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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

 

FEMININO, OUTRAS REFLEXÕES

 

Para uma desconstrução do feminino1: discursos, lógicas e poder: implicações teórico-clínicas

 

Deconstructing feminism: discourse, logic, and power

 

Hacia una deconstrucción de lo femenino: discursos, lógicas y poder

 

Pour une déconstruction du féminin: discours, logiques et pouvoir

 

 

Leticia Glocer FioriniI; Tradução Claudia Berliner

ICo-chair para a América Latina do Comitê de Estudos de Diversidade Sexual e de Gênero, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Professora do mestrado Estudos Interdisciplinares da Subjetividade, da Universidade de Buenos Aires (UBA). Ex-presidente da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Foi diretora de publicações de IPA e da APA. Publicou os livros Lo femenino y el pensamiento complejo e La diferencia sexual en debate, além de vários artigos sobre sexualidade feminina, maternidade e diversidade sexual

Correspondência

 

 


RESUMO

Diante dos impasses teórico-clínicos sobre o feminino e sobre as mulheres no campo psicanalítico, são abordadas lógicas não dualistas para enfocar a polaridade masculino/feminino, em mulheres e homens. Propõe-se ir além do conceito de uma essência feminina, própria do binarismo masculino/feminino, e pensar essa categoria em tramas multideterminadas (lógicas pós-binárias).

Palavras-chave: psicanálise, feminino, polaridade masculino-feminino, desconstrução do "feminino"


ABSTRACT

Faced with the theoretical-clinical impasses about feminism and women within the psychoanalytic sphere, two non-dualistic logics are presented to discuss the polarization of masculine-feminine, in women and men. The proposition is exceed the concept of a "feminine essence," which characterizes the masculine-feminine binary, and consider this category in multi-determinate webs (post-binary logics).

Keywords: psychoanalysis, feminine, masculine-feminine polarity, deconstruction of the feminine


RESUMEN

Frente a los impasses teórico-clínicos sobre lo femenino y las mujeres en el campo psicoanalítico se abordan lógicas no dualísticas para enfocar la polaridad masculino-femenino, en mujeres y hombres. Se propone ir más allá del concepto de una esencia femenina, propia del binarismo masculino-femenino, y pensar esta categoría en tramas multideterminadas (lógicas posbinarias).

Palabras clave: psicoanálisis, femenino, polaridad masculino-femenina, deconstrucción del femenino


RÉSUMÉ

En face des impasses théoriques-cliniques à propos du féminin et des femmes dans le champ psychanalytique, on aborde des logiques non dualistes pour mettre l'accent sur la polarité masculin-féminin, concernant les hommes et les femmes. On se propose à aller au-delà du concept d'une essence féminine, propre au binarisme masculin-féminin, et penser cette catégorie sous la forme de trames multi-déterminées (logiques post-binaires).

Mots-clés: psychanalyse, féminin, polarité masculin-féminin, déconstruction du féminin


 

 

 

1. O feminino em debate

Na primeira metade do século XX, Freud se perguntava sobre o dilema do "enigma feminino" e descrevia as insuficiências da condição feminina -a rigidez mental e as escassas capacidades sublimatórias das mulheres - de acordo com sua postura sobre o destino princeps da feminilidade: a maternidade. Em Cartas à noiva (Freud, 1963/1984b), Martha Bernays, sua futura mulher, comentava que desejava ler Stuart Mill, filósofo defensor dos direitos das mulheres. Ele respondeu-lhe que não era recomendável, já que as mulheres deviam dedicar-se ao lar e aos filhos, tal como indicava o "ideal feminino". Freud (1933[1932]/1986a) também ressaltava que o feminino era um enigma para os homens, mas não para as mulheres, e isso nos confronta com o ponto de vista do produtor de teoria. Acabou, finalmente, por reconhecer seus próprios limites e reservou aos poetas um saber sobre a condição feminina que reconhecia estar fora de seu alcance.

