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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020
RESENHAS
Adriana Meyer GradinI; Camila FlaboreaII; Carla Braz MetznerIII
IDoutoranda em psicologia clínica, núcleo de psicanálise, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre no mesmo núcleo
IIMestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
IIIMestranda em psicologia clínica, núcleo de psicanálise, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Autor: Decio Gurfinkel
Editora: Blucher, 2017, 567 p.
Resenhado por: Adriana Meyer Gradin, Camila Flaborea e Carla Braz Metzner
Relações de objeto, de Decio Gurfinkel, fruto de seu pós-doutorado, pode parecer uma leitura desafiadora a princípio, sobretudo pela magnitude da proposta: percorrer uma trilha rigorosa sobre a origem e o desenvolvimento do pensamento das relações de objeto. Munido de uma escrita clara e elegante, o autor atravessa os percalços inerentes à temática proposta com tenacidade e maestria. O resultado da perseverança é uma leitura instigante, que conduz o leitor a se aproximar e tomar para si as questões fundamentais levantadas ao longo do texto.
Afinado com uma história da psicanálise ancorada na dialética entre continuidade e transformação, Gurfinkel constrói um estudo minucioso da passagem do modelo pulsional ao relacional. Articulando autores clássicos e contemporâneos da psicanálise e fazendo-os debater de modo criativo, ele nos apresenta novas reflexões e renuncia a qualquer pretensão de estabelecer dogmas e verdades fechadas, propondo uma abordagem do pensamento das relações de objeto dentro de um complexo processo de desenvolvimento histórico.
Gurfinkel adota como inspiração a conhecida obra de Greenberg e Mitchel sobre as relações de objeto. Partindo de tal princípio metodológico, esboça uma arquitetura elogiável e engenhosa em seu livro. No início, são abordadas questões sobre a história e a epistemologia da psicanálise, com ênfase especial no modelo originário do pensamento freudiano, fundado na pulsão. Num segundo momento, o autor se dedica aos ensinamentos de Karl Abraham e Sándor Ferenczi, que denomina de fundações do pensamento das relações de objeto. Após discorrer sobre esses alicerces, constrói a ideia de edifício do modelo relacionai com os tijolos teóricos de Michael Balint, Fairbairn e Donald Winnicott.
Gurfinkel presenteia o leitor com ideias originais, entre elas a de que já havia em Freud embriões das relações de objeto, embora seu material teórico-clínico estivesse subordinado ao modelo pulsional hegemônico à época. Afirma ainda que a teoria kleiniana funciona como uma ponte entre o modelo pulsional e o relacional, deixando de incluí-la na linhagem do pensamento das relações de objeto, pois, apesar de Melanie Klein ter teorizado sobre tais relações, ela teria trabalhado predominantemente segundo princípios freudianos baseados na pulsionalidade, o que teria impedido o "salto em direção ao novo modelo" (p. 116).
O autor percorre um consistente caminho exploratório dos escritos de Abraham e de Ferenczi, as fundações do seu edifício teórico, e convida o leitor a refletir sobre a influência desses autores na construção do pensamento sobre as relações de objeto. Teria sido Abraham um precursor do modelo de pensamento psicanalítico intersubjetivo? Ferenczi poderia figurar como um pioneiro do modelo relacional?
Para o autor, a obra de Abraham é representante do modelo pulsional, em face do desenvolvimento de uma teoria da libido em conexão com a questão do caráter anal, oral e genital. Gurfinkel diz que esses estudos se mostraram relevantes na teorização das organizações pré-genitais da libido, e que houve uma coautoria entre Abraham e Freud na concepção de organização pré-genital oral. Por outro lado, deixa claro que há em tais escritos certas questões intersubjetivas expressivas, como a necessidade da mãe de manejar a satisfação e a frustração do bebê e o risco da interferência da psicopatologia da mãe na formação do caráter do filho.
Na teoria de Abraham há outro ponto significativo destacado por Gurfinkel: ele nos ensina que, na passagem pelo erotismo anal, a criança começa a substituir satisfações autoeróticas e narcísicas pela ideia de agradar o adulto, ou seja, "por uma satisfação advinda da relação com o outro" (p. 136), e que há uma diferença fundamental entre acatar as expectativas do adulto quanto à limpeza por amor ou por medo. Para Gurfinkel, essa noção é uma valiosa semente do pensamento das relações de objeto, visto que a analidade assim concebida traz à cena um plano intersubjetivo, além do aspecto pulsional; abrange um trânsito do sujeito entre as matrizes do amor e do ódio, assim como a passagem do autoerotismo para o investimento nas relações objetais.
Outro indício da importância da obra de Abraham para a ideia de inter-subjetividade, segundo Gurfinkel, decorre do fato de ele ter tomado as trocas corporais com o objeto (absorção, expulsão e retenção) como protótipos para o psíquico, o que teria inspirado Klein a teorizar sobre os objetos parciais.
