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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./un. 2021
INTERCÂMBIO
O místico: intuição, verdade e beleza1
The mystic: intuition, truth and beauty
El místico: intuición, verdad y belleza
Le mystique : intuition, vérité et beauté
Annie ReinerI; Tradução de Carlos Malferrari
IPh.D. Membro docente sênior e analista didata do Centro Psicanalítico da Califórnia (PCC), em Los Angeles, EUA. Autora dos livros The quest for conscience and the birth of the mind (Karnac, 2009) e Bion and being: passion and the creative mind (Karnac, 2012). Editora de Of things invisible to mortal sight: celebrating the work of James S. Grotstein (Karnac, 2016). É também poeta, dramaturga e pintora. Los Angeles / anniereinerphd@gmail.com
RESUMO
A autora examina o controverso relacionamento entre o conceito O de Bion e o misticismo. Acesso a O representa essencialmente um profundo nível de intuição que abarca tanto o território do sonhar quanto o do pensar, uma espécie de "sonho acordado". Controvérsias em torno dessas ideias refletem a crença de alguns analistas de que o misticismo é antitético à ciência, apesar de Bion afirmar claramente que "os Místicos aparecem em qualquer religião, ciência, tempo ou lugar". A autora faz uma clara distinção entre o significado religioso de "místico" e o do ponto de vista psicanalítico de Bion do místico, uma distinção evidente no seu uso do termo "místico" como sinônimo de "gênio" ou "pessoa excepcional". Tanto nas artes quanto nas ciências, essa intuições são estados de mente cultivados por disciplina, trabalho árduo e paixão pela verdade. Exemplos clínicos ilustram essas ideias.
Palavras-chave: Bion, "O", místico, gênio, sonhos
ABSTRACT
The author examines the controversial relationship between Bion's concept of O and mysticism. Access to O essentially represents a profound level of intuition that straddles the realms of dreaming and thinking, a kind of "waking dream". Controversies surrounding these ideas reflect some analysts' belief that mysticism is antithetical to science, although as Bion clearly states, "Mystics appear in any religion, science, time, or place." The author distinguishes between the religious meaning of "mystic" and Bion's psychoanalytic view of the mystic, a distinction evident in his use of the term "mystic" as synonymous with 'genius" or "exceptional person." Whether in the Arts or Sciences, these intuitions are states of mind cultivated through discipline, hard work, and a passion for truth. Clinical examples illustrate these ideas.
Keywords: Bion, O, mystic, genius, dreams
RESUMEN
La autora examina la polémica relación entre el concepto O de Bion y el misticismo. Acceso a O representa esencialmente un profundo nivel de intuición que abarca tanto el territorio del soñar como el del pensar, una especie de "sueño despierto". Controversias alrededor de esas ideas reflejan la creencia de algunos analistas de que el misticismo es una antítesis a la ciencia, a pesar de Bion afirmar claramente que "los Místicos aparecen en cualquier religión, ciencia, tiempo, o lugar". La autora distingue entre el significado religioso de "místico" y desde el punto de vista psicoanalítico de Bion de místico, una distinción evidente en su uso del término "místico" como sinónimo de "genio" o "persona excepcional". Tanto en las artes como en las ciencias, esas intuiciones son estados de mente cultivados a través de la disciplina, del trabajo duro, y de la pasión por la verdad. Ejemplos clínicos demuestran esas ideas.
Palabras clave: Bion, O, Místico, genio, sueños
RÉSUMÉ
L'auteure examine le rapport controversé entre le concept O de Bion et le mysticisme. L'accès à O représente essentiellement un niveau profond d'intuition qui renferme autant la compétence de rêver que celle de penser - un genre de « rêve éveillé ». La croyance de certains analystes qui considèrent que le mysticisme est antithétique à la science, met en évidence des controverses autour de ces idées, bien que Bion ait clairement affirmé que « les Mystiques apparaissent en tout(e) religion, science, temps ou lieux ». L'auteure fait une distinction claire entre le sens religieux de « mystique » et le « mystique » en tant que synonyme de « génie » ou de « personne exceptionnelle ». Aussi bien chez les arts que chez les sciences, ces intuitions sont des états d'esprit cultivés par l'intermédiaire de la discipline, du travail ardu, et de la passion pour la vérité. Les idées présentées sont illustrées par des exemples cliniques.