Na mesma época, Virginia Woolf (1993) afirmava que uma mulher necessitava de um quarto próprio e de dinheiro para poder escrever. Não era psicanalista, mas expressava outras perspectivas sobre o feminino e as mulheres, tradicionalmente consideradas seres inferiores, o sexo "frágil", enfocando sua situação de submissão e discriminação. A questão da sublimação nas mulheres ganhava um lugar de destaque. Recordemos que, para Freud, os aspectos criativos e sublimatórios em uma mulher eram expressão de sua parte masculina - verdadeira tautologia, que replica ao infinito o dualismo masculino/feminino, equiparado a razão versus natureza, respectivamente. Hoje, haveria que acrescentar, ao quarto próprio e ao dinheiro, a necessidade de rever inscrições psíquicas individuais e discursos coletivos imemoriais. Essa desconstrução abriria a possibilidade de incluir outras lógicas para pensar esses temas.

Há, atualmente, um número bem maior de contribuições, tanto da psicanálise quanto de outras perspectivas e experiências, que propõem mudanças nas concepções sobre o feminino e as mulheres. No entanto, há também formas variadas do que se poderia chamar de neopatriarcado, que se infiltram profundamente nas subjetividades e persistem nas teorias e práticas sobre o tema. A violência de gênero é cada vez mais reconhecida e é importante abordá-la como mandato de masculinidade, com raízes profundas nas subjetividades. Os [movimentos] Me Too, Time's Up, Nem Uma a Menos, 8M são manifestações socioculturais e discursivas que descentram a naturalização das mulheres como objeto de estudo partindo de um sujeito de conhecimento "neutro". O que temos, então, a dizer de um ponto de vista psicanalítico?

Em primeiro lugar, analisar o tema do feminino implica reconhecer a polissemia desse termo. Uma primeira distinção: as categorias feminino, mulher, mãe, sexualidade feminina e feminilidade não são homólogas, embora haja superposições entre elas. Propomos assumir essa complexidade estabelecendo conexões, mas, ao mesmo tempo, discriminações: entre o dualismo da cultura (masculino/feminino) que nos atravessa, as pluralidades identificatórias dos processos de subjetivação nos quais convivem ambas as categorias (bissexualidade), e os movimentos nômades relativos às migrações sexuais e de gênero. A complexidade está em jogo.

Nosso objetivo é reconhecer com que fundamentos epistêmicos essas categorias são pensadas. Tal abordagem, e esta é a minha hipótese, supõe aceitar a coexistência entre um pensamento dualista, binário, e lógicas pós-binárias, que incluem o plural, a multiplicidade e o heterogêneo. Recordemos que os dualismos incluem relações de poder (Héritier, 2007) e que, simultaneamente, as relações de poder se servem dos binarismos.

Isso implica que cada psicanalista reveja suas concepções sobre as mulheres, ou por atribuir-lhes uma "falta originária", ou porque careceriam de um significante fundamental, ou porque estariam essencialmente atravessadas pela inveja do pênis, ou então porque a diferença estaria radicada em um "gozo feminino", infinito (Lacan, 1981), ainda que fora do simbólico. A nosso ver, essas variantes desembocam no denominado enigma feminino, fechando um círculo explicativo e obturando a pergunta "Por que o enigma da diferença está localizado no feminino?".

Isso impacta as concepções vigentes sobre a diferença sexual, que merecem ser discutidas, especialmente quando a diferença é interpretada com base em um suposto saber neutro.

Minha proposta é não nos determos em uma das significações do feminino, já que isso levaria a consolidar uma proposição universal sobre essa categoria. Não se trata de estabelecer uma abstração sobre o feminino, pois isso implicaria afastar-se das experiências e problemáticas das mulheres. Tampouco se trata de considerar que o feminino seria uma categoria atribuível apenas às mulheres, pois fala também dos homens e do masculino, bem como de um sistema de laços sociais baseado originariamente na divisão sexual do trabalho (Rubin, 1975). Esse sistema adotou distintas formas sob uma organização sociocultural e discursiva de ordem androcêntrica, passível de ser historicizada. Nesse contexto, buscamos alternativas a um relato único sobre o feminino no campo psicanalítico. Propomos um trabalho de interface, que aponte para a complexidade da clínica e, certamente, para as perspectivas futuras da psicanálise.

