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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

PANDEMIA

 

Pandemia e trabalho psicanalítico, do presencial ao remoto: contato com a vida dos estados primitivos da mente em contexto de viralização de angústias

 

Pandemic and psychoanalytic work, from face-to-face to remote: contact with primitive states of mind in the context of spread of anxieties

 

Pandemia y trabajo psicoanalítico, del cara a cara a lo remoto: contacto con la vida de estados primitivos de la mente en el contexto de la viralización de las ansiedades

 

Pandémie et travail psychanalytique, du face-à-face au télétravail: contact avec la vie des états primitifs de l'esprit dans le contexte de la viralité des angoisses

 

 

Mariângela Mendes de Almeida

Psicóloga. Psicoterapeuta. Mestre pela Clínica Tavistock, Universidade de East London. Doutora pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Movimentos da clínica psicanalítica em sua possível plasticidade serão aqui considerados, a partir da convocação de novas modalidades de atendimento além do presencial físico, mobilizadas pela pandemia de 2020. Serão discutidos o trânsito entre diferentes tipos de comunicação, a intensificação do desenvolvimento da associatividade, a presença viva de um repertório em constituição como "corpo-envoltório" do vínculo e a participação dos envolvidos na reconstrução da cena clínica como recurso essencial para o trabalho com o sofrimento psíquico, quando nosso próprio senso de continuidade e integração é posto à prova pela inesperada ruptura do enquadre habitual.

Palavras-chave: psicanálise, pandemia, estados mentais primitivos, teleanálise


ABSTRACT

Movements of the psychoanalytic clinical practice in its possible plasticity will be considered here, from new ways of working beyond the physical face-to-face setting, brought by the 2020 pandemic. The transit between different types of communication will be discussed, as well as the intensification of the development of associativity, the living presence of a repertoire in constitution as a "body-wrap" of the bond and the participation of those involved in the reconstruction of the clinical scene as an essential resource for working with psychic suffering, when our own sense of continuity and integration is challenged by the unexpected rupture of the usual framework.

Keywords: psychoanalysis, pandemic, primitive states of mind, teleanalysis


RESUMEN

Los movimientos de la clínica psicoanalítica en su posible plasticidad se considerarán aquí, desde la convocatoria de nuevas modalidades de atención más allá de lo físico presencial, movilizadas por la pandemia de 2020. Se debatirá el tránsito entre diferentes tipos de comunicación, la intensificación del desarrollo de la asociatividad, la presencia viva de un repertorio en la constitución como un "cuerpo-envoltura" del vínculo y la participación de los involucrados en la reconstrucción de la escena clínica como un recurso esencial para trabajar con el sufrimiento psíquico, cuando nuestro propio sentido de continuidad e integración se pone a prueba por la ruptura inesperada del marco habitual.

Palabras clave: psicoanálisis, pandemia, estados primitivos de mente, teleanálisis


RÉSUMÉ

Les mouvements de la clinique psychanalytique dans sa possible plasticité seront envisagés ici, à partir de la convocation de nouvelles modalités de soins au-delà du face-à-face physique, mobilisées par la pandémie de 2020. Il sera discuté du transit entre les différents types de communication, de l'intensification du développement de l'associativité, la présence vivante d'un répertoire en élaboration comme un « corps-enveloppe », du lien et de la participation des personnes impliquées dans la reconstruction de la scène clinique en tant qu'une ressource essentielle pour travailler la souffrance psychique, lorsque notre propre sens de la continuité et de l'intégration est mis à l'épreuve par la rupture inattendue du cadre habituel.

Mots-clés: psychanalyse, pandémie, états d'esprit primitifs, téléanalyse


 

 

Introdução: pandemia e isolamento social, o vínculo remoto como laço possível

A busca de atendimento psicanalítico durante um momento de isolamento social emergente nos mobiliza ainda mais a refletir sobre desafios aos pacientes e profissionais em novas modalidades clínicas, que buscam responder às urgências do sofrimento psíquico.

Em suas bases mais primitivas, no caso de bebês ou pequenas crianças em risco, manifestam-se sofrimentos no contexto do neurodesenvolvi- mento em curso, considerando-se janelas de oportunidades e plasticidade cerebral. Ansiedades parentais são mais ainda amplificadas pelo contexto atual de desamparo e possível perda de rede de apoio familiar durante a pandemia. No trabalho analítico com crianças, jovens e adultos, os desafios se apresentam também frente às intensidades muitas vezes irrepresentáveis das ameaças de não integração psíquica.

