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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo jul./set. 2018

 

POLÍTICA

 

A mente totalitária1

 

Totalitarian mind

 

La mente totalitaria

 

L'esprit totalitaire

 

 

Luiz Meyer

Membro da efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo das reflexões de Hannah Arendt, o autor descreve, do ponto de vista psicanalítico, a formação e o funcionamento da mente totalitária, isto é, daquela que orientou a ação dos regimes hitlerista e stalinista. Busca caracterizar a estrutura psíquica sem a qual a mente totalitária não se organiza e cuja presença a torna operacional. Apresenta a hierarquia necessária à existência dela e as diferentes formas que assume (mentor, aderente e vítima). A compreensão da estrutura e do funcionamento da mente totalitária é fundamentalmente baseada em Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Meltzer e André Green.

Palavras-chave: totalitarismo, terror, destrutividade, onipotência, narcisismo, identificação projetiva, desobjetalização, vínculo


ABSTRACT

The author uses Hannah Arendt's reflections as underlying ideas to describe, from a psychoanalytic perspective, the development and functioning of a totalitarian mind, i.e. the mind that was behind both Hitler's and Stalin's regimes. The author's purpose is to characterize the mental structure that enables the totalitarian mind to operate. Without this structure, he explains, the totalitarian mind cannot be even organized. He presents the hierarchy that is vital to this totalitarian mind and the different roles it may play (mentor, adherent, or victim). The comprehension of the structure and functioning of the totalitarian mind is mainly based on Melanie Klein's, Wilfred Bion's, Donald Meltzer's, and Andre Green's work.

Keywords: totalitarianism, terror, destructivity, omnipotence, narcissism, projective identification, “de-objectalization”, bound


RESUMEN

Partiendo de las reflexiones de Hannah Arendt, el autor describe, desde el punto de vista psicoanalítico, la formación y el funcionamiento de la mente totalitaria, es decir, aquella que orientó la acción de los regímenes hitleriano y estalinista. Busca caracterizar la estructura psíquica sin la cual la mente totalitaria no se organiza y cuya presencia la hace operativa. Presenta la jerarquía necesaria para su existencia y las diferentes formas que asume (mentor, adherente y víctima). La comprensión de la estructura y el funcionamiento de la mente totalitaria está basada, fundamentalmente, en Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Meltzer y André Green.

Palabras clave: totalitarismo, terror, destructividad, omnipotencia, narcisismo, identificación proyectiva, desobjetalización, vínculo


RÉSUMÉ

L'auteur décrit, du point de vue psychanalytique, partant des réflexions de Hannah Arendt, la formation et le fonctionnement de l'esprit totalitaire, c'està- dire, de celui qui a orienté l'action des régimes hitlérien et stalinien. Il cherche à caractériser la structure psychique sans laquelle l'esprit totalitaire ne s'organise pas et dont la présence permet qu'il devienne opérationnel. L'auteur présente la hiérarchie nécessaire à son existence et les différentes formes qu'il prend (mentor, adhérant et victime). La compréhension de la structure et du fonctionnement de l'esprit totalitaire est fondamentalement basée sur Mélanie Klein, Wilfred Bion, Donald Meltzer et André Green.

Mots-clés: totalitarisme, terreur, destructivité, omnipotence, narcissisme, identification projective, désobjetalisation, lien


 

 

O título deste texto contém implícita a sugestão de nos debruçarmos sobre o funcionamento psíquico dos sujeitos que, após a Primeira Guerra Mundial, construíram e/ou participaram dos regimes totalitários surgidos na Europa - basicamente, nazifascismo e stalinismo. Contém ainda a ideia de que a forma de atuar desses regimes era particular, que eles se organizaram social e politicamente de modo original, e que a mentalidade dos que os conceberam também devia estar organizada de maneira inédita.

Em Origens do totalitarismo (1989), Hannah Arendt aborda o problema por meio de indagações que seguem essa mesma linha. Seria o regime totalitário um arranjo improvisado, um mix dos métodos historicamente empregados pelos regimes autoritários já conhecidos, como a tirania, o despotismo e a ditadura militar? Teria ele emergido oportunisticamente diante do fracasso das formas tradicionais de governo (liberal, conservador, republicano, monarquista etc.)? Ou haveria algo que se poderia chamar de natureza do governo totalitário, que lhe daria uma essência própria? Se for este o caso, se existir uma experiência básica que encontra expressão no domínio totalitário, diz a autora, deverá ser uma experiência que nunca antes servira como organizadora para uma estrutura política, que nunca antes permeara e dirigira o tratamento das coisas públicas, e portanto, na esfera que nos interessa, nunca antes controlara o psiquismo humano dessa maneira. Estaríamos, assim, diante da promoção e da criação de formas inteiramente novas e inauditas de organização social. O que pretendo discutir é a face psíquica - segundo o viés psicanalítico - desse fenômeno social desconforme.