Mots-clés: Bion, O, mystique, génie, rêve
[Uma] fonte de distorção é a tendência de vincular F [fé] com o sobrenatural por falta de experiência do "natural" relacionado a F.
WILFRED R. BION
É preciso olhar do espaço, de uma grande distância, para ver a forma da Terra. Do mesmo modo, precisamos de uma visão de sobrevoo para poder ver a cena completa de uma sessão. Não a cena completa completa, pois, como Bion deixa claro, a apreensão de O - a coisa em si, a verdade absoluta - não é possível com nosso aparato mental habitual. Temos condições, no entanto, de chegar a uma visão muito mais abrangente do que nossa mente egocêntrica é capaz. Claro, essa visão de sobrevoo não se dá através dos nossos olhos ou qualquer outro órgão sensorial - ela não é visual, auditiva, olfativa etc. -, pois é sentido ou sonhado ou "visto" com um terceiro olho cego. Se conseguirmos suspender as funções de nosso ego e nos tornarmos unos com o objeto de nossas percepções, nossa perspectiva será ampliada, por certo, mas estará fora dos limites do que normalmente é chamado de oneself "si mesmo."
Talvez retornemos ao nosso self mais familiar munidos de novos conhecimentos, que vão além das nossas percepções usuais, mas assim como a Nasa não enviaria seus astronautas ao espaço sideral sem uma cuidadosa estratégia de retorno, não devemos viajar para o espaço mental exterior/interior sem alguma noção de como retornar ao nosso self físico terrestre.
O conceito de O é certamente a parte mais controversa da obra de Bion. Não há nada mais claro do que a falta de clareza provocada por esse conceito. No entanto, ele é central para o tema desta exposição, pois o acesso a essa realidade exaltada reflete um grau profundo de intuição, que Bion vê como necessário ao trabalho clínico. E o aspecto mais controverso desse estado controverso é sua associação com o misticismo. Tive discussões acaloradas com vários analistas sobre se Bion pretendia que O representasse um estado místico, e vou aqui mergulhar direto nessa questão tão polêmica, que, creio eu, está no cerne de seu legado. Apontarei evidências nesse sentido utilizando as próprias palavras de Bion e tentarei discernir como preconcepções religiosas sobre o místico diferem do modo como Bion utiliza o termo.
O místico e o grupo analítico
Alguns admiradores das primeiras contribuições de Bion veem O e a ideia do místico como um capítulo lastimável de sua obra, que alguns atribuem ao fato de Bion ter permanecido tempo demais na "La La Land" de Los Angeles. Também já ouvi dizerem que "todos os analistas de Los Angeles adoram O". Posso lhes garantir que isso não é verdade. Todavia, a questão de saber se Bion pretendeu ou não que O representasse um estado místico sempre me surpreende, visto que ele afirmou isso bem claramente. Trata-se talvez, ao menos em parte, de um problema de linguagem, pois, em essência, a questão talvez não seja se Bion pretendeu que O representasse um estado místico, e sim o que ele quis dizer com a palavra místico.
Um argumento comum vê o misticismo como antitético à ciência. Concordo que as crenças religiosas tradicionais associadas ao misticismo podem ser inconciliáveis com uma perspectiva científica ou psicanalítica, mas isso não torna o místico em si antitético ao que Bion quis dizer com o termo. "Místicos surgem em qualquer religião, ciência, época ou lugar. Tais pessoas 'contêm' a ideia messiânica ou talvez a 'ideia messiânica' as contenha" (Bion, 1970, p. 110). Ele deixa isso ainda mais claro no seguinte excerto:
Utilizarei o termo "místico" para descrever esses indivíduos excepcionais. Incluo os cientistas, e Newton é o exemplo mais notável de tal homem: suas preocupações místicas e religiosas foram descartadas como aberrações quando deveriam ser consideradas a matriz a partir da qual suas formulações matemáticas evoluíram. (p. 64)
Do mesmo modo, expungir a concepção de místico da legitimidade das obras anteriores do autor é não perceber que essas concepções místicas "malucas" talvez sejam a base e/ou a consumação de sua obra, não uma aberração. A ideia messiânica é uma ideia nova, previamente invisível - e, portanto, ameaçadora e estranha para aqueles que não conseguem vê-la. Creio, pois, que as teorias de Bion sobre o pensar, mais universalmente admiradas, constituem o alicerce dos aspectos místicos de O enquanto mudança do paradigma analítico. A ideia de a perspectiva mística fazer parte do método analítico tem por base esse estado intuitivo profundo em conjunção com a capacidade de pensar, tal como Bion a definiu.