A modalidade de atendimento "remoto", como tem sido utilizado o termo online em nosso meio e idioma, alude ao sentido de distanciado, não só no espaço mas também no tempo, algo que se encontra em dimensão longínqua, antiga, que aconteceu no passado, ou atualmente, em nosso presente (antecipador de um futuro precoce?) que se realiza pela conexão tecnológica.

Quem de nós imaginaria que em todos os cantos do globo se antecipariam cenas somente presentes na realidade ficcional? Imaginávamos, nós de uma geração antiga baseada no presencial dos vínculos, estranhando novas possibilidades de proximidade virtual, que acompanharíamos esse processo gradativamente. Preservaríamos o íntimo e o essencial dos laços e ligações emocionais que caracterizam o humano, cuidando para transmitir às gerações vindouras a tradição vivencial em seu sumo a ser transmutada sem se esvair. Jamais imaginaríamos que juntos iríamos viver como prova na pele e na carne um afastamento e isolamento social que nos fizesse descobrir, ao mesmo tempo, o alcance da tecnologia como canal de contato com o primitivo dos vínculos e o sentimento de falta das ligações presenciais para aqueles que se arriscavam a seguir sem elas...

Estamos aqui diante de uma transversalidade de tempo (passado, presente e futuro em condensação) e de espaço (interno, externo e transdimensional) que favorece e reflete a psicanálise como campo do conhecimento. Desde seu surgimento a partir de Freud, nos ocupamos dessas complexidades, em suas continuidades e rupturas, valorizando o inconsciente, a livre associação, a transferência e o contato com o psíquico na cena clínica, que se transversaliza em tempos e espaços expandindo dimensões.

Em trânsito da presença física à online, com o analista sempre vivo (A. Quinet, comunicação pessoal, 2020), experimentamos a convocação para uma disponibilidade de vínculo em que se enfatiza a relevância de diferentes tipos de comunicação, verbal e não verbal, massivamente projetiva ou selecionada como comunicação estruturada, sensorial (visual, auditiva e proprioceptiva, ou tátil, olfativa e gustativa em tentativa, falta e fantasia), alegórica, pictórica e estética, recortada pelo contorno da tela, pelo foco e enquadre escolhido, tanto consciente quanto inconscientemente.

Movimentos da clínica psicanalítica em plasticidade e elasticidade técnica possíveis demandam consideração, levando-se em conta a necessidade de experimentar e refletir sobre novas modalidades além da presencial física, que se impõem com as necessidades de afastamento social emergentes.

Roussillon (2019) ao se referir às variações dos dispositivos psicanalíticos, se manifesta no sentido de não acreditar em psicanálise aplicada, como um manto externo/uniforme para uso em sobreposição, mas afirmando uma psicanálise "encarnada" em seu próprio meio maleável, metaforizando "de dentro" das características do próprio dispositivo a possibilidade do encontro psicanalítico, mantendo como elemento atrator a transferência no contato com os aspectos primitivos identitários.

Que mudanças ou permanências se operam através desses dispositivos atuais, permitindo-nos potencializar nosso enquadre interno na viabilidade do encontro?

 

Transmodalidades como canal de contato mantendo o primitivo da vida

Para alguém tão estrangeiro nessa prática tecnológica, como absoluta "i-nativa digital", surpreendi-me com o tanto de busca de fios de contato "por todos os poros", de disponibilidade e conexão emocional por vários canais sensoriais. Uma sensação de bombardeio, mas também experiência próxima da construção do processo denominado por Daniel Stern (1992) percepção amodal (também multimodal, transmodal). Nesse processo, muito característico do desenvolvimento inicial comum dos bebês, vários canais sensoriais se integram para reconhecimento, generalização, abstração e atribuição de sentido a uma nova experiência.

Sentimo-nos convidados para um espaço íntimo, inclusive com "adentramento" visual/geográfico por meio da tela rumo ao interno da casa, da sala, do quarto, da cama, dos cantos, do interior dos armários, vivenciando assim várias gradiências de comunicação emocional possível, da fusão indiferenciada à sensação de invasividade. Várias nuances de "bilhetes de entrada", com ou sem câmera, com iniciativa de quem, sujeitos a que intempéries, interrupções ou desconexões, com que qualidade, vão inevitavelmente se configurando também junto ao que nos é comunicado pelo discurso falado e expresso corporalmente/facialmente/sonoramente.

Texturas de voz e ritmos em turnos pressentidos, como comunicações a partir do ímã atrator e configurativo do campo transferencial, evocam e modulam nossa associatividade e função simbolizante (Roussillon, 2019) e nossos devaneios em reverie sonhante (Bion, 1962).