O ponto de vista que adotamos para descrever a formação e o funcionamento da mente totalitária não passa pela análise e pela compreensão das relações que os sujeitos identificados com ela mantiveram e/ou mantêm com seus objetos primários, isto é, não nos valeremos dos perfis psicológicos mencionados nos vários e aprofundados estudos psicanalíticos sobre o nazismo e o antissemitismo - por exemplo, Frosh (2009) -, em que as figuras do pai castrador e da mãe dominadora, a presença de conflitos edipianos não resolvidos, a dominância oral e/ou anal, a identificação feminina e/ou a fusão com a mãe, a rejeição pelos pais, a frieza e a hostilidade vigente entre eles, e assim por diante, são apontadas como determinantes para a formação da personalidade de tais sujeitos.

Nosso objetivo é tratar de uma estrutura psíquica específica, inerente à mente totalitária, sem a qual ela não se organiza e cuja presença a torna operacional. Dito de outro modo, há uma exigência lógica a ser satisfeita, necessária à construção e à funcionalidade dessa mente. Procuramos trabalhar no interior dessa lógica, mostrando as consequências dela.

O primeiro passo para realizar essa proposta é caracterizar o totalitarismo naquilo que, sendo-lhe essencial, de certo modo contém e antecipa o germe da configuração psíquica que ele irá desenvolver.

Um traço distintivo, nuclear, do totalitarismo é seu empenho em explicar de modo absoluto e completo o curso da história (Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998). Ele despreza a experiência e a verificação factual para construir vicariamente um mundo fictício e logicamente coerente, apresentado como modelar e propositivo. Tal construção é balizada por uma ideologia persuasiva, assimilada como crença, destinada a gerar nos sujeitos deste mundo uma convicção inabalável nas mensagens que lhes são dirigidas. Toda essa organização se sustenta e se mantém pelo terror, que é onipresente e arbitrário. A função dele, mais do que punir os desviantes da ideologia, é criar e recriar objetos de terror, que possam ser caracterizados como desviantes e, então, eliminados.

O corolário do funcionamento dessa estrutura não é somente “destruir as capacidades políticas do homem, isolando-o em relação à vida pública” (Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p. 1248), mas sobretudo suprimir os grupos e instituições que formam o tecido das relações privadas do homem, o qual, em consequência, é destituído de seu próprio eu, tornando-se estranho ao mundo. Essa destituição e as formas que ela assume, nas mais variadas dimensões e estratos, constituem a face psíquica a que aludimos. A escolha do termo face indica o quanto o funcionamento do sujeito e o do segmento político em que está inserido, o totalitarismo, são inextricáveis.

Embora a dinâmica processual da mente totalitária demonstre o caráter unívoco de seus procedimentos, para facilitar a compreensão de seu funcionamento, vamos situá-lo em três categorias: o mentor, o aderente (ou seguidor) e a vítima, classificação ancorada numa separação que Hannah Arendt faz entre mal banal e mal radical.

O mal radical seria produto da personalidade dos construtores e mentores do regime, e estaria ancorado na onipotência individual que despreza as verificações fáticas. O mal banal, por outro lado, decorreria da ação dos seguidores, dos companheiros de estrada, e se caracterizaria por uma forma particular de alienação (mindlessness), consequente à entrega da própria mente, com a memória e a capacidade de autorreflexão, ao regime e seu líder.

Essa divisão é algo redutora, pois a estrutura totalitária funciona concentricamente, organizando seus membros em camadas circulares, sobrepostas, de modo que para cada uma delas haja sempre outra que a precede e outra que a sucede. Assim, os mentores da camada mais central, praticantes do mal radical, terão como seguidores praticantes do mal banal, aqueles que compõem a camada subsequente. Estes, por sua vez, serão a representação do mal radical para a camada que vem a seguir. Tudo se passa como se a brutalidade do escalão que compõe cada círculo do mal radical pudesse ser relativizada pela presença vizinha do mal banal. Na verdade, trata-se de uma manobra para dissolver as responsabilidades, uma vez que é a articulação harmônica das duas modalidades que mantém a eficácia do sistema.

