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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020
HISTÓRIA DA PSICANÁLISE
Velhas novidades de Ferenczi sobre o funcionamento dos sonhos: o sonho como Kur, o sonho como gyógyászat1
Fresh old news from Ferenczi about how dreams work: the dream as a Kur, the dream as a gyógyászat
Viejas novedades de Ferenczi sobre la función de los sueños: el sueño como Kur, como tratamiento y como gyógyászat
Anciennes nouvelles de Férenczi concernant la fonction des rêves: le rêve comme Kur, comme traitement et comme gyógyászat
Eugênio Canesin Dal Molin
Psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro fundador do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Professor de psicologia no Centro Universitário Filadélfia (UNIFIL/PP). Autor de O terceiro tempo do trauma: Freud, Ferenczi e o desenho de um conceito (Perspectiva; Fapesp) e de artigos em revistas nacionais e internacionais
RESUMO
Este artigo discute um texto de Ferenczi sobre a função dos sonhos e sua relação com o trauma. Ferenczi pretendia apresentar o material como uma fala no XII Congresso Internacional de Psicanálise, que aconteceria em Interlaken, na Suíça, em 1931. O congresso, porém, foi adiado, e partes do conteúdo da fala apareceram em outros textos, nos quais o autor repensa o conceito de trauma e sua importância clínica. Neste artigo, faço uso da correspondência entre Freud e Ferenczi para contextualizar a originalidade da teorização de Ferenczi sobre diferentes aspectos da função dos sonhos. Na fala de 1931, assim como neste artigo, usa-se o trabalho onírico de uma paciente como exemplo do processo por meio do qual experiências traumáticas e impressões sensorias não ligadas podem se repetir na direção de uma maior elaboração por parte do sonhador. O processo descrito por Ferenczi, aqui explorado, assemelha-se a um esforço de autotratamento, de auto-Kur.
Palavras-chave: sonhos, trauma, Ferenczi, história da psicanálise, repetição
ABSTRACT
This text discusses a conference written by Sándor Ferenczi in 1931 about the function of dreams and its relation to trauma. Ferenczi's wish was to read the conference at the 12th International Congress of Psychoanalysis, supposed to happen that year in Interlaken, Switzerland. The congress, however, was postponed and a part of the conference's content was later spread among other texts in which Ferenczi rethinks the concept of trauma and its clinical significance. In this article the author makes use of the Freud/Ferenczi correspondence to contextualize the originality of Freud's Hungarian follower regarding his theorizations about different aspects in the function of dreams. In the 1931 conference, as well as in this article, the dream work of a patient, used by Ferenczi as a clinical example, is observed as a process where traumatic experiences and not mastered sensory impressions can be repeated in the attempt of a better working-through for the dreamer; in a process that resembles an effort of self-treatment, of self-Kur.
Keywords: dreams, trauma, Ferenczi, history of psychoanalysis, repetition
RESUMEN
Este artículo analiza un texto sobre la función de los sueños y su relación con el trauma. Ferenczi pensaba presentar este material como conferencia en el 12 Congreso Internacional de Psicoanálisis, que tendría lugar en Interlaken, Suiza, en el mismo año en que él escribió el ensayo (1931). Sin embargo, el congreso fue pospuesto, y partes del contenido de esta presentación aparecieron en otros textos en los que Ferenczi repiensa el concepto de trauma y su importancia clínica. En el presente artículo, el autor utiliza la correspondencia Freud/Ferenczi para contextualizar la originalidad del seguidor húngaro de Freud en lo que respecta a sus teorizaciones sobre distintos aspectos de la función de los sueños. En la conferencia de 1931, así como en este ensayo, Ferenczi utilizó el trabajo del sueño de un paciente como ejemplo clínico de un proceso en el cual las experiencias traumáticas y las impresiones sensoriales no dominadas pueden repetirse para que él o quien sueña pueda elaborarlas mejor. El proceso que describe Ferenczi se parece a un intento de auto-tratamiento o auto-Kur.
Palabras clave: sueños, trauma, Ferenczi, historia del psicoanálisis, repetición
RÉSUMÉ
Cet article analyse un texte de Ferenczi concernant la fonction des rêves et son rapport avec le trauma. Ferenczi avait eu l'intention de présenter ce matériel lors du 12e Congrès international de psychanalyse, qui devait avoir lieu à Interlaken, en Suisse, en 1931, l'année même où il écrivit son essai. Cependant, le congrès fut reporté et quelques parties du contenu de sa communication parurent dans d'autres textes, dans lesquels Ferenczi réexamine le concept de trauma et son intérêt clinique. Dans le présent article l'auteur se base sur la correspondance Freud/Ferenczi pour contextualiser l'originalité du disciple hongrois de Freud et ses conceptions théoriques concernant les différents aspects de la fonction des rêves. Dans le texte de 1931, aussi bien que dans d'autres essais, Ferenczi cite le travail du rêve d'un patient comme exemple clinique d'un processus dans lequel les expériences traumatiques et les impressions sensorielles non maîtrisées peuvent être répétés, de façon à permettre qu'elles soient mises au service d'une meilleure perlaboration. Le processus décrit par Ferenczi ressemble à une tentative d'auto-traitement ou auto-Kur.
Mots-clés : rêves, trauma, Ferenczi, histoire de la psychanalyse, répétition
Cartas pelo Danúbio
Entre os dias 11 e 12 de maio de 1931, o banco Creditanstalt de Viena colapsou. Com isso, boa parte dos fundos da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) se perdeu. Outras instituições financeiras tiveram o mesmo destino e, de 12 de julho a 5 de agosto, todos os bancos na Alemanha permaneceram fechados. A Sociedade Psicanalítica de Berlim e sua Policlínica declararam falência e ameaçaram fechar as portas. Um apelo foi lançado entre os membros da Associação: precisava-se de dinheiro (Stanton, 1990). A situação política na Alemanha era outro problema que se delineava nesse começo de década, com o crescimento do nacional-socialismo. No estranho palco que se tornava a Europa Central em 1931, algumas cartas enviadas na costa do Danúbio tratavam também de outros assuntos. Um deles era o XII Congresso Internacional de Psicanálise, programado para acontecer em Interlaken, na Suíça, no mês de setembro (Fortune, 2002).