Sugestivas cenas nos inspiram apresentando potentes configurações ao vivo e "internamente" in loco, encarnadas nas especificidades das próprias transações comunicativas.

Uma garotinha de 5 anos, por exemplo, com dificuldades de aprofundar desafios edípicos, me carrega consigo nos celulares de seus pais separados, para dentro de seus armários escuros, em cada uma de suas casas e camas que, por medo de dormir sozinha, ainda não consegue utilizar para si, mas experimenta com suas várias faces-filhas-bonecas. Em suas brincadeiras, por vezes exaltadas, circula nos espaços dos casais reconstituídos, fazendo shows animados no espaço paterno, enquanto regride a bebê quando se depara com a necessidade de limites na casa da mãe. Acompanhá-la por vários meses em testemunho vivo nesses trânsitos (que ainda não podem ser só psíquicos) parece fornecer garantia de continuidade de si mesma ao longo das mudanças que ameaçam seu senso de integridade psíquica.

Um outro garoto, de 10 anos, com instigante, e até quase intuitiva, dificuldade pré-pandêmica de frequentar a escola, em intensa necessidade de controle, me "muta" (me emudece), se esconde saindo da conexão, me "trola" fingindo que seu som não está funcionando, ou se fazendo de congelado... Faço-me chegar a ele em pensamentos irradiados, e "paciente" continência de projeções, enquanto ele "vigia" meus silêncios, mostrando a importância de minha presença sempre ali. Tamanho estado de alerta, sensibilidade e reações defensivas em proteção me fazem pensar nas comunicações infrassensoriais pré-cataclismas naturais vivenciadas instintivamente por animais e suas conexões com nossos funcionamentos psíquicos.

Não exatamente inéditas, mas em novas possibilidades de expressão, transferem-se para nós, na tela e seus mecanismos de "edição", as narrativas psíquicas em vários roteiros e montagens para as quais somos, nós analistas e pacientes, mutuamente convidados a participar em coconstrução, como personagens de um reciprocamente vivenciado teatro invisível de Boal (2019), ocupando espaços cotidianos "reais", que se revelam experiência viva e ao mesmo tempo evocam desdobramentos que transitam no simbólico, e na metaforização do inesperado ancorado em processo interno e vincular de sustentação do espontâneo frente ao imprevisível.

Assim, enquadres, deslocamentos, aberturas, focos, inclusões e exclusões, são ao mesmo tempo expressões e regulações físicas e psíquicas, integrando aspectos conscientes e inconscientes interessantes ao vértice observacional e olhar psicanalítico.

Como conjectura associativa, poderíamos pensar que, diante de uma nova linguagem e necessidade, desafiando nossos aspectos autocentrados, tendências à uniformidade e manutenção de nossas rotinas e zonas de conforto, seríamos ao mesmo tempo provocados pela diferença da suposta "bidimensionalidade" (Meltzer, 1979) da tela, procurando transcendê-la, ocupando a própria "víscera" e natureza do veículo e do momento tela no "aqui e agora" como espaço de transição e seus interstícios, incluindo possibilidades de encorpar qualquer possibilidade de dimensionalizar o vínculo.

Elementos que fazem parte de nossa história clínica retornam, se mostram sobreviventes à ruptura se rearticulando em nova paisagem. Ou mesmo se constroem a partir de mínimos indícios de endereçamento já em novo cenário, espaços internos compartilhados para composição comum.

 

Elasticidade da técnica: a flexibilidade como estado de mente facilitando fluxos primitivos, plasticidade e resiliência dos vínculos psíquicos

A clínica dos estados primitivos da mente se faz aqui presente e investigativa a partir da experiência com a própria análise pessoal, com a prática junto a pacientes de amplo espectro, incluindo funcionamentos autísticos (Mendes de Almeida, 2019) e com o aprofundamento em pesquisa psicanalítica. Estamos assim, já desde a raiz, às voltas com desafios no continuum entre integrações e não integrações, ameaças à existência psíquica, necessidade de constituir continência a estados ainda não representados e tolerância ao sofrimento psíquico.

A elasticidade da técnica e de nossas ferramentas de acesso já está convocada e presente como instrumento do analista e como campo a se fertilizar pelo exercício do trabalho do vínculo. A flexibilidade como estado de mente (Mendes de Almeida, 2011) reverbera na construção dos aspectos de plasticidade, ingredientes para a constituição de subjetividade e incipiente resiliência desenvolvidas pelo paciente. Tal atribuição e atitude psíquica vem ainda a ser mais intensamente requisitada a comparecer no contexto da pandemia global de 2020, viralizada em nosso cotidiano íntimo, familiar, social e político.