 

O mentor

Para compreender o funcionamento do self totalitário do mentor, vou postular a existência de um objeto com cujas características peculiares ele se identificará. Esse objeto é construído através de operações sucessivas e irredutíveis de negação psíquica, excisão e identificação projetiva, que o vão modelando, de modo que, ao fim e ao cabo, ele possa se oferecer como contínuo, aconflitivo, autoexplicativo, autoconfirmativo, isto é, sem brechas ou nuances, uma permanente afirmação.

Ao término dessas operações, o que se decanta é um objeto que representa a essência do narcisismo, sua célula matricial e difusora. O caráter de ideal, obtido por meio dessa burilação contínua, faz com que ele se oponha a qualquer indagação, de pronto ignorada e desprezada. Ele não é só modelar; é também O Modelo, incontestável, puro e absoluto; o objeto-princípio (Oliveira, 1999) e, ipso facto, universal.

Em decorrência, o que for particular torna-se perigoso para ele e aciona a racionalização paranoide que justifica sua eliminação. Esse particular nem precisa confrontar o objeto; basta existir, isto é, não ser um reflexo imediato, para converter-se em discordância e atrair desclassificação e, consequentemente, perseguição.

A autoafirmação repetitiva de seus atributos e a inflexibilidade de seu procedimento criam uma impermeabilidade que, para a finalidade pretendida, de ser o ideal (um ser com completa autonomia), lhe confere eficácia e coesão. Apoiado nessa impermeabilidade, ele age impedindo a existência de qualquer outro objeto que tenha uma aura de privacidade, ou seja, que abrigue um interior controverso, gerador de ambivalência.

Sendo o todo, nada pode ou deve complementá-lo. Integrar-se seria uma traição à sua natureza. Daí ele só se relacionar com objetos que endossem sua configuração e que formem uma comunidade na qual a ilusão de normalidade é criada pela comunhão na crença.

Assim, é sob a égide da institucionalização do desprezo à realidade que esse objeto vai estabelecer suas relações. É esse aspecto de inteireza, essa promessa de inviolabilidade, que o torna admirável aos olhos do self. E é com esse objeto que o self totalitário, o mentor do totalitarismo, vai se identificar.

Em 3 de outubro de 1933, no Congresso de Juristas Alemães, Adolf Hitler afirmou que o Estado totalitário não toleraria diferenças entre direito e moral, abolindo assim o conceito de direito natural e assinalando o fim da mentalidade inaugurada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Faye, 1996). Basicamente, Hitler estava anunciando que não toleraria a distinção entre regras e princípios. Estes, segundo a teorização do jurista nazista Carl Schmitt, seriam ditados pelo líder, cuja fala corresponderia à lei: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção” (2006, p. 7). Ora, a consciência do self totalitário é dominada por um soberano cujo perfil é o do objeto que estamos descrevendo. As decisões que vier a tomar, contra qualquer razoabilidade, visarão sempre perpetuar sua liderança e seu poder.

Em consonância com o objeto com que está identificado e ao qual serve, o self totalitário não busca a regulação ou a restrição da liberdade, mas a sua abolição. Os mentores do regime formam uma comunidade marcada pela firme crença na onipotência humana (Arendt, 1989). Esta abre caminho para a construção de um mundo caracterizado pelo excesso, em que tudo é permitido e tudo é possível. Nada almejado pelo self do mentor precisa ser circunscrito, nenhuma individualidade precisa ser respeitada. Salta aos olhos que o discurso do self totalitário precisa ser mentiroso, porque ele opera apenas a partir do universo fictício que criou.

Desse modo, ele se torna partícipe e formador de um mundo indisputável, coerente, eternamente idêntico a si mesmo (Adorno & Horkheimer, 2006), representação da onipotência que emana de sua estrutura psíquica pétrea e indivisa, em contínuo funcionamento, o que não implica crescimento. O horror ao vácuo, descrito na física, encontra aqui seu correspondente psíquico: o medo do surgimento de um hiato, de uma descontinuidade, que ameaçaria o aspecto compactado e impenetrável de sua identidade. Qualquer falha eventualmente vislumbrada vai ser mandatoriamente colmada, desfigurando e falsificando a realidade. É justamente a possibilidade de confronto com uma falha que impulsiona o self a uma contínua varredura do mundo, estruturando um modo de ser paranoide e o controle compulsivo dos objetos através do terror. A (auto)afirmação é, a um só tempo, acionada pela paranoia e seu resultado reflexo.