Em segundo lugar, enfoco a categoria feminino como um significante e, ao mesmo tempo, um sintoma - sintoma da cultura, expresso nos discursos vigentes, e sintoma individual em homens e mulheres; espaço e lugar no qual se projetam ansiedades milenares, angústia de castração, ameaças à completude narcísica nos homens e, fundamentalmente, relações de poder, individuais e coletivas, intrincadas com o pulsional. Não resta dúvida de que as mulheres estão incluídas de diversas maneiras nessa trama relacional e frequentemente se identificam com o semblante masculino (Kristeva, 1986).

Em terceiro lugar, vale debater se a teoria psicanalítica sobre o feminino independe dos discursos e experiências coletivas imperantes. Sabemos que os discursos criam "realidades" (Verón, 1987), mas também naturalizam realidades. Então, com que "realidades" clínicas nos deparamos em relação ao feminino e à diferença sexual? E que trama discursiva está à nossa disposição? Entendemos que não se trata apenas de trabalhar com uma realidade interna, pulsional, mas do entrelaçamento entre as teorias e práticas e as realidades epocais, que oferecem significações diversas sobre o feminino. As mudanças na posição feminina nas sociedades contemporâneas, principalmente ocidentais, constituem um desafio que nos leva a repensar a teoria psicanalítica clássica sobre o feminino e a feminilidade.

Nesse contexto, é preciso diferenciar vários níveis (Segato, 2010): a) práticas clínicas e socioculturais; b) discursos imperantes em cada época; c) estruturas androcêntricas de poder que dominam as relações entre homens e mulheres desde as origens.

O poder das teorias e normatividades vigentes sobre o masculino e o feminino, as crenças e os preconceitos implicam profundamente cada psicanalista e marcam o curso de qualquer análise. Distintas teorias, implícitas e explícitas, além das construções teóricas singulares de cada analista, determinam uma escuta sempre delimitada pelas categorias perceptivas e teóricas à sua disposição. Não se trata apenas de ampliá-la com a retomada da análise do analista, sempre indispensável, mas de rever os próprios fundamentos teóricos como única maneira de expandir o campo da escuta. Com as mesmas ferramentas, a escuta derivará para automatismos interpretativos, que confluirão para uma ideia preconcebida da feminilidade, expressa em "verdades essenciais" sobre o feminino.

 

2. Dilemas teórico-clínicos

Dando continuidade ao que foi dito, tento abordar certas problemáticas que vão além das respostas clássicas sobre as mulheres e o feminino. Baseio-me nos impasses que surgiram na minha experiência clínica com mulheres e homens, relativos a essa temática.

Toda elaboração teórica deve estar apoiada em material clínico. A relação entre os fatos clínicos e a teoria é complexa. Eles nunca coincidem numa ligação determinista pura; há sempre um hiato. Além disso, assim como o excessivo desenvolvimento teórico pode levar a um hiperteoricismo distante da clínica, a proposta de que a clínica por si mesma resolve as problemáticas em jogo não conduz a nada, já que a escuta invariavelmente responde a uma trama interpretativa que tende a confirmar a teoria que o psicanalista maneja.

Do mesmo modo, seria impossível abarcar com um único caso clínico a grande quantidade de questões que surgem quando se analisa o feminino, pois trata-se de uma categoria que atravessa a teoria e a clínica e que frequentemente está naturalizada. Um caso daria conta de algum aspecto parcial do que gostaria de propor neste trabalho, mas não do encadeamento de problemas que é necessário abordar para pensar a categoria feminino. É uma escolha difícil. Trata-se de demonstrar a inveja do pênis nas mulheres ou sua inclusão em uma estrutura falocêntrica ou, ainda, "para além do falo"? Ou que a histeria seria a base da estruturação psíquica feminina? Ou que a maternidade é a saída preferencial para a sexualidade feminina, em conformidade com uma resolução bem-sucedida da trama edípica? Ou, então, que a feminilidade constitui o enigma da diferença sexual? Ou, mais ainda, que o feminino radica no denominado gozo feminino, suplementar? Entre muitos outros interrogantes.

