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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo oct./dic. 2018
RESENHAS
Alexandre Socha
Psicanalista e mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Organizadores: Eliana Rache e Bernardo Tanis
Editora: Blucher, São Paulo, 2017, 228 p.
Resenhado por: Alexandre Socha
Por uma psicanálise mestiça
Um livro de psicanálise destacando a América Latina no título e reunindo autores de suas diversas latitudes por si só já mereceria a atenção do leitor, tão raros são em nosso meio os esforços de apreensão em conjunto daquilo que é produzido abaixo da Linha do Equador. A profunda disparidade de culturas, tradições e realidades sociais entre os países latino-americanos faz com que uma velha pergunta com frequência se insinue: “Afinal, existe uma América Latina?”. A questão não é de todo ociosa, seja em termos geopolíticos, econômicos ou mesmo psicanalíticos, num momento em que já nos habituamos a argumentar sobre a existência de uma psicanálise latino-americana, sobre sua natureza e suas temáticas prevalentes. Fato é que a América Latina, enquanto entidade conceitual, é inapreensível se assumida exclusivamente em termos geográficos ou linguísticos (o que excluiria províncias canadenses francófonas, portanto, de origem latina). Ademais, as sociedades que a compõem parecem antes coexistir do que conviver, relacionando-se, desde os tempos coloniais, mais com as respectivas metrópoles do que entre si mesmas.
No primoroso ensaio dedicado ao tema, Darcy Ribeiro (2010) é categórico em seu posicionamento: é evidente que a América Latina existe; ela é a Pátria Grande de povos mestiços, que funde heranças étnicas e culturais tomadas de todas as matrizes da humanidade; submetida ao mesmo processo civilizatório violento de mestiçagem e homogeneização, embora este tenha adquirido nuances que emprestam sabores particulares a cada um de seus rincões. Nos termos de Eduardo Galeano (2010), seria uma vasta região de veias abertas, com a história compartilhada de sua exploração e de sua posição antagônica aos grandes centros socioeconómicos. Há, enfim, algo que imediatamente compreendemos e reconhecemos ao nos depararmos com a expressão América Latina: um destino comum aos seus povos, que os identifica em suas dificuldades, esperanças e prodígios.
Sua unidade continental caracteriza-se também pela excepcional criatividade com que absorve aquilo que recebe de outras culturas. No plano científico, o cruzamento sincrético de ideias e teorias importadas além-mar faz com que estas sejam reconstruídas e incorporadas de acordo com as necessidades específicas de seu próprio solo. É um lugar-comum dizer que os psicanalistas latino-americanos costumam transitar com fluência entre autores oriundos de diferentes escolas, em reflexões que não perdem rigor conceitual por contemplarem matrizes teóricas distintas. Não raro, a psicanálise desenvolvida em meios europeus e anglo-americanos encontra em nossas paragens oportunidades de troca e interlocução que não obteve em seu lugar de origem, onde o peso da tradição local foi durante muito tempo obstrutivo a uma circulação mais ampla de ideias estrangeiras.
René Roussillon, autor homenageado no livro em questão, é herdeiro de uma geração de psicanalistas franceses à qual o esgotamento dogmático e endogâmico das escolas já havia conduzido a uma maior permeabilidade àqueles que falavam outras línguas. Green, Pontalis, McDougall, Anzieu e outros romperam certo isolacionismo para dialogar com autores como Winnicott, Bion, Fairbairn ou Kohut. Embora Roussillon já produzisse com regularidade antes, é especialmente a partir dos anos 2000 que seu nome desponta nos radares internacionais como o de um autor original, cujo pensamento vem ao longo dos anos ganhando em complexidade e repercussão. Como a geração que o precedeu, Roussillon integra uma leitura freudiana de cepa francesa às contribuições teóricas de autores estrangeiros, estabelecendo correspondências e relações imperceptíveis se tomadas apenas em sua superfície. É sobretudo no diálogo criativo que estabelece entre Freud e Winnicott que Roussillon encontra um território prenhe para releituras e formulações próprias. Talvez não seja demasiado afirmar que tenha sido esse caráter dialógico em sua obra um dos elementos que a tornou tão apta a florescer e a se propagar rapidamente em terreno latino-americano. A presença do analista francês em conferências e congressos locais, com as parcerias que amiúde tem por aqui estabelecido, certamente reforça a aproximação entre os dois termos que compõem o título do livro: Roussillon e América Latina.