Quanto à condição de Sándor Ferenczi como pioneiro das relações de objeto, Gurfinkel ressalta que sua teoria nos desloca de um terreno alicerçado no desenvolvimento da libido para um novo campo do desenvolvimento do eu, já que o psicanalista húngaro trata a introjeção como uma ampliação dos limites egoicos pela inclusão de objetos externos e fala de uma sexualidade para além do pulsional, atravessada pela incidência daquilo que vem de fora. Ademais, sua noção de amor objetal passivo em Thalassa seria, para Balint, o grande marco de origem da psicanálise das relações de objeto, visto que esse conceito acentua a relação da criança com o seu entorno.
Ferenczi inaugura uma nova dimensão no pensamento psicanalítico, fundada na necessidade de adaptação da família à criança e na ideia de que os cuidados dispensados ao infans em tempos precoces produzem efeitos na constituição do psiquismo infantil, de tal forma que traumas vivenciados nesse período podem ocasionar marcas psíquicas indeléveis. Em síntese perfeita, Gurfinkel diz que "os cuidados que a família nos proporciona nos imunizam contra Tânatos" (p. 127).
O autor relembra-nos também da ideia ferencziana de simetria entre a situação analítica e a situação traumática envolvendo a criança e o adulto, e do princípio da economia do sofrimento. Sobre a técnica, Ferenczi elevou a outro patamar a qualidade do relacionamento analítico para o desfecho da análise, ao criticar a hipocrisia profissional e postular uma atitude mais humilde do analista no tratamento de sujeitos precocemente traumatizados. Gurfinkel também aborda as severas críticas de Freud ao seu discípulo, o qual é retratado como um otimista e um pensador inovador, que tentou construir um pensamento teórico e clínico sobre adoecimentos não neuróticos, mas que teve de pagar um preço por isso.
Das fundações do seu edifício, fica realçado que Abraham e Ferenczi partem do marco fundamental fincado por Freud e criam novas rotas teóricas rumo ao modelo relacional.
No primeiro pavimento do edifício, Gurfinkel nos apresenta Michael Balint a partir de dois eixos: como interpretador-curador dos impasses Freud-Ferenczi e como produtor de uma obra original, que emerge de uma trajetória singular. O livro fundamenta a retomada do lugar da regressão no processo analítico, a começar pelo temor que Freud nutria à proposta terapêutica ferencziana. Balint cria, assim, uma possibilidade de solução da controvérsia, dividindo a regressão em dois tipos: a maligna, insaciável e voraz, que realimenta demandas incessantes de gratificação do paciente e não possibilita a autonomia do ego após o processo regressivo, e a benigna, que tem por fim o reconhecimento da falha básica e favorece um novo começo após a regressão. Outra faceta de Balint abordada no livro é seu trabalho inventivo com médicos. Os "grupos Balint" tratavam casos da clínica médica por meio de pressupostos psicanalíticos, em especial a contratransferência. Gurfinkel retrata Balint como um herdeiro de Ferenczi e um pensador de Freud, mas que apresenta conceitos próprios e relevantes, como as noções de falha básica, amor primário, novo começo e analista não intrusivo.
Em seguida, o livro trata de um nome, em geral, desconhecido no Brasil: Fairbairn. Analista original e extremamente controverso, ele se opõe a Freud, reordenando sua teoria da libido. Fairbairn propõe uma nova teoria do desenvolvimento, uma reconfiguração da psicopatologia psicanalítica e um novo modelo tópico de aparelho psíquico. Sua postulação clássica "O propósito final da libido não é o prazer, mas sim o objeto" apoia-se, entre outras coisas, na ideia de que o autoerotismo não é uma manifestação libidinal primária. O primário, para o autor, é a busca de relação.
Desvelando as consequências dessa proposta teórica, Gurfinkel levanta questões interessantes. Como assimilar que o complexo de castração não está no centro da problemática neurótica? Como concordar que as zonas erógenas são meios para abrir caminho em direção ao objeto (e não meios de obter prazer) e que são, em muitos casos, o resultado de um processo de conversão diante de problemas na relação objetal? Sem uma rejeição simplificadora dessas ideias, Gurfinkel destaca seu valor na clínica das adições e no estudo das manifestações esquizoides, tanto em casos de neurose como em casos de psicose. Fairbairn recebe ainda o crédito pela contribuição na criação do termo posição esquizoparanoide de Klein, com quem manteve intenso diálogo, embora nem sempre de concordância.
Em meio às críticas cabíveis ao radicalismo do autor, Gurfinkel, de maneira sensível e sensata, nos deixa a possibilidade de (re)conhecer em Fairbairn um pensador importante no campo das relações objetais, com grandes méritos e influências posteriores. Se para Fairbairn "na carne do eu encontra-se sempre a sombra do objeto" (p. 322), para Gurfinkel é chegada a hora de esse autor e seus méritos - e não só seus extremismos - virem à luz.