Essa forma de ser do self totalitário, cujo epítome é o self do líder supremo, torna-se o modelo pelo qual todas as categorias são pensadas e avaliadas. A função da mencionada varredura paranoide é também detectar a emergência de áreas de privacidade e espontaneidade humanas, a fim de forçá-las a ceder lugar ao modelo único. Trata-se de uma estrutura psíquica na qual a assembleia de objetos internos, referida por Melanie Klein, coalesce em torno de um único objeto. Ao encarná-lo, juntamente com a crença no poder ilimitado, que lhe é inerente, o self do mentor atua tanto o aspecto triunfante do objeto quanto a negação maníaca de quaisquer laços libidinais de dependência (Rosenfeld, 1989a, 1989b). Estes, assim como os objetos que os revelam, precisam ser sistematicamente nulificados. Tal anulação não é vital somente para a sobrevida do self totalitário, isto é, para a alimentação de sua crença e ideologia; ela serve ainda para comprovar as teorias que compõem a sua autorrepresentação (completude, onipotência, onisciência) e a posse do poder absoluto, que desafia o reconhecimento de todo limite. Compreende-se, pois, que o terror - o instrumento da destruição - seja inerente ao funcionamento desse self, na medida em que é o dispositivo que impede contestar qualquer traço de sua identidade.

Para a manutenção de seu funcionamento, o psiquismo totalizante também requer que seus procedimentos e sua versão de mundo sejam institucionalizados e naturalizados. À semelhança do que diz Freud em Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1969), os objetos que o envolvem passam a ter como fUnção a sua manutenção, enquanto ideal. O self totalitário, assim cultuado, confunde-se com a lei, tanto na dimensão reguladora quanto na dimensão protetora, que ele mesmo prescreve.

Esse self sem partes escindidas, sem conflitos internos, governado por um narcisismo absoluto, estabelece relações que têm como princípio único a exigência de lealdade completa. A lealdade obriga os objetos que com ele se relacionam a se esvaziar de qualquer veleidade pessoal e a se tornar apenas a confirmação de sua grandiosidade. É uma lealdade que impede a existência de solidariedades pessoais, bloqueando a vida privada desses objetos (os aderentes, de quem falaremos adiante). Estes devem voltar-se de maneira transparente para a satisfação das exigências do self totalitário, cuja representação máxima é o líder. Para o aderente, o seguidor, só há um outro e só há lugar para esse outro. A autorrepresentação do self totalitário passa então a ser coletivamente consensual: um ser incastrável, cujas ações são incontestáveis. Essa posição o autoriza a emitir um discurso messiânico, que promete de forma repetitiva um mundo novo, ideal, que será construído por meio de procedimentos que o próprio discurso naturaliza. Ele não governará: comandará; ele não negociará: agirá; ele não se oporá: sabotará; ele não discutirá: monologará.

 

O aderente

Já mencionamos a descrição que Hannah Arendt (1989) faz da estratificação do regime totalitário, afirmando que os membros do partido são rodeados por um mundo normal de simpatizantes, e as formações de elite pelo mundo normal dos partidários comuns. Para cada categoria, há um círculo externo menos radical, que representa o mundo normal. A astúcia dessa organização reside na aparente pasteurização do radicalismo totalitário, que sempre terá um referente externo concebido como mais conciliador. Observemos o funcionamento desse referente, o partidário comum, o aderente, o companheiro de estrada.

Vimos que o regime totalitário se propõe a impedir a autodeterminação do sujeito, ao mesmo tempo que o pressiona para dissolvê-la, como forma de defesa. A fim de se encaixar nesse perfil, o aderente, o partidário comum, liquida sua consciência moral, e a responsabilidade desaparece por trás da necessidade de se orientar constantemente pelo regulamento a ele imposto. Adorno e Horkheimer (2006) definem a consciência moral por meio de um enunciado facilmente assimilável ao modelo kleiniano da posição depressiva, descrevendo-a como a capacidade de fazer seu o verdadeiro interesse dos outros. Evidentemente, a angústia da posição depressiva não é experimentada pelo sujeito aderente, porque ele vive confinado num mundo caracterizado pela ausência de conflitualidade. À coesão grupal, marca registrada do mundo do aderente, deve corresponder uma compactação psíquica interna, uma ausência de hesitação e de incongruência, uma tal submissão à verdade que a presença de objetos continentes se torne supérflua, surgindo em seu lugar objetos reguladores.