Ante esse dilema, vou apresentar algumas ilustrações clínicas sem pretender que proporcionem uma "demonstração" - a ideia é delimitar alguns pontos de debate, e não chegar a respostas fechadas. Nenhuma dessas ilustrações abarca a complexidade e a multivocidade do feminino. Apontam para alguns eixos controversos: revisar se a maternidade é a solução privilegiada e, frequentemente, sacralizada da sexualidade feminina; enfocar outras possibilidades de pensar o desejo de filho; repensar o papel da sexualidade feminina e da sublimação para as mulheres; incluir a possibilidade de outros modelos de família nas sociedades atuais, distintos da família nuclear clássica (bem como o auge da fertilização assistida). Isso pressupõe investigar outras categorias envolvidas, como a denominada função paterna, que garantiria a separação mãe-filho, com suas inevitáveis conotações patriarcais.

A Sra. M, de 38 anos, pede atendimento devido a um quadro de depressão ansiosa, que começou aproximadamente dois anos antes. Casou-se apaixonada pelo marido e afirma estar sexualmente satisfeita. Tem dois filhos homens, de 11 e 8 anos. Sempre desejou ser mãe, e sua relação com eles, embora com certa ambivalência, sempre foi emocionalmente próxima. Com o crescimento dos filhos, começa a surgir certa insatisfação em relação à vida erótica, basicamente relativa a uma discordância entre seus itinerários desejantes e os do marido. Relata que ele não responde ao que ela sente em si mesma como uma expansão de seu erotismo. A maternidade já não ocupa o centro de suas expressões libidinais. Isso abre várias possibilidades: será um problema da "idade", de caráter hormonal? Está relacionado com a pressão pulsional que Freud menciona em certas etapas da vida? Ou com questões psíquicas ante a decadência física, ativadas pela passagem do tempo? Ou, então, com o crescimento e a separação dos filhos?

Tudo isso pode estar presente, mas há também outra questão para debater: que lugar ocupa a sexualidade, para além da maternidade, na vida de cada mulher? Poderia ser considerado algo óbvio, mas lembremos que Freud (1933[1932]/1986a), ao analisar a resolução do Édipo para a menina, coloca somente três opções: a frigidez, o complexo de masculinidade e a maternidade, essa última como meta princeps da feminilidade. A meu ver, fica forcluída na teoria uma sexualidade não materna e não histérica para a mulher. Isso ainda não foi suficientemente reteorizado. É certo que a experiência é mais ampla que as opções teóricas disponíveis, mas resta a questão de sua inclusão ou não inclusão na teoria. Isso obrigaria cada psicanalista a considerar outras possibilidades interpretativas ante um fato clínico.

A Sra. G, de 35 anos, começou sua análise pouco depois de se casar. Era uma executiva bem-sucedida, muito comprometida com o trabalho, que era uma parte prazerosa de sua vida. O marido desejava ter um filho, mas ela não. Como não queria dizer isso a ele por medo de uma separação, tomava anticoncepcionais escondido. A "mentira" foi tratada no transcurso da análise. A situação se prolongou por alguns anos, até que ele se deu conta da manobra, o que gerou discussões pesadas. Ela acabou abandonando os anticoncepcionais e ficou grávida. Foi uma gravidez complicada, com longos períodos de repouso por indicação médica, até que teve uma filha, sua única filha. A menina foi em grande medida criada por uma avó, já que ela continuou trabalhando, com um alto nível de compromisso.

O dilema era se havia um desejo recalcado ou se estava em jogo um não desejo de filho, não reconhecido por ser algo proibido, não aceito pelas normas culturais, familiares e pessoais. Ou, ainda, se seus itinerários do desejo eram outros. São opções muito diferentes. Na análise, apareceu que preservar o casamento foi um motivo forte para aceitar a gravidez. Esse não desejo de filho deveria, então, ser considerado um desvio de algo "natural" ou ser incluído em outra categoria? Destaquemos que, nessa paciente, os aspectos sublimatórios aparecem com mais potência do que os maternais.

