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Aletheia
versión impresa ISSN 1413-0394
Aletheia n.25 Canoas jun. 2007
ARTIGOS DE PESQUISA
Inteligência emocional e desempenho em policiais militares: validade de critério do MSCEIT
Emotional intelligence and job performance in policemen: criterion validity for the MSCEIT
Monalisa Muniz*; Ricardo Primi**
Universidade São Francisco. Programa de Pós-Graduação em Psicologia
RESUMO
Inteligência emocional é um construto novo e por isso tem sido alvo de críticas. Dentre elas, levanta-se a questão se ela está associada ao desempenho no trabalho. Alguns pesquisadores dizem que sim, no entanto, não há pesquisas que sustentem essa afirmação. Assim o objetivo deste estudo foi investigar evidência de validade teste-critério para o teste de inteligência emocional Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT) em prever desempenho de policiais. Participaram do estudo 80 policiais do Estado de São Paulo, sendo 40 da capital e 40 do interior. Os policiais responderam ao MSCEIT e seus superiores avaliaram seu desempenho por meio de dois instrumentos anteriormente desenvolvidos para esse contexto específico. Os resultados obtidos por meio das correlações entre os dois testes apontaram que os subtestes Paisagem, Facilitação, Transição e Administração se associaram com itens do desempenho profissional. Os dados sustentam evidências positivas de validade teste-critério para o MSCEIT.
Palavras-chave: Avaliação psicológica de policiais, Avaliação da inteligência, Validade de critério.
ABSTRACT
Emotional intelligence is a new construct and because of that has been a focus of criticism. One of them is the question of weather or not it is associated with job performance. Some researchers say that emotional intelligence is associated with job performance but there is no enough evidence on this point. Then the aim of this study was to investigate criterion validity evidence for the Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT) to predict police men job performance. Participants were 80 State of São Paulo Policemen officers. They answered the MSCEIT and were rated by theirs superiors on two previous scales on job performance developed for this specific purpose. Results showed that Pictures, Facilitation, Changes and Emotional Management subscales were significantly associated with particular items of job performance. The data show positive test-criterion validity evidence for the MSCEIT.
Keywords: Psychological assessment with policemen, Intelligence assessment, Criterion validity.
Introdução
O termo inteligência emocional foi utilizado pela primeira vez pelos pesquisadores John D. Mayer e Peter Salovey em 1990, derivando-se de pesquisas relacionadas à inteligência social originada a partir de estudos em psicologia sobre inteligência no final do século XIX (Salovey & Mayer, 1990). Ao longo desses anos, o termo inteligência emocional tem sido debatido e seu significado pode ser resumido em duas tendências principais: (a) inteligência emocional como traço de personalidade, considerada uma característica importante para obtenção de sucesso na vida e (b) inteligência emocional como capacidade mental, que diz respeito ao processamento de informações emocionais, que é a definição mais comumente adotada na literatura científica (Mayer, Salovey & Caruso, 2002).
Hoje é crescente a idéia de que a inteligência e a emoção consistem em funções adaptativas do organismo e estão associadas a mecanismos cerebrais, que auxiliam o organismo a se adequar ao meio (Primi, 2003). Cada indivíduo apresenta uma capacidade maior ou menor em lidar com informações emocionais nessa adaptação, e isso é o que está na base da inteligência emocional, pois, sucintamente, a inteligência emocional refere-se à capacidade de processamento de informações emocionais de modo a utilizá-las favoravelmente no processo de adaptação (Salovey & Mayer, 1990).
As primeiras definições sobre inteligência emocional, como capacidade cognitiva, abrangiam a percepção e o controle das emoções em si e nos outros, mas omitia o pensamento sobre sentimento. Após revisões, o conceito dessa inteligência definiu-se como “a capacidade de perceber emoções, a capacidade de acessar e gerar emoções de tal forma a ajudar os processos de pensamento, a capacidade de compreender a emoção e o conhecimento emocional, e a capacidade de regular as emoções para promover o crescimento emocional e intelectual” (Mayer, Salovey & Caruso, 2002a, p.17). Esse modelo se baseia na idéia de que as emoções contêm informações sobre relacionamentos do organismo com o meio, e a inteligência emocional associa-se à capacidade de reconhecer os significados dessas emoções e dos relacionamentos, raciocinar sobre eles e utilizar essa informação para orientar as ações de adaptação ao meio (Mayer & Salovey, 1999).
As capacidades da inteligência emocional (percepção/avaliação/expressão da emoção, emoção facilitadora do pensamento, compreensão e análise das emoções e controle reflexivo das emoções) são hierárquicas, tendo como base a percepção, a avaliação e a expressão de emoções. As áreas da percepção, compreensão e controle envolvem raciocínio sobre as emoções, já a área da emoção como facilitadora do pensamento diz respeito à utilização das emoções para auxiliar o raciocínio. Vários dados também indicam que a área compreensão das emoções é a mais cognitiva, envolvendo maior raciocínio abstrato, possuindo uma correlação mais estreita com testes tradicionais de inteligência (Mayer, Salovey, Caruso & Sitarenios, 2001).