Em suas teorias sobre o pensar, Bion (1962a, 1962b, 1963) introduziu o conceito de mente/self saudável como uma relação entre pensar e sentir, entre continente e contido. O pensar é fundado na capacidade de sonhar; todavia, como mostrei em outros artigos (Reiner, 2004, 2017), o acesso ao estado místico pode tornar-se um substituto do pensamento caso seja motivado por uma evasão de emoções dolorosas, e não por uma integração com estas.
Essas distinções também podem ser confirmadas pelo uso que Bion (1970) faz da palavra místico como sinônimo de "gênio" ou "indivíduo excepcional", o que remove as implicações estritamente religiosas e a traz para a esfera da experiência religiosa vista através das lentes do conhecimento psicanalítico. Simplificando, o místico, ou gênio, consegue ver um estado que é incognoscível exceto por meio desse canal metafísico de tornar-se uma experiência. As pessoas não gostam de mudanças, como vemos todos os dias em nossos pacientes e em nós mesmos, e muitos místicos ou profetas foram ridicularizados ou até condenados à morte por suas ideias inabituais. Se a mudança for temida como catastrófica para o status quo mental, poderia haver maior estímulo para o medo do que um desconhecido infinito que está infinitamente fora de alcance? E haveria estímulo maior para invejar aqueles para quem esse estado é (ainda que apenas nominalmente) mais acessível? Mate-se a ideia, e a inveja, matando-se o mensageiro - o místico, gênio ou pessoa excepcional. Como um desses indivíduos extraordinários, Bion é amplamente reconhecido por ter trazido mudanças para a psicanálise, mas não a despeito dessa visão elusiva, como ele disse acerca de Newton, mas justamente por causa dela. Em que medida as tentativas de Bion para desvelar esses mistérios aos psicanalistas estão sendo mortas?
Ao longo da análise de várias pessoas altamente intuitivas e dotadas de capacidades psíquicas - por exemplo, consciência telepática e visões prescientes de eventos futuros (Reiner, 2004, 2012, 2017) -, fui percebendo que elas tinham certas coisas em comum. Embora não fossem psicóticas, todas haviam sofrido traumas emocionais graves no início da vida que levaram à ruptura das fronteiras mentais de tempo e espaço, e dos limites entre o self e o outro. Ferenczi (1995) notou algo semelhante em bebês emocionalmente traumatizados, cujas mães muitas vezes sofriam de doenças mentais, os quais buscavam alívio para a falta de apego real por meio de uma relação com o que ele chamou de astra, um recanto distante nas "estrelas". Embora os tenha denominado de bebês sábios, que desenvolveram capacidades cognitivas inacessíveis a outros, ele via essas capacidades como estados de dissociação e fragmentação. Tendo observado ambas as coisas em meus pacientes similarmente dotados, conjecturei que visionários e místicos religiosos talvez tenham sido como esses bebês sábios, providos de inaudita intuição nascida de mentes igualmente fragmentadas quando privados do apego adequado. Como sabemos, até mesmo o profeta Moisés foi lançado à deriva por sua mãe quando ainda bebê.