Aproximações e distanciamentos vão também se constituindo e se instalando de forma peculiar, viva também, como na situação de Nico, bebê de 1 ano e 2 meses, e Leco, pequena criança em torno de 2 anos e meio de idade, ambos com risco autístico, em momentos diferentes de atendimento psicanalítico na irrupção da pandemia. Ambos contam com uma rede de atendimento interdisciplinar, em trabalho ligado à linguagem e à motricidade/sensorialidade, enriquecendo assim o acompanhamento psicanalítico.

Importante lembrar que no caso dos bebês e crianças em risco ou com funcionamento autístico, a integração na consensualidade não ocorre com a mesma facilidade, dando lugar à preponderância de canais isolados de recepção e contato sensorial. Vinhetas clínicas serão aqui, portanto, emblemáticas quanto à possibilidade de ampliação de canais de integração da sensorialidade, e investimento nos laços possíveis de cuidado, mesmo em situações extremas, iniciadas ou continuadas durante a necessidade de isolamento social.

 

Retraimento autístico em tempo de isolamento social: paradoxo na tela e urgência terapêutica

Polêmica desafiadora e delicada nos demanda aqui singularidade ao olhar e manejo clínico: a questão da superexposição à tela já era, mesmo antes da covid-19, preocupação pediátrica e alvo de cuidados no trato com as famílias. Apontada por alguns como fator relacionado à mudança na qualidade do contato parental contemporâneo e à ênfase nas modalidades de descarga sensorial, pode intensificar a busca de soluções automáticas em detrimento do processamento e mediações humanas, mais imprevisíveis e trabalhosas.

Entretanto, para evitar esse paradoxo de propor a tela para quem da tela não consegue ainda se diferenciar, somente imaginar um início ou continuidade de trabalho direto quando a pandemia acabar (algo também bastante imprevisível) pode acarretar consequências significativas de não abertura de brechas para a criança e a família no acolhimento aos riscos de sofrimento psíquico na primeira infância. Sabemos que o desenvolvimento de possíveis tendências à cristalização de traços de fechamento pode fortalecer circuitos de repetição, estereotipias e automatismos, e que, por outro lado, a ampliação de vias alternativas pode ser facilitada por intervenções psicanalíticas e transdisciplinares (Mendes de Almeida et al., 2017).

Em tempos de pandemia, tais situações de tão pouco retorno emocional e dolorosas dificuldades mútuas de sintonia afetiva, tão inicialmente alertadas pela qualidade precária dos movimentos gerais espontâneos do bebê (M.-C. Laznik, comunicação pessoal, março de 2020), carecem muitas vezes de autorização interna para serem reconhecidas ou de espaço para serem endereçadas e operacionalizadas (Muratori e Maestro, 2007). Somam-se a isso turbulências na rotina familiar, sobrecargas domésticas e profissionais, perdas dos eixos de organização das demandas familiares, contribuindo para a possibilidade de desinvestimento nos vínculos e busca de soluções prescritivas em detrimento dos enlaces intersubjetivos.

O acolhimento à vulnerabilidade desses pais e bebês, o mais cedo possível, mostra-se relevante para que não se estabeleçam circuitos de redução de investimento parental ou hiperestimulação, a partir do sutil reconhecimento de dificuldades de engajamento do bebê na cena relacional.

As contribuições do olhar psicanalítico podem facilitar a integração do corpo e psiquismo do bebê na relação com seus pais, em contexto demonstrativo de recursos de constituição de subjetividade.

Tem sido relevante no trabalho online contar com os pais como presença viva intermediadora, criando e transformando espaços domésticos e psíquicos para abrigar novas modalidades de contato com a criança, cuidando para que nossa presença na tela nos "represente", ou pelo menos nos "apresente" como um algo/outro em incipiente relação, e não como um aparato de excitabilidade sensorial. Essa instalação parental da cena clínica facilita nosso acesso ao contato, tanto direto quanto indireto, com o bebê/criança, em um continuum de gradações que vão de uma passagem de olhar, atenção, curiosidade, imitação e interesse a possíveis aberturas em elos de retorno. Tais sensório-psicomotores boucles de retour (G. Haag, comunicação pessoal, junho de 2020) se associam aqui em linguagem protossimbólica a movimentos de imantação sensorial (amplificação e retorno para os mínimos fiapos de direcionamento e resposta aos órgãos dos sentidos e aproximações corporais em construção protoconsensual e incipientes elipses relacionais).

