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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020

 

RESENHAS

 

Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia

 

 

Ester Malque Litvin

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)

Correspondência

 

 

Autor: René Roussillon
Tradutor: Paulo Sérgio de Souza Jr. Editora: Blucher, 2019, 314 p.
Resenhado por: Ester Malque Litvin

 

 

René Roussillon é um dos psicanalistas franceses mais difundidos na atualidade. Com uma linguagem própria e original, ocupa um lugar de destaque na psicanálise contemporânea, articulando a metapsicologia freudiana e a pós-freudiana, retomando-as e dialogando com seus conceitos, dos quais faz uma apreensão criativa, principalmente de Winnicott.

Neste seu mais novo livro traduzido para o português, ele faz um recorrido detalhado, denso e crítico da história dos conceitos psicanalíticos, aprofundando-os e propondo novos. Ao longo de 12 capítulos, vai levando o leitor para uma abertura e transformação do dispositivo psicanalítico, a fim de que este seja utilizado como transformador e subjetivador em situações e locais antes não pensados.

O autor tem se dedicado a compreender perturbações psíquicas que envolvem traumas precoces, agonias primitivas, defesas radicais, falhas graves e incapacitantes na constituição psíquica, especialmente na simbolização primária e na apropriação subjetiva. Os elementos cindidos e não simbolizados retornam continuamente e aparecem "fora" do psiquismo, manifestando-se nas patologias psicossomáticas e do comportamento. A essas patologias graves do narcisismo, Roussillon chama de sofrimentos narcísico-identitários, patologias da sobrevivência ou situações-limite e extremas da subjetividade.

Para as situações-limite, não alcançadas pela psicanálise padrão, em que esta parece fracassar, no próprio método psicanalítico, o autor forjou uma metodologia específica com ajustes do enquadre, inovando a técnica de cuidado, tornando-a mais flexível.

Este livro é destinado a todos os clínicos que têm como referência o pensamento psicanalítico, sem necessariamente pertencer a uma sociedade psicanalítica. A clínica que esses profissionais exercem, diz Roussillon, não é outra psicanálise. A sua prática utiliza o face a face ou o lado a lado, de acordo com as necessidades do encontro clínico. Desenvolve-se no registro público, em grupo, com famílias, em instituições. Mas vem encontrando dificuldade em ter seu valor reconhecido.

Ao mesmo tempo, a grande diversidade das práticas clínicas atuais torna urgente interrogar-se sobre sua unidade, tanto para defender seu rigor e eficácia, no contexto social atual da psicanálise, quanto para fazer valer o bem fundado de seus modelos. É a tal tarefa que Roussillon se dedica neste manual: definir e elaborar uma teoria geral das práticas clínicas. Propõe, então, um itinerário que consiste em extrair da psicanálise standard as formas matriciais, genéricas, dos conceitos essenciais do pensamento clínico, e destacar aquilo que é específico de dado dispositivo que pode ser generalizado para todos os outros. Ou seja, construir uma metateoria da prática clínica.

Assim, revisa o método associativo e sua polimorfia; a transferência e suas constelações; as funções do dispositivo clínico e seus arranjos de acordo com a capacidade de elaboração dos sujeitos; a escuta "polifónica" das necessidades manifestadas durante o trabalho terapêutico; e as formas de intervenção através do jogo (brincar). Por fim, aborda a atividade de pesquisa, inerente à prática clínica.

Roussillon procura mostrar a fecundidade das interações entre a prática psicanalítica standard e as diversas práticas clínicas, em outros campos de cuidado, que concernem, com frequência, às problemáticas narcísico-identitárias. Propõe-se a pensar os processos de simbolização e de apropriação subjetiva, estreitamente ligados à associatividade do método analítico.

Ressalta, na psicanálise contemporânea, a passagem do modelo primeiro, de tornar consciente o inconsciente, para um segundo modelo, em que o sentido não está sempre "já lá" armazenado no inconsciente do sujeito, mas deve ser produzido no processo analítico. A interpretação, então, cede lugar a um trabalho de construção de sentido.

O trabalho terapêutico tem de ser efetuado, muitas vezes, sem demanda do sujeito - responder quando não há pedido explícito pode configurar-se como abuso, mas não responder é da ordem da omissão de socorro, observa Roussillon. Em certas situações extramuros (moradores de rua, jovens da periferia), trata-se primeiramente de cativar o contato, indo até os lugares onde se encontram os sujeitos em dificuldade, ficando impossível estabelecer um enquadre fixo.

Os dispositivos clínicos devem assegurar três funções ou tempos do processo de metabolização da experiência subjetiva: função fórica (continência), função semaforizante (transformação em signos) e função metaforizante (engendramento de sentido). Então, "antes de simbolizar a simbolização, antes de desenvolver sua função metaforizante, é preciso que o espaço clínico aceite reconhecer-se, mais modestamente, como um espaço semaforizante, ... produtor de signos, ... potencialmente significante" (p. 120).