Nessa linha, deveríamos abordar se o não desejo de filho está contemplado, legitimado na teoria que embasa a equação simbólica pênis-filho e suas variantes atuais como resolução privilegiada do percurso libidinal da menina. Em todo caso, é tão importante investigar a hipótese de um não desejo de filho quanto a do desejo de filho. Se nos ativermos a uma única explicação, o não desejo de filho seria "patológico" e determinante das interpretações possíveis.

A Srta. B, de 29 anos, se apresenta como homossexual. Pede atendimento por conflitos de casal que não diferem muito dos de um casal heterossexual. Há um forte desejo de filho que sente não poder se realizar devido à condenação social. Isso é anterior à saída do armário dos homossexuais, ao movimento LGBTQI, bem como ao estabelecimento das técnicas de fertilização assistida. Nesse caso, como a teoria explica, numa mulher com escolha de objeto homossexual, as substituições simbólicas à inveja do pênis que levam a desejar um filho não do pai, primeiro, e depois de outro homem, mas sozinha ou com outra mulher? Claro que sempre se pode recorrer à mesma narrativa do predomínio do campo narcísico, do complexo de masculinidade, ou explicar que o pai sempre está presente, ainda que desmentido, mas com isso estaríamos congelando nossa capacidade de nos conectar com o novo. As forçações teóricas nos impedem de expandir as opções interpretativas e considerar outras possibilidades, conforme o caso, como proponho mais adiante.

Quanto aos homens, ou aqueles que assumem o mandato de masculinidade, muitas vezes aparece na clínica o rechaço do feminino como forma de localizar a "castração" fora. Com essa salvaguarda narcísica, pode-se passar do menosprezo das mulheres ao extremo de eliminá-las radicalmente: violência de gênero, feminicídio. O exercício desse poder protege a masculinidade sempre ameaçada e é uma expressão de misoginia. Nas sessões, é frequente escutar generalizações sobre as mulheres: são histéricas, invejosas, ou "Todas as mulheres são iguais". Essa fragilidade da masculinidade exige preservar o imperativo de masculinidade. É parte do contrato social vigente e impregna o psiquismo de homens e mulheres. É certamente um imperativo que muitos homens não conseguem cumprir, e esse é seu conflito com tal mandato.

 

3. A escuta: o ponto de vista do analista

Não podemos desconsiderar a presença do feminino nas origens da psicanálise. Freud outorgou uma escuta às histéricas, mas o fez com certos limites. Recordemos a consideração e empatia (identificação?) de Freud com o pai de Dora e o Sr. K, bem como a associação entre Freud e o pai do pequeno Hans, da qual surgem as teorias sexuais infantis. Não era menor a simpatia de Freud pelo pai da jovem homossexual. Por outro lado, é interessante destacar as menções à psicose de dona de casa da mãe de Dora, às insuficiências da mãe do pequeno Hans, assim como às veleidades e ao narcisismo da mãe da jovem homossexual, num contexto de reflexões limitadas sobre essas personagens. Do mesmo modo, lembremos Sabina Spielrein e os diálogos de Freud com Jung sobre ela como objeto de estudo. Apesar das contribuições de Spielrein sobre a pulsão de morte quando já participava das reuniões das quartas-feiras, ela ficou relegada a nota de rodapé no artigo de Freud.

Há um ponto de vista androcêntrico na obra freudiana que impregna sua teoria sobre a diferença sexual (Glocer Fiorini, 2010). O conceito de ponto de vista, o perspectivismo, tal como considerado em diversas disciplinas (crítica literária, estudos de cinema), é fundamental para analisar a teoria e a clínica. Não há uma suposta neutralidade do pensamento ou da linguagem.

As perspectivas de gênero introduzem outro ponto de vista. Para Lewkowicz (2004), o gênero é uma instância de produção nova, suplementar, que deveria ser tomada como uma categoria de análise. O que sugiro pensar é se a psicanálise se enriquece ou não ao incluir uma perspectiva de gênero; mais ainda, se implicitamente não responde a uma teoria sobre os gêneros que mereceria ser revista. O conceito de gênero certamente não existia na época de Freud, mas, a nosso ver, ele o inclui sem nomeá-lo no que diz respeito ao complexo de Édipo. Em seu próprio texto (Freud, 1923/1984d), lê-se que as crianças, quando lidam com o complexo de Édipo, já são reconhecidas como meninos ou meninas, não são seres neutros, e as problemáticas a resolver são diferentes. Ou seja, o gênero já está presente desde sua designação no nascimento ou mesmo antes, bem como pelas expectativas e desejos que gera.

