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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo oct./dic. 2017
RESENHAS
Corpos, sexualidades, diversidade
Flávio Carvalho Ferraz
Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Organizadoras: Silvia Leonor Alonso, Danielle Melanie Breyton, Helena M. F. M. Albuquerque e Luciana Cartocci
Editora: Escuta, São Paulo, 2016, 423 p.
Resenhado por: Flávio Carvalho Ferraz
A coletânea que ora apresentamos tem uma pré-história que merece ser evidenciada para que se tenha uma noção mais clara do contexto em que ela se situa. Na verdade, não se trata de uma obra isolada, mas sim de um livro que bem poderia ser numerado como o terceiro de uma série que já se consagra na literatura psicanalítica brasileira.
Desde o já longínquo ano de 1997, Silvia Leonor Alonso vem coordenando um profícuo trabalho sobre o tema do feminino no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, do qual é membro fundador e respeitada professora do curso de psicanálise. O grupo de trabalho e pesquisa constituído em torno de sua orientação, denominado O Feminino e o Imaginário Cultural Contemporâneo, promoveu, no ano de 2001, uma jornada para trazer a público o resultado de suas investigações e reflexões em torno das questões que uniam o tema do feminino à cultura contemporânea, sempre vistas sob o ângulo da clínica psicanalítica. Nessa primeira jornada já se percebia, como exigência imperiosa da pesquisa, a articulação entre teorias sociais sobre o feminino na atualidade e a metapsicologia freudiana. Claros estavam tanto o método adotado pelo grupo quanto o grau de excelência daquele núcleo de estudos.
Um dado interessante a ser ressaltado é que a referida jornada não propôs apenas a apresentação dos trabalhos dos membros do grupo de estudos que a promoveu. Unindo o rigor da investigação à salutar necessidade de interlocução com os pares, também foi proposto, com êxito, um debate teórico-clínico entre os membros do grupo de estudos sobre o feminino com os colegas da instituição psicanalítica mais ampla em que ele estava inserido, a saber, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Como testemunho desse evento, veio a público, em forma de livro, o documento que registrava o esforço e o sucesso da empreitada: a coletânea de artigos à qual se deu o título de Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, lançado pela editora Escuta no ano de 2002, com a organização da própria Silvia Leonor Alonso, em parceria com Aline Camargo Gurfinkel e Danielle Melanie Breyton. Foi esse o primeiro livro do que veio a constituir uma série - uma série viva, uma vez que o grupo que a engendrou continua com seu trabalho em pleno vigor, como veremos a seguir.
Em maio de 2007, dando prosseguimento ao trabalho de divulgação de sua pesquisa, com a reiteração da disposição ao debate, o mesmo grupo convocou a segunda jornada temática, estruturada nos moldes da primeira. E novamente um livro nasceu a partir do evento, dessa vez intitulado Interlocuções sobre o feminino na clínica, na teoria, na cultura, publicado pela mesma editora em 2008, com a organização de Silvia Leonor Alonso, Danielle Melanie Breyton e Helena M. F. M. Albuquerque. Esse livro, que de certo modo dava continuidade ao antecessor, já indicava ao leitor a via pela qual percorria a preocupação de seus autores: a ênfase nos efeitos das mudanças históricas sobre os processos de subjetivação na contemporaneidade e seus reflexos tanto na clínica cotidiana como nas produções artísticas e culturais.
Enfim, eis que chegamos ao ano de 2015, quando teve lugar a terceira jornada, homônima do livro que ora apresentamos, Corpos, sexualidades, diversidade, que veio à luz em 2016, sob a organização de Silvia Leonor Alonso, Danielle Melanie Breyton, Helena M. F. M. Albuquerque e Luciana Cartocci - sempre pela mesma editora e, vale ressaltar, guardando a identidade do projeto gráfico da série, em que o mesmo tema pictórico surge sobre um fundo cada vez de uma cor.
Observando a sequência de temáticas dos três volumes, fica patente ao leitor que estas evoluem no mesmo compasso dos debates sobre a sexualidade que têm mobilizado tanto os movimentos sociais - da militância feminista à LGBT - quanto a pauta da produção intelectual. Assim, partindo a série de uma abordagem mais estritamente ligada ao feminino, eis que este terceiro volume dirigiu-se, como se depreende do próprio título, às sexualidades e à diversidade. Esse título, cuidadosamente escolhido, assinala o ponto de vista que presidiu os debates ali contidos. Observe-se que aqui já não se fala apenas em feminino, que se pode parear ao masculino, mas em sexualidades - assim mesmo, no plural. Ora, tal escolha conduz à presunção de que as sexualidades não se restringem ao número de duas, o que se reitera naturalmente pela aposição do termo diversidade.
Se ressalto esses aspectos, que poderiam parecer óbvios, é porque nada há de aleatório na escolha vocabular levada a cabo pelas organizadoras. Essa eleição subentende o ponto de partida teórico e ideológico dos artigos reunidos no livro e resulta de uma história cujos fundamentos são uma espécie de fio condutor da obra coletiva. A "Conferência de abertura", de Silvia Leonor Alonso, convertida em apresentação do livro, traz com exatidão os pontos mais significativos dessa história e torna-se algo como um "programa" paradigmático e a um só tempo o caldo conceitual do que vem a seguir, nos 29 artigos que compõem a obra. Se não, vejamos.
