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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020

 

ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER

 

O que há além do princípio do prazer?

 

What is beyond the pleasure principle?

 

¿Qué hay más allá del principio del placer?

 

Qu'est-ce que c'est au-delà du principe de plaisir?

 

 

Denise Alencar

Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPRPE)

Correspondência

 

 


RESUMO

Até 1919, Freud dizia que o princípio do prazer guiava o funcionamento do ser humano. Com o texto "O estranho", essa verdade começa a mudar, e é completamente reinventada em 1920, com o texto Além do princípio do prazer. É bem certo que ele sempre disse que sua teoria pulsional não estava completa, mas o que fez Freud mudar radicalmente? O que era tão forte que iria além do princípio do prazer? Essas foram as perguntas que nortearam a escrita deste texto, que representa apenas uma tentativa de apreender alguns conceitos freudianos.

Palavras-chave: compulsão à repetição, pulsão de morte, princípio do prazer, pulsão de vida


ABSTRACT

Until 1919, Freud said that the pleasure principle guided the functioning of the human being. With the text "The uncanny", this truth begins to change, being completely reinvented in 1920 with the text "Beyond the pleasure principle". True, he always said that his drive theory was not complete, but what made Freud change radically? What was so strong that it would go beyond the pleasure principle? These were the questions that guided the writing of this text, which represents only an attempt to apprehend some Freudian concepts.

Keywords: compulsion to repeat, death drive, pleasure principle, life drive


RESUMEN

Hasta 1919, Freud decía que el principio del placer guiaba el funcionamiento del ser humano. Con el texto "El extraño", esta verdad comienza a cambiar, y se reinventa por completo en 1920 con el texto "Más allá del principio del placer". Es cierto que él siempre dijo que su teoría pulsional no estaba completa, pero [qué hizo que Freud cambiara radicalmente? [Qué era tan fuerte que iría más allá del principio del placer? Estas fueron las preguntas que guiaron la redacción de este texto.

Palabras clave: compulsión a repetición, pulsión de muerte, principio de placer, pulsión de vida


RÉSUMÉ

Jusqu'en 1919, Freud disait que le principe du plaisir guidait le fonctionnement de l'être humain. Avec le texte « The uncanny » , cette vérité commence à changer et est complètement réinventée en 1920 avec le texte « Au-delà du principe de plaisir » . Certes, il a toujours dit que sa théorie de l'entraînement n'était pas complète, mais qu'est-ce qui a amené Freud à changer radicalement ? Qu'est-ce qui était si fort que cela irait au-delà du principe de plaisir ? Ce sont les questions qui ont guidé l'écriture de ce texte, qui ne représente qu'une tentative d'appréhension de certains concepts freudiens.

Mots-clés : contrainte de répéter, pulsion de mort, principe de plaisir, pulsion de vie


 

 

Nada teria sido mais importante para fundar uma verdadeira psicologia do que uma compreensão aproximada da natureza comum a todas as pulsões e suas eventuais peculiaridades.

SIGMUND FREUD

Até hoje, muitos psicanalistas divergem sobre a teoria das pulsões, e isso suscita vários questionamentos entre os leitores da chamada psicologia profunda. Despertada pela inquietação que o tema da pulsão provoca, pretendo sintetizar em algumas palavras conceitos tão ricos abordados no texto Além do princípio do prazer (Freud, 1920/2006a). Longe da pretensão de esgotar o tema, utilizei como bússola as seguintes perguntas: o que há além do princípio do prazer? A pulsão de morte é a única responsável pelas psicopatologias?

Estruturei este trabalho com uma rápida citação de textos em que a ideia de pulsão de morte se faz presente, desde o "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1950[1895]/1996d) até Além do princípio do prazer. Fiz um resumo do texto de 1920 ressaltando os principais conceitos teóricos e, nas considerações finais, me posiciono quanto aos questionamentos levantados no início.