De Budapeste, Sándor Ferenczi escreveu a seu amigo e analista o que pretendia apresentar no congresso. Eram duas conferências, ambas a serem tratadas como comunicações preliminares. A segunda tinha por título "Uma possível extensão de nosso mundo metapsicológico das ideias" e, sinteticamente, propunha que, da mesma forma que o mecanismo da repressão pode ser depreendido e universalizado como uma realidade psíquica através da experiência com neuróticos, outros mecanismos poderiam ser assim considerados através da experiência com psicóticos e vítimas de trauma. Não nos ateremos a essa segunda comunicação preliminar, embora o destinatário da carta a visse com bons olhos. É sobre a primeira que recai nosso interesse. Seu título era "Os sonhos tem uma segunda função?", e Ferenczi a resumiu da seguinte maneira na carta enviada em 31 de maio de 1931:
Apoiando-se em experiências com relaxamento profundo durante as análises, donde experiências traumáticas tendem à repetição, assim como na análise de sonhos em geral, chega-se à suposição de que o estado de sono e o sonho procuram aliviar o sistema psíquico também pela reexperimentação de resíduos traumáticos do dia e da vida, assim revelando algo sobre a natureza traumático-neurótica dos processos do sonho. (Brabant & Falzeder, 2000, p. 412)
Podemos imaginar Freud segurando a carta nas mãos. Ele a lê e toma uma folha de papel para respondê-la. Escreve, então, ao Caro amigo:
Muito obrigado por suas interessantes notícias, não menos pelos excertos de sua palestra do congresso. A denominada segunda função dos sonhos é certamente sua primeira (domínio, veja Além do princípio do prazer)! [grifo nosso] Sua segunda peça é daquela característica que é tão inestimável para mim, a qual eu respeito muito, como sua teoria da genitalidade. (Brabant & Falzeder, 2000, p. 413)2
Em breve nos dirigiremos ao texto apontado por Freud, aquele do mais além... Antes, vale acompanhar a correspondência que desce e sobe o Danúbio por mais alguns momentos. Na resposta de Ferenczi a esse comentário de Freud, percebemos que sua intenção era um pouco mais ambiciosa do que se poderia supor pela carta anterior. Ele escreve ao Caro Professor, em 14 de junho:
É claro que sei muito bem que a função do sonho enfatizada por mim é a mesma que você descreveu e explicou em Além do princípio do prazer como característica dos sonhos dos traumatizados. Mas minha experiência me pressiona a enfatizar esse ponto de vista com mais força do que no caso de sua Interpretação dos sonhos. Em outras palavras: eu gostaria de generalizar de alguma forma o ponto de vista do domínio do trauma no sono e no sonho. (Brabant & Falzeder, 2000, p. 414)
Anexado à carta, encontrava-se um texto dirigido a Max Eitingon, que estava organizando o congresso. Nele Ferenczi volta a falar sobre as duas conferências que pretende apresentar em Interlaken, mas muda o nome da primeira. Não se trata mais de uma segunda função dos sonhos - Freud mesmo a chamara de primeira - mas de "Relaxamento do sono e tendência de reprodução traumática" (Brabant & Falzeder, 2000, p. 416).
Duas perguntas podem ser levantadas imediatamente e sem que tenhamos ainda os olhos sobre o que poderia ser dito na conferência que Ferenczi pretendia apresentar. A primeira diz respeito à carta escrita por Freud comentando as "comunicações" de seu seguidor húngaro. Ele diz: "A denominada segunda função dos sonhos é certamente sua primeira (domínio, veja Além do princípio do prazer)]". Mas não são os sonhos "realizações de desejo" e ponto? São, e continuam sendo até 1920, quando Freud escreve o texto a que se refere na carta a Ferenczi. É importante observar os trechos desse texto aos quais Freud parece estar se referindo como um todo:
Os supramencionados sonhos dos neuróticos traumáticos já não se incluem na perspectiva da realização de desejo, nem os sonhos, ocorrentes nas psicanálises, que nos trazem à memória os traumas psíquicos da infância. Eles obedecem antes à compulsão de repetição, que na análise, de fato, é favorecida pelo desejo (encorajado pela "sugestão") de evocar o que foi esquecido e reprimido. Assim, também a função do sonho de eliminar motivos para a interrupção do sono por meio da realização de desejos não seria sua função original; ele a teria assumido apenas depois que toda a vida psíquica aceitou o domínio do princípio do prazer. Se existe um "além do princípio do prazer", é coerente admitir que também houve uma época anterior à tendência dos sonhos de realizar desejos. Com isso, não é contrariada sua função posterior. Mas surge, uma vez rompida essa tendência, outra questão: tais sonhos que obedecem à compulsão à repetição, no interesse do ligamento psíquico de impressões traumáticas, não serão possíveis também fora da análise? A resposta é certamente afirmativa. (Freud, 1920/2001a, pp. 32-33)
Primeira pergunta respondida: os sonhos não são realizações de desejo e ponto. Além: lemos, em 1920, que existe uma "tendência dos sonhos de realizar desejos". Freud prontamente afirma que essa tendência não é contrariada pelo fato de existir uma função mais primitiva, mas claramente aponta na direção da importância dessa função que seria anterior e que se encontra à vista nos sonhos das neuroses traumáticas. Isso nos conduz à segunda pergunta que a troca de cartas suscita: que função seria essa, de "domínio", a que Freud se refere e que Ferenczi afirma conhecer? A resposta fora dada por Freud no mesmo texto que estamos a discutir, algumas páginas antes do excerto apresentado. Ele discorria sobre o trauma e os fenômenos que se oporiam ao princípio do prazer quando escreveu:
Um evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no gerenciamento de energia do organismo e pôr em movimento todos os meios de defesa. Mas o princípio do prazer é inicialmente posto fora de ação. Já não se pode evitar que o aparelho psíquico seja inundado por grandes quantidades de estímulo; surge, isto sim, outra tarefa, a de controlar o estímulo, de ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que irromperam, para conduzi-las à eliminação. (pp. 29-30)
Essa "outra tarefa" que o evento traumático demanda é a de ligar psicologicamente a quantidade de estímulo. Quando ela se faz necessária, outra função parece estar em jogo. Vale uma última referência ao texto freudiano:
Vamos distinguir entre função e tendência de maneira mais aguda do que fizemos até agora. O princípio do prazer, então, é uma tendência que se acha a serviço de uma função, à qual cabe tornar o aparelho psíquico isento de excitação, ou conservar o montante de excitação dentro dele constante ou o menor possível. (p. 62)
Das cartas e dos detalhes
Na troca epistolar e nos trechos que observamos do texto de 1920, o aparelho psíquico parece ter por função: 1) dominar a quantidade de estímulos, ligar tal quantidade psiquicamente, a fim de que a excitação no aparelho mantenha-se constante; 2) quando possível, seguir a exigida tendência do princípio do prazer na forma como se livra da excitação.3 Podemos fazer uma suposição a partir dessas passagens: quando existe proeminência do princípio do prazer, a tendência observável nos sonhos é a de realização de desejo; quando essa proeminência precisa ser abandonada, a tarefa que se põe é a de dominar os estímulos, ligá-los psiquicamente.
