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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./un. 2021

 

EDITORIAL

 

A escrita da experiência clínica e seus dilemas na atualidade

 

 

Claudio Castelo Filho

Editor. São Paulo / claudiocasteloeditor@rbp.org.br

 

 

Antes de mais nada, agradeço a colaboração da minha preciosa equipe editorial, que tem feito um trabalho árduo para que a Revista Brasileira de Psicanálise esteja sempre em busca do maior parâmetro de qualidade e de expressão científica no campo da psicanálise. Permanentemente a postos estão Sonia Maria Camargo Marchini, Adriana Maria Nagalli de Oliveira, Cleusa Maria Gouveia Nery, Ernesto René Sang, Maria da Graça Câmara Barone, Maria Tereza Labate Mantovanini, Mariana Ali Mies, Osvaldo Luís Barison, Péricles Pinheiro Machado Jr. e Regina Lacorte Gianesi. Minha gratidão especial a Elsa Vera Kunze Post Susemihl, editora associada, cuja perspicácia e incansável trabalho, com notável dedicação e atenção aos mínimos detalhes, fazem do nosso empreendimento uma atividade de muito enriquecimento e ampliação.

Este número foi dedicado à prática clínica e a questões relativas a sua escrita. Destacamos esse tema, mas o consideramos um Leitmotiv com variações, que sempre permeará nossa pauta editorial. Contamos com a submissão de trabalhos vindos de todas as partes do Brasil para que ouçamos aquilo que estão constatando e desenvolvendo os colegas psicanalistas deste vasto país. Interessa-nos, mormente, conhecer o trabalho dos psicanalistas brasileiros, que estão entre os que têm uma das maiores atividades na prática de atendimento em consultório e atualmente também por meio eletrônico, em decorrência da calamitosa pandemia que assola o planeta e, de forma particularmente trágica, o nosso país. Adianto aqui os temas dos dois próximos números: Impasses e Supervisão, respectivamente.

Entre as questões que nos interessam, e são uma constante, estão não somente a descrição do que acontece nos atendimentos e a reflexão sobre estes, mas como se desenvolve uma escrita eficaz e comunicativa daquilo que lá é verificado, visto que, diferentemente do que se dá nas ciências naturais, não é possível replicar o "experimento" ocorrido nos consultórios ou nas sessões online, pois, se o objeto de nossas investigações não pode prescindir da observação do que se passa no campo sensorial, o que é realmente relevante captar e transmitir é o que ocorre no campo psíquico não sensorial, na mente, no espírito, na alma (não dou conotação religiosa aos dois últimos termos; apenas busco um modo de denominar aquilo que efetivamente importa captar em psicanálise). Faço aqui um paralelo com o que ouvi há décadas numa entrevista com a grande pianista franco-brasileira Magda Tagliaferro, ao comentar sobre a excessiva preocupação dos jovens músicos com a técnica. Ela disse algo aproximadamente assim: "Esses jovens estão tão preocupados com a técnica que acabam se esquecendo da música".

Não é que a técnica não tenha importância, e aqui já faço referência a algo contido nos artigos de Alexandre Socha e Luca Trabucco, autores que traçam um paralelo entre o que ouvem em sua prática clínica e a escuta/escrita musical.

Sem técnica de notação, não haveria como preservar apreensões de experiências psíquicas e transmiti-las. O relevante, contudo, não seriam propriamente as notações musicais, mas sua função, ou seja, se teriam a capacidade de transmitir a música para seus leitores ou para seus intérpretes - algo que não tem realização no campo sensorial, mas de que se pode ter um vislumbre por meio da notação ou da performance de um musicista de talento ao ler uma partitura, ou ainda antes, no caso de um compositor, ao ouvir a música e conseguir uma forma eficaz de registrá-la e transmiti-la.

Essa questão da notação de nossa atividade psicanalítica, que possa conter invariantes reconhecidas por todos que trabalhem em nosso campo, foi uma das principais preocupações de Freud - cujo único prêmio ganho em vida foi o Goethe, de literatura - e de Bion - de forma explícita, durante toda a sua obra, na sua busca de uma language of achievement, expressão que não tem tradução correspondente em português, mas da qual se tenta uma aproximação com linguagem de êxito,linguagem de consecução,linguagem de alcance, entre outras. Como se pode ver, até para traduzir uma expressão de uma língua para outra já nos defrontamos com dificuldades. Por isso, consideramos que esse tema é de incontestável importância para o desenvolvimento de nossa ciência, que tem tanta relação com o campo das artes e da estética.

Entre os colaboradores deste número está a destacada psicanalista americana Annie Reiner, profunda conhecedora da obra de Bion, com quem conviveu de forma intensa no período em que ele esteve na Califórnia, onde ela mora. Annie também é uma talentosa poeta e pintora, escreveu importantes livros sobre sua atividade psicanalítica e faz parte de uma família de destacados produtores e atores do cinema americano.

Temos em seguida a contribuição de três destacados colegas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o psicanalista Claudio Cohen, Gisele Gobbetti e Reynaldo Ayer de Oliveira, que estão ligados ao Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (Cearas), do Instituto Oscar Freire da FMUSP. Eles escrevem um relevante trabalho sobre temas vitais para nós, a ética e a estética, embasados na obra de Freud e de Klein.

Os trabalhos temáticos são os de Alexandre Socha, Berta Hoffmann Azevedo e Luiz Eduardo Prado. Alexandre e Berta têm em comum a busca de dar representatividade a algo que não encontrou caminho para essa dimensão: ele, ao considerar a musicalidade da experiência, mais que seu conteúdo; ela, ao verificar o circuito da dor e sua relação com o masoquismo erógeno. Luiz Eduardo Prado traz, com base em sua experiência de atendimentos em um hospital na França, o trajeto de Winnicott, cujos livros foram escritos a partir de emissões radiofônicas feitas durante a Segunda Guerra Mundial, no período em que as crianças foram evacuadas dos centros urbanos e separadas dos pais.

Nos trabalhos de tema livre, deparamo-nos com o artigo de Anne Lise Di Moisè S. Scappaticci e Marina F. R. Ribeiro, que fazem um intenso estudo sobre o objeto psicanalítico tal como concebido por Bion. Em seguida, vem a contribuição do colega italiano, estabelecido em Gênova, Luca Trabucco, que reflete sobre a importância do setting para além de sua dimensão material, e sua relevância como espaço em que o ser e o sonhar seriam inseparáveis - para ele, o setting cria o espaço para ouvir a música e fazê-la ressoar no analista. Gisele Milman Cervo e Silvia Abu-Jamra Zornig propõem que, ao sentir-se desalojado em seu corpo, o indivíduo necessita de rearranjos sensoriais para que haja reapropriações subjetivas, para que assimile um senso de identidade e de alteridade. Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo e Henrique Uva do Amaral tratam da mudança do enfoque na questão edípica da teoria da sedução para o enfoque da realidade psíquica. Cassandra Pereira França, apoiando-se em Freud e em Ferenczi, lida com a dor psíquica ao considerar a migração das imagens para o campo da palavra, e aqui também há uma analogia musical.

Boa leitura para todos!

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