O conceito de pulsão perpassou a obra freudiana desde o começo, mas com outros nomes: excitações, ideias afetivas, impulsos anelantes, estímulos endógenos.1 Desde o "Projeto para uma psicologia científica", o embrião da ideia da dicotomia pulsão de vida e pulsão de morte está presente no texto - por exemplo, quando fala do princípio de inércia e do princípio de constância. No entanto, essas ideias foram desenvolvidas paulatinamente ao longo de sua obra.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996e), Freud discursa sobre as pulsões parciais, fala do sadismo e do masoquismo como perversões, e termina reconhecendo que a meta da pulsão sexual é a satisfação. No segundo ponto da discussão do caso clínico do pequeno Hans, Freud se opõe ao que Adler estava chamando de instinto agressivo: "Não posso convencer-me a aceitar a existência de um instinto agressivo especial ao lado dos instintos familiares de autopreservação e de sexo, e de qualidade igual à destes" (1909/1996a, p. 125). Um ano depois, no texto "A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão", o autor utiliza pela primeira vez o termo pulsões do eu - "que têm por objetivo a autopreservação do ego" (1910/1996b, p. 223) -, contrapondo-o a pulsões sexuais.

Ele justifica essa contraposição em pelo menos dois outros escritos: "A favor da suposição de que houvesse desde a origem uma diferenciação entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu, pode-se invocar o argumento de que tal hipótese é útil na análise das neuroses de transferência" (1914/2006c, p. 100). As pulsões são inúmeras e de infinitas qualidades. Por isso, Freud, tentando simplificar a questão, sugere decompor retroativamente o conteúdo temático das pulsões em direção a fontes pulsionais, "a fim de chegar às pulsões originais, àquelas não mais divisíveis, e atribuir a estas uma efetiva importância" (1915/2006e, p. 150) - pulsões do eu ou de autoconservação e pulsões sexuais, classificação que, segundo Freud, só seria mantida enquanto se mostrasse útil.

Não muito tempo depois, a dualidade permaneceu, mas o binômio pulsão sexual e pulsão do eu tornou-se obsoleto. Em 1920, o clima do pós-guerra, a clínica com pacientes que vinham do front trazendo frequentemente sonhos traumáticos, a morte de sua filha Sofie, "levada em cinco dias pela gripe espanhola, quando estava grávida de seu terceiro filho" (Quinodoz, 2007, p. 206) - esses e outros acontecimentos prenunciaram a construção de um texto extremamente especulativo, mas que serviu de base ao trabalho seguinte, O eu e o id (1923/2006b), em que Freud apresenta sua segunda teoria pulsional.

Até então Freud caracterizava o funcionamento psíquico como uma dualidade de prazer vs. desprazer, usando a quantidade de energia acumulada ou descarregada para retratar as sensações. Nenhuma ciência havia relatado nada sobre a importância das sensações de prazer e desprazer para o aparelho psíquico do ser humano. Freud defendia até que "os processos psíquicos são regulados automaticamente pelo princípio do prazer" (1920/2006a, p. 135) - lembrando que essa é uma descrição apenas econômica da metapsicologia dos processos psíquicos; a tópica e a dinâmica não foram consideradas naquele momento.

Considerando-se que o trabalho do aparelho psíquico tem por objetivo manter a quantidade de excitação sempre num nível baixo, quando há, por qualquer razão, um aumento de energia, o desprazer vem, e a descarga, que faz a energia voltar ao que era, é vivida como prazerosa, embora Freud tenha alertado que não se trata de uma relação simples entre as intensidades das sensações: "É provável que o fator decisivo para formar uma sensação seja a magnitude de redução ou aumento da excitação durante certo espaço de tempo". E continua, citando Fechner:

todo movimento psicofísico que atravessa o limiar da consciência está dotado de prazer, na medida em que, acima de certo nível, aproxima-se da estabilidade completa; contudo, além de certo nível, estará dotado de desprazer, na medida em que se desvia da estabilidade completa; todavia, entre esses dois limites, que podem ser caracterizados como limiares qualitativos de prazer e desprazer, subsiste certa zona de indiferença estética. (citado por Freud, 1920/2006a, p. 136)

Fechner deixa claro que as sensações de prazer e desprazer são apreendidas pela consciência e que o aparelho psíquico luta por uma estabilidade, por uma constância. O aparelho psíquico luta, sim, por uma estabilidade porque outras forças ou circunstâncias tendem a desestabilizá-lo. Ora, se Freud diz que o princípio do prazer funciona de um modo primitivo (não tem regra), ante o mundo externo tal princípio mostra-se ineficiente. Logo, "com o desenvolvimento, as pulsões de autoconservação do eu acabam por conseguir que o princípio do prazer seja substituído pelo princípio de realidade. Este, por sua vez, não abandona o propósito de obtenção final de prazer" (Freud, 1920/2006a, p. 137). O texto menciona duas situações que inibem o princípio do prazer: quando as pulsões sexuais não se ajustam ao princípio de realidade e quando o recalque transforma uma possibilidade de prazer em uma fonte de desprazer, processo ainda pouco compreendido.