Os inevitáveis detalhes, que não podemos ignorar, nos conduzem - já que aparentemente Freud estava certo em seu comentário sobre o conteúdo da conferência do seguidor, "A denominada segunda função dos sonhos é certamente..." - às últimas palavras de Ferenczi em sua carta do dia 14 de junho: "eu gostaria de generalizar de alguma forma o ponto de vista do domínio do trauma no sono e no sonho". Generalizar? Mais do que Freud o fizera em 1920? Sim, e sim. Porque os sonhos são sempre, em última instância, realizações de desejos; menos quando não o são, ou quando não são "só" isso. E para Ferenczi, que há alguns anos via no trauma a via régia para a compreensão de várias manifestações do funcionamento mental, o estudo e a análise dos sonhos passaria, em algum momento, por esse tema. Foi isso o que ele fez na conferência que seria apresentada em 1931.
Seria, porque o panorama europeu evitou a realização do congresso, adiado para o ano seguinte. O que Ferenczi não comunicou a Freud foi o que ele escrevera em fins de março daquele ano, antes de qualquer carta sobre o que pretendia falar em Interlaken: boa parte da conferência a respeito dos sonhos já estava no papel.
É sobre essa conferência, nunca apresentada por seu autor, que nos debruçaremos. Antes de discuti-la, porém, temos que estabelecer o valor da releitura de um texto de poucas páginas, escrito em alguns dias, nos idos de 1931. Tal tipo de pesquisa histórica em psicanálise muitas vezes se revela também um mergulho teórico, que traz do passado ideias que conservam um estranho frescor, uma sensação de familiaridade e, ao mesmo tempo, de surpresa. A familiaridade deriva de autores que beberam na obra ferencziana - direta ou indiretamente - e desenvolveram ideias que aprofundaram (Abraham & Torok, 1987/1992; Balint, 1968/1992; Sullivan, 1953), contextualizaram (Frankel, 1998; Haynal, 2002; Mészáros, 2010) ou ampliaram (Janin, 2004; Sklar, 2011; Winnicott, 1971/1996) as teorizações do húngaro que, para Freud, chegou a valer "toda uma Sociedade" (1914/2001d, p. 33). A surpresa, por outro lado, tem várias fontes. Ela parte da reação de Freud ao que lhe escreveu Ferenczi sobre a conferência; da ousadia de propor em 1931 - não nos esqueçamos - algo avesso ao que, até então, seus colegas defenderiam; e principalmente da ressonância clínica que essas ideias, expostas em poucas páginas, ainda despertam. Isso pode ser dito também sobre a leitura de outros autores e de outros textos. Quando observamos a história dos homens e de suas teorizações, nossos pacientes e nossa clínica ganham ângulos mais ou menos agudos, mais ou menos sensíveis à experiência analítica.
De acordo com Bollas,
Freud tolerou os chocantes exemplos clínicos e invenções clínicas de Ferenczi porque ele certamente sentiu que ou Ferenczi estava vendo pacientes que ele não vira antes ou, mais provável, que Ferenczi estava vendo o que Freud não poderia permitir-se experienciar e, portanto, ver. (2011, p. XV)
Talvez hoje não seja mais necessário tolerá-lo; ao contrário, podemos experienciar junto dele, numa leitura nova dirigida a um texto octogenário.
Ao tomar a troca de cartas e a conferência como materiais vivos, como velhas novidades, valem as palavras de Melvyn New em sua introdução ao Tristram Shandy, de Laurence Sterne: do ponto de vista utilizado pelo autor neste artigo, "um conhecimento de que se está construindo sobre o trabalho de outros, nomeados ou não, é soberano" (1997/2003, p. XXXVI). Sigamos à conferência.
A conferência de Ferenczi sobre os sonhos
Trauma e sonhos
Ferenczi morreu em 1933, e sua conferência sobre os sonhos foi apresentada postumamente, no ano seguinte, perante a Associação Psicanalítica da Hungria, e publicada pela primeira vez no periódico médico Gyógyászat, com o título de "Trauma na psicanálise". Em inglês, o artigo apareceu primeiramente no Indian Journal of Psychology, com o título de "Sobre a revisão de A interpretação dos sonhos" (Rachman, 1997), e na edição da obra ferencziana organizada por Balint, seu discípulo, foi incluído entre as "Notas e fragmentos" (Ferenczi, 1931/2002c).