A área percepção, avaliação e expressão da emoção refere-se à acuracidade de identificação de emoções e conteúdo emocional em si próprio, em outras pessoas e em figuras ou objetos, bem como à capacidade de expressar sentimentos de forma adequada e clara. Também está associada à acuracidade em identificar a expressão falsa ou manipulada dos sentimentos (Mayer & Salovey, 1999). Indivíduos com essa capacidade mais desenvolvida podem ter vantagens adaptativas nas suas relações com o mundo, especialmente quando os problemas requerem atenção às informações emocionais, pois têm maior precisão na identificação de suas emoções (tanto pessoais quanto de outras pessoas), como também podem se expressar mais apropriadamente aos outros (Salovey & Mayer, 1990).
A emoção como facilitadora do pensamento diz respeito à atuação da emoção nos processos cognitivos superiores ligados ao raciocínio, auxiliando na resolução de problemas, como um sistema de alerta sobre os eventos importantes na pessoa e no ambiente. Essa faceta diz respeito também à capacidade de acessar, gerar e examinar as emoções de tal forma a ajudar os processos de pensamento e conseqüentemente ajudar o indivíduo a tomar decisões. A atuação das emoções no pensamento faz com que as pessoas considerem perspectivas múltiplas e compreendam que os tipos de emoções facilitam diversos trabalhos e formas de raciocínio (Mayer & Salovey, 1999).
A compreensão e análise das emoções refere-se à compreensão e ao uso do conhecimento emocional, que é crescente ao longo da vida pelo maior entendimento dos significados emocionais. Refere-se à compreensão de emoções complexas e contraditórias, da transição de sentimentos e a sua relação com as situações interpessoais. Portanto, tal conhecimento é muito importante para a adaptação (Mayer & Salovey, 1999).
O controle reflexivo das emoções para promover o crescimento emocional e intelectual refere-se à capacidade de controle e regulação das reações emocionais. Isso pressupõe a tolerância às experiências emocionais mais intensas e o conhecimento e emprego efetivo de estratégias de alterações desses sentimentos. Com o tempo, o ser humano aprende a refletir sobre as emoções positivas e negativas, fazendo delas uma ferramenta para o raciocínio, caso sejam úteis. Também começa a entender as reações emocionais, avaliando-as, controlando-as e compreendendo-as (Mayer & Salovey, 1999). No lado positivo, indivíduos com tais capacidades podem realçar suas próprias emoções e a dos outros, motivando pessoas para algo benéfico; já no lado negativo, podem canalizar suas ações para comportamentos anti-sociais e de manipulação dos outros em benefício próprio (Salovey & Mayer, 1990).
Paralelamente ao desenvolvimento do modelo teórico sobre inteligência emocional, foram desenvolvidos testes para medir esse construto que podem ser divididos em três grupos: auto-avaliação, avaliação por meio de observadores e avaliação de desempenho máximo, sendo este último considerado o mais promissor. O teste mais conhecido que adota esse procedimento é o Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT). Este teste mede inteligência emocional considerando-a como um tipo de inteligência que está relacionada ao processamento de informação, ou seja, é um instrumento que mensura a inteligência emocional por intermédio de testes de desempenho máximo, como os testes tradicionais de inteligência (Mayer, Caruso & Salovey, 2002).
A grande maioria das pesquisas com inteligência emocional procuram investigar se este construto realmente é um novo tipo de inteligência e se não é apenas um novo rótulo para traços muito estudados em pesquisas com personalidade (Bedwell, s.d.; Brackett & Mayer, 2003; Bueno, 2002; Cobêro, 2004; Dantas, 2004; Davies, Stankov & Roberts, 1998; Jesus, Jr., 2004; Lopes e cols., no prelo; Mayer, Salovey, Caruso & Sitarênios, 2001; Mayer, Salovey, Caruso & Sitarênios, 2003; Roberts, Zeidner & Matthews, 2001 e Primi, Bueno & Muniz, 2006). Essa preocupação em explorar a inteligência emocional para ver se é inteligência ou personalidade decorre em função às críticas de pesquisadores que contestam a existência do construto inteligência emocional. Além disso, a inteligência emocional também é estudada para verificar a sua capacidade em prever estresse, relacionamentos pessoais positivos, comportamentos desajustados, desempenho acadêmico, desempenho profissional, entre outros. (Bedwell, s.d.; Brackett & Mayer, 2003; Cobêro, 2004; Freitas, 2004; Lopes e cols., no prelo; Miguel, 2006; Nascimento, 2004).