Freud ressalta, no entanto, que a pesquisa deveria centrar-se não mais na limitação ao princípio do prazer, mas na reação psíquica ao perigo exterior para explicar os fenômenos de desprazer, pois parecia estar mais interessado no que tinha tanta força a ponto de desestabilizar a constância do aparelho psíquico, que até então indicava ser dominado pelo princípio do prazer.

Ao observar os sonhos nas neuroses traumáticas, as brincadeiras infantis (mais especificamente a brincadeira do fort-da do seu neto) e a neurose de transferência, Freud percebeu que algo sempre retorna, repetindo-se compulsivamente, desestabilizando o aparelho psíquico.

Mesmo que a repetição na brincadeira infantil tenha um teor de compulsão, Freud notou que há o predomínio do princípio do prazer. Como naquele momento ele estava mais interessado em tendências que iriam além do princípio do prazer, não se deteve muito nessa forma de repetição.

As fixações nos traumas já eram conhecidas por Freud desde a época em que trabalhava com Breuer, mas o que ele estranhava era que o sonho trouxesse o paciente para a situação geradora de sua doença, repetindo constantemente situações de desprazer. Essa nova observação o leva a duas hipóteses: crer que a função de realização de desejo no sonho traumático está abalada ou "invocar enigmáticas tendências masoquistas do eu" (1920/2006a, p. 140).

As repetições nos contextos citados aconteciam tantas vezes que Freud observou nelas o caráter de compulsão:

é basicamente um conceito energético que remete à força da pulsão. Se a decompusermos, teremos o prefixo "com", que significa aglutinar, somar. Quanto ao nome pulsão, sabemos que é pura intensidade, não tem qualidade, simplesmente pulsa em busca de descarga. (Paim Filho, 2016, p. 101)

Antes de adentrarmos na relação da compulsão à repetição com a pulsão de morte, fazem-se necessárias algumas explicações.

Paim Filho lembra que o tema da repetição também já aparecera na obra freudiana desde o "Projeto para uma psicologia científica", com a ideia de facilitação, e diz: "toda repetição busca percorrer trilhas já conhecidas, que propiciem um possível reencontro com essa satisfação mítica de nossas origens" (2016, p. 102).

Logo, a compulsão à repetição estava até 1919 ligada apenas ao princípio do prazer. Com o texto "O estranho" (1919/1996c), fica bem claro que a compulsão à repetição suplanta o princípio do prazer:

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma compulsão à repetição procedente dos impulsos instintuais [pulsionais] e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos [pulsões] - uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco.

(Freud, citado por Paim Filho, 2016, p. 105)

Está claro que há uma dicotomia na compulsão à repetição, como bem resumiu Paim Filho: "de um lado temos a repetição governada pelo princípio do prazer, centrada na força do desejo, a partir dos pontos de fixação na libido, e de outro temos a repetição do que nunca foi prazeroso, centrada na força do traumático" (2016, p. 106).

Sabendo que há uma compulsão bastante poderosa para suplantar o princípio do prazer, Freud, ao falar da compulsão à repetição na neurose de transferência, questiona-se "como se estabelece a relação do princípio do prazer com a compulsão à repetição, que é a manifestação da força do recalcado" (1920/2006a, p. 145).

Ora, o papel do psicanalista é evocar o princípio de realidade para que o recalcado retorne ao consciente e as atividades das moções pulsionais sejam expostas: "o retorno do recalcado é a marca por excelência da dinâmica repetidora do aparelho psíquico" (Paim Filho, 2016, p. 103). Até aí não há novidade, pois o que é desprazer para um sistema, é prazer para o outro. A surpresa é que a compulsão à repetição também faz ressurgir experiências que, aparentemente, não têm nenhuma possibilidade de prazer.

Freud diz que um dos objetivos da pulsão é "restabelecer um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças perturbadoras externas" (1920/2006a, p. 160). É como se houvesse um destino para os organismos: a compulsão de destino atrelada à pulsão de morte, cuja meta é alcançada quando se descarrega e o organismo volta à homeostase, possível apenas com a morte.