Trata-se de um texto curto, que principia pela afirmação de que a recorrência de restos diurnos nos sonhos é por si só uma de suas funções. Ou seja, os restos diurnos não são apenas transformados e utilizados pela função de realização de desejos no sonho. Ferenczi defenderia, se algum congresso tivesse acontecido em 1931 na Suíça, que os resíduos do dia e da vida como um todo que aparecem nos sonhos são sintomas repetitivos de traumas. Escreve ele:
Como é sabido, a tendência à repetição realiza em si mesma uma função útil nas neuroses traumáticas; ela esforça-se em trazer uma melhor (e se possível final) solução do que foi possível no tempo do choque original. Essa tendência deve ser presumida mesmo onde não resulta em solução, leia-se, onde a repetição não leva a um resultado melhor que no trauma original. (Ferenczi, 1931/2002c, p. 238)
Freud, no texto de 1920, afirma que a criança, por exemplo, repete vivências desprazerosas através de jogos "porque sua atividade lhe permite lidar com a forte impressão de maneira mais completa do que se apenas a sofresse passivamente". E acrescenta: "Cada nova repetição parece melhorar o controle que ela busca ter sobre a impressão" (1920/2001a, p. 35). Estamos, portanto, a ouvir coisas muito similares em 1920 e na conferência de 1931. Aqui, Ferenczi está falando da utilidade da tendência à repetição nas neuroses traumáticas; ali, é Freud que discute como a repetição de impressões desprazerosas busca um melhor controle da situação, uma tentativa de saída da passividade. O que se procura pela repetição, podemos depreender do que ambos escrevem, é uma melhor solução para a experiência sofrida passivamente no momento do trauma. Mas temos uma informação curiosa acrescentada pelo húngaro: a repetição em busca de uma solução mais favorável deve ser presumida mesmo nos casos em que o resultado da repetição não é melhor que o anterior, ou seja, se tomarmos o exemplo do jogo infantil, mesmo quando a tentativa de lidar com a forte impressão traz novamente uma vivência desprazerosa. O que deve ser salientado é a tendência à procura de uma melhor solução, mesmo que pela reexperimentação de situações que causaram desprazer. Dito de outra forma, o que ambos estão explicitando, em maior ou menor grau, é uma "atividade sintética do eu", nas palavras de Freud, ou uma "incansável tendência à unificação na vida mental", nas de Ferenczi (Brabant & Falzeder, 2000, pp. 399-400).
Mas o texto de Ferenczi continua:
Assim, em vez de "o sonho é uma realização de desejo", uma mais completa definição da função do sonho seria: todo sonho, mesmo o desprazeroso, é a tentativa de um melhor domínio e resolução de experiências traumáticas, pode-se dizer, no sentido de um esprit descalier, o que é facilitado na maioria dos sonhos pela diminuição da faculdade crítica e a predominância do princípio do prazer. (1931/2002c, p. 238)
Voltamos à função que é anterior, mais primitiva, da qual deriva o princípio do prazer - o domínio, que visa à constância da excitação no aparelho psíquico. Para Freud, observamos o funcionamento desse princípio mais especificamente em situações traumáticas extremas; menos, ou com menos ênfase, nas pequenas situações, nas percepções mais corriqueiras de estímulos. Para Ferenczi, "resíduos do dia e da vida são consequentemente impressões mentais, passíveis de serem repetidas, não descarregadas e não dominadas [grifo nosso]; elas são inconscientes e talvez nunca tenham sido conscientes" (1931/2002c, p. 239).
Ele está teorizando sobre o princípio além daquele do prazer e como ele se apresenta nos sonhos, mesmo naqueles em que a função de realização de desejo pode ser claramente demonstrada:
O estado de inconsciência, o estado do sono, favorece não somente a dominância do princípio do prazer (função de realização de desejo do sonho), mas também o retorno de não dominadas impressões sensorias traumáticas que se debatem por solução (função traumatofílica do sonho). Noutras palavras: a tendência à repetição do trauma é maior no sonho do que na vida de vigília; por conseguinte, no sono profundo é mais provável que impressões sensorias muito urgentes, profundamente escondidas, retornem, as quais na primeira instância causaram profunda inconsciência e assim continuaram permanentemente não resolvidas. (Ferenczi, 1931/2002c, p. 240)
Podemos pensar em impressões sensorias corriqueiras que não foram dominadas ou em impressões traumáticas que também não o foram. Mas este é um ponto que infelizmente Ferenczi expõe e não leva mais adiante: o de como as "menores" impressões sensorias do dia, quando não dominadas, também forçariam por si mesmas seu aparecimento no sonho a fim de serem mais bem ligadas. Podemos conjecturar que a escolha dos restos diurnos que serão utilizados na formação do sonho não é feita somente por sua ligação ou proximidade (através de condensações, deslocamentos e figurabilidade) daquilo que se deseja ou daquilo que se tenta dominar, mas também por suas proprias características de impressões sensorias que não foram completamente dominadas. Essas conjecturas, porém, são nossas, a partir do fio que Ferenczi deixa solto em seu texto.4 A argumentação dele segue outro caminho: um exemplo de sonho "dividido" ou de dois sonhos subsequentes, cada qual com suas características próprias.
Para entender a argumentação, é necessária uma descrição de como Ferenczi imaginava que uma pessoa reage ao choque do trauma. Ele acreditava que um choque poderoso age como um anestésico, e que a primeira reação é sempre uma espécie de psicose transitória, de fuga da realidade. Anestesia e fuga da realidade relacionam-se, nesse texto nunca apresentado pelo autor, a um inconsciente mais profundo, ao qual se tem menos acesso. Noutras palavras, o trauma não lembrado estaria localizado em pontos mais profundos do inconsciente, aos quais raramente se tem acesso em estados normais de consciência. Já se trata aqui de uma hipótese decorrente do trabalho que vinha realizando com o relaxamento extremo5 de alguns de seus pacientes, o que permitiria acesso a um material inconsciente que parecia mais obscuro. Mas de que maneira o choque agiria como um anestésico?
