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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./un. 2021

 

TEMAS LIVRES

 

Teoria da sedução: ascensão e queda ou O surgimento do Édipo

 

Theory of seduction: rise and fall or The emergence of Oedipus

 

Teoría de la seducción: ascenso y caída o El surgimiento de Edipo

 

Théorie de la séduction : ascension et chute ou L'avènement d'œdipe

 

 

Guilherme Magnoler Guedes de AzevedoI; Henrique Uva do AmaralII

IPsicólogo pela Universidade do Sagrado Coração (USC - Bauru/SP). Mestre em psicologia do desenvolvimento e saúde pela Universidade Estadual Paulista (Unesp - Bauru/SP). Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / guilherme.mga@hotmail.com
IIPsicólogo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp - Assis/SP). Mestre em psicologia e sociedade pela mesma instituição. São Paulo / henrique.uvaa@gmail.com

 

 


RESUMO

O abandono da teoria da sedução foi essencial para o desenvolvimento da psicanálise, tendo em vista que possibilitou a descoberta das fantasias inconscientes e da sexualidade infantil. Com base nisso, analisamos neste artigo, por meio da correspondência entre Freud e Fliess, quais motivos levaram Freud a defender sua teoria da sedução e, posteriormente, a rejeitá-la. Além disso, buscamos demonstrar que, à medida que o autor adquiriu maior compreensão sobre a noção de realidade psíquica e sobre os impulsos infantis, esse caminho o levou diretamente ao Édipo.

Palavras-chave: teoria da sedução, sexualidade infantil, trauma, fantasia, complexo de Édipo


ABSTRACT

The abandonment of the theory of seduction was essential to the development of psychoanalysis, considering that it enabled the discovery of unconscious fantasies and of the infant sexuality. Having this as basis, the objective of this article is to analyse, through the correspondence between Freud to Fliess, which reasons led Freud to defend his Theory of Seduction and, later on, reject it. Furthermore, we try to demonstrate that, as the author acquires a wider comprehension about the notion of psychic reality and the childhood impulses, this path led him straight to Oedipus.

Keywords: theory of seduction, infantile sexuality, trauma, fantasy, Oedipus complex


RESUMEN

El abandono de la teoría de la seducción fue esencial para el desarrollo del psicoanálisis, considerando que hizo posible el descubrimiento de fantasías inconscientes y de la sexualidad infantil. Con base en esto, el objetivo de este artículo es analizar, por intermedio de la correspondencia de Freud con Fliess, qué razones llevaron a Freud a defender su teoría de la seducción y, posteriormente, a rechazarla. Además, buscamos demostrar que, a medida que el autor adquirió una mayor comprensión de la noción de realidad psíquica y de los impulsos infantiles, este camino le llevó directamente a Edipo.

Palabras clave: teoría de la seducción, sexualidad infantil, trauma, fantasía, complejo de Edipo


RÉSUMÉ

L'abandon de la théorie de la séduction a été essentiel pour le développement de la psychanalyse, vu qu'elle a permis la découverte de fantasmes inconscients et de la sexualité infantile. Fondé sur ces idées, l'objectif de cet article est d'analyser à l'appui de la correspondance de Freud avec Fliess, quelles raisons ont conduit le premier à défendre sa théorie de la séduction et, plus tard, à la rejeter. En plus, on cherche à démontrer que, au fur et à mesure que l'auteur a acquis une meilleure compréhension de la notion de réalité psychique et des impulsions infantiles, ce chemin l'a conduit directement à œdipe.

Mots-clés: théorie de la séduction, sexualité infantile, traumatisme, fantasme, complexe d'œdipe.


 

 

Introdução

A teoria da sedução, ou neurótica (como Freud veio a chamá-la), marca um capítulo importante da obra freudiana. Se a psicanálise foi fundada com o conceito de recalque, é com o abandono da teoria da sedução e a descoberta das fantasias inconscientes que ela ganha seu mais forte impulso, visto que a teoria do recalque obtém dois reforços de peso: a sexualidade infantil e a realidade psíquica.

É bem sabido que a neurótica é abandonada formalmente no dia 21 de setembro de 1897, em uma carta a Fliess. Neste artigo, gostaríamos de analisar, examinando o interior das cartas a Fliess (Masson, 1985/1986), como se deu o surgimento da teoria da sedução e de que forma esta ganhou corpo, para em seguida acompanhar o penoso processo de abandono dela.

Uma vez que nossa atenção está centrada no movimento de ascensão e queda da neurótica, e não na teoria propriamente dita, faremos, a fim de contextualizar o leitor, apenas um breve resumo dela, sem nos adentrar em seus detalhes e inconsistências. Ademais, é importante esclarecer que a relação feita mais adiante entre o abandono da teoria da sedução, a fantasia inconsciente e o Édipo visa demonstrar somente o momento do surgimento do último na obra freudiana, de modo que não buscamos uma conceituação do conceito de complexo de Édipo.