O programa escrito por Alonso explicita claramente que o que virá a seguir no livro partiu das inquietações contemporâneas sobre a diversidade sexual. Por essa razão, vou me deter em seu trabalho, na medida em que ele fundamenta os pressupostos de todo o livro e também na medida em que não haveria aqui espaço para comentar cada um dos capítulos, agrupados em 11 partes temáticas.
O ponto de partida do apanhado histórico não poderia ser outro, tratando-se de uma autora que, como Alonso, tem uma longa trajetória e uma reiterada notoriedade na abordagem propriamente freudiana das problemáticas psicanalíticas. É assim que o famoso adágio "A anatomia é o destino", que parafraseava Napoleão, é retomado e discutido criticamente pela autora. O que seu texto demonstra, fazendo trabalhar Freud - à guisa do pressuposto metodológico de Laplanche -, é que a interpretação ipsis litteris dessa sentença não faz justiça ao legado freudiano. Ou seja, claro fica que Freud, afinal, não se ateve ao modelo biologizante para definir sua concepção da identidade sexual. Muito pelo contrário, sua abordagem afastou-se enfaticamente do biologicismo, ao trazer a alteridade como fator central na configuração das identidades. O papel primordial da alteridade na configuração da identidade em geral, e particularmente na identidade sexual, seria amplamente explorado na psicanálise pós-freudiana por muitos autores, em especial por Lacan e depois por Laplanche, por meio de seu conceito de significante enigmático. Em suma: a sexualidade psíquica é implantada no sujeito a partir do outro.
Prosseguindo em seu apanhado histórico e epistemológico, Alonso aporta toda a discussão que girou e ainda gira em torno do fecundo e problemático conceito de gênero, cunhado em 1955 pelo psicólogo John Money, e desde então fartamente utilizado não só na psicologia e nas ciências sociais como também na própria psicanálise. Basta nos debruçarmos sobre a obra de Robert Stoller para comprová-lo e, assim, ficarmos aqui em apenas um dos autores mais representativos do emprego do conceito. Entretanto, demonstra a autora, salta aos olhos o fato curioso de que o próprio Freud já se valera da ideia de gênero antes mesmo do nascimento oficial do conceito. Em 1933, referindo-se ao elevado grau de narcisismo nas mulheres, ele aventa a hipótese de que tal fato significava uma compensação pelo pouco espaço que a elas se reservava nos meios sociais. Ou seja, tratava-se de incluir na definição da sexualidade as questões culturais e morais, tal como veio a ser proposto depois, com maior acuidade, pela noção de gênero.
Ao ser introduzido na psicanálise, o conceito de gênero radicaliza a separação entre a sexualidade humana e o biológico, o que não deixa de reproduzir, grosso modo, a trajetória psicanalítica em torno da questão. Hoje em dia, com o avanço da exigência teórica, pareada com a luta política, o conceito de gênero é criticado por organizar socialmente a diferença entre os sexos, mas sem desfazer a velha e renhida binariedade.
É então que, partindo da ideia de gênero, somos conduzidos a uma reivindicação - a um só tempo teórica e política - do emprego do termo diversidade. Isso porque, argumenta-se, o conceito de gênero, mesmo tendo se libertado do círculo do biológico, não logrou desnaturalizar a binariedade masculino-feminino. Para Judith Butler, depreende-se daí uma opressão da singularidade: tal como se dava com a concepção biologizante, a cultura também pode se essencializar como instrumento de poder.
Assim, chegamos ao ponto em que a metapsicologia é convocada ao trabalho, uma vez que o foco do livro não são as considerações antropológicas e sociológicas, mas sim as psicanalíticas - claro, em constante permeabilidade com as primeiras. Recorre-se a uma postulação que é, em minha opinião, mais de ordem metodológica do que propriamente epistemológica, embora também o seja em certa medida: é preciso enxergar a sexualidade como busca de uma solução.
É a partir dessa perspectiva que o livro, em um conjunto de artigos profundamente sintonizados com o debate contemporâneo sobre a diversidade sexual e todas as suas consequências, abre-se para as mais variadas situações clínicas e culturais. E, vale dizer, sempre guardando com rigor a identidade conceitual e política que une em torno do mesmo eixo cada um dos autores e seus capítulos. Descortina-se, aos olhos do leitor, a cena social em constante tensão produtiva com a criatividade exigida da clínica ante a realidade contemporánea da diversidade sexual, em seus desafios de ordem estética, tecnológica, jurídica etc.
Como se vê, o debate trazido à luz pelo livro inscreve-se no que há de mais contemporâneo no campo da polêmica sobre a diversidade sexual, dos direitos humanos, dos direitos civis, da representação política, da legislação etc. Esse debate fervilha cotidianamente no nível da imprensa geral e das redes sociais, infiltra-se nas produções artísticas, literárias e cinematográficas, e por fim impõe-se à teorização intelectual mais sofisticada na academia e em outras instituições, entre as quais, como não poderia deixar de ser, a psicanalítica. É isso o que este livro, vindo em boa hora, demonstra-nos, na medida em que deixa transcender cada uma das autorias (sem, contudo, ofuscá-las em sua singularidade) para a própria ideologia de uma instituição, que é o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em sua tradição de pensar criticamente.
Correspondência:
Flávio Carvalho Ferraz
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Tel.: 11 3088-9606
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