A compulsão à repetição é compreendida como compulsão à integração de uma experiência subjetiva nunca apropriada nem completamente simbolizada, que conserva um valor traumático e busca ser integrada.

Uma questão cara ao autor - e que, penso, é uma das razões deste livro - é a proposição de dispositivos voltados às necessidades da clínica, principalmente a dos quadros narcísico-identitários. Ele faz uma série de proposições para uma teoria geral dos dispositivos clínicos, útil para bricoler um dispositivo "sob medida" para cada encontro clínico, que considere a singularidade do sujeito, seja um atrator da transferência da realidade psíquica em sofrimento de apropriação subjetiva e proporcione a segurança de uma escuta sem julgamento de valores, empática e benevolente.

O encontro clínico vai acontecer no entremeio entre os níveis de simbolização primária e secundária. À medida que a simbolização secundária se complexifica e a simbolização primária é elaborada, isso vai dando lugar a uma simbolização terciária, "transicional", fazendo com que o sujeito não fique mais dilacerado entre dois níveis de representação inconciliáveis.

Roussillon reflete sobre as dificuldades clínicas específicas das patologias narcísico-identitárias e de suas estratégias de sobrevivência psíquica. Para tanto, utiliza um conceito proposto por Winnicott, necessidade do eu - "o que é necessário à psique para manter-se e produzir o trabalho de integração que lhe cabe" (p. 200).

O sofrimento psicológico ou trauma psíquico advém do não reconhecimento ou da satisfação insuficiente das necessidades do eu, pelo ambiente, em dado momento precoce da história do sujeito, com consequente paralisação do trabalho de integração da experiência subjetiva, que implica necessariamente "outro sujeito".

Em cada etapa do processo de simbolização e de integração subjetiva, incidem necessidades quantitativas (para-excitação/investimento) e qualitativas (categorização eu/outro, fora/dentro, corpo/psique, confirmação ou desqualificação dos objetos).

Roussillon ainda ressalta a importância das primeiras trocas sensoriais entre mãe e bebê - harmonização estésica ou mimo-gesto-postural, ou função de duplo estésico do Outro, que qualifica e reconhece a experiência para o desenvolvimento da capacidade do sujeito de sentir e sentir-se.

No encontro clínico, o que se oferece ao sujeito é primeiramente a possibilidade de não estar mais sozinho. O compartilhar da experiência subjetiva age ali onde o sujeito foi enxotado do espaço simbólico da condição humana, com a impressão de que a experiência psíquica não é partilhável. O clínico é uma "testemunha" empática, que representa potencialmente um duplo para o sujeito, e que qualifica, nomeia e constrói um relato de seu estado interno.

Roussillon evoca o paradoxo da simbolização pensada a partir da ausência. Para solucionar esse paradoxo, propõe considerar a simbolização a partir da presença do objeto. Pois os processos de simbolização devem primeiro ser partilhados, para depois serem integrados e apropriados pelo sujeito. Quando o objeto não reconhece o gesto do bebê, ele deixa a marca dessa ausência.

O conceito de Meio Maleável talvez seja uma das principais contribuições deste manual, justamente por ainda ser pouco conhecido entre nós. Esse conceito, de M. Milner, é renovado e expandido por Roussillon. Caracteriza-se por um modo de relação e de comunicação primitivos com o objeto primeiro, representando o objeto transicional do processo de simbolização e as condições do ambiente facilitador desse processo. Para que haja introjeção das informações, é indispensável a transformação dos dados brutos da experiência em representações utilizáveis pelo eu. Os objetos Meio Maleável são objetos para simbolizar.

O autor utiliza esse conceito para discorrer sobre o que o convoca nesta obra: o tipo de entorno que os clínicos podem propor, em analogia com o ambiente primeiro adequado para o desenvolvimento dos potenciais do bebê, aquele que é aguardado e procurado, preconcebido, na origem do sujeito. Portanto, o Meio Maleável deve ser: apreensível facilmente e sem risco (propriedade sine qua non), consistente, palpável (presença afetiva), incondicional e imediatamente disponível, receptivo, fiel (conserva a forma que lhe foi dada), constante, previsível, paciente (ritmo do sujeito, e não do objeto), transformável (não tem forma própria), resistente (não se desgasta com o uso), de extrema sensibilidade (aceita inscrições facilmente), indestrutível, despedaçável sem perder as qualidades do todo, animável (atribuição de vida através da fantasia).

Uma vez que a transferência é sempre tanto mais violenta quantas forem as problemáticas narcísico-identitárias envolvidas, Roussillon sugere a utilização de um objeto mediador, representante mas diferente do clínico, com propriedades Meio Maleável que se somam à palavra.