Nessa experiência de "coabitação terapêutica", a intimidade intensifica a possibilidade parental de observar aberturas, mas também de reconhecer vulnerabilidades. Não é pequeno o desafio de sustentar a esperança parental sem que os pais se sintam por vezes sobrecarregados com mais uma atribuição de acompanhar as crianças bem de perto durante a pandemia, demandando também seu espaço regressivo diante de tão compreensíveis e primitivas ansiedades.

Serão aqui apresentados mais detalhadamente dois pacientes, um cuja família se apresentou virtualmente na pandemia e outro que prossegue um trabalho psicanalítico iniciado presencialmente. A apresentação e chegada da primeira família se fez já pela tela, na escrita rápida e no diálogo direto no WhatsApp, continente, para mim, antes inexplorado profissionalmente. No segundo caso, cuja continuidade foi rompida pela emergência da pandemia, turbulências foram lidadas e puderam também fazer parte de uma experiência analítica significativa.

 

Nico, chegada em tela na pandemia

Nico é um bebê de 1 ano e 2 meses muito hábil fisicamente, com evitação de contato corporal e visual, extrema autossuficiência e pouca interação com seus pais e seu irmão de 3 anos. Inicialmente, não responde e não convoca os pais presentes, nem a mim como analista na tela, mantendo-se aparentemente autocentrado em sua própria sensorialidade, sem expectativa de enlace interpessoal.

Gradativamente passa a olhar a tela do celular em que me encontro e aceitar a convocação dos pais, mas ainda aparentemente quer pegar o celular como objeto excitatório sensorial, experimenta abocanhá-lo, quer ligá-lo, acionar seu mágico botão ou se aproxima da tela pelo brilho, em olhar mesmerizado.

Com a continuidade do trabalho mediado pelos pais, o bebê diversifica essa interação "presencial" em tela, aceitando e buscando mais contato, por exemplo com brincadeiras de comidinha e frutas, que, ainda muito sério e em tom de um "aprendizado adquirido", oferece ou aceita, enquanto se irrita quando não consegue morder a fruta que lhe mostro, em diálogo lúdico, pareado em espelhamento (M.-C. Laznik, comunicação pessoal, março de 2020).

Após um período de contínuas sessões, a presença de meu rosto na tela parece se fazer mais reconhecida e adquire "convocância" agora ao olhar da mãe narradora em voz e prosódia mais naturalmente modulada pela maior possibilidade de resposta sustentada do bebê. Surge em Nico leve sorriso de satisfação com o meu brincar de comer a fruta, que ele parece agora poder "incorporar" com maior diferenciação, em uma protodiversão com a cena, sem irritação ou intolerância com a barreira da separabilidade.

No decorrer desse trabalho, aproximações, diferenciações, instalações geográficas e psíquicas vão se constituindo, em "transmodalidade" tanto no vínculo quanto nas gradativas organizações convocadas aos corpos dos pais e criança em jogo lúdico espontâneo, que eu acompanho adentrando a residência de suas relações.

Por escolha dos pais, ficamos inicialmente na sala, de mais fácil vigilância, com presença parental casual e atenção volátil, com brinquedos espalhados à profusão com pacificadoras chupetas e naninhas, "cala-dores" misturados e disponíveis à exploração infantil. Inicialmente, os pais se colocam em posição executiva, sentados à escrivaninha diante do equipamento tecnológico. A necessidade de conversar comigo prevalece, pela demanda de escuta e acolhimento às angústias emergentes pela dificuldade de contato com Nico. A criança e seu irmão, também pequeno de 3 anos, escalam pernas para ficar com os pais e chegar à atração da tela. Há bem pouca brincadeira face a face nesse momento.

Tais flashes visuais em minha tela desenham o retrato da configuração a cada momento. A tela não é, portanto, só condutora de relato sobre o conteúdo. Como diriam os pioneiros da era tecnológica... o meio também é a mensagem (McLuhan, 1964), encarnada e metaforizada, a ser transformada por nossa função simbolizante. A relação se dá entre a experiência transmodal que me impacta e o que vou construindo com eles em vínculo e registro psíquico compartilhado, a partir do som aumentado dos barulhos das coisas, brinquedos em choque e contato coisa a coisa, entonações de voz assertivas e agudizadas, e um primeiro plano de faces parentais, em um fundo com o bebê e seu irmão se movimentando, de forma separada ou se trombando em contato corpo a corpo, no espaço coalhado de objetos sólidos coloridos. Eis um retrato em flash psíquico da constelação inicial.