Se estados místicos de alta intuição, tanto em místicos religiosos quanto em bebês sábios traumatizados que atendemos em nosso consultório, provêm desses tipos de estado patológico, em que difere a maneira como Bion concebe o místico? Para começar, conforme sugerido antes, trata-se de algo conjugado com uma capacidade de pensar baseada na contenção de sentimentos primitivos. O conceito de mente saudável, definida como um self que sente e pensa, redefine o misticismo religioso como uma versão psicanalítica do místico. Além de o analista ter acesso aos estados oníricos intuitivos do místico, sua mente precisa ser suficientemente organizada para refletir sobre visões oníricas apreendidas por uma mente não racional e desorganizada. Uma coisa que aprendi com meus pacientes extraordinários (Reiner, 2004, 2006, 2012, 2017) foi que sua prodigiosa intuição muitas vezes em nada contribuía para o pensar. Também aqui a necessidade de escapar dos sentimentos de perda é um sucedâneo primitivo do pensar sobre eles, uma busca por informações antes do desenvolvimento de uma real capacidade de pensar. Visto que essas intuições frequentemente notáveis não estavam baseadas na capacidade de sentir ou de conter sentimentos, esses indivíduos não podiam de fato confiar no que sabiam.
Essa ideia analítica contribui para o entendimento das visões do místico religioso, ainda que elas possam ser reflexo de desagregação mental similar. Bion e outros descreveram esses colapsos como descobrimentos de novos âmbitos do conhecimento, desde que se consiga transformar, e não eludir, essas experiências dolorosas. Os bebês sábios que atendi tiveram primeiro de ser ajudados a desenvolver um self/mente capaz de sentir/pensar para que pudessem utilizar ou dar sentido aos conhecimentos apreendidos por outros meios que não o pensamento racional. O atendimento desses pacientes é meio como equilibrar-se no fio da navalha, respeitando seus dons singulares, mas ajudando-os a lidar com os detritos mentais de estados dissociativos derivados de privações no início da vida.
Na ausência da capacidade de pensar tal como Bion a descreveu, essas visões muitas vezes são interpretadas concretamente como mensagens de um Deus reificado, não como a capacidade de adquirir conhecimentos por meio da experiência intuitiva. É a diferença entre o dogma cristão primitivo, que via Cristo como o Filho reificado de um Deus reificado, e os gnósticos, que na mesma época histórica viam Cristo como um mestre de mistérios metafísicos a serem aprendidos pelo indivíduo. Esse último é um modelo científico, enquanto o primeiro, exigindo lealdade a um Deus externo e interno onipotente, é anticiência, incompatível com o aprender com a experiência.
Se, para Bion, a capacidade intuitiva de O é essencial ao trabalho psicanalítico, será que todos deveríamos ser místicos? Espero que não. Todavia, significa que temos de arcar com a consciência de que não o somos e continuar tentando demover nossas barreiras mentais a esse tipo de sabedoria se quisermos ajudar nossos pacientes a fazer o mesmo.
Segundo todos os relatos, Bion sentiu que havia falhado em seus esforços para explicar esses aspectos elusivos de seu trabalho. Apesar das várias tentativas de encontrar uma linguagem capaz de expressá-los - primeiro, buscando matematizar a psicanálise em Transformações e, mais tarde, valendo-se de um fluxo mais evocativo de inconsciência em Uma memória do futuro -, ele não conseguiu elucidá-los. Levantei essa questão em uma conversa com Francesca Bion, décadas após a morte de seu marido, observando o quanto deve ter sido frustrante para ele sentir que suas ideias não eram compreendidas. Ela respondeu: "Sim, é sempre difícil um gênio ser compreendido" (comunicação pessoal, 2012).
Verdade e beleza: uma vinheta clínica
Recentemente, apresentei a um analista visitante o caso de um jovem com esse tipo de dom intuitivo ou espiritual. Vi nesse paciente uma alma pura, um bebê ou feto traumatizado por não ter sido aceito emocionalmente pelos pais. Apesar disso, algo essencial havia sobrevivido, e ele não perdera nem a inocência nem a curiosidade. Pressenti obstáculos que certamente surgiriam à medida que o tratamento se aprofundasse, mas naquele momento fiquei impressionada pela franqueza e transparência de um indivíduo verdadeiramente singular.
Hesitei antes de apresentar o caso em uma conferência e minha incerteza mostrou-se presciente, pois um grande número de participantes (talvez seguindo a orientação do supervisor visitante) ressaltou a patologia perturbadora do paciente. Senti-me mal pelo fato de que o que eu apresentara estivesse sendo visto através de lentes distorcidas, mas me senti muito pior por meu paciente, cuja alma estava sendo distorcida na mente do grupo. Certa analista intuitiva na plateia disse achar que o grupo estava fazendo com o paciente o mesmo que a mãe fizera com ele. Com tristeza, notei que isso descrevia bem o que estava acontecendo.
