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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020
PANDEMIA
Notas sobre a clínica à distância, Klein, contratransferência e identificação projetiva1
Notes on remote consulting, Klein, countertransference and projective identification
Notas sobre la clínica a distancia, Klein, contratransferencia e identificación proyectiva
Notes sur la clinique à distance, Klein, le contre-transfert et l'identification projective
Elsa Vera Kunze Post Susemihl
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Partindo de um pequeno relato a respeito da experiência da autora com a migração do setting presencial para um settingonline durante a pandemia, algumas questões iniciais são colocadas como reflexão sobre o processo psicanalítico que se estabelece nessa nova modalidade. A seguir, são recolhidas várias passagens do livro Lectures on technique, de Melanie Klein, sobre contratransferência e identificação projetiva, enriquecidas também por contribuições de E. Spillius. Ao final são apresentadas e discutidas algumas vinhetas clínicas à luz do exposto anteriormente.
Palavras-chave: atendimento online, setting, contratransferência, identificação projetiva
ABSTRACT
Starting from a short account of the author's personal experience of changing from the face-to-face setting to an online setting during the pandemic, some initial questions are asked in order to think about the psychoanalytical process that is established in this new therapeutical way. Several passages from the book Lectures on Technique by Melanie Klein edited by J. Steiner (2017) about countertransference and projective identification are quoted, also enriched by contributions by E. Spillius. At the end, some clinical vignettes are presented and discussed, in light of the topics presented above.
Keywords: online therapy, setting, countertransference, projective identification
RESUMEN
A partir de un breve relato de la experiencia del autor a raíz del cambio de encuadre presencial para el encuadre online durante la pandemia, se plantean algunas preguntas iniciales, como la reflexión sobre el proceso establecido en esta nueva modalidad. A continuación, son referidos varios pasajes del libro Lectures on Techniques by Melanie Klein editado por J. Steiner (2017) que tratan sobre contratransferencia e identificación proyectiva, enriquecidas por contribuciones de E. Spillius, que servirán de base para finalizar con la presentación y discusión de algunas viñetas clínicas.
Palabras clave: atendimiento online, encuadre, contratransferencia, identificación proyectiva
RÉSUMÉ
À partir d'un bref compte rendu concernant l'expérience personnelle de l'auteur à propos de la migration du cadre en présence vers un cadre en ligne, pendant la pandémie, quelques questions initiales sont posées en guise de réflexion sur le processus mis en place dans cette nouvelle modalité. Ensuite, quelques passages du livre Lectures on Techniques by Melanie Klein édité par J. Steiner (2 017) sur le contre-transfert et l'identification projective sont collectés, enrichis également par des contributions d'E. Spillius. À la fin, quelques vignettes cliniques sont présentées et discutées, à la lumière de ce qui est exposé ci-dessus.
Mots-clés: service en ligne, cadre, contre-transfert, identification projective
Introdução: tempos de isolamento
A migração para o setting eletrônico no atendimento à distância levou exatos quatro dias, desde as primeiras conversas sobre uma eventual possibilidade até o encerramento da minha atividade presencial. Em geral, o encontro pela tela se inicia com expressões de alegria, um reencontro inesperado em meio a muitas apreensões que cercam esse isolamento. Que estranho, mas que bom que pelo menos por aqui podemos nos encontrar! Que bom que podemos estar juntos nestes tempos estranhos e ameaçadores! E, à maneira pessoal de cada um, agora se agrega um "Você está bem? Tudo bem com você?", que fala da preocupação amorosa com a analista, mas deixa explícito também que estamos vivendo tempos perigosos - e assim nos despedimos também, "Se cuide, fique em casa, até a próxima sessão...". Quebrou-se o ritual rotineiro e, de repente, vivemos mais concretamente o quanto nossa vida é por um fio.
A tela, esse espaço bidimensional que me abre para o mundo externo, é agora habitada também pelos meus pacientes. Logo me ressinto da falta do momento-espaço da passagem, da transição - o anúncio da chegada, abrir a porta, o cumprimento, a acomodação e o prosseguimento da sessão -, momentos plenos de impactos, sensações e apreensões. Por meio do aperto de uma tecla o outro se faz presente na tela, o ritual da transição se transformou em um ajuste de som e de câmera. Na despedida, novo estranhamento, a sensação de um corte abrupto, sem nenhum daqueles inúmeros hábitos do dia a dia que usamos para nos separar e a partir dos quais temos a experiência gradativa da separação.