Aparentemente pela inibição de todo tipo de atividade mental e, portanto, provocando um estado de completa passividade, desprovido de qualquer resistência. A paralisia absoluta da motilidade inclui também a inibição da percepção e (com ela) do pensamento. O desligamento da percepção resulta na completa desproteção do ego. (Ferenczi, 1931/2002c, p. 240)
Até agora algo não muito diferente do que vimos Freud escrever em 1920, quando discutiu as consequências do trauma, as quais, além de provocar um distúrbio no funcionamento da energia, põem o princípio do prazer fora de ação, e "já não se pode evitar que o aparelho psíquico seja inundado por grandes quantidades de estímulo; surge, isto sim, outra tarefa, a de controlar o estímulo, de ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que irromperam, para conduzi-las à eliminação" (1920/2001a, pp. 29-30).
Mas, Ferenczi acrescentaria, julgando que a inundação do aparato gera paralisia e anestesia: "Uma impressão que não é percebida não pode ser repelida" (1931/2002c, p. 240). São duas visões complementares. Para Freud, o trauma causa um distúrbio no funcionamento da energia do aparelho; mais: ele inunda o psiquismo e desliga o princípio do prazer, deixando ativado somente o princípio de domínio. Para Ferenczi, o problema vai mais longe: a inundação paralisa o próprio aparelho receptor; ele para de filtrar e colher somente pequenas quantidades:
Os resultados da paralisia completa são: 1) o curso da paralisia sensória torna-se e mantém-se permanentemente interrompido; 2) enquanto dura a paralisia sensória, toda impressão mecânica e mental é tomada sem nenhuma resistência; 3) nenhum traço de memória de tais impressões permanece, mesmo no inconsciente, e assim as causas do trauma não podem ser lembradas a partir de traços de memória. Se, ainda assim, alguém quer atingi-las, o que logicamente parece quase impossível, então se deve repetir o trauma mesmo e sob condições mais favoráveis trazê-lo pela primeira vez à percepção e à descarga motora. (1931/2002c, p. 240)
Alguns traumas, é o que estamos a ler, não deixam traços de memória, e sim impressões sensórias traumáticas. O trabalho terapêutico, que Ferenczi vai considerar quase impossível, é o de reconstituição piano, pianissimo, do evento traumático através de sua repetição em melhores condições, para que pela primeira vez ele seja percebido - torne-se traço de memória - e trabalhado (Dal Molin, 2016). Podemos agora tentar entender a hipótese clínica dos dois sonhos.
Repetição e tratamento
Ferenczi percebe em pacientes a presença de dois sonhos subsequentes que reproduzem, cada um a sua maneira, a experiência traumática. O primeiro, que acontece em estados de sono "quase comatoso", é uma pura repetição de impressões sensórias traumáticas - portanto, sem representabilidade. Seu exemplo é:
Uma paciente a quem o pai fez avanços por várias ocasiões em sua infância, e também quando ela atingiu a idade adulta, por muitos meses traz material que indica um trauma sexual em seu quinto ano; porém, apesar de inúmeras repetições em fantasia e em quase sonhos, esse trauma não podia ser lembrado, nem podia ser levado ao nível de uma convicção. Muitas vezes ela acorda de seu primeiro sono profundo "como que esmagada", com violentas dores no abdômen, sentimento de acúmulo na cabeça, e todos os "músculos arrebentados, como se depois de uma violenta luta", com exaustão paralisante etc. (1931/2002c, p. 241)
Aqui cabe a pergunta: quem tomaria esse violento acordar por um sonho ou por uma repetição traumática? Se nos lembrarmos do segundo título que o autor atribuiu a sua conferência, teremos claro que a teorização aqui é: com o relaxamento do sono, ganharia mais liberdade uma "tendência à repetição". Ferenczi o chama, a esse acordar, de sonho primário, e o vê como uma "repetição traumato-neurótica" (1931/2002c, p. 241) com base no material que a paciente vinha trazendo à análise. Ou seja, o material indica a existência de um trauma sexual no quinto ano, mas não há lembrança do episódio; durante o trabalho analítico, o tema é abordado, mas sem convicção de que esse evento ocorreu. O sonho primário, ou essa primeira parte do sonho dividido, traz à tona, para a sonhadora, sensações físicas que não carregam representações em seu esteio, mas apontam para algo: engrenagens estavam em movimento durante o sono, as sensações não foram gratuitas e... a paciente voltou a dormir e as engrenagens a movimentar-se.
O segundo sonho, que já será exemplificado, tratar-se-ia de "uma tentativa de solucioná-lo [o trauma] por si mesmo, leia-se, com a ajuda de atenuações e distorções, consequentemente de uma forma enganadora. Sob a condição de uma enganação otimista, o trauma pode ser admitido na consciência" (Ferenczi, 1931/2002c, pp. 240-241).
Ele teoriza a instância de censura do sonho como fruto de uma divisão narcísica, mas não a chama nesse texto de superego, nem a localiza entre os sistemas inconsciente e pré-consciente, como faz Freud em A interpretação dos sonhos (1900/2001b). Por outro lado, dá a ela a função de estimar a capacidade do ego de aguentar o dano causado pelo trauma e de permitir somente as percepções ou as partes delas que são suportáveis, podendo ainda, quando necessário, diminuí-las através da função de realização de desejo. Noutras palavras, o psiquismo tem seus modos de absorver só quanto da realidade das impressões ele avalia que o aparelho poderá trabalhar.