De outra perspectiva, o feminino já está presente em homens mediante o conceito de bissexualidade. Posteriormente, Winnicott (1966/1982) abordou aspectos vinculados à feminilidade, ao ser, em ambos os sexos. Depois, Laplanche (1980/1988) tratou da polaridade masculino/feminino como uma referência ao gênero, e distinguiu a diferença de gêneros da diferença sexual, afirmando que a primeira é anterior ao acesso à diferença sexual e se constrói a partir dos ideais parentais e da primazia do outro. Isso amplia o conceito de diferença.

No entanto, gostaria de resgatar outro ponto de vista dentro da obra freudiana. Embora Freud se apoiasse predominantemente num pensamento dualista no tocante ao par masculino/feminino, o conceito de séries complementares (1916-1917/1984a) revela uma lógica hipercomplexa, que interpreto em termos de debates intrafreudianos sobre o heterogêneo, sem limitá-la a contradições que não conseguiu resolver. Desses debates surgem distintas correntes, que começam com a conhecida polêmica Freud-Jones sobre feminilidade primária ou secundária e inveja do pênis primária ou secundária, bem como discussões entre linhas biologicistas ou culturalistas, que desembocarão em polêmicas mais sofisticadas até os dias de hoje.

Portanto, embora Freud sustente sobretudo um pensamento dualista (a resolução edípica heterossexual é um exemplo), recordemos que, em "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina" (1920/1984c), ele propõe um pensamento triádico para compreender a construção da subjetividade sexuada. Destaca três variáveis heterogêneas inter-relacionadas: caracteres sexuais somáticos, caracteres sexuais psíquicos (atitude feminina ou masculina) e tipo de escolha de objeto (homo ou heterossexual), em suas diferentes combinações, que não chegam necessariamente a uma resolução harmônica.

Isso implica uma mudança nas significações atribuídas ao feminino e ao masculino. Lembremos que Freud (1908/1986b) enfatizava que feminino e masculino são construções teóricas de conteúdo incerto, que não correspondem a categorias psicanalíticas. Para ele, eram referências de ordem sociológica e anatômica. Psicanaliticamente, dizia, poder-se-ia falar de ativo e passivo, sem atribuí-los de maneira esquemática a homens e mulheres respectivamente.

Então, levando em conta os impasses teórico-clínicos que comandam silenciosamente a travessia da análise, abordo outros modelos lógicos para pensar o feminino em mulheres e homens, que permitam ir além das soluções binárias.

 

4. Proposta

Minha proposta (Glocer Fiorini, 1994/1998, 2001/2007) consiste em pensar os processos de subjetivação sexuada com base no paradigma da hipercomplexidade (Morin, 1990/1995; Prigogine, 1988/1996), como Green (2003/2005) sugeriu. Isso implica trabalhar não só em termos binários, mas considerando a coexistência de variáveis heterogêneas que não chegam a uma solução dialética, de acordo com as lógicas pós-binárias. Estamos decerto atravessados pelo dualismo masculino/feminino, presente na cultura e na linguagem. Mas essa polaridade merece ser desconstruída (não anulada) e incluída em complexidades maiores. Isso leva a desarticular as homologações do masculino com a razão e do feminino com a natureza.

Do mesmo modo, permite compreender subjetividades que excedem o par masculino/feminino e abordar, para além da moral convencional, a complexidade do feminino em homens e mulheres. Há uma diferença fundamental entre se ater a uma saída dualista heterossexual do complexo de Édipo e pensar a construção de subjetividade de forma triádica.