E a conversa analítica se estabelece. Busquei enquadramentos, escolhi plataformas, me acostumei com o som metalizado do computador ou do celular. Não abri mão de ver, além de ouvir - com aqueles pacientes que usavam o divã, fomos buscando reproduzir algo análogo à cena no consultório, evitando o face a face. E assim fui introduzida aos diferentes ambientes habitados pelos pacientes, suas casas, salas e quartos, e pelos lugares inusitados que procuravam na busca de sigilo e privacidade, varanda, quartinhos, dispensas e estacionamentos.
Com o passar das semanas, tenho me acostumado a esse meu novo consultório, acompanhada e acompanhando de perto alguém que se encontra muito longe. Penso que pude me recobrar do susto e do trauma repentino de mudança e reencontrar, de certa forma, minha possibilidade de estar com alguém, agora por meio eletrônico. Mas às dúvidas iniciais se acrescentaram novas, e uma experiência foi se consolidando. É a respeito disso que gostaria de escrever.
Noto que sou frequentemente invadida por insatisfação e cansaço nos atendimentos. Eventualmente, também, por uma sensação de que a conversa vai se empobrecendo. Dou-me conta de que procuro pelos meios de comunicação dos quais dispunha no contato direto. Busco a gama de impressões que recebemos no contato direto, subliminares, pré-verbais, linguagem corporal, clima emocional do contato, o primeiro impacto do encontro - hoje penso que se trata de um verdadeiro banho de impressões sensoriais e sensações que vão sendo apreendidas e se acumulam inconscientemente e que a certo momento podem vir a se tornarem consciência de algo, de um sentido, uma ideia ou uma emoção. Toda essa riqueza que costumamos ter a nosso dispor e que aprendemos por longos períodos de experiência e treinamento psicanalítico a utilizar na nossa função analítica neste momento nos foi subtraída. Temos agora uma pequena tela a que toda aquela atenção foi reduzida. Nos primeiros momentos, via-me procurando no meu novo ambiente algo a mais que me ajudasse, talvez o objeto analítico, até que me dei conta de que só poderia encontrá-lo, com sorte, a partir daquilo que acontecia naquele pequeno retângulo reluzente diante de mim. A minha apreensão agora se dá por uma fresta e é a esta que aprendo a me adaptar e a auscultar, pois é por onde se sustenta um possível encontro com meu analisando. Penso que talvez o esforço e o cansaço se devam ao trabalho psíquico de reconstruir mentalmente uma relação tridimensional a partir da percepção bidimensional. Ao passar do tempo, essas reflexões se assentaram dentro de mim, e pude estar mais à vontade e menos cansada. Ao mesmo tempo, foi se impondo a certeza de que teremos um bom período de quarentena e que as privações, cuidados e incertezas vieram para ficar. E que essa nova psicanálise talvez também se torne algo que permanecerá, não sabemos ainda como.
Ainda que isolada profissionalmente, não posso dizer que fiquei desacompanhada. Inúmeras discussões, lives e webinários me fazem perceber que estamos compartilhando questões muito próximas ao redor do mundo e me ajudam a pensar sobre essa nova experiência. De grande valor também é a troca entre pares, especialmente um encontro semanal com um grupo de colegas que mantenho há muitos anos, e que também migrou para o meio eletrônico. Mais do que nunca esses espaços de troca, de compartilhamento de dúvidas e experiências e, claro, também dos nossos medos e esperanças têm me dado suporte e alento nessa travessia.
A discussão a respeito do atendimento online já ocupou esse nosso grupo anos atrás, e produzimos um artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, "Realidade virtual e setting: de costas para o futuro?" (Gordon et al., 2004), no qual fizemos um histórico do atendimento à distância até aquela data, levantamos algumas questões sobre setting e concluímos que a pressão por esse tipo de mudança de setting acompanha toda a transformação para um mundo digital e virtual, mudança que precisa ser considerada com cuidado pelos muitos aspectos relevantes ainda a serem mais bem investigados.
Trago aqui algumas reflexões que pude fazer a partir de toda essa nova situação, aproveitando-a também para talvez esclarecer um pouco mais velhas questões.
Questões teóricas
A grande questão colocada se dá em torno da possibilidade de um trabalho analítico à distância, inicialmente ainda uma questão bastante genérica e que agora, diante da necessidade dessa experiência, pode ser mais bem pensada. Não nos vimos com outra possibilidade a não ser migrar para um atendimento remoto, tendo em vista a ameaça concreta da sobrevivência e do contágio. Lembro aqui as palavras de S. Bolognini em um dos primeiros webinários da Associação Psicanalítica Internacional, quando comparou esse tipo de atendimento ao socorro prestado em hospital de campanha após uma catástrofe, ou seja, são as condições de trabalho das quais dispomos no momento, e ainda bem que as temos. Mas então segue a questão: que tipo de trabalho é esse que podemos oferecer? Estamos somente preservando o contato com o paciente e reafirmando a nossa presença e o vínculo? Ou será que conseguimos recriar algo, nesse novo meio, daquilo que entendemos essencial e invariante no trabalho analítico? E o que é isso e como pensar sobre isso? Seria a capacidade de simbolizar e sonhar? Seria a possibilidade de ter uma experiência emocional? Teremos condição de atenção flutuante e associação livre? Podemos viver um sonho compartilhado? Suportamos a dor e o desconhecido? Como se dá a função alfa à distância? A intuição, a reverie? A identificação projetiva, a contratransferência? A atuação e o enactment? Onde encontro o objeto psicanalítico?