Neste momento, uma pausa se faz necessária. Desde o começo da apresentação da conferência de 1931, estamos observando um modo de compreender o trabalho onírico que é bastante peculiar. Ferenczi refere-se a uma "tendência à repetição do trauma" no sonho que tem por objetivo tentar dominar as impressões associadas a esse tipo de experiência, ou seja, ligá-las psiquicamente e tentar resolvê-las de uma forma mais satisfatória para o sonhador. Ao introduzir o que acredita que realiza o segundo sonho, Ferenczi fala em uma tentativa de solucionar o primeiro sonho, pura repetição sensória do trauma, por "si mesmo", com a ajuda das distorções e atenuações presentes no trabalho onírico, tal qual Freud o descreveu em seu livro sobre os sonhos. E ainda, como víamos, Ferenczi dá atributos de aferição e proteção da capacidade psíquica à instância censora. Antes de seguirmos o conferencista em seu texto, cabe esquematizar sumariamente um pouco do que vem sendo discutido. O primeiro sonho seria uma repetição das sensações ou percepções não completamente dominadas, sem representabilidade; o segundo sonho, distorcendo e atenuando o primeiro, permitiria que algo chegasse à consciência, envolvería uma tentativa de lembrança com falseios. Do primeiro sonho ao segundo já existe, portanto, um tipo de elaboração ou, melhor seria dizer, um trabalho, o onírico.
A tendência à repetição do trauma, assim, buscaria sempre um modo de "recordação", de trazer à consciência algo a que ela não tem acesso, por meio de várias formas, ainda que mínimas, de elaboração. O sonho, por si mesmo, funcionaria como uma espécie de tratamento autoaplicado, com o objetivo de dominar e resolver experiências traumáticas em um sentido de esprit d'escalier, cada sonho tendendo a acrescentar, ajudar no domínio das impressões, e finalmente - quando possível - trazer de alguma maneira à consciência as experiências vividas como traumáticas. Sinteticamente, "permitindo a repetição do trauma, o sonho serve a uma função de elaboração" (Rachman, 1997, p. 349).
Em 1914, Freud utiliza a palavra Kur no sentido de "terapia". Por exemplo, em "Recordar, repetir e elaborar": "ele [o paciente] começa a terapia (Kur) com uma repetição desse gênero". A repetição, nos diz Freud, acontece no lugar do recordar: "Quanto maior a resistência, tanto mais o recordar será substituído pelo atuar (repetir)" (1914/2001e, pp. 150-151). As repetições a que Ferenczi se refere não seguem esse movimento, repetição sensoria no sonho em vez de recordação do trauma? Seguem, mas a hipótese que ele apresenta é a de que o movimento do primeiro ao segundo sonho é uma espécie de Kur autoaplicada - uma tentativa de elaborar e de transformar sensações em algo que tenha mais forma e mais elementos.
Ao ser lida em Budapeste, em 1934, a conferência talvez não despertasse no ouvinte a palavra alemã Kur, mas sim sua correlata em húngaro, gyógyászat (os mais atentos podem ter percebido que esse era o nome da revista médica onde o texto foi publicado). Uma pequena digressão semântica não nos fará muito mal.
Kur, do alemão, significa "tratamento", "cura", "terapia".6 Paulo César de Souza - um dos tradutores da obra freudiana diretamente do alemão para o português -, em duas notas, uma ao texto "O uso da interpretação dos sonhos na psicanálise" e outra a "Recordar, repetir e elaborar", discute brevemente a tradução da palavra:
"Terapia": Kur, no original. A tradução de Kur por "cura" é enganosa, pois em português (diferentemente de outras línguas latinas) a palavra designa o resultado, não o processo. A versão de Strachey [treatment] nos parece a mais adequada; "terapia" é a palavra grega para "tratamento". (Souza, 2010, pp. 124 e 200)
Gyógyászat é a palavra em húngaro que designa "terapêutica" (Brabant-Gero, 1993, p. 41), "tratamento" ou "médico" (Magay & Kiss, 2008, p. 226). Traduzir gyógyászat somente por "cura" implica o mesmo engano apontado por Paulo César de Souza sobre a tradução de Kur: em português, "a palavra designa o resultado, não o processo". Do primeiro ao segundo sonho estamos às voltas com uma tentativa de dominar as impressões, elaborá-las, dar-lhes representabilidade e trazê-las de alguma forma à consciência. E o objetivo da técnica psicanalítica, escreveu Freud, é em "termos descritivos: preenchimento das lacunas da recordação" (1914/2001e, p. 148). Estamos, de fato, a observar uma visão do sonho funcionando como tratamento, como Kur, como gyógyászat.