 

A teoria da sedução

A teoria da sedução é oficialmente apresentada em três trabalhos freudianos, todos publicados em 1896: "A hereditariedade e a etiologia das neuroses" (1896/1996b), "Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa" (1896/1996e) e "A etiologia da histeria" (1896/1996a). Entretanto, conforme veremos a seguir, é possível afirmar que ela pode ser entendida, simplesmente, como um desenvolvimento "lógico" de algumas descobertas freudianas, e do fato de que se acreditava, na época, que a criança não tinha sexualidade.

Um primeiro ponto a ser destacado é que o sintoma histérico seria desencadeado por algum trauma, cujo conteúdo da lembrança teria sido esquecido. Nesse sentido, no "Prefácio e notas de rodapé à tradução das Conferências das terças-feiras, de Charcot", Freud esclarece que o trauma poderia ser definido como "um acréscimo de excitação no sistema nervoso, este que é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela reação motora", e "um ataque histérico talvez deva ser considerado como uma tentativa de completar a reação ao trauma" (1892-1894/1996f, p. 179). Além disso, no artigo escrito por Breuer e Freud "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar", os autores tratam do trauma psíquico como tendo uma "ligação causal" (1893/1996b, p. 39) com um evento externo capaz de provocar afetos dolorosos, como susto, vergonha e dor física. Em outras palavras, isso significa que, nesse período, Freud considera que um fator etiológico essencial da histeria decorre de uma lembrança traumática associada a um acontecimento da vida real que provocaria intensa excitação no sujeito, em relação à qual não poderia reagir. Além disso, o episódio traumático, "com grande frequência, é algum fato da infância que estabelece um sintoma mais ou menos grave, que persiste durante os anos subsequentes" (p. 40).

Outro aspecto diz respeito às descobertas clínicas de Freud (Breuer & Freud, 1895/1996a), as quais, diante da resistência de muitos pacientes para entrar em contato com conteúdos dolorosos esquecidos, o fizeram criar o conceito de defesa e, posteriormente, de recalque. Por fim, destaca-se a descoberta de que os conteúdos mais frequentes a serem recalcados estariam ligados a sensações e experiências sexuais (Freud, 1894/1996d).

Se somamos a esses fatos a crença na inexistência da sexualidade infantil, vemos que Freud pareceu não ter escolha, senão construir uma teoria da sedução que articulasse essas questões. Em resumo, se o trauma psíquico é provocado por um acontecimento real, está relacionado a conteúdos sexuais, ocorreu na infância e, além disso, a criança não tem sexualidade, a única conclusão possível é que ela foi seduzida por um adulto ou uma criança mais velha.

Entretanto, é importante ressaltar que, segundo o autor, "não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas antes sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade sexual" (Freud, 1896/1996e, p. 165). Mas por que a lembrança da cena sexual seria mais traumática do que a experiência infantil?

De acordo com Freud, o que ocorre é que, quando há o abuso, a excitação sexual provocada na criança é muito mais baixa do que na puberdade, devido à sua imaturidade sexual. O autor diz que isso faria com que a lembrança tardia tivesse "um efeito excitatório muito mais forte do que o da experiência na época em que ocorreu; e isso porque, nesse ínterim, a puberdade aumentou imensamente a capacidade de reação do aparelho sexual" (p. 167), havendo assim a necessidade de recalcá-la.

Portanto, para dar conta de equacionar o fato de o evento sexual acontecer na infância, e o trauma relacionado a ele, na adolescência, Freud cria uma explicação em dois tempos. O recalque ocorre quando a maturidade sexual é alcançada e a lembrança do abuso ganha significado. No entanto, ele mesmo perceberá que essa explicação, entre tantas outras, mostra-se insatisfatória. Acompanhemos agora como Freud foi levado gradualmente a criar e a abandonar sua teoria, num espaço de tempo relativamente curto.

 

A ascensão

Segundo Masson, o acervo das cartas a Fliess constitui "o mais importante conjunto de documentos da história da psicanálise", e acrescenta que nele "vemos Freud esboçar e aperfeiçoar suas teorias, sentir rejeição dos colegas de ciência e vivenciar seu isolamento profissional" (1985/1986, p. 1).

Quando começaram a se corresponder, Freud tinha 30 anos, e Fliess, 29. O primeiro era professor de neuropatologia em Viena; o segundo, um otorrinolaringologista de sucesso em Berlim. De acordo com Masson, "durante muitos anos, Fliess foi a única plateia de Freud" (p. 2). Entre tantas informações importantes contidas no acervo de cartas, teóricas e pessoais, iremos nos concentrar no tema específico da teoria da sedução.

Na carta de 28 de junho de 1892, Freud diz ao amigo: "A razão de eu lhe escrever é que Breuer me declarou sua disposição de publicarmos juntos nossa teoria pormenorizada da ab-reação" (Masson, 1985/1986, p. 31). Essa passagem nos situa - ou seja, nossa análise se inicia - no momento em que Freud ainda se acha ligado a Breuer e está redigindo com ele um estudo a respeito da histeria. A primeira parte deste viria à luz em 1893, sob a forma de uma comunicação preliminar, que depois seria inserida como capítulo inicial do livro publicado por ambos em 1895: Estudos sobre a histeria.