Green (2005) propõe distinguir duas partes no setting analítico, referindo-se à matriz ativa, composta pelas associações livres e atenção flutuante e escuta, a neutralidade benevolente do analista, formando uma dupla na qual a análise está enraizada, e o estojo, constituído por frequência e duração de sessões, pagamento etc. Podemos incluir no estojo a modalidade de atendimento online. A matriz ativa é a joia contida no estojo, o que nos leva à questão se todos os elementos citados anteriormente, componentes da matriz ativa, têm possibilidade de se darem e serem preservados e contidos também no estojo composto pelo atendimento à distância.
As dúvidas vão abrindo espaço para reflexões. Enquanto isso me debruço sobre a leitura de Klein, Lectures on technique (2017), livro recentemente editado por J. Steiner. Pergunto-me: é possível detectar fenômenos de identificação projetiva online? E como se situa a contratransferência nesse meio?
Lembro-me do extenso debate a respeito da posição de Melanie Klein com relação à contratransferência e sua oposição à publicação do artigo de Heimann (1950/1995), que sugere ser esta uma ferramenta para o trabalho do analista. É sabido que Klein não concordava com essa publicação e que não estava de acordo com a concepção do uso da contratransferência como ferramenta de trabalho do analista.
Mas, além das controvérsias e da discussão a respeito das diferentes conceituações sobre fenômenos e processos psíquicos, encontrei nas Lectures e nos Seminars2 de Klein palavras bastante sensíveis e elucidativas e que podem ajudar a ampliar a observação do campo clínico e a delimitar diferentes processos psíquicos, tanto presencialmente quanto online.
Klein nos fala sobre a atitude psicanalítica e chama a atenção para o interjogo presente na relação analítica entre os processos transferenciais e contratransferenciais.
Vocês se lembram que na minha primeira lição mencionei algumas características da atitude psicanalítica. Desapego [detachment] em conjunto com responsividade; o desejo para descobrir a completa verdade e a capacidade de suportá-la, qualquer que seja. Sustentar essas atitudes exige que o analista tenha um verdadeiro respeito pelo seu trabalho com a mente ... Penso que todas essas características são condição para ser capaz de realizar uma completa exploração da situação transferencial e do inconsciente na sua constante interação. No entanto, dois outros aspectos da atitude do analista precisam ser mencionados, em particular a necessidade de uma mente imaginativa e a capacidade de flexibilidade e versatilidade. As fantasias do paciente aparecem na situação transferencial em tal variedade de expressões e através de tal circuito de rotas que exigem uma versatilidade e imaginação correspondente de parte do analista para segui-las. Porém, essa versatilidade e responsividade subjacente a um interesse real e humano no paciente são apenas parte de um fenômeno altamente importante e do qual depende muito do procedimento terapêutico, isto é a contratransferência. É impossível fazer justiça quanto à importância desse tema ao longo destas lições, mas sinto que gostaria de ao menos mencionar alguns aspectos da contratransferência, que tem um papel de tamanha importância na situação analítica. Ainda que em grau menor e mantida em equilíbrio através de vários fatores, o mesmo processo que subjaz à transferência também determina a contratransferência. A relação do analista com seus pacientes também é assim influenciada até um certo grau pelas relações objetais iniciais do mesmo. (2017, pp. 52-53)
Nota-se aqui, ainda em um momento anterior à controvérsia a respeito da contratransferência, que Klein parece não se inibir em usar esse nome e lhe dar a importância devida no interjogo que acontece na relação analítica, ainda que ressalte a importância de mantê-la em "um certo grau e manter o equilíbrio". Junto a isso também a importância dada à "mente imaginativa" do analista me parece bem interessante, e penso que nessa época pode ter sido uma grande abertura ouvir essas palavras. A seguir menciona a importância de o analista ter "imagos e identificações amistosas" que o capacitarão a compreender e tolerar uma diversidade de pessoas.