É o que constatamos de imediato no conjunto de textos que integram o livro e na própria história de sua concepção, como relatada pelos organizadores na apresentação. Fruto do trabalho realizado pelo grupo de estudos dedicado ao pensamento de Roussillon, criado originalmente por ocasião de sua participação no 31.° Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina (Cartagena, 2016), o livro reúne contribuições de colegas que formam esse grupo, membros de diversas Sociedades latino-americanas: Jani Santamaría Linares (Associação Psicanalítica Mexicana), Martha Isabel Jordán-Quintero (Sociedade Colombiana de Psicanálise), Ana María Chabalgoity e Ema Ponce de León Leiras (Associação Psicanalítica do Uruguai), Leonor Valenti de Greif (Associação Psicanalítica Argentina), Luciane Falcão (Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre), além de Marion Minerbo e dos próprios organizadores, Eliana Rache e Bernardo Tanis (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo).
Em parte relacionados ao congresso, em parte às ressonâncias dele, os nove trabalhos publicados têm como denominador comum a apreensão multifacetada da obra de Roussillon, operando como suporte para reflexões e releituras próprias. Entre os eixos investigativos que realizam uma costura interna e proporcionam coerência ao conjunto, destacam-se dois, intimamente ligados: a concepção das patologias narcísico-identitárias, vista sob diversos ângulos, e a decorrente extensão do dispositivo analítico, que permite seu manejo clínico.
As problemáticas narcísicas e as configurações não neuróticas apresentam ao analista inúmeros desafios quanto ao seu lugar de escuta e aos limites do enquadre padrão. Esse é o campo de reflexão circunscrito por Tanis no artigo que abre o volume, situando suas discussões num amplo contexto sobre o contemporâneo. “A clínica atual nos coloca fora de territórios seguros” (p. 36), afirma o autor, e é esse lugar fora que será explorado, ao longo do livro, através de perspectivas singulares. O argumento de que a cultura e a condição pós-moderna, marcadas por excessos e fragmentações, incidem diretamente na subjetividade e na capacidade de simbolização relembra a impossibilidade de conceber o sujeito fora de seu meio e de sua história. As explorações in-trapsíquicas abrem espaço às que, em uma análise, se põem dentro do campo intersubjetivo formado pela dupla, e esta, invariavelmente, dentro do campo de uma cultura compartilhada.
Os trabalhos que se seguem trazem aquilo que talvez seja uma das principais contribuições do livro: a exposição sistemática e clara de formulações elaboradas por Roussillon nas últimas décadas, servindo assim como um caminho introdutório ao leitor não familiarizado com elas. Nesse percurso, o amplo espectro denominado narcísico-identitário e seus desafios clínicos são passados em revista pelos autores. De modo muito sucinto, ele designa os efeitos da experiência de traumas precoces na primeira infância, estados agónicos de desespero ou terror que colocaram em ameaça o próprio sentido de identidade. Decorrentes da inadequação do ambiente para reconhecer as necessidades e responder às expectativas básicas do bebê, essas vivências ocorreram num momento prévio à capacidade de adquirirem representação. Permanecem assim clivadas e alojadas num inconsciente não reprimido, como um corpo estranho no psiquismo (incorporât). Sendo o único recurso possível de sobrevivência à catástrofe provocada pelo traumatismo primário, a clivagem no eu (distinta da clivagem do eu) leva, no entanto, à ausência de coesão e ao sentimento de que o indivíduo vive fora de si mesmo. “A vida me vive” é a sentença enigmática e reveladora que Manuel, um dos pacientes retratados no livro, diz à sua analista (p. 114).
Para se contrapor à revivescência dessas experiências e ao seu intenso sofrimento, o psiquismo se organiza em torno de defesas paradoxais: esvazia a si mesmo e as relações com o outro como recurso diante de um vazio não simbolizado, ainda mais terrorífico, desorganizador e intransponível. A neutralização da dor e da ameaça do seu retorno faz com que o sujeito se retire de sua própria cena psíquica, procedimento que pode ser vivido contratransfe-rencialmente pelo analista como ausência de ressonância afetiva no encontro. Ao recobrir a relação analítica com uma tonalidade paradoxal, tais pacientes convocam o analista a sentir e a viver aquilo que não foi possível ser sentido e vivido em sua história.