O desligamento científico de Freud em relação a Breuer se deu no ano de 1894 e foi decisivo para a criação da teoria da sedução, pois o segundo via com suspeita duas ideias centrais dela: o recalque e o conflito moral ligado à sexualidade1 (ainda não infantil) como fatores preponderantes na etiologia da histeria. Nesse sentido, apesar de ainda ligado cientificamente a Breuer no final de 1892, as divergências, claramente sentidas nos Estudos, já aparecem na correspondência com Fliess, como pode ser visto na carta de 12 de julho de 1892. Freud diz ao amigo que sua histeria, nas mãos de Breuer, "foi transformada, ampliada e restrita e, nesse processo, evaporou-se parcialmente" (p. 32).

Freud refere-se à escrita da "Comunicação preliminar". Não é novidade que esse documento composto a "quatro mãos" - e, mais ainda, seu sucessor, os Estudos - prenuncia o fim da parceria dos autores. A publicação do texto era mais importante para Freud, que tinha vontade de estender sua pesquisa sobre os aspectos psíquicos da histeria e que, como se sabe, encontrava-se bastante sozinho nessa empreitada. Breuer aceitou fazer a publicação, mas, conforme fica claro na passagem citada, os autores já haviam tomado rumos diferentes antes de o livro vir à tona.

Nessa época, a animosidade ainda não era pública e explícita. Entretanto, a seu confidente, Freud continua se queixando. Na carta de 21 de outubro de 1892, ele diz a Fliess: "No mais, há muito pouco a dizer hoje. Na noite de sábado, tenho um seminário... ao qual, infelizmente para mim, Breuer também comparecerá" (p. 34). E, ao que tudo indica, o processo de confecção do livro não foi nada fácil. Freud diz a Fliess, em 18 de dezembro de 1892, que a escrita da "Comunicação preliminar" lhe custou "um bocado em batalhas com meu ilustre colega" (p. 36).

O campo de "batalhas", como já mencionado, era, sem dúvida, a ênfase sobre o recalque e a importância da sexualidade na etiologia da histeria, acerca dos quais Freud estava absolutamente convencido - o que pode ser enfatizado pelo seguinte trecho do Rascunho a, da mesma carta: "Não existe nenhuma neurastenia ou neurose análoga sem distúrbio da função sexual" (p. 38). É verdade que, nessa passagem, Freud não se refere à histeria, mas à neurastenia, que mais tarde será uma das neuroses atuais. Contudo, no mesmo rascunho, um pouco mais adiante, ao citar quatro fatores etiológicos das neuroses (novamente, sem distinção entre neurose atual e psiconeurose), a relação entre histeria e sexualidade aparece claramente: Freud diz que um dos fatores etiológicos dela são os "traumas sexuais" (p. 38).

A palavra trauma, aqui, é importante, pois Freud está tentando construir sua teoria com base em um evento traumático - um fato real e concreto (portanto, não fantasiado). Ou seja, nesse momento, a fantasia, que terá no futuro um importante papel na queda da teoria da sedução, tem o significado inócuo de sinônimo de lembrança e/ou pensamento. Isso fica claro no Rascunho b, de 8 de fevereiro de 1893, onde o termo aparece pela primeira vez no conjunto de cartas. Referindo-se à neurastenia, Freud diz que um de seus sintomas é a "angústia em relação às decisões e à memória (e, portanto, às próprias fantasias, ao funcionamento psíquico)" (p. 42).

Assim, no início de 1893, Freud já estava ciente da etiologia sexual, dos traumas infantis e do recalque. Além disso, fantasia não significava nada de realmente relevante, e o termo fantasias inconscientes estava longe de seu léxico. Ainda, a relação com Breuer continuava a existir oficialmente, muito embora os sinais de ruptura já fossem evidentes, como pode ser novamente observado na carta de 29 de setembro de 1893, quando diz que a amizade de Breuer "manifesta-se muito menos do que eu esperaria na 'preparação do terreno' para minha clínica" (p. 56).

Essa passagem refere-se mais à clínica do que à teoria, mas é evidente que uma coisa está ligada à outra. Enquanto o afastamento em relação a Breuer fica cada vez mais certo, dois movimentos paralelos se expandem e se tornam mais frequentes nas cartas a Fliess: a crença na etiologia sexual e o uso do termo fantasia. Entretanto, demorará para que essas duas linhas se encontrem, num movimento convergente que as fundirá para sempre e que, junto com a descoberta da sexualidade infantil, colocará Freud rumo ao Édipo.

O motivo da demora é que essas duas ideias não avançam na mesma velocidade. O "atraso" na descoberta das fantasias inconscientes é que leva à formulação da teoria da sedução. De fato, em 1893, enquanto a fantasia pouco significava para Freud, era a "questão sexual" que atraía cada vez mais sua atenção. Em 6 de outubro desse ano, ele comenta a Fliess: "A questão sexual atrai as pessoas, que ficam inteiramente atônitas e depois se vão, convencidas, exclamando: 'Ninguém nunca me fez perguntas a esse respeito'" (p. 57).