Entendo por imagos também todas suas relações objetais do passado e do presente, que se tornaram internalizadas e que acrescentam profundidade à riqueza dos seus [do analista] sentimentos e da sua resposta empática. Em outras palavras, experiências de vida e experiências na vida e um bom contato com todo o tipo de pessoas de uma forma usual e comum que tenham lhe acrescentado humanidade, senso de humor, desapego ... Penso que tudo isso tem um papel importante no trabalho do analista. Análise não pode se dar em uma atmosfera de laboratório. Como já sublinhei anteriormente na minha primeira lição, somente se o analista está totalmente vivo nos seus sentimentos isso será frutífero. Os pacientes podem representar para o analista seus filhos, irmãos, irmãs, pais ou outras repetições de relacionamentos do passado e ele também se identificar com eles. Somente por causa disso é que o analista é capaz de compreender e responder aos sentimentos transferenciais do paciente. Mas os pacientes não devem ter importância demais para o analista; este não deve ser dependente nem do paciente nem do sucesso do seu trabalho. Isto é, as imagos do analista não devem ter importância demais na sua mente e ele não deve ser influenciado pelos seus sentimentos. Então se torna capaz de fazer o melhor uso deles em benefício do paciente. (2017, p. 53)
Transcrevo essas palavras de Klein pela vivacidade que encontro nas suas ideias e por nos mostrarem um aspecto diferente daquele que conhecemos dos seus textos teóricos. Podemos imaginar uma analista muito presente emocionalmente, até quando adverte seus alunos-analistas que uma análise não se dá em um clima de laboratório, mas no calor das emoções com um analista "totalmente vivo". Podemos compreender a partir dessas palavras como a noção de contratransferência se configura para ela, pois a reação do analista sempre está conectada e tem suas raízes no mundo das suas relações objetais, quer sejam identificações necessárias para empaticamente alcançar o mundo do paciente, quer seja uma reação inconsciente exacerbada e exagerada levando à atuação. Penso que é nesse sentido que ela sublinha sempre o "grau e a medida" ou o "não se deixar levar pelos sentimentos". Trata-se de um processo, um interjogo inconsciente entre duas mentes, e cabe ao analista ter algum domínio sobre como isso acontece dentro dele.
Transferência e contratransferência: novamente aqui se dá o interjogo, no qual o inconsciente do analista segue de perto o inconsciente do paciente, até certo ponto. Porém, é precisamente nesse ponto, indicado pela faculdade crítica do analista, que a sua mente consciente toma a direção e previne intrusões que alterariam a direção e o progresso do trabalho. (2017, p. 54)
Claramente Klein ressalta aqui a importância de o analista usar sua consciência e sua faculdade crítica para refletir e dirigir o rumo do trabalho analítico.
Nos Seminars de 1958, encontramos Klein assumindo uma posição bem mais enfática a respeito da contratransferência, quando diz, por exemplo: "Nunca pensei que a contratransferência me ajudou a compreender melhor meu paciente, mas, posso colocar isso talvez dessa forma, achei que ela me ajudou sempre a me compreender melhor" (2017, p. 103); e "Por isso não consigo tomar como algo estabelecido que a contratransferência é um guia em direção à compreensão do paciente. Não consigo perceber a lógica nessa afirmação" (2017, p. 104).
Podemos supor que entre esses dois momentos houve um grande número de psicanalistas que, de uma forma ou de outra, aderiram ao uso do que se passou a chamar contratransferência, agora no sentido ampliado englobando também as reações e os sentimentos conscientes do analista para a compreensão do paciente. Klein parece nos querer alertar para não nos deixarmos levar por essa moda e, principalmente, que, mais do que observar as próprias reações, devemos observar o paciente para compreender o que se passa com ele. "Quero dizer que penso que tiro minhas conclusões a respeito do que acontece com o paciente a partir do seu material, de suas emoções, seus humores, e do que vejo no paciente, e não daquilo que ele evoca em mim" (2017, p. 104).