Os pais ressaltam que Nico continua melhorando. Noto melhora em sua expressão, mas me preocupa sua relação muito focada com a tela e com querer se aproximar de algo que não é o meu olhar nem a presença de algo a se relacionar. (Foco no brilho? Experiência anterior com tela? Não me parece uma exploração comum de um bebê "banal", suas descobertas não são compartilhadas com olhares e não há busca de intermediação pelo parceiro humano nas empreitadas.)

A partir de experiência conjunta de demanda por mais contorno, continência física/psíquica e presença humana mediadora e preponderante, proponho nova paisagem. Passamos para o espaço do quarto das crianças e trabalhamos na altura do chão, facilitando o contato corporal, a sustentação em uma superfície acompanhada, seja no colo ou em mediação pelo olhar, facilitando o trânsito de olhares e expressões faciais.

Nico, que no início não parecia ter expectativa quanto a meus movimentos em relação a ele, esteve sempre acompanhado por minha mente antecipando o encontro, investindo na aposta pulsional e subjetivante (Marucco, 2007; Mendes de Almeida, 2008; Silva, Mendes de Almeida e Barros, 2011), reclamando (Alvarez, 1994), convocando, buscando engajar mesmo mínimos fiapos de contato, supondo o sujeito que está por vir (Laznik, 2004).

Na modalidade remota, esses movimentos são fundamentais para instalar a criança no espaço analítico, configurando um espaço de intimidade e ao mesmo tempo de acolhimento continente, mas discriminado e singular em termos de um espaço físico preferencialmente contornado e provedor de elementos lúdicos simples e significativamente evocantes do espaço interno da criança e da família. No caso de Nico, uma sacolinha colorida personalizada foi escolhida pelos pais a meu pedido, para estar sempre ali em nosso horário, com brinquedos simples e constantes, como envoltório representativo de continência físico-sensorial e simbólica aos conteúdos internos e relacionais emergentes. Em paralelo, apresento-lhe pontualmente, lado a lado com minha face, brinquedos/animais personagens animados em uma caixa/continente sempre à nossa disposição para intercâmbios em espelhamento, diálogo paralelo ou interesse pelo meu diferente também.

No grau de desenvolvimento possível até aqui, de necessidade de fortalecimento das alternativas transmodais (Stern, 1992) e consensuais, em vez do atrativo autossensorial, vemos que Nico ainda tem um tanto a evoluir quanto à percepção, comunicação e reação a outros acerca de seu senso de si como sujeito integrado.

 

Movimentos da clínica nas fronteiras do conhecimento interdisciplinar: a plasticidade na constituição da subjetividade

A partir da complexidade e delicadeza da clínica, vislumbramos a plasticidade, modulada pelos microeventos intersubjetivos que "esculpem", em sutil integração, ações, hábitos, vivências emocionais e, como nos conta Iole Cunha (2002), o cérebro em suas redes neurais.

Estaríamos assim, a partir do cerne da nossa teoria da técnica, no acesso ao espaço psíquico do paciente e seus pais, desenvolvendo "transmodalidade" (Stern, 1992), nas raízes potenciais do vínculo e ampliando dimensionalidades. Fazemos uso da maior possibilidade que temos à mão e à mente, para fazer jus à nossa predisposição de busca de objetos humanos, de vínculos e relações, abrindo novas trilhas e possivelmente intervindo na arquitetura e nos movimentos de conectividade das redes neurais (Laurentino, no prelo). Com isso, vivenciamos uma experiência também encarnada de transformações e abertura de novas vias, junto a nossos pequenos pacientes, em que o neurodesenvolvimento é um contexto essencialmente também em expansão potencial.

Vemos aqui como é essencial a participação da família na instalação ou reinstalação da cena clínica, considerando que a plasticidade cerebral, se por um lado está sempre presente, por outro, conta com um período sensível para ser mais fortalecida, amplificada e aproveitada em sua potencialidade máxima.

A demanda interna e vincular por "plasticidade", em sua acepção polissêmica abrangendo aspectos do neurodesenvolvimento, da interludicidade como estado de mente e coconstrução intersubjetiva (Guerra, 2018), da capacidade simbólica em constituição, como alternativa ao risco de cristalização de automatismos e estereotipias, caracteriza estados de flexibilidade em trânsito intra e interpsíquico entre pacientes e analista.

Considerações e neuroimagens interessantes do default mode network têm sido compartilhadas por Vera Regina Fonseca (2019) e Silvia Laurentino (no prelo). Trata-se de configurações típicas em circuito padrão de interconectividade, presentes nos humanos em geral, mas não em indivíduos com autismo ou Alzheimer. Em condições autísticas, haveria aspectos básicos comuns na descontinuidade, precário trânsito e falta de associatividade? Circuitos erráticos poderiam estar se estruturando segundo outros referenciais? Qual seria a estrutura do caos que, apesar das singularidades presentes em cada ser, unificaria a condição de precário eixo de coerência central que nos faz identificar a qualidade autística em sua restrita plasticidade psíquica, e carência de sentido relacional, pelo menos de nosso ponto de vista?