A escolha do meio deve corresponder aos sistemas percepto-sensório-motores (tátil, visual, olfativo) prevalentes do sujeito; deve induzir ou acolher uma transferência específica das qualidades sensório-motoras da experiência subjetiva que não foi integrada e que o sujeito está em condições de reatua-lizar. "Não se reatualiza ... a doçura de um seio num objeto pontiagudo ou cortante" (p. 237), diz Roussillon. O squiggle play de Winnicott é o modelo desse processo.

A maneira como o sujeito utiliza o Meio Maleável informa sobre a história da relação com o objeto primeiro e como este encarnou a função simbolizante.

Roussillon introduz o modelo do jogo (play), que, me parece, constitui um dos principais aportes dele na remodelagem dos paradigmas da psicanálise contemporânea. Esse modelo seria alternativo ou complementar ao modelo do sonho (realização de desejo), nas conjunturas clínicas que não podem funcionar conforme o princípio de prazer porque estão em uma lógica de "sobrevivência", não tolerando a ausência do objeto e a suspensão da motricidade e da percepção, exigidas no modelo do sonho.

O paradigma do jogo permite aportar prazer onde a experiência primeira fracassou em produzi-lo, e incluir o "outro sujeito". Nesses casos, a especificidade do trabalho analítico consiste em encontrar os traços do jogo (play) "potencial" - o qual historicamente não pôde acontecer nos vínculos da criança (que os pacientes de qualquer idade foram) com seu ambiente - e criar as condições para regenerá-lo, para então desenvolver suas potencialidades simbolizantes. É necessária uma metapsicologia da presença, do encontro entre dois sujeitos, do "entre-eu", da repercussão das respostas do analista ao investimento do paciente. Ou ainda uma metapsicologia da dialética presença/ausência, isto é, os efeitos da presença sobre a elaboração da ausência e da ausência sobre a presença. Pois o jogo só se relança se é jogo a dois - portanto, somente se o analista reconhece, aceita e partilha o jogo potencial; se admite a parte histórica dos objetos com os quais o sujeito se constituiu e procede a um trabalho de reconstrução do que não permitiu historicamente que esses potenciais se desenvolvessem.

O modelo do jogo se baseia também na reatualização, no tratamento, de um visto ou escutado, numa época precedente ao aparecimento da linguagem verbal, que não foi integrado na subjetividade. Roussillon afirma, então, que os sujeitos em sofrimento narcísico-identitário vão utilizar formas de expressão paradoxais, não verbais, corporais, sensório-motoras, mimo-gesto-posturais, para tentar fazer reconhecer as experiências precoces de encontros insatisfatórios ou de não encontro com o objeto.

Para o autor, a evolução da psicopatologia contemporânea exige conceitualizações que considerem as formas primárias de simbolização para pensar a importância do sensorial, do corpo e da motricidade na clínica. Esse modelo do jogo seria outra via régia da abordagem psicanalítica, para pensar o sujeito no "entre-jogo" do encontro clínico. Aqui Roussillon "joga" com a polissemia do termo jogo: entre-jogo - entre-jeux (jeux = jogo, homófono de je = eu).

Assim, a atividade livre espontânea do bebê de pegar e largar (E. Pikler) é a primeira forma do jogo simbolizante e o próprio modelo da associação livre. O brincar é, ao mesmo tempo, experiência para simbolizar e por simbolizar.

Roussillon questiona se a prática clínica pode se conceber sem a perspectiva de pesquisa, pois há naquela uma parcela que recapitula o conhecido e outra que explora o desconhecido. A pesquisa sobre as práticas clínicas e a partir das pesquisas clínicas é, para o autor, incontornável, persuadido de que ela é até, em parte, uma das condições de sobrevivência da prática clínica, que cada vez mais necessitará ser formalizada.

Sua abordagem das interfaces deve-se muito ao fato de que, além de psicanalista, ele foi, por mais de 40 anos, professor universitário. Suas pesquisas exploram processos pouco tratados segundo o modelo psicanalítico clássico. Isso o conduz, com todo o rigor metodológico, a justificar, na própria pesquisa, um posicionamento propriamente psicanalítico, em articulação com elementos vindos de outros saberes científicos, como as neurociências e a psicologia do desenvolvimento da primeira infância. Para ele, o método constrói seu objeto específico e, ao mesmo tempo, o próprio objeto transforma o método.

Roussillon observa que foi essa interação entre objeto e método que o levou a escrever este trabalho. Pois foi justamente o aprendizado, a partir das transposições e dos ajustes necessários para a compreensão de novas problemáticas clínicas, que deu sentido ao seu percurso.

 

 

Correspondência:
Ester Malque Litvin
Rua Ramiro Barcelos, 1793/704
90035-006 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 99810-0081
ester23litvin@gmail.com

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