E então abre uma possibilidade:
Um caso particular no qual a contratransferência pode se tornar um fator de surgimento de muita ansiedade é quando existe uma forte identificação projetiva por parte do paciente. Aplica-se a pacientes muito enfermos. Sentimos então que eles estão pressionando para dentro da gente toda sua depressão, toda sua raiva, toda sua inveja, tudo o que eles têm. Ou, alternativamente, sentimos que eles estão retirando tudo o que podem de dentro da gente. Agora, tudo isso, é claro, faz parte da situação analítica, e enquanto podemos ter sentimentos a respeito disso, realmente penso que se entendemos o que está se passando, as coisas se esclarecem. Ficamos conscientes de que o paciente está colocando algo em mim e depende de mim, se vou deixá-lo fazer isso em mim. Quero dizer, existem aqui duas pessoas, ele pressiona algo para dentro de mim, mas eu não vou deixar algo ser pressionado para dentro de mim. Prefiro considerar o que ele está fazendo no momento que está pressionando. Pode soar muito perfeccionista, não gosto de ter que falar nestes termos, pois é necessário longa experiência, paciência e até tolerância para chegar a esse ponto, e ninguém chega aqui de uma vez. Mas é uma questão de princípio, e é a respeito desse princípio que estou respondendo. (2017, pp. 104-105)
Klein segue falando da necessidade de uma grande dose de tolerância e empatia em relação ao paciente para fazer um bom trabalho psicanalítico. E sublinha a importância de o analista ter um desejo de investigar a mente do paciente. Comenta que depende do próprio sentimento de estabilidade interna do analista se ele vai ou não se deixar provocar pelo paciente, por exemplo, se, no caso de o paciente querer roubar ou já estar roubando o analista, este já ter a sensação de que foi roubado de todos os seus pensamentos, ou não. Estamos falando aqui de identificação projetiva e de como o analista pode ou não responder a ela. Ou seja, a dificuldade de tratar pacientes psicóticos está relacionada com as suas violentas identificações projetivas para dentro do analista e com a necessidade de o analista poder se proteger do sentimento de ser invadido por elas (2017, pp. 113-114).
É interessante que Klein apresenta nesse contexto também uma ideia de identificação introjetiva, quando menciona que o analista, através do seu interesse no paciente e no trabalho com sua mente, se torna capaz de se projetar, até certo ponto, para dentro do paciente a fim de descobrir o que existe dentro dele. Faz logo a ressalva de que tal processo só é útil quando é feito em certa medida, "até certo ponto", além do qual se transformaria numa projeção voraz em "uma mistura quando o analista já não é mais capaz de distinguir o que está se dando dentro do paciente e o que está se dando dentro de si", o que a seu ver arruinaria a análise (2017, p. 114).
Ao falar de identificação projetiva e contratransferência, Klein nos evidencia como esses fenômenos e conceitos são interpenetráveis e têm suas bordas borradas. Ela ainda nos deixa uma indicação quando diz que "estamos novamente tocando o grau e a natureza da identificação projetiva, o que é uma grande questão, aberta para investigações. O ponto é a que grau e por que motivo a identificação projetiva é usada, isso é extremamente importante" (2017, p. 115).
Spillius (2007) apresenta sua pesquisa da obra e das notas de Klein nos seus arquivos do Melanie Klein Trust a respeito do conceito de identificação projetiva, citando alguns desdobramentos do seu uso na clínica psicanalítica por analistas contemporâneos. Destaco aqui que Spillius é da opinião de que Klein não fazia grande distinção entre projeção e identificação projetiva, considerando ambas como duas etapas de um processo, e que ela também sublinhava que tanto partes boas quanto más podem ser projetadas. Lembra ainda que Klein não concordava com a ideia de que a contratransferência deveria ser utilizada como uma fonte de informação útil sobre o paciente, seguindo Freud aqui e concebendo-a como um sinal da psicopatologia no analista (2007, pp. 109-110). Transcrevo as seguintes palavras interessantes do arquivo de Klein citadas por Spillius: "Penso que a profundidade do contato na relação com as pessoas só é possível através desses processos [identificação projetiva e introjetiva], em conjunto com a capacidade de corrigir esses processos por julgamentos mais objetivos (2007, p. 110). Nesse sentido, também a reação emocional do analista precisa ser superada para não interferir na sua capacidade de pensar analiticamente.
A respeito da ideia de que a contratransferência é até certa medida uma resposta à identificação projetiva, Spillius nos lembra que Bion investigou a resposta emocional do analista às identificações projetivas inicialmente nos seus trabalhos com grupo, depois no seu trabalho com psicóticos. O analista pode sentir que está sendo manipulado a exercer um papel na fantasia do paciente, e chegar mesmo a fazê-lo quando, temporariamente, perde sua capacidade de insight e seu recurso para a análise. Por outro lado, a investigação dessa reação pelo analista pode ser utilizada para a compreensão e interpretação. Essa ideia de contratransferência é amplamente aceita pelos analistas kleinianos atualmente. Bion ainda traz uma contribuição no sentido de discriminar uma identificação projetiva normal e uma patológica. A identificação projetiva normal faz parte da comunicação não verbal e tem um papel fundamental na comunicação inicial entre a mãe e o bebê, e é necessária para o desenvolvimento emocional normal (2007, p. 115).
Interrompo aqui minhas considerações teóricas, ciente de que a partir desse momento se abre um novo ciclo de avanços e contribuições fundamentais para o progresso da psicanálise, desde o desenvolvimento de Bion e de suas ideias até todos os autores que passaram a investigar aquilo que chamo aqui, seguindo os Baranger, do "campo" que se estabelece no "entre", na relação, lembrando também Winnicott, Ogden, Ferro e tantos outros.