Nas intersecções entre o corpo biológico (que nunca é biologia pura), a pluralidade de identificações (incluindo as de gênero) e os itinerários do desejo (que sempre funciona em excesso com relação às normas) constrói-se subjetividade sexuada. Nessas interfaces, atravessadas por movimentos simbólicos, discursos e narrativas, delineiam-se distintos itinerários subjetivos. Para além de resoluções muitas vezes adaptativas, mas distantes das problemáticas de cada paciente, o feminino entra numa complexidade maior. Isso implica:

• Ir além do binarismo masculino/feminino. Os dualismos não conseguem refletir a complexidade da construção de subjetividade sexuada. Trías (1991) propôs pensar o ser no limes (limite), e Deleuze e Guattari (1980/1994) sugeriram encontrar linhas de fuga entre dois termos opostos para descentrar o maniqueísmo próprio dos opostos binários. Esses conceitos permitem enfocar o feminino em todas as suas significações sem remetê-lo exclusivamente à primazia fálica (binária). Não a descartam como fato clínico, mas fazem com que jogue com outras lógicas não fálicas. A noção de falogocentrismo (Derrida, 1996/1998) discute o substancialis-mo fálico advertindo que o falo não poderia ser um significante mestre, já que a teoria do significante pressupõe que um significante sempre remete a outro significante.

•  Repensar o "enigma feminino" e abordar a opacidade da "diferença". Classicamente, a diferença está encarnada no feminino, e o masculino aparece como neutro e "dono" de uma verdade sobre o feminino. Isso implica uma forte tendência a colocar a diferença no "outro". Não se trata de contestar as teorias sexuais infantis (Freud, 1908/1986b) com teorias sexuais adultas, e menos ainda de equipará-las à teoria psicanalítica (Laplanche, 1980/1988). A nosso ver, o enigma da diferença é deslocado para a mulher por motivos pulsionais, narcisistas e de poder. A angústia de castração se conecta com os discursos coletivos sobre as mulheres. Mas explorar o enigmático da diferença não consiste em deslocá-lo para a mulher ou para o feminino. Nessa linha, propus reconduzir o enigma feminino para o enigma da diferença: um "nicho vazio" que é "preenchido" com teorias, narrativas e crenças sobre a diferença sexual, com fortes raízes em estruturas sociais ancestrais. O enigma é a diferença e deveria ser sustentado como tal, em constante tensão (Glocer Fiorini, 2001/2007, 2015/2017).

•  Rever o conceito de diferença sexual como uma forma princeps de acesso a um universo simbólico. A categoria diferença, contudo, é um organizador psíquico complexo, e não depende apenas da orientação sexual. Propus (Glocer Fiorini, 2015/2017) pensar uma expansão do conceito de diferença: a) a diferença anatômica (sempre significada); b) a diferença de gêneros (baseada em identificações); c) a diferença sexual; d) a diferença em termos linguísticos e discursivos; e) a diferença como distinção (Heidegger, 1988); entre outras formas de processar psiquicamente a categoria diferença, enfocando uma abordagem multideterminada. O reconhecimento da outridade é, decerto, um índice incontestável de acesso à diferença (Fraisse, 1996) e exige que o outro seja reconhecido como sujeito. Isso implica as mulheres e o feminino.

•  Abordar com juízo crítico o complexo de Édipo-castração na mulher. Seus avatares não abarcam os múltiplos itinerários do desejo e da subjetivação feminina. Trata-se de uma narrativa útil como fato clínico, mas que deve ser ampliada no âmbito de um Édipo trans-familiar/transcultural (Deleuze, 1995), pensado em termos de funções, não personalizado, e abordando a castração (simbólica) como incompletude - nesse sentido, comum a ambos os sexos.

•  Repensar a denominada função paterna, na medida em que é estabelecida como uma força exterior que separa a mãe do filho/falo. Sabemos que, por se tratar de uma função de separação, podem exercê-la o pai, a mãe ou substitutos. Avançando mais, minha hipótese é que a denominação paterna deriva de conotações androcêntricas que é necessário discutir. A mãe pode albergar, como o pai, ferramentas simbólicas para exercer per se essa função (Benjamin, 1995/1997). Assim, propusemos denominá-la função terceira (Glocer Fiorini, 2013). Isso implica que a maternidade vai além da mãe pulsional, devoradora, que não deixa o filho partir. Por outro lado, vale ressaltar que, no contexto do que estamos desenvolvendo, o feminino desestabiliza não a lei, mas a lei androcêntrica.