A noção de fantasia, por sua vez, continua aparecendo com conotações banais. Na carta de 21 de maio de 1894, ela é apresentada novamente como sinônimo de ideia errada. No caso, Freud se refere a seus pensamentos equivocados em relação à sua própria doença como fantasias, o que se destaca na seguinte passagem: "Foi então que chegou sua carta, com a meticulosa refutação de minhas fantasias, que são típicas dos doentes confinados e dos diletantes" (p. 73).

No entanto, a convicção na etiologia sexual só aumenta, assim como o distanciamento em relação a Breuer. A carta de 21 de maio de 1894 deixa bastante claro que, antes da publicação dos Estudos, Freud já tinha tomado outro caminho - a ponto de evitar incluir um caso no livro porque, "supostamente, o segundo patamar - o do fator sexual - não deve ser revelado ali" (p. 74).2 Na mesma carta, a sexualidade aparece ao lado de outro elo da corrente, o recalque: "O conflito coincide com meu ponto de vista da defesa; compreende os casos de neuroses adquiridas em pessoas que não são hereditariamente anormais. Aquilo que é defendido é sempre a sexualidade [grifo nosso]" (p. 75).

Na carta de 22 de junho de 1894, vemos a ruptura com Breuer já consolidada para Freud, embora publicamente ambos parecessem manter um acordo de cavalheiros. Acreditamos que a escrita dos Estudos seja muito mais fruto desse acordo, provavelmente tácito, do que de uma verdadeira parceria. Freud diz: "O livro que estou preparando com Breuer conterá cinco casos clínicos, um ensaio dele, do qual me dissocio inteiramente, sobre as teorias da histeria (sumariamente e crítico), e um de minha autoria sobre terapia, que ainda não comecei" (p. 83). No final da mesma carta, Freud admite já não ter contato científico com Breuer. Assim, tendo deixado seu predecessor para trás, ele navega rumo à construção de uma teoria que ligue os fatos conhecidos.

O movimento é cada vez mais óbvio: afastamento científico em relação a Breuer; etiologia sexual; conflito; recalque; ausência de sexualidade na infância. Em 12 de junho de 1895, Freud escreve a Fliess: "Você tem razão em presumir que estou transbordando de ideias novas, inclusive teóricas. Minhas teorias sobre a defesa fizeram um importante progresso, do qual lhe farei um relato num trabalho curto, da próxima vez" (p. 132). E no dia 8 de outubro de 1895:

Pense só: entre outras coisas, estou na trilha da seguinte precondição estrita da histeria: a de que deve ter ocorrido uma experiência sexual primária (anterior à puberdade), acompanhada de repugnância e medo; na neurose obsessiva, ela deve ter ocorrido acompanhada de prazer. (p. 142)

A linguagem utilizada não deixa dúvida: a ocorrência de uma experiência sexual infantil é uma "precondição estrita" da histeria. Nesse momento, em 15 de outubro de 1895, Freud está a um único passo da teoria da sedução.

Ele diz: "Será que já lhe revelei o grande segredo clínico, verbalmente ou por escrito? A histeria é consequência de um choque sexual pré-sexual" (p. 145).

Se o choque é pré-sexual - portanto, anterior à existência da sexualidade (pois acreditava-se que a criança não tinha sexualidade) -, a única conclusão possível é que houve um abuso, ou seja, que a criança foi seduzida. A certeza de Freud só aumenta, de modo que, em 20 de outubro de 1895, ele escreve ao amigo: "Outras confirmações acerca das neuroses estão chovendo sobre mim. A coisa é mesmo verdadeira e genuína" (p. 148).

Por sua vez, a carta do dia 8 de novembro de 1895 vem atestar, novamente, a descrença de Breuer em relação à etiologia sexual:

Recentemente, no Colégio de Medicina, Breuer fez um grande discurso em homenagem a mim e se apresentou como um adepto convertido da etiologia sexual. Quando lhe agradeci por isso em particular, ele estragou meu prazer, dizendo: "Mas, ainda assim, não acredito nela". (p. 152)

E, em 1.º de janeiro de 1896, Freud diz que são duas as precondições para o surgimento de uma neurose: que ela "seja de natureza sexual e que ocorra no período precedente à maturidade sexual (precondições de sexualidade e infantilismo)" (p. 163). O oposto é verdadeiro, ou seja, a precondição para que um indivíduo não desenvolva uma neurose é "que não ocorra nenhuma irritação sexual substancial antes da puberdade" (p. 164). E assim se consolida a teoria da sedução, a qual Freud defendeu com tanto afinco.

No entanto, a base que sustentava a neurótica era frágil. Embora Freud nunca tenha abandonado a importância dos traumas na constituição psíquica, a ideia de que todos os pacientes histéricos teriam sido seduzidos viria a se mostrar equivocada. Veremos agora o caminho que levou o autor ao abandono da teoria da sedução.