Observações clínicas comentadas
Passo agora ao relato de algumas vinhetas clínicas, presenciais e online, acompanhadas de alguns comentários à luz do que foi apresentado. Referir-me-ei aos conceitos envoltos em controvérsias apresentados anteriormente, mas tão somente no sentido de me aproximar e distinguir diferentes momentos clínicos, não me atendo à discussão de nomeações propostas. Destaco algumas questões do atendimento online.
Vinheta 1
Atendo online uma criança de 4 anos, estamos nos comunicando a partir da sala do seu apartamento, sua mãe está no escritório ao lado trabalhando. A menina se levanta e vai até seu quarto buscar algo que quer me mostrar, quando ouço ao longe uma conversa entre as duas, a criança e a mãe, e esta diz que vai dar uma saída rápida até a portaria buscar algo, que já estará de volta. A criança parece não se importar muito com essa comunicação e traz o objeto que queria me mostrar. Também não comenta nada a respeito da saída da mãe. Continuamos a conversar, me conta da festa de aniversário da mãe, que está próxima, e quer me mostrar o calendário que fizeram, assim me leva pelo apartamento até o escritório, me mostra o desenho do calendário, a data com um desenho especial. Depois me leva para o seu quarto onde pega um brinquedo para me mostrar. Abre então a porta do armário e quer pegar algo que está fora do seu alcance. Não consegue e desiste. Voltamos para a sala, um pouco sem rumo. Ouço a mãe entrar no apartamento novamente e de longe avisar sua chegada.
Muito me ocorre. É necessário avisar os pais que não podem deixar uma criança sozinha conosco quando estamos somente online? Que, caso haja alguma necessidade, não temos nenhuma condição para intervir e ajudar? Não podemos nos responsabilizar pelo setting, pela privacidade, pelo sigilo, tampouco pela segurança de uma criança, quando estamos atendendo à distância. Fica claro aqui o fato fundamental do trabalho online: a construção e o cuidado com o setting passam a ser compartilhados com o paciente, se for adulto, ou com a criança e os pais, caso seja uma criança. Construção e preservação do setting se inserem no próprio trabalho analítico. Uma dificuldade específica, por exemplo junto a uma família, vai nos informar algo do que ocorre ali. Nossa atuação terá que se flexibilizar no sentido de buscarmos formas de dialogar com os pais e fazer deles parceiros ativos no processo de análise da criança, e com cada criança teremos desafios únicos.
Voltando a minha experiência posso dizer que vivi momentos com muita aflição. Nada demais ocorreu, além de a mãe ter deixado a filha de 4 anos só no apartamento em minha presença online. Mas fiquei muito desconfortável e com medo, foram minutos que se passaram lentamente, com apreensão, nos quais perdi minha capacidade de trabalhar psicanaliticamente. Teria sido útil abordar isso com a criança? Não me parecia que ela estivesse muito atenta ao fato, ou preocupada com ele. Penso que se sentia suficientemente acompanhada por mim, me levando na tela pela casa inteira, conversando comigo e me mostrando partes da casa.
Trata-se de uma criança que tem questões e medos relativos a abandono e separação, porém latentes, e nesse momento não pude perceber que estavam em andamento. Optei por não comentar nada. Talvez nos momentos finais, quando o rumo da conversa se perde, e a mãe volta, algo relativo a essa experiência pode ser contactado. Mas foi instantâneo, logo se iniciou outra atividade, sem que eu tivesse me recuperado a tempo.
Penso que meu medo aqui foi proveniente do meu mundo interno, das minhas concepções, vivências e experiência. Tomando contratransferência no sentido estendido que engloba as reações emocionais conscientes do analista, tive uma reação contratransferencial. Por outro lado, ela não foi propriamente uma reação à paciente, mas uma reação a uma alteração no setting colocada pela mãe. Ainda caberia chamá-la de contratransferencial? De qualquer forma, foi algo que surgiu dentro de mim a partir da experiência que vivi nesse momento. Mesmo sabendo que a criança às vezes se sente abandonada e fica com medo, nesse momento o medo que senti foi algo que não vinha dela. Na hora, o medo foi meu.
Ressalto aqui a importância de considerar nossas reações emocionais conscientes, e considerar também que talvez tenhamos reações emocionais inconscientes que podem nos levar à atuação, que são despertadas por todas as situações novas nesse novo setting. Incluo aqui os diferentes ambientes apresentados, as interrupções que acontecem, as mudanças de local de atendimento, a apresentação do paciente no atendimento online.
