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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

RESENHA

 

Por que Ferenczi?

 

 

Maria Nilza Mendes Campos

Psicanalista. Membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBSB). Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi

Correspondência

 

 

 

Autor: Daniel Kupermann
Editora: Zagodoni, 2019, 176 p.
Resenhado por: Maria Nilza Mendes Campos

 

A potência dos encontros

À indagação "Por que Ferenczi?", Daniel Kupermann irá nos responder com a história de uma intensa parceria intelectual e afetiva, que nos leva a compreender a razão de ser do renascimento desse autor, silenciado ao longo de 40 anos. Ferenczi pertence à primeira geração de psicanalistas que, com outro sotaque, mas na mesma voz freudiana, ampliou em diferentes dimensões a pretensão terapêutica da psicanálise, ajudando-nos a enfrentar os impasses impostos pelo sofrimento psíquico na contemporaneidade.

O livro é um tratado de fôlego, que se apresenta como uma referência para quem quer ser introduzido às ideias de Ferenczi, bem como para profissionais experientes, que nele encontrarão uma riqueza de informações e dados bibliográficos. Fruto de sua tese de livre-docência no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da usp, o livro revela um percurso sólido e construído em parcerias. Na melhor tradição ferencziana, as relações horizontais e a solidariedade comparecem, com o autor dando passagem àqueles que o acompanharam, estando aí incluídos colegas de grupos, mestres, orientandos e ex-orientandos, o que traz consigo a marca do afeto, tão cara ao húngaro.

Kupermann nos leva a acompanhar os desdobramentos do intenso diálogo travado, durante 25 anos, entre Ferenczi e Freud, seu mestre, amigo e analista, fazendo-nos saber que um grande número das ideias inovadoras de Ferenczi sobre a técnica já estavam presentes desde o início de seu encontro com a psicanálise. Ao longo dos anos, enquanto Freud se debruçava sobre a construção de um aparato metapsicológico, cabia a Ferenczi a dimensão terapêutica da análise, sendo considerado por seus conterrâneos o "salvador dos fracassos dos outros, o especialista dos casos-limite" (Granoff, 1998, p. 149). Essa conversa com Freud, interrompida pouco antes da morte de Ferenczi, em razão de divergências quanto ao estatuto do trauma, acabou se prolongando até quatro anos após a morte de Ferenczi, quando Freud, em "Análise terminável e interminável" (1937), manteve um diálogo improvável com o amigo sobre o artigo "O problema do fim da análise", escrito por Ferenczi em 1928, e onde, é preciso ressaltar, o tema foi tratado pela primeira vez na literatura psicanalítica.

O livro abriga qualidades fundamentais, que articuladas tornam viva a herança do autor húngaro, mas gostaria de destacar uma em especial. É que, ao longo de todo o texto, somos convidados a voltar a Freud e fazer parte do diálogo travado entre os dois pioneiros, compreendendo que não podemos ler um deles sem nos referir ao outro. Kupermann nos leva a conhecer Ferenczi de mãos dadas com Freud, percorrendo os caminhos trilhados lado a lado. Sabemos que a psicanálise nasce atravessada por uma amizade, nas trocas entre Freud e Fliess. Mas, à diferença desse último, Ferenczi era também psicanalista e um entusiasta da ciência que nascia com Freud, tendo acompanhado o mestre em suas incursões teórico-clínicas.

O ponto de partida para essas aproximações entre Freud e Ferenczi será o artigo publicado por Freud em 1914 "Recordar, repetir e elaborar", um marco da teoria da clínica. Esse texto, que surgiria na esteira da alta do Homem dos Lobos, paciente com o qual Freud se vira às voltas com a estagnação da análise, deparando-se com dificuldades encontradas no tratamento dos casos difíceis, evidenciava os limites da técnica clássica, colocando em cena a questão da perlaboração, levando-o a interrogar-se sobre o que faria funcionar uma análise. Ferenczi aceitou o desafio e, sugere Kupermann, em sua obra se debruçou sobre a tentativa de trazer respostas à indagação freudiana, não se furtando aos impasses por vezes enfrentados pelo analista em sua clínica.

No segundo capítulo, "Limites e atualidade da técnica ativa", Kupermann empreende com mestria uma genealogia das incursões técnicas realizadas por Ferenczi para responder a Freud. Aqui, acompanhamos o nascimento do estilo clínico inaugurado por Ferenczi e testemunhamos seu furor curandi, evidenciado no entendimento de que o analista tem de ir aonde o paciente está. O leitor vai observar um Ferenczi incansável em suas experimentações, que não se rende às dificuldades encontradas e que

parece intuir que sem a expressão catártica própria das repetições em análise - e não é apenas da angústia que se trata, uma vez que vimos como a alegria própria ao lúdico também compõe o horizonte da técnica ativa - o trabalho de ligação esperado pela regra fundamental da psicanálise não se processa. (p. 48)

Vemos a repetição deixando de ser um entrave para o processo analítico e instaurando a possibilidade de construção de um novo modelo de relação analista-analisando. Inaugura-se, assim, uma nova compreensão do enquadre e de suas funções, em que o analista sai de uma posição passiva para, ao lado do analisando, estabelecer uma relação dupla de trabalho, permitindo que algo inédito possa ser construído sob medida em cada encontro analítico. Esse modelo de análise, por um caminho silenciado, e pouco dito, chegará aos analistas contemporâneos, e na mão de diferentes autores ganhará nuances e definições distintas, a partir de noções como campo analítico, tão cara ao casal Baranger e a Antonino Ferro, terceiro analítico, com Thomas Ogden, e outras, formuladas por Christopher Bollas, Jay Greenberg e René Roussillon.