No fundo de um barco
Mas devemos voltar ao texto. O exemplo de "sonho secundário" apresentado por Ferenczi, daquela mesma paciente que acordava com a exaustão paralisante, tinha como conteúdo, grosso modo:
Uma pequena carroça é puxada montanha acima por uma extensa fila de cavalos ao longo do cume, pode-se dizer, divertidamente. À direita e à esquerda há precipícios; os cavalos são guiados em certo tipo de ritmo. A força dos cavalos não é proporcional à facilidade da tarefa. Fortes sentimentos de prazer. Súbita mudança de cena: uma jovem garota (criança?) está deitada no chão de um barco, branca e quase morta. Sobre ela um homem enorme, oprimindo-a com seu rosto. Atrás deles no barco um segundo homem está em pé, alguém muito conhecido dela, e a garota está envergonhada, porque esse homem está testemunhando o evento. O barco é cercado por montanhas muito altas, íngremes, de forma que ninguém pode vê-los de qualquer direção, exceto talvez de um avião a uma distância enorme. (1931/2002c, pp. 241-242)
A interpretação de Ferenczi acerca do sonho segue esta linha:
A primeira parte do sonho secundário corresponde a uma cena parcialmente conhecida por nós, parcialmente reconstruída de outro material de sonho, na qual a paciente, quando criança, escorrega montada em cima do corpo de seu pai e com curiosidade infantil faz todo tipo de viagens de descoberta na procura das partes escondidas de seu corpo, durante as quais ambos se divertem imensamente. A cena do lago profundo reproduz a visão do homem incapaz de se controlar e o pensamento de o que as pessoas diriam se soubessem; finalmente o sentimento de extremo desamparo e de estar morta. (1931/2002c, p. 242)
Temos, então, a aparição de uma cena construída a partir do que é conhecido pelas associações da paciente e do material de outros sonhos: a criança explorando o corpo do pai e ambos tendo prazer na brincadeira. E temos a segunda cena, com o homem descontroladamente próximo e a paciente projetando numa menina extremamente desamparada e morta o que sentira ela mesma. Também está ali um terceiro elemento, não explicado - se mais próximo da repetição de sentimentos quando do trauma ou de sentimentos posteriores sobre ele -, que é a vergonha caso aquilo fosse conhecido.7
Um importante esclarecimento deve ser feito: Ferenczi dirá que
o objetivo terapêutico da análise de sonhos é a restauração de uma acessibilidade direta às impressões sensórias com a ajuda de um profundo transe, que regride, por assim dizer, para trás do sonho secundário e traz para perto a revivescência dos eventos do trauma na análise. (1931/2002c, p. 242)
Algumas informações a discutir. O transe a que o autor se refere era propiciado pela maior liberdade oferecida a seus pacientes, que quando necessário regrediam a modos de funcionamento mais primitivos, infantis. Num parágrafo acrescentado ao livro dos sonhos em 1914, Freud discute três formas de regressão, a topográfica, a temporal e a formal, que seriam "no fundo uma e ocorreriam, em regra, juntas; pois o que é mais antigo no tempo é também mais primitivo em forma e na topografia psíquica está mais perto da ponta perceptiva" (1900/2001b, p. 548). A regressão no transe permitiria, à maneira do que a paciente fez em seu(s) sonho(s), uma observação mais próxima daquilo que estava - utilizemos o termo - na ponta perceptiva da topografia psíquica ou, nas palavras de Ferenczi, daquilo que era uma "re-vivescência dos eventos do trauma na análise". Neste texto, não era nosso intuito inicial recorrer a artigos do conferencista escritos após 1931. Faremos uma única exceção, que diz respeito exatamente à ideia de transe que estamos discutindo e às implicações técnicas que ela traz. No entanto, a citação tem um fim descritivo e, pelos limites deste trabalho, não será discutida. Escreveu Ferenczi sobre a regressão e a atitude do analista quando ela acontece:
Falamos bastante em análise de regressões ao infantil, mas não acreditamos realmente em que grande alcance estamos certos; falamos muito em divisão da personalidade, mas não apreciamos suficientemente a profundidade dessas divisões. Se mantemos nossa fria, educacional atitude mesmo vis-à-vis com um paciente opis-tônico [opisthonic],8 rompemos o último fio que o liga a nós. O paciente que se foi em seu transe é realmente uma criança que não mais reage a explanações intelectuais, talvez só à amabilidade maternal; sem isso ele se sente sozinho e abandonado em sua maior necessidade, leia-se, na mesma situação insuportável que uma vez levou a uma divisão de sua mente e eventualmente a sua doença; portanto não é de espantar que o paciente só pode repetir agora a formação de sintoma exatamente como fez no tempo em que sua doença começou. (1933[1932]/2002a, p. 160)
Um enfrentamento e um trabalho durante a regressão diferente do que Freud postulava, portanto. Mas voltemos ao que se leu postumamente na Associação Psicanalítica da Hungria, onde, a essa altura, já fora apresentada alguma informação sobre o trabalho analítico com esse(s) sonho(s). Ferenczi diz que são necessárias duas análises do sonho: a primeira com o paciente "acordado" e a segunda durante o transe. A atividade e o contato oferecido pelo analista nesse profundo transe são de particular importância para Ferenczi (Haynal, 2002). Durante o transe, muito tato - escreve o húngaro -deve ser usado na tentativa de manter-se em contato com o PACIENTE:
Se as expectativas do paciente não são satisfeitas completamente, eles acordam subitamente ou nos explicam o que deveríamos ter dito ou feito. O analista deve engolir muita coisa e aprender a renunciar a sua autoridade como ser onisciente. Essa segunda análise frequentemente faz uso de algumas imagens do sonho a fim de seguir através delas, como elas eram, à dimensão da profundidade, i.e., à realidade. (Ferenczi, 1931/2002c, p. 242)
Já no fim da conferência observamos uma espécie de alteração técnica, no manejo e no setting, que Ferenczi vinha realizando há alguns anos e continuou a implementar, o que também pudemos ver no excerto do texto de 1932. Não nos ateremos a essas mudanças mais do que o necessário para elucidar a última passagem citada - grande parte dessa alteração na técnica fica mais clara ao lado do trecho apresentado, posterior ao artigo sobre os sonhos, onde é descrita a regressão e a atitude do analista quando ela acontece. Ferenczi experimentava com a técnica psicanalítica para obter melhores resultados terapêuticos. Algumas das atitudes mais criticadas por ele em seus últimos textos eram exatamente o autoritarismo e a frieza que observava em seus colegas, os quais seriam fruto da leitura dos artigos sobre a técnica como se estes fossem pedras de toque da prática psicanalítica, e não o que haviam sido escritos para ser, recomendações (Brabant & Falzeder, 2000; Ferenczi, 1928/2002b). Michael Balint resumiu da seguinte forma a atitude clínica de seu analista e amigo: "Ferenczi nunca esqueceu que a psicanálise foi, de fato, inventada por um paciente, e que o mérito do médico repousa precisamente em aceitar a direção do paciente e em querer aprender uma nova técnica de cura através dele" (citado por Haynal, 2002, p. 49).