Vinheta 2
Recebo uma menina de 5 anos que atendo presencialmente, e quando abro para ela entrar, está totalmente vestida de Homem-Aranha, olha para mim um pouco encabulada, e vivo um momento de grande estranhamento, embora se tratasse de uma situação há algum tempo anunciada - ela já havia me contado muito do seu fascínio por esse personagem.
Considero que o estranhamento que senti se deva a uma reação emocional e pessoal, de não estar familiarizada com a imagem que se me apresentava, uma menina vestida de Homem-Aranha. Não se tratava, nesse primeiríssimo momento, de um impacto que a criança visava provocar em mim, ou de uma tentativa de ela se livrar na fantasia de conteúdos insuportáveis e assim projetá-los em mim. Penso que a comunicação propriamente da paciente estava mais ligada ao seu olhar encabulado, ao seu convite para podermos estar junto com esse seu desejo de se vestir de Homem-Aranha e ser esse personagem, algo que pudemos viver depois de eu ter sido capaz de deixar de lado o estranhamento inicial e me aproximar, agora sim, do estranho que ela estava me propondo a viver com ela. Uma vez recuperada do impacto inicial, pude estar com ela de super-herói Homem-Aranha e aí, sim, houve oportunidade para deixar surgir e acontecer o sonho ou a alucinação que ela me trazia.
Vinheta 3
Estamos ainda nos momentos iniciais da sessão, quando A, um menino, reluta um pouco em aparecer na tela e se comunicar comigo. Estamos instalados no lugar designado para a sessão, o seu quarto, mas A passeia longe da tela, entra e sai do meu campo de visão. Chamo-o e tento iniciar uma conversa, mas não sei onde está, nem o que faz. Percebo que começo a ficar incomodada, me sinto só, sem saber o que acontece do outro lado, com o que ele se ocupa, como vou buscá-lo. Logo ele aparece e inicia um jogo de cuco comigo (ou de fort-da). Aparece na tela e some novamente, e quando aparece faz "cuco" e depois some novamente. Torna-se uma brincadeira de esconde-esconde, em que ele está no controle total do aparecer e sumir, e visivelmente tem muito prazer nessa situação. Vamos brincando e conversando sobre essa situação, dou voz a minha decepção de não vê-lo e não saber onde está, de procurá-lo e não o encontrar. E do seu prazer em me ver assim aflita e de me ver no seu controle e em suas mãos.
Podemos observar aqui o uso que a criança faz da tela para expressar algo ludicamente, algo do seu mundo emocional e daquilo que a move. A criança se apropria da tela, que passa a ser um objeto da situação transferencial e um meio para expressar algo do seu mundo interno, com o qual pode brincar, que pode eventualmente manusear, e que assim também nos conta de movimentos emocionais em andamento. Observamos um brincar compartilhado através da tela, bem como processos de identificação projetiva em andamento. Inicialmente, eu sou colocada na situação de abandono e de desamparo, emoções provocadas em mim e das quais me torno continente. Ao me dar conta desse processo e poder dar voz a certas emoções ali contidas, prontamente a relutância e oposição ao contato desaparecem e a ansiedade pode se manifestar de forma lúdica, agora através de um brincar, no qual quem é deixada de lado e abandonada sou eu, ele está no controle da relação, eu fico dependente. Todo o mundo emocional que começa a se veicular nessa experiência emocional vivida por nós tem seu início por meio da identificação projetiva e, a seguir, se torna uma reverie e uma brincadeira, através da qual os conteúdos emocionais subjacentes podem se expressar.
Vinheta 4
B, 4 anos, filha de pais separados, é trazida à análise pela mãe. A separação dos pais, que mantêm certo distanciamento entre si, no mundo externo, também está presente no seu mundo interno, onde também não consegue mantêlos juntos e unidos. De repente, a sessão à distância se dá na casa do pai. Conheço então uma outra B. Nessa sessão, inicia me mostrando seu bebê, um boneco; sua geladeira, com suco e biscoito que ela adora. Os brinquedos que usa somente na casa do pai. Começamos a desenhar, cada qual do seu lado da tela, e então ela desenha uma montanha, que está muito calma, conta uma longa história sobre a montanha. Desenha uma árvore e continua a história. Está muito envolvida na atividade que vai fazendo e me mostrando. Conversamos sobre os balões e o arco-íris que nascem da montanha, sobre sua curiosidade a respeito de nascimento, do nascimento dos bebês... Aceita a conversa, dá continuidade ao assunto, vai buscar uma foto de bebê sua que está em um porta-retratos, ela com o pai, diz que adora a foto e prosseguimos com os desenhos e as conversas.
Algo está em andamento, o clima é de muita intimidade. Ela maneja a tela me deixando participar do que fala, faz, desenha.
Muito diferente de outra sessão, quando há interferência de babás e barulhos, quando a tela é rígida, e ela some e escapa, e não consegue me guiar para um contato melhor com ela.
