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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020

 

RESENHAS

 

Psicanálise de casal e família: desafios clínicos e ampliações teóricas

 

 

Cynara Cezar Kopittke

Psicanalista. Membro titular didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA). Membro titular da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF)

Correspondência

 

 

Organizadoras: Magdalena Ramos, Isabel Cristina Gomes, Maria Inês Assumpção Fernandes, Maria Lucia de Souza Campos Paiva, Ruth Blay Levisky e Silvia Brasiliano
Editora: Escuta, 2018, 211 p.
Resenhado por: Cynara Cezar Kopittke

 

 

Psicanálise de casal e família: desafios clínicos e ampliações teóricas testemunha a fundação da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). O livro reúne textos de psicanalistas que se dedicam à clínica e à pesquisa no campo da vincularidade, alguns deles oriundos do simpósio ocorrido em setembro de 2017 que deu origem à ABPCF.

Janine Puget, inquietante mestra, inaugura a leitura questionando nossa necessidade de delimitar começos ou fundações: por que nos ocupamos tanto com o início, com a busca de uma origem, com uma marcação da história, quando a história cria o presente e/ou a cada dia se cria uma nova história e novos presentes? Tendemos a traçar linearidades, causalidades diante da imensa quantidade de estímulos e do inesperado, fonte constante de sofrimento. Em contraponto ao determinismo causal, Janine reporta a espera que pode advir da ilusão de que algo particular vai acontecer, como vicissitude da experiência de satisfação e do desejo, e a espera que advém do que acontece no espaço de produção entre sujeitos a partir do encontro. Nas análises de casal e família, a espera é um tema recorrente, relacionado a cobranças, angústias, desilusões e a uma abertura para a reflexão sobre o que chamou distorções da espera. Esperar algo semelhante ao conhecido tende a reduzir aquilo que surpreende (por ser novo) ao já sabido.

Os dois textos seguintes apresentam um panorama histórico da psicoterapia psicanalítica de casais e famílias. Luiz Meyer, diversamente de Puget, privilegia a perspectiva pulsional, indo das relações objetais aos vínculos. Os intercâmbios são pensados com base nos mecanismos de identificação, sobretudo a identificação projetiva. O grupo familiar, significando uma rede de intercâmbios, forma acordos e conluios em operação conjunta e em cumplicidade para a manutenção de funcionamentos a serviço de um equilíbrio vantajoso a todos, inclusive àquele que ocupa o lugar de vítima ou paciente emergente.

No terceiro artigo, Olga Ruiz Correa historiza o movimento que parte da psicanálise bipessoal à grupal, lembrando a resistência das sociedades psicanalíticas à abordagem intersubjetiva, considerada subversiva ao método clássico. O afastamento de Pichon-Rivière da Associação Psicanalítica Argentina, instituição da qual foi fundador, deveu-se à transgressão de trabalhar com grupos. A passagem do intrassubjetivo ao intersubjetivo promoveu uma ruptura epistemológica que ainda demanda uma nova metapsicologia e transformações do método.

O texto seguinte, de Simone Robles e Maria Inês Fernandes, propõe uma ampliação do campo clínico ao social, situando o psicoterapeuta na intersecção entre o subjetivo e o objetivo. Em contextos que reportam efeitos de violações de direitos dos sujeitos, a escuta precisa voltar-se aos sofrimentos relacionados à intersubjetividade e também às privações materiais que demandam assistência social. Relatam o trabalho em grupos operativos com famílias beneficiárias de um programa social, que apresentavam condição de pobreza e falta de acesso a direitos fundamentais, como saúde e educação. Não se trata de atender em psicoterapia familiar, mas de construir com o grupo um arranjo possível com recursos presentes naquele território e que façam frente às vulnerabilidades que se apresentam. O processo grupal evidenciou que, quanto maior a vulnerabilidade social com respeito às necessidades básicas, maior a violência em suas variadas formas: doméstica, urbana e de Estado.

A leitura continua com Ana Carolina Fernandes e Isabel Cristina Gomes abordando a construção da identidade do terapeuta de casal e família e os desafios da formação clínica dentro de serviços-escola. A clínica de casais e famílias apresenta-se mais complexa que a clínica individual, sobretudo no referente à transferência e à contratransferência, o que torna fundamental o tratamento pessoal do terapeuta iniciante. A inclusão de referenciais teóricos específicos à clínica vincular e a prática clínica nos cursos são apontadas como essenciais à formação. Ressaltam o uso de recursos artístico-expressivos como ferramenta para minimizar defesas, comunicar aspectos inconscientes não nomeados e dar vazão a desejos e necessidades, contribuindo para a compreensão da dinâmica psíquica dos pacientes e auxiliando também no manejo das ansiedades inerentes ao terapeuta iniciante.