 

A queda

Como vimos, é no segundo semestre de 1895 que as ideias que levam à teoria da sedução se fortalecem. Entre esse período e o final de 1897, a crença de Freud em sua neurótica vai lentamente sendo abalada, de modo que, no fim, todo o edifício teórico desaba. Nesse sentido, podemos nos questionar: se a teoria da sedução foi gradativamente ruindo, como se deu esse processo e quais fatores foram determinantes? Continuaremos seguindo as cartas a Fliess (Masson, 1985/1986), com a finalidade de observar o penoso caminho que levaria Freud a desistir da teoria da sedução.

Veremos que o abalo final se dá no dia 21 de setembro de 1897, quando Freud diz ao amigo que não acredita mais em sua neurótica. Esta sai de cena e, ato contínuo, no dia 15 de outubro de 1897, o Édipo faz sua primeira aparição (no caso, a primeira de forma explícita, tendo em vista que, de forma implícita, aparece pela primeira vez em 31 de maio do mesmo ano). Tentaremos demonstrar como isso se deu e qual é a relação do Édipo com o abandono da teoria da sedução.

O primeiro golpe desferido contra essa teoria veio de fora, e a reação de Freud mostra o quanto acreditava, naquele momento, em seu sistema. O acontecimento foi a apresentação de sua teoria à Sociedade de Psiquiatria: ela foi recebida com descaso e descrença. Krafft-Ebing, importante neuropsiquiatra alemão, definiu-a como "um conto de fadas científico". Freud narra o episódio na carta de 26 de abril de 1896, na qual podemos observar sua grande revolta com a recepção "gélida daqueles imbecis" (p. 185), chegando a ponto de desejar que fossem ao "inferno" por não terem demonstrado interesse em suas ideias - comparadas por ele à descoberta da "cabeceira do Nilo" e à "solução de um problema de mais de mil anos".

Vemos que a crença em sua teoria nesse momento é absoluta. No dia 23 de outubro de 1896, falece o pai de Freud. Este comunica o acontecido ao amigo em carta datada de 26 de outubro do mesmo ano. Freud conta a Fliess que providenciou um funeral "discreto" ao pai, e que chegou atrasado a ele. O que chama a atenção no relato não é tanto o caráter edípico do conteúdo, mas o fato de Freud não fazer nenhuma relação entre esse conteúdo e seus próprios sentimentos inconscientes - ou seja, com aquilo que mais tarde será chamado por ele de complexo de Édipo. Isso nos mostra, uma vez mais, o quão longe ele estava, nesse momento, de considerar as fantasias inconscientes.

Portanto, o primeiro choque parece não ter diminuído a convicção de Freud. Em 6 de dezembro de 1896, ele diz: "Parece-me cada vez mais que o aspecto essencial da histeria é que ela decorre da perversão por parte do abusador" (p. 213).

Em seguida, porém, o sistema se mostra novamente abalado, mas agora, ao que tudo indica pela primeira vez, a partir de dentro. Em 8 de fevereiro de 1897, Freud escreve ao amigo: "Infelizmente, meu próprio pai foi um desses pervertidos e é responsável pela histeria de meu irmão (cujos sintomas, em sua totalidade, são identificações) e de várias das irmãs mais moças. A frequência dessa situação, muitas vezes, causa-me estranheza" (p. 232).

O início dessa passagem ressalta o quanto Freud acreditava em sua teoria: se ela exigisse que seu próprio pai fosse um perverso, não haveria qualquer impeditivo. Contudo, a última frase vem mostrar um pequeno abalo na teoria: a frequência com a qual as seduções deveriam ocorrer para que ela estivesse correta causavam em Freud "estranheza".

Em 6 de abril de 1897, a fantasia volta a aparecer, mas agora de uma forma que, a nosso ver, marca "o início do fim". É verdade que na passagem a seguir ainda não é possível perceber a dimensão da novidade. De fato, a mudança é sutil, e a fantasia ainda aparece amparada totalmente em fatos reais. No entanto, ela é ligada pela primeira vez ao inconsciente. Um pequeno passo, que levaria a uma revolução. Freud escreve:

O aspecto que me escapou na solução da histeria reside na descoberta de uma fonte diferente, da qual emerge um novo elemento da produção do inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas que, tal como as vejo, remontam sistematicamente a coisas que as crianças entreouvem em idade precoce e só compreendem numa ocasião posterior. (p. 235)

Pouco mais de 20 dias depois, contudo, ainda vemos a força da teoria da sedução na mente de Freud. Referindo-se a um caso clínico, ele diz que "a interpretação completa só me ocorreu depois que um acaso fortuito, hoje pela manhã, trouxe uma nova confirmação da etiologia paterna" (p. 238). Há aqui uma nota do editor sobre o significado de "etiologia paterna", esclarecendo que é, "sem dúvida, uma referência à crença de Freud (na época) de que a sedução sexual pelo pai estava no cerne da neurose" (p. 239).

Entretanto, em 2 de maio de 1897, a fantasia volta a aparecer: "As fantasias provêm de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas, e todo o material delas, é claro, é verdadeiro. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo, servem para o alívio pessoal" (p. 240).