O último trecho citado da conferência traz consigo um também último problema que devemos discutir: a dimensão mais profunda é aquela a que o autor chama de realidade. Não se trata, é claro, da realidade em seu sentido estritamente objetivo, mas daquilo a que se chama realidade psíquica, que é, em grande parte, fruto do contato com o mundo externo. Ele escrevera em 1930: "O primeiro ímpeto em direção a linhas de desenvolvimento anormais sempre foi pensado como tendo tido origem em traumas psíquicos reais e conflitos com o ambiente" (Ferenczi, 2002d, p. 120). São esses traumas psíquicos reais, esses conflitos com o ambiente, que muitas vezes ainda não foram dominados, ligados psiquicamente, e que portanto não podem mostrar-se nos sonhos sempre sob a tendência do princípio do prazer, como realizações de desejos. Podem aparecer dessa maneira somente após um trabalho onírico mais amplo do que o descrito por Freud no livro dos sonhos, um trabalho que em si mesmo é uma tentativa de elaboração do traumático, uma tentativa de Kur ou, se ouvíssemos o texto de Ferenczi, de gyógyászat. É inevitável a impressão de que, ao teorizar sobre o trauma e o sonho, outra forma de movimento psíquico delineia-se no texto de Ferenczi. Em 1931, a questão para ele passa a ser: repetir-elaborar-recordar-elaborar. O trabalho analítico então seria o de sustentar e validar essa elaboração, e mais tarde "encorajar [o paciente] a sentir e a pensar as experiências mentais traumaticamente interrompidas até seu derradeiro fim" (1931/2002c, p. 243).
"Para terminar", lê-se numa conferência de Chaim Samuel Katz no i Simpósio Sándor Ferenczi, realizado no Rio de Janeiro em 1993, "queria fazer um último comentário" (1996, p. 139). Uma parte de tal comentário também cabe brevemente ao fim deste trabalho. Ele diz respeito às Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, escritas em 1932, mas publicadas no ano seguinte, onde Freud, depois de discutir brevemente os sonhos nas neuroses traumáticas, observa: "O sonho é uma tentativa de realização de um desejo" (1933[1932]/2001c, p. 29). Com base no diálogo da obra de Freud e de Ferenczi, Katz pergunta: "Qual a função do sonho?". Sua resposta é aquela que tentamos apontar aqui: "A função do sonho é curar esse trauma. De que maneira?" (1996, p. 140). Para essa segunda pergunta, a resposta, se conseguirmos imaginar Ferenczi a respondê-la, poderia ser: repetindo, e repetindo, e repetindo mais uma vez, até que sensações possam ganhar traços, traços possam ganhar formas, formas possam se rechear de cores e depois, talvez, com algumas distorções, o trauma se mostre, com certa discrição, como uma menina escondida no fundo de um barco.
Referências
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Correspondência:
Eugênio Canesin Dal Molin
Rua Oscar Freire, 1513/92
05409-010 São Paulo, SP
eecdm@yahoo.com.br
Recebido em 18/2/2020
Aceito em 13/3/2020
1 Gostaria de agradecer a Isabella Borghesi Dal Molin, Mauro Meiches, Renata Cromberg, Decio Gurfinkel, Nelson Coelho Jr. e aos colegas dos grupos de estudo da Universidade de São Paulo e do Grupo D'Artagnan por lerem e enriquecerem este texto com seus comentários. Igualmente, gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo apoio à pesquisa que propiciou a escrita deste artigo. A versão em inglês deste artigo foi publicada em 2012: The International Journal of Psychoanalysis, 93(5), 1175-1189. http://doi.org/f39cpp.
© Institute of Psychoanalysis reimpresso com permissão da Taylor & Francis Ltd, http://www.tandfonline.com em nome do Institute of Psychoanalysis.
2 A teoria da genitalidade fora exposta por Ferenczi em Thalassa.
3 A discussão infelizmente não pode prolongar-se devido aos limites e objetivos deste trabalho. De toda forma, a ideia aqui foi introduzir a questão econômica, porque é sobre ela que se assenta a correspondência indicada e a conferência que Ferenczi pretendeu apresentar em 1931.
4 Ferraz (2011) faz uma interessante tentativa de estabelecer uma metapsicologia dos restos diurnos.
5 Não nos ateremos a este ponto, mas vale a pena citá-lo: Ferenczi defendera, no xi Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Oxford, que com algumas mudanças técnicas, envolvendo maior liberdade para o paciente, seus analisandos, por vezes, atingiam estados profundos de relaxamento, semelhantes a estados de hipnose; nesses momentos de regressão extrema, fragmentos de lembranças traumáticas vinham à tona e podiam ser analiticamente trabalhados (Ferenczi, 1930/2002d).
6 Em outros momentos, Freud utiliza a palavra Behandlung para tratamento ou terapia, como em Zur Einleitung der Behandlung ("Sobre o começo do tratamento"). No alemão é usual encontrarmos mais de uma palavra com o mesmo sentido, uma mais "erudita", derivada do latim (no caso) ou do grego, e outra de uso mais corriqueiro; é o caso de Kur e Behandlung, respectivamente.
7 Schneider (1988) aponta, nessa dupla presença masculina, a expressão da ausência de alguém com a função de ajudar ou salvar a sonhadora do caráter irremediável da experiência.
8 Em português, não encontrei correspondente de grafia mais próxima no dicionário médico, mas trata-se de um estado de tensão muscular com curvatura da coluna, o que cabe no Dicionário Andrei de termos de medicina a opistótonos: "Variedade de contratura generalizada, predominante nos músculos extensores. O corpo e a cabeça curvam-se para trás, as pernas e os braços ficam em extensão. Observado no tétano, na histeria, no curso de algumas crises tônicas posteriores e nas meningites com hipertensão intracraniana" (Garnier et al., 2002, p. 906).