• Abordar outras possibilidades para pensar o desejo de filho e rever a proposta substitutiva baseada na inveja do pênis, defendida no campo da primazia fálica (Glocer Fiorini, 2001). Pensá-lo não só desde a equação simbólica pênis-filho ou desde a díade mãe fálica-filho falo, mas juntar essa proposta com outra: conceber o desejo como produção, como poiesis (Deleuze, 1995). Às vezes a clínica nos conduz para a primeira opção, às vezes para a segunda. Deter-se no conceito de filho/falo nos impede de compreender outras possibilidades que a mãe tem de gerar movimentos simbólicos, cortes e separações, e fundamentalmente de considerar o filho como outro, para além de eventuais redutos narcisistas. Essa proposta exige ultrapassar a clausura intradisciplinar para expandir o enfoque clínico e evitar efeitos iatrogênicos sobre a construção subjetiva. Isso inclui igualmente o desejo de filho nos homens bem como nas diversidades sexuais e de gênero.

Os pontos expostos estão indissoluvelmente encadeados. Que importância têm para a clínica? Com cada paciente, homem ou mulher, seja qual for sua identidade de gênero, sua orientação sexual e suas modalidades de exercer a parentalidade, define-se uma clínica própria daquele encontro analítico. O tratamento se apoia em um trabalho de desconstrução de "histórias, verdades e saberes", na busca de novas construções. O que está em jogo é a possibilidade de o analista conseguir escutar o novo, o que escapa a seus esquemas prévios, o acontecimento (Badiou, 1999; Deleuze, 1995). Algumas questões estão naturalizadas, como a superinterpretação da inveja fálica nas mulheres ou a frequente tendência a histericizar o feminino (Foucault, 1984/1995). Ou, então, em relação à violência de gênero, a ênfase no masoquismo feminino, desconhecendo sua historicidade.

Será isso presságio de um futuro apocalíptico? Ou estarão mudando as regras do contrato social? Nesta era do pós-humano, do pós-gênero (Braidotti, 1994/2000), da cibercultura, é suficiente recorrer a ideias tradicionais sobre o feminino? A metáfora do cyborg (Haraway, 1984/1991), ser híbrido entre o humano e a máquina, interpela a diferença sexual clássica, expressa mudanças nos conceitos clássicos do feminino e questiona conceitos ancestrais: as mulheres pensadas somente como reprodutoras da espécie.

As resistências a normatividades rígidas sobre a sexualidade e a identidade, individuais e coletivas, têm impacto no campo psicanalítico. Evidenciam as mudanças epistemológicas, discursivas e socioculturais que questionam uma "essência feminina", eterna e inamovível.

 

Referências

Badiou, A. (1999). El ser y el acontecimiento (R. J. Cerdeiras, A. A. Cerletti & N. Prados, Trads.). Buenos Aires: Manantial.         [ Links ]

Benjamin, J. (1997). Sujetos iguales, objetos de amor (J. Piatigorsky, Trad.). Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1995)        [ Links ]

Braidotti, R. (2000). Sujetos nómades (A. Bixio, Trad.). Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1994)        [ Links ]

Deleuze, G. (1995). Conversaciones (J. L. Pardo, Trad.). Valencia: Pre-Textos.         [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F. (1994). Mil mesetas (J. Vázquez Pérez, Trad.). Valencia: Pre-Textos. (Trabalho original publicado em 1980)        [ Links ]

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Correspondência:
Leticia Glocer Fiorini
Zapiola 1646, piso 2
Caba (1426) Buenos Aires, AR
Tel.: 54 11 4551-5440
lglocerf@intramed.net

Recebido em 25/2/2019
Aceito em 11/3/2019

 

 

1 A autora detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do ipa London Congress, sob o título "The feminine", de 24 a 27 de julho de 2019, com registro disponível no site da IPA www.ipa.world/london.

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