Essa passagem é interessante em vários sentidos. Em primeiro lugar, pelo retorno ao cada vez mais insistente tema da fantasia, mas também pela tenacidade com a qual Freud se apega à ideia de que as cenas de sedução remontam a acontecimentos passados reais. Embora ele afirme que essas cenas são protegidas por "fantasias", estas ainda provêm de "material verdadeiro", isto é, não têm, nesse período, o significado posterior de "realidade psíquica".

No entanto, observamos o pêndulo oscilar, de forma sutil mas certeira, rumo à inevitável descoberta da realidade psíquica. Apesar de oriundas de coisas ouvidas e de material verdadeiro, e apesar de serem estruturas protetoras, as fantasias são "embelezamentos" dos fatos! Aquele que embeleza um fato acrescenta a ele algo que não lhe pertence. Essa característica de combinação entre diferentes conteúdos é a marca distintiva da fantasia inconsciente. No Rascunho l, anexado a essa carta de 2 de maio de 1897, Freud retoma o assunto:

O objetivo parece ser o de alcançar as cenas [sexuais] mais primitivas. Em alguns casos, isso se consegue diretamente, porém, em outros, somente através de um desvio, por meio das fantasias. E isso porque as fantasias são fachadas psíquicas produzidas com a finalidade de impedir o acesso a essas recordações. As fantasias servem, simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à tendência a sublimá-las. São fabricadas por meio de coisas ouvidas e das usadas posteriormente, assim combinando coisas experimentadas e ouvidas, acontecimentos passados (da história dos pais e antepassados) e coisas que foram vistas pela própria pessoa. (p. 241)

Aqui, a mesma linha é mantida. Deve-se buscar a cena sexual primitiva (a sedução), e as fantasias teriam a "finalidade" de dificultar o acesso a ela. Por outro lado, agora elas não têm origem apenas em coisas ouvidas, mas combinam coisas experimentadas e ouvidas. Essa "combinação", como já dito, é marca distintiva da fantasia. E, embora aqui ainda não sejam o impulso e a realidade factual que se combinem, mas as experiências vividas e ouvidas, a fórmula já está pronta. É bonito e penoso o movimento rumo à construção de uma ciência.

É que não era apenas a teoria da sedução que ruía lentamente, mas a onipotência de Freud. Podemos notar, assim, que ele nunca mais se apegará com a mesma intensidade a uma "verdade" científica. O abandono de sua neurótica foi doloroso, mas a lição foi aprendida. Toda a obra posterior de Freud, com exceção de alguns trechos, é permeada por passagens nas quais o leitor é avisado do caráter provisório das hipóteses ali presentes, do aspecto inacabado de toda descoberta científica etc.

A essa altura, Freud intuía que estava a poucos passos de sua próxima descoberta. Em 16 de maio de 1897, ele diz que as "coisas estão fermentando, borbulhando" dentro dele, e que vive a expectativa de que "logo surgirá alguma coisa de essencial" (p. 244). De fato, Freud se aproxima da essência da questão e, em 25 de maio de 1897, ele escreve:

FANTASIAS

As fantasias emergem de uma combinação inconsciente de coisas vivenciadas e ouvidas, de acordo com certas tendências. Essas tendências têm o sentido de tornar inacessível a lembrança da qual provieram ou podem provir os sintomas. As fantasias são formadas por amalgamação e distorção de modo análogo à decomposição de um composto químico que esteja combinado com outro. E isso porque o primeiro tipo de distorção consiste numa falsificação da lembrança por fragmentação, na qual precisamente as relações cronológicas é que são negligenciadas. (As correções cronológicas parecem depender especificamente da atividade do sistema da consciência.) Um fragmento da cena visual combina-se então com um fragmento da cena auditiva, formando a fantasia, enquanto o fragmento liberado se liga a alguma outra coisa. Assim, a conexão original torna-se impossível de rastrear. Em consequência da formação de fantasias como essas (nos períodos de excitação), cessam os sintomas mnêmicos. Em lugar deles, acham-se presentes ficções inconscientes que não estão sujeitas à defesa. Quando, nessas circunstâncias, a intensidade de uma dessas fantasias aumenta a tal ponto que ela é obrigada a forçar sua entrada na consciência, a fantasia é submetida ao recalque e um sintoma é gerado, através de um [processo] de rechaçar a fantasia para as lembranças que a constituíram. (p. 248)

As fantasias continuam a ter origem em coisas vivenciadas e ouvidas, mas essa passagem traz vários aspectos dignos de nota. Primeiro, o tema surge em destaque na qualidade de um tópico no Rascunho m: "Fantasias". Segundo, Freud articula o termo com segurança e desenvoltura não vistas antes. Terceiro, as fantasias são formadas por amalgamação e distorção, de modo que a marca distintiva do termo é aqui ainda mais evidente. Quarto, a fantasia não é mais algo que emerge à frente da lembrança, mas que causa uma falsificação dela. Por fim, a fantasia tem uma "intensidade" que força sua entrada na consciência, e é essa intensidade que leva Freud a considerar o impulso (ver adiante) e, em seguida, coloca-o no caminho da gênese da fantasia.