As dimensões relacional e social do trauma são trazidas no terceiro capítulo, onde as experiências de abandono e vulnerabilidade vão ganhando contorno, com ênfase na resposta ao sujeito traumatizado. Será esse o viés norteador para que a questão do trauma avance no campo psicanalítico, verdadeiro ouro deixado por Ferenczi para a psicanálise contemporânea. Segundo Kupermann, Ferenczi

adquiriu a sensibilidade necessária para perceber que havia uma diferença clara, em alguns de seus pacientes, entre a angústia originada pela experiência de desamparo constitutivo (Hilflosigkeit) da subjetividade humana postulado por Freud (1926) e os estados mórbidos decorrentes do "choque" responsável pela paralisia do pensamento provocada pelo abandono traumático. (p. 56)

Ao revisitar a teoria do trauma e reconsiderar o lugar da criança na economia familiar, Ferenczi fez uma torção na teoria freudiana do trauma, deslocando a ênfase do intrapsíquico para o interpsíquico. Além disso, com o conceito de desmentido, introduziu a necessidade de reconhecimento do sofrimento vindo do campo do outro. Será na esteira das considerações do lugar particular do trauma na teoria ferencziana que o livro nos conduzirá aos desdobramentos clínicos empreendidos por Ferenczi e à expansão do território conceitual do arcabouço psicanalítico freudiano, com as noções criativas de identificação com o agressor, testemunho, desmentido, bebê sábio e progressão traumática.

Na sequência, de maneira inspiradora, Kupermann propõe chamar uma mudança no caminho das investigações teórico-clínicas de Ferenczi de virada de 1928, retomando a expressão virada de 1920, referente à obra de Freud. Trata-se de uma articulação orgânica dos três trabalhos que configuram uma trilogia trazida por Ferenczi quase no fim da vida: "A adaptação da família à criança", "A elasticidade da técnica psicanalítica" e "O problema do fim da análise". Neles começa a se delinear a importância a ser dada aos cuidados dispensados à criança para a constituição de um psiquismo saudável, fazendo com que o conceito de trauma passe a ganhar um sentido distinto do até então presente na psicanálise. Os artigos abordados são considerados indubitavelmente como a origem e fundação da clínica das relações de objeto, e constituem os pilares de seu estilo clínico.

No último capítulo, "A neocatarse e a via sensível da perlaboração", Kupermann navega em território que lhe é bastante familiar, pois ao longo dos últimos anos tem nos presenteado com grandes contribuições nessa direção, como faz notar seu recente livro Estilos do cuidado, onde conceitos como a empatia, a análise pelo jogo e o papel do lúdico na análise constituem verdadeiras ferramentas clínicas. Diante dos objetivos do término da análise, e após suas investidas técnicas, afirma o autor que o estilo clínico de Ferenczi, caracterizado pelo signo da neocatarse depois da virada de 1928, é o herdeiro dos impasses impostos à técnica psicanalítica pelos casos-limite apontados por Freud em "Recordar, repetir e elaborar". Dessa forma, Ferenczi teria encontrado uma resposta para a questão apresentada por Freud, sobre o que faria funcionar uma análise. A perlaboração seria a resposta, dizendo respeito ao jogo compartilhado dos afetos, em que é convocada uma maior disposição afetiva do analista, de maneira que o analisando possa experimentar a regressão à irresponsabilidade da infância numa atmosfera de confiança, com tempo e paciência necessários para elaborar suas resistências.

O escritor húngaro Sándor Márai, amigo de Ferenczi e grande conhecedor da alma humana, escreveu um obituário quando de sua morte prematura. Nele nos conta que Ferenczi instruiu a um dos membros de sua família que, por ocasião de sua morte, não acreditasse nela de imediato e o sacudisse com força. Pensava o corpo como um relógio, que para de vez em quando e que tem de ser sacudido para que siga adiante. Kupermann, com seu livro, faz valer esse desejo. Sacode Ferenczi, revitaliza e expande nossas possibilidades de leitura.

Sigamos agora nós essa conversa interrompida entre dois grandes amigos.

 

Referências

Granoff, W. (1998). Ferenczi: falso problema ou verdadeiro mal-entendido. Ágora: Revista de Psicanálise, 1(1),129-150.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Maria Nilza Mendes Campos
SHLN, bloco K, sala 312
70843-120 Brasília, DF
marianilza.campos@gmail.com

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