Observamos aqui a possibilidade do brincar compartilhado, da livre expressão do mundo de fantasia, de um contato íntimo e criativo. Enfatizo aqui o uso da tela como meio de expressão de uma situação interna em andamento e do contato estabelecido pela dupla. A dificuldade ou a facilidade com a qual a criança a maneja, o enquadramento e o som, tudo isso pode expressar algo do que está em andamento, algo da situação transferencial. E quando o meio não se faz notar tanto e não parece tão presente, podemos pensar que o contato está se dando em um nível de ansiedade tolerável e a experiência emocional compartilhada pode acontecer. Penso que a tela como parte integrante do setting no atendimento com crianças é muito mais suscetível e porosa para a expressão de resistência, atuação e ansiedade, levando rapidamente a alguma interrupção no contato e no vínculo, que é reestabelecido com mais dificuldade no meio eletrônico. Talvez porque nossa presença por meio eletrônico também seja sentida com menos intensidade, sendo mais parcial, fraca e porosa.
Vinheta 5
M chega muito abatida à sessão online. Chora. Está cansada do trabalho online, do trabalho de casa, do seu isolamento social. Tem assistido a poucas notícias e se informado menos, pois percebe que isso lhe faz muito mal. Seu ânimo do começo do isolamento está se perdendo, sente-se fraca e desmotivada. E fala sinceramente da preocupação com familiares mais idosos, do risco, da incerteza. E da sua perspectiva futura e seus planos, que estão todos suspensos, no ar, sem data para serem retomados, logo agora que tinha tomado alguns passos importantes na sua vida.
Enquanto ouço M falar, sou invadida por uma grande tristeza pelo momento que estamos vivendo, penso nas pessoas que estão sofrendo, imagens de noticiários me passam pela mente, notícias a respeito do descaso político que vivemos, e sou tomada também por uma desesperança e pelo medo das incertezas sobre o nosso futuro. Faço um esforço para me destacar desse clima trazido pela paciente, e do sofrimento que compartilhamos nessa situação que ambas vivemos. Eu também tinha planos, eu também me preocupo, eu também estou sofrendo com as privações impostas pelo isolamento. Compartilhamos uma mesma realidade social de incertezas e sofrimento. Mas sabendo disso, consigo me separar desse contexto e voltar agora a escutar o específico de sua experiência, que ela me traz. Podemos tentar uma conversa sobre sua depressão, seus objetos internos estragados, sua culpa em relação aos pais, seu desalento com relação a um trabalho psíquico exigido para uma maior integração, ou para qualquer trabalho, a incerteza do futuro pareada com o seu futuro desejado, e a intolerância de lidar com essa realidade. Enfim, todo o mundo interno que se abre para ser investigado a partir da nossa conversa e da experiência que podemos ter juntas.
Últimas palavras
Ao final, longe de conclusões, algumas ideias se impõem a mim. Penso ser possível e útil um trabalho psicanalítico online, ainda que certas especificidades devam ser consideradas. O surgimento dos diversos fenômenos intra e interpsíquicos também se dá através desse meio e à distância, ainda que sua apreensão seja de menos impacto e com mais sutileza. A presença à distância cria uma relação mais porosa e instável, e o meio, tela ou telefone, também passa a ser um elemento a ser considerado, com mais ou menos presença, no encontro. Sim, encontros são possíveis também remotamente.
Referências
Gordon, A. R., Cabral, L. A., Susemihl, E. V. K. P., Nery, C. G., Lima, C. B., Schwartz, L. S., Semmer, N. L., Milani, E., Lima, C. S. (2014). Realidade virtual e setting: de costas para o futuro? Revista Brasileira de Psicanálise, 48(1),93-104. [ Links ]
Green, A. (2005). Key ideas for a contemporary psychoanalysis. Routledge. [ Links ]
Heimann, P. (1995). Sobre a contratransferência. Revista de Psicanálise, 2(1),171-176. (Trabalho original publicado em 1950) [ Links ]
Klein, M. (2017). Lectures on technique (J. Steiner, Ed.). Routledge. [ Links ]
Spillius, E. (2007). Encounters with Melanie Klein: selected papers. Routledge. [ Links ]
Correspondência:
Elsa Vera Kunze Post Susemihl
Rua Gomes de Carvalho, 892, conj. 111
04547-003 São Paulo, SP
esusemihl@gmail.com
Recebido em 17/7/2020
Aceito em 29/9/2020
1 Trabalho apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), por meio do aplicativo Zoom, em 15 de agosto de 2020, com comentário de Alicia B. D. Lisondo.
2 Textos escritos em 1936 e 1958, respectivamente.