Habitualmente, um self é formado por identificações variadas, que terminam por compor uma fratria, cujos membros estabelecem entre si relações de cunho diverso. No caso do self do aderente, essa estrutura é substituída por uma massa amorfa, destinada apenas a espelhar os ditames do self do mentor. Tal conjuntura foi brilhantemente abordada em livros que se tornaram referência sobre o tema: Ordinary men: reserve police battalion 101 and the final solution in Poland [Homens comuns: o 101.° batalhão de reserva da polícia e a solução final na Polônia], de Christopher Browning (1998), e Hitler's willing executioners: ordinary Germans and the Holocaust [Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o Holocausto], de Daniel Goldhagen (1997). Eles descrevem como o regime induz e organiza no aderente a não diferenciação, a ambição (ou melhor, a necessidade) de ser como os demais, de ser parecido com os membros do grupo ao qual pertence, impulsionando-o a despir-se de motivações pessoais e, naturalmente, de espontaneidade.

O regime totalitário necessita de um seguidor que tenha uma identidade “contínua”. Dito de outro modo, a ausência de conflitualidade social, obtida pela institucionalização da crença na ideologia, propicia a extinção da conflitualidade interna, privando o seguidor de um psiquismo original (Laval, 2002). Seu self torna-se mecânico e, se vier a experimentar algum conflito, será sempre dentro do campo proposto e delimitado pela ideologia - um conflito pré-formado. O conformismo do self do seguidor é coextensivo ao totalitarismo do self do mentor.

O mundo administrado pelo totalitarismo deveria provocar no aderente um sentimento de claustrofobia generalizado (Adorno, 1995). Entretanto, o enclausuramento não é percebido, porque, como vimos, é naturalizado. Viver aderido ao sistema, preso a ele, torna-se o modo natural de vida. Essa adesão configura a modalidade defensiva princeps do aderente, e toma a forma de um mimetismo ritual, expressão simultânea da anulação de sua capacidade de se contrapor e do desaparecimento de sua intimidade. Uma vez que o ato de ponderar é vedado ao aderente, e que simultaneamente lhe é bloqueado o acesso ao espaço que abriga a virtualidade de conflito, as percepções dele passam a ser uma simples mimese do modelo de apreensão designado pelo self totalitário. Para tanto, o aderente vai sempre procurar o “bom ajustamento”, a posição que melhor reflita a superfície do self do mentor. Como dizem Adorno e Horkheimer, “o percebedor não se encontra mais presente no processo de percepção” (2006, p. 166).

Essa dinâmica evoca a descrição que Meltzer (1994) faz da identificação adesiva. Com efeito, o aderente não pode se relacionar em profundidade com o self do mentor porque este não é penetrável, não oferece interioridade. Como o próprio nome indica, o que resta para o aderente é a adesão ao que é aparente, externo, bidimensional. Coline Covington (2012) denomina isso de alienação (mindlessness).

Desse modo, além de funcionar como defesa contra a possível emergência de uma individualidade que atrairia o terror, o mimetismo permite ao aderente uma participação, mesmo que vicariante, no mundo idealizado do self do mentor. Para isso, ele terá que se desfazer de qualquer particularização, tornando-se uma encarnação da alienação. Por esse ângulo, o comportamento do aderente evoca o grupo de pressuposto básico, de Bion (1961), cujos componentes seguem o pressuposto sem questioná-lo, a fim de manter a segurança e a estabilidade. Os direitos são dispensados em nome dos privilégios.

O mimetismo, porém, requer a autorização do mentor para que o aderente se aproxime dele. Isso porque as ações do aderente que ecoam as do mentor devem sempre ser praticadas com a finalidade de confirmar a onipotência deste (Bauman, 1998). A mimetização é, assim, erigida em virtude moral.

 

A vítima

Vimos até agora o modo de funcionamento do self totalitário, tanto no nível do mentor, identificado com o objeto interno ideal, quanto no nível do aderente, caracterizado pela adesão mimética à superfície comportamental do self totalitário. Resta falar da vítima, do alvo cuja forma de destruição sustenta e ilustra o tipo de racionalidade inscrito na ideologia do self totalitário.