Nas páginas dedicadas a Winnicott, encontramos uma cartografia de sua trajetória e de seu legado. Esse percurso se inicia com uma questão: "Como preservar e revitalizar o pensamento de Winnicott de modo a não perder a sua força, o seu frescor, a sua originalidade e o 'espaço potencial' que ele instaurou no campo psicanalítico?" (p. 358). Em busca da resposta, Gurfinkel ressalta que a teoria da transicionalidade causou uma grande reordenação no campo psicanalítico e que é uma poderosa ferramenta para articular o intrapsíquico e o intersubjetivo.
De acordo com Gurfinkel, Winnicott revela um olhar que se expande e vai além do âmbito pulsional para incluir as experiências das relações objetais mais precoces do indivíduo, a exemplo do holding, do handling e da apresentação de objetos, funções essenciais que requerem a participação ativa de outro ser humano. Ele constrói um rico trânsito teórico entre dois campos: a constituição do self e a relação com os outros. Somos convidados a acompanhar Winnicott em sua trilha na pediatria e na psiquiatria infantil, passando por sua aproximação e seu posterior afastamento do grupo kleiniano.
O livro nos mostra sua concepção da terceira área, que confere um status teórico e epistemológico ao que está entre e abarca o desafio de sustentar o paradoxo proposto por Winnicott como a única via possível para o que ele considerava realmente viver. O viver criativo só existe se houver a possibilidade de nos sustentarmos entre o princípio da realidade e a onipotência, entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, entre o respeito ao desenvolvimento do self e a possibilidade de estar com o outro, em sua radical alteridade. Gurfinkel entende que esse paradoxo regeu também a vida de Winnicott: era um solitário na essência, mas ao mesmo tempo buscava se comunicar com grandes públicos; viveu entre o reconhecimento da necessidade de uma filiação e sua recusa.
Por fim, num trecho cheio de poesia intitulado "O neto de Freud", somos apresentados a uma fábula do autor: Winnicott seria neto de Freud, aquele que compreendera no fort-da a importância da simbolização da presença e ausência. O fort-da teria sido, pergunta Gurfinkel, uma premonição de Freud sobre os objetos transicionais? Winnicott, ao jogar o carretel na fábula, estaria colocando a teoria freudiana longe e depois aproximando-a, para então criar uma ponte, em um movimento próprio e inovador, concebendo a transicionalidade? Não saímos desse "andar" do edifício com a resposta, mas com a certeza de que Winnicott está profundamente ligado à tradição psicanalítica e que, com sua criação, amplia as bases teóricas fincadas por Freud, dando um lugar eminente ao processo de simbolização que delimita a distância entre presença e ausência, eu e outro, passado e futuro, interno e externo, prazer e realidade. Na fábula de Gurfinkel, é como se, a partir do "novo objeto", a transicionalidade, pudéssemos reler a teoria freudiana, mas com outro olhar.
Na última parte do livro, dedicada a debates, o autor articula Freud e Ferenczi e aponta a teoria winnicottiana como um marco transformador - de uma teoria sobre o eu, partimos para uma teoria sobre o self -, o que gera consequências para o conceito de pulsão, para a posição do analista e para o sentido do processo analítico. Questões winnicottianas não usualmente ressaltadas, como a sexualidade, o inatismo e a solidão essencial, encontram espaço. Dessa conjunção deriva um diálogo com Bion, cujo pensamento se encadeia a Winnicott e a Ferenczi, a partir do seu modelo de funcionamento mental, entre o intrapsíquico e o intersubjetivo.
Na sequência, o autor traz para o diálogo Balint, Kohut, Green, McDougall e Bollas como representantes contemporâneos de um modelo misto. Ele conclui o debate e o brilhante livro falando da sua tentativa de situar o "idioma" pessoal de cada um dos autores, trazendo a lume suas diferenças enriquecedoras com o fim de manter um pensamento psicanalítico aberto para o porvir.
Gurfinkel deixa claro que não há voz uníssona entre os pensadores das relações de objeto, e que nos cabe a tarefa de receber tal legado e de analisar e elaborar seus desdobramentos no pensamento psicanalítico contemporâneo.
A finalização da leitura nos faz pensar que a estruturação do livro nos moldes de um edifício nada tem de aleatória: a proposta traz em seu cerne uma sobreposição de camadas. Acompanhamos a possibilidade de que o modelo relacional emerja das fundações, isto é, do modelo pulsional, mas ao fim do livro nos perguntamos se, de algum modo, as relações de objeto não teriam estado sempre lá, ainda que latentes - como se fossem grandes correntes de um mesmo rio no qual todos nos banhamos, que ora se misturam, ora devem ser vistas isoladamente.
Gurfinkel traz para o debate contemporâneo, de forma virtuosa, as principais ideias dos autores protagonistas desse tão rico edifício teórico, o que revela a natureza imprescindível do seu livro para quem quer se aprofundar no tema das relações de objeto. Uma obra indispensável.
Correspondência:
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