Como profissionais também somos desafiados em várias vias, quando nosso próprio senso de continuidade e integração é posto à prova pela inesperada ruptura do enquadre habitual.

Nessa busca tentando transcender a "suposta" redução dimensional da tela em primeiro tempo, talvez encontremos um aspecto relacionado ao estado de uma certa sobrecarga e esgotamento em que nos vemos mergulhados, ao termos migrado para essa forma majoritária de conexão profissional e social. Estaríamos também transferindo para essa forma de contato toda uma bagagem constitutiva de vínculos e memórias sentidas e constituídas em outras modalidades?

Como isso se transfere no âmbito da conectividade de nossas vias em trânsito?

 

Lelo, do presencial ao online: fractais de contato nos trânsitos entre as modalidades de acesso durante a pandemia

Diferente de Nico, Lelo, de 2 anos e meio, já havia iniciado o trabalho analítico presencial de quatro vezes semanais, quando fomos surpreendidos pela pandemia e tivemos que nos teletransportar para o atendimento online (em Zoom).

Aos 2 anos e 1 mês, Lelo inicialmente não se comunicava e se interessava pouco pelo contato com o outro a não ser por rápidas e fugidias olhadelas. O trabalho presencial possibilitou o acesso a um patamar de desenvolvimento psíquico inicial favorecedor para a ampliação de brechas, e facilitou a continuidade de sua evolução no trabalho online.

Elementos ligados ao interesse por pessoas e objetos, interação compartilhada, integração sensorial, constituição de espaço interno, capacidade simbólica e campo transferencial (categorias do Protocolo de Investigação Psicanalítica de Sinais de Mudança em Autismo [Prisma]) foram referenciais importantes para mapear o trabalho clínico e o desenvolvimento psíquico em Lelo, ao longo dos trânsitos entre o atendimento presencial-físico/remoto (Batistelli e Amorim, 2014; Lisondo et al., 2017).

Uma caixa de brinquedos foi escolhida pela criança e pelo pai para estarem sempre ali no nosso horário, com referências aos objetos da caixa lúdica do consultório: um outro modelo de avião construído para ele por sua avó, livros e bichinhos, papéis, lápis e alguns representantes de sua patrulha canina. Em paralelo, apresentei-lhe minha caixa/continente de transição, após mostrar-lhe a caixa lúdica do consultório guardada comigo, que ele ficou curioso para ver mas não para abrir, reservando-a talvez para o retorno ao presencial individual, já que agora retornávamos para a mediação pela presença do pai, que se dispunha a acompanhá-lo nas sessões online.

Enviei-lhe também fotos em WhatsApp com imagens da entrada fechada do consultório, do elefante ao lado da entrada (instalação urbana da Elephant Parade), da escada para nossa sala, de seus objetos preferidos e de um desenho que fiz na lousa me representando acenando a mão, que tanto poderia ser ao mesmo tempo "oi" ou "tchau"! (Oi, bem-vindo ao nosso novo espaço! ... ou ... Tchau, de certa forma vamos agora nos separar!)

Inicialmente, por escolha dos pais, ficamos na sala, home office dos adultos, onde vivem na quarentena, em presença concentrada no trabalho e atenção vigilante-casual a Lelo com seus brinquedos, pacificadoras chupetas e telas, "cuidadores" à dispersa disposição.

A transicionalidade característica desse nosso momento foi representada por ação de Lelo indicando o que a meu ver caracterizamos como "filhotes" dos brinquedos da caixa lúdica "mãe" ou do ambiente do consultório... - por exemplo, um pequeno elefante macio de borracha (suporte de fios de computador) que lhe apresentei e ficou sendo o filhote da elefante mãe, ou adesivos que o pai teve a ideia de trazer para a caixa deles em menção ao adorado "duek" (durex) da caixa do consultório.

Passamos com o tempo para o espaço do quarto da criança, antes subutilizado pela necessidade de vigilância permanente em atenção volátil durante o dia na sala e de garantia de proteção à noite no quarto do casal. Assim seu quarto foi praticamente inaugurado para uso próprio pelo momento das sessões de análise, significativamente, portanto, representando parte de seu processo de subjetivação, a ser ainda continuado.