Lisette Weissmann discorre sobre a clínica e a teoria das configurações vinculares, em especial as novas famílias do século XXI: famílias reconstituídas, monoparentais, homoparentais ou constituídas por reprodução assistida em seus diversos formatos. Emprega o conceito de vínculo proposto por Berenstein e Puget, o qual compreende dois ou mais sujeitos em presença na conformação de um espaço entre, que os relaciona além do espaço intrapsíquico das relações de objeto. A perspectiva dos sujeitos em presença implica uma imposição do irrepresentável do outro, inerente a uma diferença radical não apreensível, o ajeno do outro. A diferença mobiliza o trabalho de vínculo, o que torna relevante uma escuta voltada ao discurso produzido no momento do encontro, conforme vai se construindo. Ao privilegiar o espaço entre sujeitos, torna-se secundária a investigação de dados pregressos da história e da relação; a escuta se dirige para o mal-estar e a dor provindos do vínculo. É preciso, para tanto, enfrentar a necessidade determinista de estabelecer começos, que serve para evitar o sofrimento mental provocado pela descontinuidade.

O próximo artigo introduz a dimensão da clínica proposta para os capítulos finais do livro. Magdalena Ramos e Maria Lucia Campos Paiva abordam o tema atual e polêmico da homoparentalidade, ilustrando, através de vinhetas, as diversas problemáticas suscitadas nessa configuração. Levantam diversas questões, como a possibilidade de repetição da homoafetividade dos pais pelos filhos, as implicações da escolha do método de concepção nos casais impossibilitados de gerar filhos entre si e os efeitos possíveis da ausência da figura masculina ou feminina nas famílias homoparentais. As autoras posicionam-se sobre essas questões com a interlocução de Lidia Levy e Ana Hoffman.

Lidia Levy propõe a não generalização dos possíveis efeitos decorrentes da parentalidade homoafetiva e/ou da doação de gametas, e interroga sobre o lugar concedido ao doador. Enfatiza a importância de apresentar ao filho a história de suas origens, pois a produção das narrativas transmitidas à criança sobre sua concepção é fundamental em seu processo de simbolização. Ana Hoffman relaciona os preconceitos, quais forem, à dificuldade humana em tolerar o novo, valorizando o trabalho de conscientização via educação, arte, leis e mídias, como meio de enfrentamento e mudança. Quanto às novas formas de fertilização, sublinha a construção de uma historização da concepção através de um conteúdo valorativo que auxilie o desenvolvimento da identidade e da autoestima da criança. A narrativa, necessariamente, não passa pelos fatos concretos, os quais podem, ou não, ser explicados à medida que o filho cresce.

Desejo e envelhecimento na sexualidade conjugal é o tema do oitavo artigo, trabalhado por Rosely Pennacchi e Sonia Thorstensen através do relato de uma psicoterapia de família que evoluiu para o atendimento do casal. A primeira fase do tratamento buscou instaurar a diferenciação entre o núcleo familiar e as famílias de origem, bem como entre as gerações. Os efeitos da influência do pai da mãe sobre essa família destituíam o marido de valor fálico para a esposa e para os filhos, promovendo turbulências e sofrimento vincular. Em determinado momento do processo, houve a transposição a um setting de casal, e as questões da sexualidade emergiram, aparecendo a evitação da mulher e a reação depressiva do homem diante da rejeição dela, situação que foi relacionada ao lugar que o pai/sogro ocupava nesse casamento. A diferenciação entre o outro como objeto interno e o outro real em sua alteridade demandou muito trabalho e um esforço nem sempre alcançado. Mas o diagnóstico de um câncer de mama na esposa aportou novos elementos, entre eles uma atitude positiva e esperançosa do marido, estimulando-a na luta pela vida. O vínculo passa por transformações significativas nos laços de amor e desejo.

Janine Puget e Angela Piva comentam esse trabalho. Janine começa interrogando sobre como um analista faz para criar um espaço entre os sujeitos quando o que se apresenta é a dificuldade de fazer algo entre eles. Sem desprezar os determinismos causais, a autora aponta para um presente que precisa ser construído. Um casal ou uma família precisam ir sendo criados através de espaços de intercâmbio, sejam eles sexuais, de diálogo ou de fazer algo juntos - trabalho vinculante que faz parte do cotidiano e não é uma aquisição definitiva. Angela Piva, por sua vez, salienta a complexidade da equação entre sexualidade e conjugalidade, desejo e amor, somando-se a isso a passagem do tempo e os efeitos do envelhecimento. Quais seriam os vértices possíveis de abordagem à clínica da inibição sexual desde uma perspectiva vincular? Um desses vértices seria a trama fantasmática do casal, em que alianças e pactos inconscientes sustentam funcionamentos repetitivos, cabendo falar em inibição vincular do desejo sexual. Outro vértice poderia ser a evitação do desencontro inerente a todo encontro sexual. A busca de fusão narcísica, inevitavelmente, confronta-se com a presença real do outro em sua diferença radical, não passível de redução a objeto interno. A clínica de casais, portanto, deve promover um espaço vincular onde o paradoxo da convivência entre narcisismo e alteridade sempre se apresenta.