Eu já comentara sobre as possíveis obstruções, mas em nossa prática clínica a questão é sempre onde estamos neste momento e tentar encontrar o paciente ali. O que senti nas primeiras sessões, e o que achei que o grupo não conseguiu ver, foi um jovem com uma mente cheia de vitalidade. Precisei me fazer uma pergunta relacionada a essa experiência, a saber: somos capazes de ver a verdade e a beleza que residem na mente de um paciente? Conseguimos ver a pessoa extraordinária, o gênio oculto ou potencial? Em grande medida, o que Bion trouxe para a psicanálise foi um modelo não apenas de patologia, mas de saúde mental, um caminho pelo qual realizar o potencial da mente humana para a criatividade, a verdade, o pensamento e o significado. Infelizmente, vemos muita feiura, isto é, os danos sofridos e os obstáculos à verdade e à beleza. Não somos treinados para lidar com a beleza, e lidar com a patologia sem um olho na saúde mental certamente não é suficiente.
Beleza é verdade; verdade, beleza - eis tudo
Que sabeis na terra, e tudo o que precisais saber.
(Keats, 1819/2006, p. 906)
Isso é tudo o que precisamos saber. O paciente talvez nem sempre sinta que a verdade seja bela, mas nós, como analistas, certamente precisamos enxergar a beleza mesmo nas verdades mais dolorosas se quisermos ajudar a tirar alguém do inferno de uma mente construída sobre mentiras - pois mentiras, como disse Bion, são tóxicas para a saúde mental. Sem verdade, a mente morre.
A vida e morte do self
A ideia da morte da mente ou do self é fundamental para as religiões orientais e ocidentais. Cristo diz: "Abra mão de sua vida e me siga. Quem quiser salvar sua vida a perderá; mas quem perder a vida por mim a encontrará" (Mateus 16,24-26).
A qual vida é preciso renunciar? Creio que se trate de um self como o falso self de Winnicott (1960/1990), separado da verdade natural e da beleza do self mais profundo. Ao abrir mão desse falso e truncado self, talvez a pessoa encontre a mente mais expansiva representada por O. Isso se dá, diz Bion, pela suspensão da memória, do desejo e do entendimento, uma morte temporária do self com o qual a pessoa costuma se identificar. Bion adverte sobre o perigo de o ego regredir quando se depara com a ausência de limites da mente do bebê. Cristo disse também que "uma criança os guiará", referindo-se a esse self expansivo, embora também existam perigos externos para a criança, o místico ou o gênio. O medo ou a inveja de suas capacidades podem matar o indivíduo, mas suas ideias também podem ser mortas pela adoração de um gênio que está "sobrecarregado com honras a ponto de naufragar sem deixar qualquer traço" (Bion, 1970, p. 78).
Bion falou de sua própria morte mental: "Morri em 8 de agosto de 1918", escreveu ele sobre suas experiências traumáticas aos 18 anos, como comandante de um tanque na Primeira Guerra (Bion, 1982, p. 265). Ele conseguiu recompor as peças de sua explosão mental, o que provavelmente contribuiu para sua produção criativa posterior. Embora eu mesma nunca tenha ido à guerra, também vivenciei uma espécie da morte do self que antes eu imaginava ser. Como podemos andar por aí pensando que somos uma pessoa e de repente descobrir que não é quem somos? Talvez devamos chamar isso de retorno do recalcado, ou retorno daquilo que nunca foi recalcado, sentido ou representado mentalmente. O que aprendi é que sanidade não é a ausência de insanidade, mas a capacidade de processar grandes ondas de sentimentos de uma maneira que promova a criatividade e o crescimento.