As teorias de André Green (2005) sobre a objetalização e a desobjetalização são de grande valia para apreender como essa forma destrutiva opera e por que é eficaz. Basicamente, as funções de objetalização e desobjetalização estão ligadas à dualidade pulsional. Enquanto a função objetalizante parece ser uma interessante elaboração daquilo que Freud chama de Eros, a função desobjetalizante está ligada às pulsões de destruição. Essas funções não têm como foco unicamente os objetos. Green afirma que a função objetalizante não se limita às transformações do objeto, mas eleva funções psíquicas ao status de objeto, com a condição de elas serem sempre o veículo de um investimento significativo. Com isso, sublinha o fato de que funções psíquicas, vistas como objetos, também podem ser alvo da desobjetalização. Com efeito, não é só a relação de objeto que se vê atacada pela desobjetalização; o investimento, na medida em que sofreu o processo de objetalização, isto é, converteu-se num objeto, também se torna alvo. A desobjetalização passa a atacar e destruir a própria função de investir o objeto. Se compararmos com a operação descrita por Bion em “Attacks on linking” [Ataques ao vínculo] (1959/1987), perceberemos que a manobra desobjetalizante visa criar um mundo em que nem mesmo existam vínculos para atacar. Bion descreve essa situação dizendo que o self totalitário, imbuído do sentimento de que “possui todas as qualidades da existência”, volta-se para o objeto, a vítima, e passa a funcionar como uma “força ejetora, isto é, ele pode entrar num objeto 'existente' para ejetar a 'existência'” (p. 108). Estabelece-se, assim, uma conjunção constante entre a percepção da vítima pelo self totalitário e a nulificação dela.

Essa conjuntura permite que o executor se organize para tornar-se um estrangeiro absoluto em relação ao objeto, à vítima (Kristeva, 2012), de modo que a eliminação dela se naturalize, assim como a desobjetalização.

A vítima passa a ter uma experiência - a de viver como um não ser - da qual não tem registro psíquico e que não se vincula a nenhum resto diurno. A vivência de não ser um outro para ninguém não é passível de simbolização, e termina por envolvê-la num clima inédito de irrealidade. O vácuo de representação (Viñar, 2005) que ela experimenta é tão intenso que a própria representação do terror é impedida. Não se trata, pois, apenas de destruição física. O desinvestimento do objeto age capilarmente na comunidade das vítimas, criando um grupo de fantasmas, de seres que vivenciam a si mesmos como carentes de substância, perdidos de si próprios.

Para os que compartilham da ideologia do universo totalitário, a ação dos mentores parece calculada, metódica, racional. Entretanto, para a vítima, estranha a esse universo, este é totalmente carente de lógica e de pragmatismo, de modo que a intenção do algoz, além de imprevisível, é incompreensível.

Primo Levi perguntou para um guarda do campo de concentração: “Mas por quê?”. E ele respondeu: “Aqui não tem 'Por quê?'” (1989, p. 22). A vítima vive imersa num clima de absurdo, para o qual ela procura desesperadamente um referente, sem se dar conta de que o universo de relações no qual foi enclausurada não é passível de ser interpretado com os elementos de sua experiência anterior. Para a vítima, a existência do mal radical é acompanhada pela experiência da ausência radical de sentido.

 

À guisa de conclusão

Como visto, o regime totalitário realiza uma operação dupla e simultânea: no nível macro, ela uniformiza o comportamento dos sujeitos, de modo que eles deixam de pertencer a classes sociais (estas acabam dissolvendo-se); no nível micro, ela esvazia os sujeitos de seus conteúdos internos singulares. O que resulta é A Massa, que vai agir e pensar seguindo a lógica do mentor e do seguidor, perene e indiferentemente conferindo às coisas um sentido fixo (Herrmann, 1997). O terror onipresente, que adensa A Massa, aciona defensivamente a paixão pela mentira, que aprisiona os sujeitos que a compõem. Através da biografia desses homens e de seu comportamento, filtram-se os traços da estrutura que descrevemos aqui. Vejamos o exemplo de Fritz Stangl, comandante dos campos de Sobibor e Treblinka.

