seus corpos e suas mentes para o desenvolvimento psíquico de seu bebê, de seus pacientes e ainda para o crescimento profissional de seus pares.
Este livro, fruto da criatividade de uma analista experiente, que generosamente compartilha conosco sua vivência profissional, é uma preciosa contribuição aos que se dedicam ao estudo e atendimento de pacientes que sofrem pelos entraves ao seu desenvolvimento.
Correspondência:
Maria Thereza de Barros França
Rua Alice Macuco Alves, 141
05453-010 São Paulo, SP
Tel.: 11 3022-8449
tfranca.tln@terra.com.br