Até aquele momento, eu nada sabia sobre o muro que protegia o bebê impostor que, aparentemente, crescera e se tornara um fac-símile de mim mesma. Como todo bebê, minha criança impostora era adorável. Todos a amavam - pais, amigos, professores, amantes... Até seus dois primeiros analistas a amavam, pois não conseguiram distinguir vida mental de morte mental. Eu acreditava que eu me odiava, mas acabei descobrindo que odiava a impostora que todos amavam e que usurpara minha vida.
As pessoas evitam a dor, sem se dar conta de que também terão de evitar o prazer. Com bastante frequência, encontramos esses bebês impostores que precisam morrer para abrir espaço para a verdadeira dor e alegria que eles inadvertidamente abandonaram. Darei dois breves exemplos clínicos para ilustrar a complexidade do tratamento desses estados mentais de vida ou morte.
Exemplo clínico 1: Lola
Lola iniciou tratamento há três anos, sentindo-se ansiosa e perdida. Tinha intensos sentimentos de ódio por si mesma, o que era interessante em vista dos intensos sentimentos de amor que eu às vezes tinha por ela. Descreveu seus pais como pessoas amorosas, mas eles a consideravam a "pessoa sensível" da família, o que essencialmente queria dizer uma pessoa problemática, que eles não conseguiam entender. Os sonhos de Lola eram peculiarmente opacos e, de modo geral, as imagens evocavam pouca emoção ou significado. Isso mudou.
Sonhei que estava no quintal da casa de minha infância brincando com meu cachorro, Roo-coo. Fui até a cozinha onde meus pais estavam sentados. Eles me deram algum tipo de artefato especial, que levei para meu quarto... Mais tarde, me perguntei: "Minha mãe ficou triste quando Roo-coo morreu?".
Lola, assim como sua mãe, amava Roo-coo. O cachorro foi sacrificado quando Lola estava fora de casa, na faculdade. Perguntei-lhe sobre o nome do cachorro, e ela riu: "Não quer dizer nada!". Ela não sabia o que era o artefato que recebeu, só que era importante, e por isso guardou-o em seu quarto.
Interpretei que Roo-coo representava Lola e que talvez ela houvesse "morrido" quando criança. Sentira-se temerosa e confusa, sem saber se sua mãe ficara triste ou sequer notara essa "morte". Embora valorizasse o "artefato" especial que os pais lhe deram - a vida? um self? -, ela na realidade não sabia o que era. Lola me olhou com tristeza: "Sempre achei que precisava consertar meus pais, pois eu sabia de coisas que eles não sabiam". Como os bebês sábios, ela parecia possuir um conhecimento desconhecido de sua vida, um lindo artefato desconhecido.
Lola odiava seu self impostor, mas não conhecia outro. Como Roo-coo, era amada por sua mãe, mas como um cachorro, servil e inconsciente. Seus sonhos já haviam se tornado mais significativos, e agora podiam ajudá-la a refletir sobre sua verdadeira história no lento renascimento de seu self morto.
Exemplo clínico 2: Erin
Este último exemplo oferece uma mistura complexa de estados de vida e morte mentais.
Erin foi adotada aos 4 meses. Nada se sabe sobre esses primeiros meses, mas ela chegou a seu novo lar com uma dolorosa erupção de pele. Não conseguia chorar, de modo que seu terror e sua desesperança foram claramente bloqueados. A mãe adotiva era bem-intencionada, mas perturbada, e mais tarde tornou-se clinicamente deprimida. Erin, aos 10 anos, frequentemente agia como cuidadora da mãe.
No início, boa parte da análise parecia consistir em acalentar em silêncio aquele bebê em meu peito, um bebê particularmente amoroso, mas aparentemente inalcançável por meio de palavras. Encerramos a análise após 17 anos e, embora eu sentisse que ainda havia trabalho a realizar, concordamos que ela estava pronta para viver sua vida. Tinha sido promovida a ceo de uma empresa de sucesso, mas três anos depois, estressada pela politicagem tóxica da organização, sentiu-se novamente perdida e retornou ao tratamento para "dar um ajuste". Após alguns meses de sessões semanais, sentiu-se mais inteira novamente e encontrou coragem para deixar o emprego. Realizou o sonho de escrever um romance, e foi com alegria que, naquela sessão, afirmou que recebera incentivo e demonstração de interesse por seu trabalho.
