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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020

 

RESENHAS

 

Sartre ou o inconsciente como álibi

 

 

Maria Célia Detoni

Psicóloga. Mestre em educação. Autora de Artesanía clínica (Marca Visual, 2009)

Correspondência

 

 

Autor: Roberto B. Graña
Editora: AGE, 2019, 264 p.
Resenhado por: Maria Célia Detoni

 

 

O inconsciente não existe!? E caranguejos?

Sartre, indiscutivelmente um grande filósofo e escritor, amealhou qualidades, arrebatou leitores e também colecionou inimizades e críticos. Sua vida intelectual ultrapassou a academia e a vida social parisiense e ganhou o mundo, as ruas, os cafés, as revoluções. Cada jovem universitário, em diferentes partes do mundo, em anos idos, teve algum encontro com Sartre. O meu foi nos corredores e nas teológicas aulas de filosofia de uma universidade do interior do Rio Grande do Sul. Era impossível não ter cruzado com o existencialismo, que fervilhou durante décadas.

Assim foi com Roberto Graña, que responde por uma longa caminhada com Sartre. Encontrou-se com o filósofo na sua juventude, e dele bebeu muito naqueles tempos existencialistas. O mais popular dos filósofos do século XX, que esteve nos quatro cantos do mundo discutindo suas ideias e fazendo críticas a tudo que lhe soava opressivo e ditatorial, contaminou o jovem Roberto, como era costume acontecer. O autor de Sartre ou o inconsciente como álibi nos conta que este livro vem sendo escrito desde então.1

Talvez isso explique os sentimentos que desperta este livro. Numa hora estamos imersos no universo psicanalítico contemporâneo; em seguida somos transportados até o início do século XX e todo seu contexto sociointelectual; depois despertamos de um platô de in-consciência e nos perdemos em personagens da literatura, aos quais conhecemos, lembramos vagamente ou somos apresentados. Todas essas combinações estão envoltas por uma "crítica literária, biográfica e psicanalítica" (p. 197), uma vez que o filósofo/escritor em questão, na obra de Roberto, é nada mais nada menos que o criador da psicanálise existencial, mesmo que nunca tenha atendido a nenhum paciente e tendo a problemática ideia do inconsciente como álibi. É assim que Sartre "celebrava uma nova forma - literário-vivencial - de fazer filosofia" e, por que não dizer, de fazer psicanálise (p. 138). Transvalorando qualquer tradicional conceituação do uso de um diário e tornando a escrita uma autoanálise, Sartre não nos poupa de saber que "a psicanálise será sempre indigesta para os filósofos; a filosofia será sempre abstrusa para os psicanalistas" (p. 257).

Nas suas 264 páginas o livro nos permite um retorno a Sartre e demonstra com argúcia a impossibilidade de "falar em psicanálise contemporânea sem levar em conta o pensar filosófico, pois apenas repetir as metáforas freudianas seria contribuir para uma fossilização da psicanálise".2 Para o autor o que renova e atualiza a psicanálise é o seu diálogo com a filosofia, a literatura, a teoria e a crítica literária, exatamente o que o leitor vai encontrar nesta obra.

Um livro ao modo de uma conversa3 - como parece ser o estilo do autor4 -, em que o leitor é reiteradamente convidado a participar com seu pensamento, com seu corpo, com seus saberes. A conversa é tão vibrante que o leitor se sente amparado para desbravar cada página com apetite estimulado. O livro convida o leitor a redescobrir Sartre e a envolver-se com autores e obras contemporâneas. Ou seja, é leitura artificiosa, que busca rejuvenescer uma obra que envelheceu prematuramente, nas palavras do próprio autor.

Como que de mãos dadas, leitor e escritor, filosofia e psicanálise, literatura e vida compõem, na escritura de Graña, um livro cheio de frestas por onde ele nos dá a conhecer a obra e a vida de Sartre e seu contexto político num século cheio de contradições.

É inevitável que o leitor - no inventário de seu conhecimento do filósofo em questão - se apanhe contaminado desse grande Sartre, e que ao percorrer a empreitada do autor em nos presentear uma cuidadosa sistematização da filosofia sartriano-existencialista-psicanalítica desfrute de uma alegria poética. Um livro complexo, de deleitável leitura, que começa com um prefácio magistral de Alcy Cheuiche e segue com cinco capítulos organizados ao modo de um rizoma. Sim, há uma cronologia no livro, mas o leitor que se autorizar poderá mergulhar em qualquer ponto da escrita, sendo igualmente levado ao melhor do pensamento filosófico/literário/psicanalítico.

Uma intertextualidade crítica ao pensar filosófico e psicanalítico, em que encontramos um jogo conceitual sabedor de que "todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes" (Deleuze & Guattari, 1992, p. 27).

A relação no mínimo ambígua de Sartre com Freud não inibe o autor de encontrar discordâncias e ressonâncias, bem como de construir articulações revigorantes para a clínica contemporânea. Ao contrário, ele traça um inovador caminho intelectual entre os dois gigantes: Freud e Sartre. Sartre talvez não gostaria de se interessar por Freud e pela psicanálise, mas ela muito o atraía. Haja vista o que se dedica em O ser e o nada para escrever sua psicanálise existencial, além de outras obras em que o caráter analítico - como mostra o livro que estamos resenhando - se apresenta não só conceitualmente, mas também na verve sentimental do próprio Sartre, uma vez que sua história pessoal mais que tangencia sua filosofia, é ela que dá sustento a todo o seu legado.

Dirigindo sua crítica à psicanálise que se estabeleceu como um "sistema metapsicológico freudiano", Sartre introduz na psicanálise o conceito de ser5 - e de ser-aí-, que é condição do ser do homem e que o distingue de todos os outros entes/existentes. Isso nos leva a dois grandes psicanalistas: Winnicott e Lacan. Dono de uma trajetória de estudo de ambos os autores, Graña nos apresenta uma interface clínica em que o erótico é mais uma dimensão do ser. Uma filosofia/psicanálise que se emaranha sobre a cotidianidade do ser, e seus atos e fenômenos só podem enriquecer a psicanálise e o trabalho clínico, em que nos interessa como cada um brinca6 de ser.

 

Referências

Deleuze, G. & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? (B. Prado Jr. & A. A. Muñoz, Trads.). Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, G. & Parnet, C. (2004). Uma conversa, o que é, para que é que serve? In G. Deleuze & C. Parnet, Diálogos (J. G. Cunha, Trad., pp. 11-47). Relógio D'Água.         [ Links ]

Detoni, M. C. (2012). Os olhos são a porta do engano [Resenha do livro Lacan com Winnicott: espelhamento e subjetivação, de Roberto B. Graña]. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3),238-239.         [ Links ]

Graña, R. (2019, 8 de junho). [Entrevista]. Folhetim. http://bit.ly/38HkvJ2        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Maria Célia Detoni
Rua Vasco da Gama, 720/1004
90420-110 Porto Alegre, RS
mcdetoni@gmail.com

 

 

1 Entrevista concedida pelo escritor ao programa Folhetim da rádio da ufrgs (2019).
2 Entrevista concedida pelo escritor ao programa Folhetim da rádio da ufrgs (2019).
3 Aqui conversa é usada ao modo deleuziano (Deleuze & Parnet, 2004).
4 Ver Detoni (2012).
5 Ver especialmente o capítulo 2.
6 Em referência à obra de Donald Winnicott.

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