Uma frase de Lelo gradativamente constituída pode ser aqui oferecida como ícone de sua progressão. De uma indiferença inicial ao reconhecimento de objetos em interação compartilhada, Lelo aumenta a possibilidade de vínculo analítico e começa a valorizar seus objetos internos em sua caixa lúdica presencial. Depois, no atendimento online pede por um bastão de cola, mostrando que sabe que gruda, mas também utilizando o bastão em faz de conta, bebendo de dentro dele o que diz que "parece um café!", endereçando bem o olhar ao pai e o deslizando também a mim pela tela, em prazer compartilhado. Em seguida, no retorno ao presencial, ao sentir um aroma de café no vizinho, exclama em expressão sorridente: "Vamos tomar um café?".

Tais cenas clínicas vivas que se oferecem como "fractais", estruturas básicas reiterativas que atravessam o micro e o macro, permitem examinar, no detalhe e na insistência constante de algumas configurações, algo que se vislumbra também em nível transversal mais amplo como movimentos e funcionamentos, integrando configurações intersubjetivas e condutas integradas para além do manifesto. A experiência de contato com esses microeventos (Stern, 1997) pode nos beneficiar disparando conjecturas relacionais e redes de sentidos (Mendes de Almeida, Marconato, Silva, 2004), viabilizando reflexões quanto à clínica do sofrimento psíquico nos inícios da vida, seus movimentos por entre fronteiras e transformações, bem como seus instrumentos de acesso (Mendes de Almeida, 2009).

O trabalho online demonstrou uma sustentação em si, sendo essencial para que uma interrupção de processo terapêutico não irrompesse sobre o equilíbrio incipiente recém-conquistado, o que poderia ter trazido disrupções ou regressões a funcionamentos autísticos anteriormente em risco de constituição.

 

Considerações finais: transdimensionalidade no online, a psicanálise viva na pandemia e além

O trabalho com crianças como Lelo e Nico nos permite continuar aprofundando a clínica e a investigação psicanalítica, e tem nos ajudado a demonstrar em nuances e detalhes ilustrativos a delicada relevância de acompanhar com intensidade e íntima regularidade em alta frequência aspectos multidimensionais de vida ou que ainda estejam a caminho de constituição.

Demonstra-se a potência clínica da psicanálise como enquadre interno encarnado diante de mudanças imprevisíveis do momento e do contexto em que se localizam paciente e analista, e também como terapêutica quando se levam em conta seus aspectos e entrelaces como pesquisa compartilhável, como reflexão sobre desenvolvimento integrado, considerando-se também aportes neurocientíficos e promoção de cuidado na primeira infância.

Nossa aposta é que a abordagem psicanalítica em rede pode oferecer a consistência vivencial microscópica para que a intersubjetividade seja genuína, conectada com os espaços de vivência interna e externa e com legítimo prazer compartilhado a ser incorporado com sentido no cotidiano e no acompanhar de movimentos vividos por crianças e famílias em sofrimento, neste momento de inquietações e intensificação de angústia para todos nós.

A clínica psicanalítica com os riscos psíquicos e com os aspectos primitivos da mente se reinventa diante de novos desafios, mantendo seus pilares essenciais de contato com aspectos emocionais para além da consciência, considerando elementos incipientes, incluindo não só os não ditos, mas também o que ainda está por se nomear e se construir, tendo como tela continente processadora a mente do analista em contato com os entraves do desenvolvimento, proteções e defesa frente a ameaças para o senso de existência psíquica e constituição da subjetividade. A "transdimensionalidade" se instala quando a "suposta" bidimensionalidade das telas sem volume vai sendo preenchida em seu espaço interno virtual entre nós e nossos pacientes por narrativas internas e compartilhadas, pela presença viva de um repertório em constituição como "corpo-envoltório" do vínculo.

Talvez não seja à toa que nossa profissão possa permanecer tão ativa durante a pandemia, mais viva do que nunca em nossos trânsitos virtuais com pacientes e trocas interprofissionais: é nossa mente somatopsíquica que trabalha, psicanaliticamente, em qualquer lugar, transitando por livres associações sustentadas por nosso setting interno, com nosso "coração pensante" (o thinking heart de Anne Alvarez, 2012) ou nosso "cérebro que sente" (o feeling brain de Mark Solms, 2015). São também nossas mentes somatopsíquicas que, a partir do reconhecimento de impactos em nós mesmos, sofrem e demandam, individualmente, como grupo de trabalho ou comunidade sociopolítica, nossa compreensão e sentido para o momento que vivemos...

 

Referências

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Correspondência:
Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 628
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Tel.: 11 3842-8839
mamendesa@hotmail.com

Recebido em 20/7/2020
Aceito em 12/10/2020

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