O capítulo seguinte, escrito por Maria de Lurdes Zemel, expõe o problema da drogadição na família, contexto em que o trabalho em equipe (psiquiatra, terapeuta individual e terapeuta familiar), além de não isolar o indivíduo usuário na posição de paciente, amplia a dinâmica de entendimento e atendimento à família. A autora ilustra os desafios dessa clínica de difícil abordagem, em que o ato costuma substituir o pensamento, relatando uma situação de quebra do setting vincular: o filho drogadito vem sozinho à sessão, apesar da combinação de haver no mínimo duas pessoas da família. A terapeuta questiona-se sobre a urgência em tratar e curar, atitude potencialmente presente nos que trabalham com esses pacientes, e faz referência a uma megalomania dos terapeutas de toxicômanos.

Isabel Khan Marin, debatedora do artigo, aborda o que chamou de transgressão consentida da terapeuta e interroga se ela teria sido seduzida, contratransferencialmente, por uma família com funcionamento perverso, ou se teria ocupado o lugar transferenciai de mãe devotada dos primordios, colocando-se a serviço de uma restituição narcísica. Sua sugestão é que o analista de famílias não substitua os papéis parentais nem o lugar do analista individual, por mais que o desamparo vivido nessas condições convoque a isso.

O livro termina com o desafio maior na clínica vincular: a violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Simone da Mota Kubiak fala de sua experiência numa instituição pública que engloba uma rede transdisciplinar de suporte e enfrentamento à clínica da violência sexual. A abordagem, tanto em atendimentos individualizados quanto em grupo, em consonância com medidas protetivas, favorece a expressão do impensável, indizível e inconfessável contido nessas vivências intrafamiliares. As estratégias de intervenção visam o desenvolvimento emocional da criança e do adolescente, e também a assistência à família como parte da vulnerabilidade, a fim de interromper o ciclo da violência. A reconstrução da história familiar não restrita à violência vivida amplia a perspectiva terapêutica. O relato do atendimento de uma criança e sua família impacta pela brutalidade dos fatos.

Eliana Kawata, em seu comentário, ressalta a tendência ao segredo na situação de abuso sexual intrafamiliar e a transmissão dos não ditos traumáticos transgeracionalmente. O horror ao incesto costuma se expressar na dificuldade em dar credibilidade à palavra da vítima, muitas vezes validada por um terceiro, o que promove abertura à intervenção da lei. A justiça restaurativa surge como um espaço de fala e escuta, tanto das vítimas quanto dos familiares, os quais participam em conjunto e ativamente na busca de compreensão e resolução dos problemas relativos ao ato criminal. De forma compartilhada e buscando o reconhecimento da responsabilidade de cada um, todos os indivíduos envolvidos têm a oportunidade de nomear e reconhecer a violência como real, condição fundamental para o processo de reparação. Esse novo paradigma de justiça afasta-se da criminalização punitiva e da dicotomia vítima-agressor, em direção ao trabalho interdisciplinar e interinstitucional.

A segunda comentadora, Maria Inês Fernandes, parte da ideia de uma clínica psicanalítica da exclusão, que demanda transformações em nossas referências clínicas clássicas a fim de atender situações que se apresentam em estado bruto, com inscrições inacabadas, não simbolizadas. A condição de negatividade presente nessas estruturas, que negam a diferença geracional, e nas quais não se construiu o vínculo de afiliação, tende a desalojar os profissionais de sua posição e a deixá-los sem recursos objetivos e psíquicos de acolhimento a esses sujeitos submetidos à desumanização.

Ao finalizar o livro, penso que as várias mãos que o construíram tocaram em diversos e relevantes temas da clínica vincular, alcançando seu intuito de disseminar a psicanálise de casal e família. Sendo um campo relativamente novo, ainda enfrenta resistências nos que trabalham com a técnica clássica, voltada ao paciente individual e ao intrapsíquico. Além de situar o leitor na história dessa práxis especialmente complexa e desafiadora, esta obra oferece uma diversidade de perspectivas teórico-clínicas através da enriquecedora interlocução entre autores e comentaristas. Recomendo sua leitura como um interessante e agradável contato com a psicanálise da vincularidade.

 

 

Correspondência:
Cynara Cezar Kopittke
Rua Mariante, 288/1304
90430-180 Porto Alegre, RS
cynarack@gmail.com

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