Sem encontrar inscrição na cadeia representacional e em sua circulação associativa, é sobretudo na linguagem pré-verbal, no corpo e no ato, que o traumático se evidencia. A partir desses elementos indiciários se realizará o trabalho de reconstrução histórica (no sentido freudiano de construções em análise), possibilitando a integração da situação traumática primária numa forma passível de inteligibilidade. Em outras palavras, a ampliação do tecido representacional e do trabalho de simbolização será o vetor primordial do processo analítico. A ênfase sutil recai na importância fundamental dada por Roussillon às conjunturas do vínculo primário e da realidade histórica do trauma na origem dos sofrimentos narcísico-identitários, sem deixar de também enfatizar o caráter “mensageiro” da pulsão e seu circuito de investimento.
Embora os trabalhos abordem questões teóricas complexas, referentes à posição do narcisismo na dinâmica e na economia psíquica, às dificuldades na função subjetivante do eu ou à metapsicologia do processo analítico, há um grande esforço dos autores em ancorar as ideias apresentadas com situações clínicas, oferecendo exemplos e ilustrações daquilo que está sendo discutido. No texto em coautoria de Chabalgoity e Leiras, por exemplo, o relato é apresentado em pormenores, permitindo-nos acompanhar de perto a construção gradual de um pensamento clínico.
Junto a comentários sobre o pensamento de Roussillon, há também textos que não o abordam diretamente, mas que apresentam as marcas de sua influência. É o caso do artigo de Minerbo, que se destaca pela originalidade de suas proposições. A autora explora os efeitos do inconsciente materno (em particular, dos aspectos paranoicos do objeto primário, pertencentes ao seu núcleo psicótico) na constituição do supereu cruel. Ao defender o próprio narcisismo das demandas pulsionais do bebê, o objeto primário ataca a subjetividade do infans por meio de microvotos inconscientes de morte. O trabalho na clínica com o supereu cruel, identificado com os aspectos assassinos do objeto primário, atravessará invariavelmente a metabolização da alteridade promovida pelas respostas no campo transferencial e contratransferencial.
Encerrando o conjunto de artigos, Chabalgoity retoma de modo explícito uma das questões que perpassam o livro: “Como manter, a partir de um posicionamento analítico, a essência do método, dando, contudo, lugar às alterações técnicas destinadas a respeitar a singularidade e as vicissitudes de cada situação analítica?” (p. 198). O percurso de uma análise com mais de 10 anos é utilizado para discutir a maleabilidade do analista e o manejo de sua presença-ausência como modo de aproximar-se das condições e necessidades da paciente. O uso do tempo e do espaço no processo analítico surge como um elemento central, voltado a ampliar as possibilidades de simbolização diante das condições precárias de certos tratamentos difíceis.
Um tema caro a Roussillon é a extensão do dispositivo analítico clássico, que aqui se põe em jogo, levando a termo a proposta winnicottiana de explorações psicanalíticas. O alargamento da escuta analítica para além da linguagem verbal, incluindo a linguagem do corpo e do ato, faz reconhecer na própria configuração do enquadre um modo de a história não simbolizada do paciente emergir. No entanto, a disponibilidade para adaptar-se, criando condições rítmicas e espaciais sob medida (expressão empregada por Rache em seu artigo), exige do psicanalista uma reflexão ainda mais rigorosa a respeito do enquadre analítico, das condições de escuta que este permite e da concepção que o fundamenta. Essa talvez seja uma das grandes questões enfrentadas pela psicanálise contemporânea e, possivelmente, uma que também se apresenta para o seu futuro.
Servindo como subsídio sólido para a reflexão e arsenal conceitual para o manejo clínico de pacientes não neuróticos, o livro dedicado a Roussillon oferece um debate atual sobre o trabalho do psicanalista. Mais além, sendo o registro de um grupo heterogêneo, ele nos dá a oportunidade de escutar lado a lado vozes latino-americanas, com suas inflexões e sotaques locais, convergindo ao redor de temáticas afins. No interior de seus nove textos, encontramos a expressão do notável poder unificador que reúne essas vozes díspares num mesmo processo de assimilação, transformação e incorporação criativa de ideias. Eis a América Latina e a maleabilidade de sua psicanálise.
Referências
Galeano, E. (2010). As veias abertas da América Latina (S. Faraco, Trad.). Porto Alegre: L&PM. [ Links ]
Ribeiro, D. (2010). A América Latina existe? Rio de Janeiro; Brasília: Fundação Darcy Ribeiro; Editora Universidade de Brasília. [ Links ]
Correspondência:
Alexandre Socha
Rua Joaquim Antunes, 767/112
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