Nascido em 1908 na Áustria, perdeu o pai aos 8 anos. Para ajudar a manter a família, aprendeu a tocar e a dar lições de cítara. Mais tarde, fez um curso de tecelão. Desapontado, porém, com as possibilidades de ganho nesse ofício, alistou-se na polícia, frequentando uma academia em Linz em 1930. No ano seguinte, tornou-se membro do Partido Nazista e obteve promoções em sua carreira policial. Em 1938, com o Anschluss, foi nomeado para servir no Departamento de Assuntos Judaicos de Linz. No mesmo ano, juntou-se à ss. Em 1940, passou a trabalhar no Aktion T4, o programa nazista de eutanásia. Em 1942, aceitou participar da Operação Reinhardt, codinome dado pelos nazistas à operação que visava assassinar todos os judeus que viviam no Governo Geral (na Polônia), o primeiro passo para a liquidação sistemática dos judeus na Europa. Posteriormente, foi indicado por Himmler para ser o primeiro comandante de Sobibor, campo que ele tornou operacional. Na segunda metade de 1942, foi nomeado comandante de outro campo de extermínio, Treblinka.

Stangl afirmou que sua dedicação nada tinha a ver com ideologia ou ódio aos judeus. Ele via os prisioneiros mais como o motivo de seu trabalho do que como pessoas, e via seu trabalho da mesma forma que veria qualquer outro. Afirmava que era sua profissão, que gostava dela e que ela o preenchia; também, que era ambicioso. Nesse posto, ele aceitou e foi se acostumando com a mudança, percebendo os prisioneiros não como humanos, mas como cargas que deveriam ser destruídas; ele admitiu o extermínio dos judeus como um fato.

Para dizer a verdade, a gente tinha se acostumado com aquilo. ... Eles eram cargas. Acho que tudo começou quando vi pela primeira vez o campo de morte [a área de extermínio] em Treblinka. Eu me lembro de Wirth ali de pé, ao lado das valas cheias de cadáveres azul-escuros. Aquilo não tinha nada a ver com a humanidade. Não podia ter. Era uma massa, uma massa de carne apodrecendo. Wirth disse: “O que vamos fazer com esse lixo?”. Acho que, inconscientemente, isso me levou a pensar neles como cargas. Eu raramente os via como indivíduos. Eram sempre uma massa informe. Algumas vezes, eu ficava junto à parede e os via no corredor [que levava às câmaras de gás]. Eles estavam nus, correndo, encurralados, sendo conduzidos por chicotes. (Sereny, 1974/2013, p. 287)

Órfão, tocador de cítara, tecelão, policial, burocrata da eutanásia, administrador de campos de extermínio. Aos olhos de Stangl, sua participação em ambos os escalões da prática totalitária, o mal banal e o mal radical, justificava-se por uma lógica que esclarecia o sentido de suas ações. Nos depoimentos que deu a Gitta Sereny, dos quais resultou o livro Into that darkness [No meio das trevas] (1974/2013), Stangl revelou ter se oferecido a Odilo Globocnik (o general da ss responsável pela criação dos campos de extermínio da Operação Reinhardt) para pôr ordem no campo de Treblinka, particularmente no que se referia ao desvio de valores que os judeus, ali executados em massa, deixavam. Como em falas anteriores Stangl havia reiterado que seu maior desejo era afastar-se desses campos, Sereny perguntou-lhe por que se voluntariara. Ele respondeu que agia estritamente como policial. Sereny retrucou lembrando que ele afirmara saber que o trabalho feito nesses campos era criminoso.

Era uma questão de sobrevivência, sempre de sobrevivência. ... O que eu tinha de fazer, enquanto continuava em meus esforços para sair de lá, era limitar minhas ações a aquilo pelo que, segundo minha consciência, eu podia me responsabilizar. Na escola de polícia nos ensinaram que a definição de um crime deveria preencher quatro requisitos: deve haver um sujeito, um objeto, uma ação e uma intenção. Se falta qualquer um desses quatro elementos, então não estamos lidando com uma contravenção passível de punição. Eu só poderia viver se compartimentasse meu pensamento [itálico nosso]. Desse modo, eu poderia aplicar esses ensinamentos à minha situação: se o sujeito era o governo, o objeto os judeus, a ação a morte na câmara de gás, eu podia dizer a mim mesmo que o quarto elemento, a intenção, estava faltando. (p. 287)

 

Referências

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Correspondência:
Luiz Meyer
Rua Santa Cristina, 217
01443-020 São Paulo, SP
luimeyer@uol.com.br

Recebido em 14/8/2018
Aceito em 28/8/2018

 

 

1 Trabalho apresentado no 48.° Congresso Internacional de Psicanálise (Praga, 2013), da Associação Psicanalítica Internacional (IPA).

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