Sonhei que estava deitada em posição fetal e não conseguia me mover. Algo em mim disse: "Você tem de ficar imóvel". Eu disse: "Isso não é verdade! Imobilidade é morte!". Foi como um debate entre duas partes de mim mesma. De repente, sou um bebê no berço. Minha mãe entra e diz: "Vamos, você pode se mover. Hora de levantar!". Eu sabia que podia me mover, mas tinha medo de fazê-lo... ou não queria me levantar.
"Que sonho estranho", Erin observou, "porque eu estou me movendo, estou gostando do meu trabalho... Eu me sinto bem." Ela fez uma pausa. "Acho que não queria era me levantar e interagir com minha mãe", e lembrou que, por volta dos 7 anos, não queria que a mãe a tocasse. "Mas eu também a adorava... Minha mãe era ativa, ocupada, sempre fazendo coisas."
Achei o sonho um tanto ardiloso. Mudanças sempre provocaram em Erin certo terror de abandono, de modo que me perguntei se seu recente renascimento criativo teria despertado o desejo de permanecer em um útero seguro comigo e evitar essa mudança assustadora. Por outro lado, isso não combinava com seu senso atual de leveza e esperança. Por fim, vi esse sonho como uma imagem do "nascimento" do selfimpostor de Erin, sua identificação com a mãe ativa, ocupada e idealizada. Mas algo estava mudando. Uma ideia me ocorreu, de que ela retornara a seu self fetal, só que dessa vez a fim de se erguer novamente como ela mesma e escrever sua história, não a de sua mãe. Ela percebe no sonho que é capaz de se levantar, mas não quer fazê-lo se isso significar ter de cuidar daquela mãe ocupada novamente - e, pior, ter de sê-la. Essa tarefa, como o cargo executivo que ela finalmente largou, não deixara espaço para seu self interior.
Erin estava certa, imobilidade pode ser a morte. Mas também pode ser vida, um ponto nodal a partir do qual recomeçar, movida por sua própria energia, não pela ansiedade da mãe ou por sua ansiedade com a mãe. Esse último é um movimento que parece vida, mas é impulsionado por seu self impostor. Erin aparenta estar se debatendo aqui com esses diferentes significados de vida e morte, pois o que parece ser a imobilidade da morte pode ser os derradeiros suspiros do impostor que vivia a vida dela enquanto seu self infantil permanecia congelado na posição fetal. Estes versos de um dos Quatro quartetos de T. S. Eliot me vieram à mente:
No ponto imóvel do mundo que gira. Nem de carne nem sem;
Nem ida nem vinda; no ponto imóvel, lá está a dança,
Mas nem suspensão nem movimento. E não chame fixidez ...
Não fosse o ponto, ponto imóvel,
Não haveria dança, e há somente dança.(1943/1971, pp. 15-16)
Seria preciso estar familiarizado com os dois tipos de imobilidade para determinar se se trata da "fixidez" estática de dormência ou entorpecimento emocional, ou de uma imobilidade que subjaz à verdadeira liberdade de movimento. Julguei que as imagens no sonho de Erin refletiam a imobilidade generativa do "ponto imóvel" de Eliot, do qual pode emanar o movimento autêntico do self - a singularidade a partir da qual nasce o universo mental. Em seu sonho, Erin conseguiu expressar essa complexa questão de vida e morte metafísicas, a distinção entre um self vital e um impostor convincente que relega esse self vital a uma imobilidade mortal. Seu sonho ajudou-me a refletir sobre aquele ponto imóvel do mundo que gira, um ponto assustador em que o bebê impostor tem de morrer, abandonando o que parece um nada sem fim, mas pode ser o começo de tudo que é real. Precisamos fazer a pergunta - "Ser ou não ser?" -, mas devemos primeiro ter a intuição de discernir qual é qual, a fim de poder ajudar os pacientes a morrer para que consigam viver.
Referências
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Recebido em 2/3/2021
Aceito em 16/3/2021
1 Este trabalho foi apresentado em versão anterior na Conferência Internacional de Bion de 2020, em Barcelona.
Tradução de Carlos Malferrari
Revisão técnica de Elsa Vera Kunze Post Susemihl