Como a psicanálise é uma ciência dualista, não só de pulsão de morte vive a compulsão à repetição, mas de pulsão de vida também, sendo o aparato psíquico formado por uma sintonia entre as rupturas, representadas pelas pulsões de morte, e as sínteses, representadas pelas pulsões de vida. Ainda no texto Além do princípio do prazer, após admitir a obscuridade que envolve a teoria das pulsões, Freud lembra os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, quando diz já haver reconhecido um componente sádico na pulsão sexual: "A questão que se coloca então é como podemos derivar de Eros, cuja meta é conservar a vida, uma pulsão sádica que visa prejudicar o objeto" (1920/2006a, p. 174).

A questão formulada dessa maneira parece ligar a pulsão sádica à pulsão de morte, o que mais tarde, em "O problema econômico do masoquismo" (1924/2006d), é reformulado por Freud. Ainda no texto de 1920, o autor vai dizer que a pulsão sádica se faz necessária para o ato sexual, pois é ela quem lida com o objeto sexual. É aí que podemos pensar que o trabalho dos opostos

Denise Alencar se complementa: sadismo e masoquismo, voyeurismo e exibicionismo, pulsão de vida e pulsão de morte. O sentido de mencionar esse tema foi lembrar que o que está além do princípio do prazer pode causar prazer na dor, pois tem a marca do "eterno retorno do mesmo" (Freud, 1920/2006a, p. 147), prazer que foi gerado lá atrás no desenvolvimento do indivíduo.

Após algumas leituras do texto, e de outros sobre ele, a consideração final que se faz é que o que está além do princípio do prazer é a compulsão à repetição e tudo o que a envolve. Referida por Paim Filho como "via de transporte" da pulsão, não há como falar de compulsão à repetição sem falar nas pulsões. Neste texto, dei mais ênfase à pulsão de morte, que

tem a fonte no soma, sua força é pura intensidade, tem como meta a descarga, e não a satisfação, pois diferentemente da pulsão sexual, não tem objeto. Sendo assim, podemos inferir que a pulsão de morte é cega e que, ao ser enlaçada pela pulsão sexual, esta lhe dará o rumo a ser seguido. (Paim Filho, 2016, p. 112)

Enlaçada pela pulsão sexual, a pulsão de morte se faz presente no par de opostos sadismo/masoquismo, por exemplo, causando dor e prazer ao mesmo tempo. O que a compulsão à repetição mostra é sempre uma tentativa de as pulsões voltarem ao estado anterior de satisfação. O paradoxo é que, ao mesmo tempo, a pulsão de vida é a propulsora da vida e também o que leva o indivíduo à morte, "assim como o princípio do prazer parece, de fato, estar a serviço das pulsões de morte" (Freud, 1920/2006a, p. 181).

Isso posto, pode-se pensar, como Garcia-Roza (2004), que a pulsão de morte, por ser disruptiva, é produtora de diferenças. Na vida e na clínica, a pulsão de morte grita por meio da compulsão à repetição, a fim de ser escutada, criando a possibilidade de alguma malha representacional capturá-la. Uma vez capturada, e pela mediação do analista, a pulsão de morte, paradoxalmente, pode vir a ser a provocadora da integração do que foi traumático. Assim, os traumas ainda não simbolizados alcançam a chance de uma simbolização, o que era sentido apenas como angústia passa a ser parcialmente conhecido como símbolo, ganhando palavras para nomeá-lo. Penso que mediar a pulsão de morte para que ela possa gerar vida é uma das funções mais primorosas do psicanalista. Função nada fácil, é verdade, mas válida, como dizia o mestre.

 

Referências

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Garcia-Roza, L. A. (2004). O mal radical em Freud. Jorge Zahar.         [ Links ]

Paim Filho, I. A. (2016). Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte. Movimento.         [ Links ]

Quinodoz, J.- M. (2007). Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud (F. Murad, Trad.). Artmed.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Denise Alencar
Rua Aderval Chaves, 296/105
51111-030 Recife, PE
Tel.: 81 98776-8663
dmnalencar@gmail.com

Recebido em 18/3/2020
Aceito em 24/4/2020

 

 

1 Observação de James Strachey assinalada na tradução de "Pulsões e destinos da pulsão" (Freud, 1915/2006e, p. 135) de Luiz Alberto Hanns.

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