Contudo, a fantasia ainda não ocupa o lugar de realidade (psíquica), mantendo a função de dificultar o "rastreamento" da lembrança "original". Essas "ficções inconscientes" escapam à defesa, e só se tornam patogênicas quando a intensidade da fantasia aumenta a "tal ponto que ela é obrigada a forçar sua entrada na consciência". Aí então a fantasia é submetida ao recalcamento, o que terá como consequência a formação de um sintoma. Este é gerado por um processo de "rechaçar a fantasia para as lembranças que a constituíram". Vemos aqui, novamente, a ligação das fantasias com a realidade factual, ou seja, elas persistem obstinadamente ligadas apenas às vivências.

Em resumo, as fantasias continuam a ser ficções que servem para proteger as lembranças verdadeiras e não têm ainda o estatuto de realidade psíquica. Mas Freud já está bastante ciente da importância delas na geração dos sintomas, de modo que diz, no parágrafo seguinte, que "todos os sintomas de angústia (fobias) são assim derivados das fantasias". Ele admite, em seguida, que isso simplifica demais as coisas, que é "possível" existir um "terceiro método" na formação dos sintomas, e que este deve derivar da "formação dos impulsos" (p. 248).

É a primeira vez que o impulso entra em cena, e esse fato é da mais alta relevância. Isso porque, para que a fantasia deixasse de ter como fonte apenas a realidade factual, seria preciso haver outra origem dela. Esta, como sabemos, são os impulsos sexuais, porém chegar à conclusão de que as crianças os tinham era um ato que exigia grande coragem (por ameaçar um antigo paradigma), haja vista que essa afirmação, de início, parecia mais absurda do que considerar que quase todo pai era um abusador. Realmente, acreditamos que esse foi um passo científico momentoso. Mas, para isso, faltava ainda uma peça no quebra-cabeça. E ela começa a ser analisada de perto no Rascunho n, anexo à carta de 31 de maio de 1897:

Os impulsos hostis contra os pais (o desejo de que morram) são também um elemento integrante das neuroses. ... Esses impulsos são recalcados nos períodos em que desperta a compaixão pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. ... Ao que parece, é como se esse desejo de morte voltasse, nos filhos, contra o pai e, nas filhas, contra a mãe. (p. 251)

A palavra Édipo não aparece na citação acima, mas ele já está ali, nos impulsos hostis contra os pais - o pai, no caso dos meninos; a mãe, no caso das meninas. Não é casual que o Édipo entre em cena quando a teoria da sedução está prestes a ruir: ele é a chave da destruição, a peça que faltava.

Na passagem citada, há outro aspecto fundamental: aquilo que é direcionado aos pais são os "impulsos hostis". Quando dizemos que a peça que faltava era o Édipo, nos referimos acima de tudo aos impulsos sexuais e agressivos em relação aos pais. Para que a teoria da sedução pudesse ser superada, a descoberta do impulso sexual infantil era necessária. Vemos Freud migrando da lembrança de uma cena para a fantasia e a vida pulsional. Falta pouco - mais especificamente, falta perceber que há impulsos sexuais e que eles moldam as fantasias. Essa ligação vem logo em seguida, em 7 de julho de 1897.

Aquilo com que somos confrontados são falsificações da memória e fantasias - essas últimas, referentes ao passado ou ao futuro. ... Ao lado delas, surgem impulsos perversos; e quando, como se faz necessário posteriormente, essas fantasias e impulsos são recalcados, os determinantes superiores dos sintomas já decorrentes das lembranças passam a se manifestar, bem como novos motivos para que haja um apego à doença. (p. 256)

Toda aquela crença na recuperação das memórias já não existe mais. O que o analista encontra são "falsificações da memória e fantasias". A convicção de que as fantasias estão calcadas apenas em fatos reais também desaparece, e Freud esclarece que elas se referem ao passado e ao futuro. Além disso, ele realiza uma ligação entre fantasias e impulsos, quando afirma que, "ao lado delas, surgem impulsos perversos". O elo entre impulsos sexuais e fantasias está feito, e jamais será rompido.

Freud tem, nesse momento, todos os dados à sua disposição, e em 14 de agosto de 1897 admite que está "atormentado por sérias dúvidas acerca de minhas teorias das neuroses" (p. 262). E então, pouco mais de um mês depois, o que era dúvida se transforma em certeza, e a teoria da sedução vem abaixo. A passagem que marca o colapso está na carta de 21 de setembro de 1897. Ele diz: "E agora quero confiar-lhe, de imediato, o grande segredo que foi despontando lentamente em mim nestes últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]" (pp. 265-266).

Freud aponta vários fatores para o abandono da teoria: 1) o insucesso dos resultados práticos dos tratamentos; 2) o fato de que todos os pais de pacientes histéricos, inclusive o do próprio Freud, teriam de ser perversos; 3) o argumento de que é impossível distinguir entre verdade e ficção nas recordações das pacientes; e 4) as lembranças do abuso nunca vêm à tona nas psicoses. Desses, o item três é, sem dúvida, o principal: as ficções (fantasias) têm o estatuto de realidade (psíquica).

Uma passagem da mesma carta, um pouco mais adiante, revela que Freud sentiu o baque. Apesar disso, também revela sua confiança de estar no caminho certo:

A expectativa da fama era belíssima, assim como a da riqueza certa, independência completa, viagens e elevar as crianças [de Freud] acima das graves preocupações que me roubaram a juventude. Tudo dependia de a histeria funcionar bem ou não. Agora, posso voltar a ficar sossegado e modesto e continuar a me preocupar e a economizar. Ocorre-me uma historinha de minha coleção: "Rebeca, tire o vestido; você não é mais noiva nenhuma". Apesar de tudo, estou com ótimo estado de ânimo e satisfeito por você sentir uma necessidade de rever-me semelhante à minha de encontrá-lo. ( p. 267)

É evidente que o "golpe" foi forte, e esse trecho mostra o tamanho da expectativa depositada em sua teoria, construída passo a passo ao longo de anos de trabalho e dedicação. Freud se compara a uma noiva abandonada. Ele não havia descoberto a "cabeceira do Nilo", como pensava. Pelo contrário, Krafft-Ebing estava muito mais correto ao afirmar que sua teoria era "um conto de fadas científico". Mas os "espíritos fortes", nessas horas, se levantam, e nunca o fazem sem um aprendizado. Além disso, nem tudo estava perdido. Ele escreve:

Neste colapso de tudo o que é valioso, apenas o psicológico permaneceu inalterado. O [livro sobre o] sonho continua inteiramente seguro e meus primórdios do trabalho metapsicológico só fizeram crescer em meu apreço. É uma pena que não se possa ganhar a vida, por exemplo, com a interpretação de sonhos! (p. 267)

Essa passagem nos faz lembrar da epígrafe do livro dos sonhos, retirada da Eneida de Virgílio: "Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo" (Se não puder dobrar os deuses de cima, comoverei o Aqueronte3). Segundo o próprio Freud, ele teria utilizado essa expressão a fim de "meramente enfatizar a parte mais importante da dinâmica do sonho. O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar" (1900/1996c, p. 15). No entanto, a frase fala muito do próprio Freud, o qual, incapaz de "dobrar os deuses de cima" (ajustar seus fatos científicos com as crenças da época), acaba por mover os deuses infernais (é a sexualidade o "pecado" freudiano). Acreditamos que há toda uma teoria da sublimação do ódio condensada nessa frase. A interpretação dos sonhos é a vingança de Freud. É a resposta de um gênio diante do fracasso.

Portanto, nem tudo estava perdido, e não tardaria para que Freud desse nome à sua recente descoberta e percebesse que o abandono da teoria da sedução traria muito mais ganhos do que perdas. Menos de um mês depois, em 15 de outubro de 1897, o Édipo faz seu debute:

Descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno de me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o considero um acontecimento universal do início da infância. ... Se assim for, podemos entender o poder de atração do Oedipus Rex, a despeito de todas as objeções que a razão levanta contra a pressuposição do destino; e podemos entender por que o "teatro da fatalidade" estava destinado a fracassar tão lastimavelmente. ... A lenda grega capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência em si mesmo. Cada pessoa da plateia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada uma recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado atual. (p. 273)

Saem de cena os pais perversos e abusadores, entram os impulsos infantis. É verdade que o Édipo, aqui, é utilizado apenas para ilustrar a descoberta freudiana, ou seja, ainda não é um conceito. Contudo, esse fruto (ou pai?) do colapso da teoria da sedução crescerá, lenta mas continuamente, alcançando tal estatura que se tornará a espinha dorsal do sistema freudiano. E, bem sabemos, a psicanálise continuará movendo os deuses infernais.

 

Referências

Breuer, J. & Freud, S. (1996a). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 2). Imago. (Trabalho original publicado em 1895)        [ Links ]

Breuer, J. & Freud, S. (1996b). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 2, pp. 39-53). Imago. (Trabalho original publicado em 1893)        [ Links ]

Freud, S. (1996a). A etiologia da histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 189-215). Imago. (Trabalho original publicado em 1896)        [ Links ]

Freud, S. (1996b). A hereditariedade e a etiologia das neuroses. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 143-155). Imago. (Trabalho original publicado em 1896)        [ Links ]

Freud, S. (1996c). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 4). Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1996d). As neuropsicoses de defesa. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 53-66). Imago. (Trabalho original publicado em 1894)        [ Links ]

Freud, S. (1996e). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 163-183). Imago. (Trabalho original publicado em 1896)        [ Links ]

Freud, S. (1996f). Prefácio e notas de rodapé à tradução das Conferências das terças-feiras, de Charcot. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 175-196). Imago. (Trabalho original publicado em 1892-1894)        [ Links ]

Masson, J. M. (Ed.). (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904) (V. Ribeiro, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1985)        [ Links ]

 

 

Recebido em 26/7/2020
Aceito em 18/11/2020

 

 

1 Na maioria das vezes em que concordou com a importância da sexualidade na gênese da histeria, Breuer priorizou a questão energética, em detrimento do conflito moral.
2 No entanto, o "fator sexual" acabou sim sendo incluído no livro.
3 Um dos rios do inferno.

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