Especificamente sobre o desempenho profissional ainda não existem muitos estudos mostrando qual a relação com a inteligência emocional. Apesar de a inteligência emocional ser popularmente considerada como imprescindível para o sucesso profissional e ser tão divulgada no contexto organizacional, a única pesquisa empírica realizada no Brasil não encontrou resultados condizentes com as afirmações que têm sido feitas (Cobêro, 2004). Esse estudo, que abordou validade da inteligência emocional em prever o desempenho profissional, encontrou correlações que, embora significativas, foram de baixa magnitude, implicando uma capacidade de predição bem mais baixa do que tem sido anunciado no mundo dos negócios (Cobêro, 2004).
Nos anos 1990 a inteligência emocional passou a ser vislumbrada na área organizacional como sendo uma variável imprescindível para o bom desempenho no trabalho. Isso ocorreu principalmente após o lançamento do livro de Goleman (1995), que disseminou a idéia de que o mercado de trabalho, em mudança constante, busca profissionais que, para além da inteligência tradicionalmente definida e do grau de formação acadêmica, possuam outras capacidades ligadas ao relacionamento pessoal. Goleman ressaltou que nesse meio o indivíduo é avaliado pela maneira como lida consigo e com os outros, sendo este o critério que cada vez mais é utilizado para decidir quem será contratado ou não e quem será promovido ou não.
A inteligência emocional no meio organizacional é tão prestigiada que, hoje em dia, encontram-se cursos que ensinam como desenvolver essa capacidade e como, a partir dela, ter um futuro mais promissor. Para Roberts, Flores-Mendonza e Nascimento (2002), esse amplo interesse pode estar vinculado a uma conjectura de que as pessoas com um melhor gerenciamento de suas próprias emoções são possivelmente mais bem-sucedidas no mercado de trabalho e acabam por ter melhor qualidade de vida.
Ressalta-se que esse conceito de inteligência emocional tão propagado no cotidiano organizacional está vinculado à conotação de senso comum, que é o conceito misto da inteligência emocional, ou seja, aquela concepção que a confunde com traços positivos de personalidade, variáveis de bem-estar entre outros construtos já conhecidos pelas teorias de personalidade. No entanto, não há pesquisas substanciais que sustentem as afirmações que são propagadas propondo que a inteligência emocional é melhor preditora do desempenho no trabalho do que medidas tradicionais de inteligência. O presente trabalho segue uma linha diferente, mais freqüentemente referida no meio científico, na qual a inteligência emocional é explorada como capacidade cognitiva e com afirmações menos pretensiosas, embasadas sempre em dados empíricos.
Considerando a literatura encontraram-se duas pesquisas verificando a eficácia da inteligência em prever o desempenho profissional. Cobero (2004) encontrou algumas correlações significativas ente os subtestes do MSCEIT que avaliam a administração das emoções com o desempenho profissional avaliado por pares. Nesse estudo uma medida foi composta pela avaliação de um colega e um superior.
Outro estudo foi realizado por Bedwell (s.d.), com os objetivos de verificar a validade de uma medida de inteligência emocional de auto-relato para predizer desempenho no trabalho e qual a validade incremental dessa medida sobre medidas tradicionais de personalidade. Participaram do estudo 66 indivíduos responsáveis pelo suporte social e emocional de pessoas portadoras de deficiências mentais e físicas. Os instrumentos utilizados foram o Inventário de Julgamento Emocional & EJI (avalia inteligência emocional por auto-relato), o Questionário de 16 Fatores de Personalidade & 16PF (avalia traços da personalidade) e Avaliação de Desempenho dos funcionários preenchida pelos supervisores. Os resultados demonstraram correlações positivas e significativas entre a Avaliação de desempenho geral e as escalas do EJI Consciência emocional (r = 0,25). Identificação das emoções nos outros (r = 0,26), Usando a emoção para resolver problemas (r = 0,24) e Expressando emoções (r = 0,30). Com o 16 PF o fator Ansiedade foi o que apresentou mais correlações significativas com os fatores Profissionalismo (r = -0,26), Controle emocional (r = 0,24) e Disciplina (r = -0,24) da Avaliação de Desempenho. A análise de regressão efetuada indicou que inteligência emocional possui validade incremental para Avaliação de Desempenho. Os autores concluíram que inteligência emocional é provavelmente mais relevante para trabalho que envolve relações interpessoais mais intensas.
Os autores Caruso e Wolf (2001) também testemunham a importância da inteligência emocional no ambiente de trabalho a partir de suas experiências práticas como consultores organizacionais. Descrevem que utilizam os escores dos testes de inteligência emocional, principalmente o modelo de quatro fatores Mayer-Salovey (identificação das emoções, usando emoções para facilitar o pensamento, compreensão das emoções e administração das emoções), para compreenderem melhor essas capacidades e suas relações com a satisfação e o desempenho com os tipos de trabalho. Respaldam suas intervenções em treinamentos sobre relações interpessoais, procurando desenvolver a inteligência emocional, verificando que essas capacidades ajudam a resolver determinados problemas como o relacionamento de uma equipe. Em suas consultorias, os autores fazem uso de outros instrumentos, como de personalidade, mas alertam que estes apenas proporcionam informações sobre o que o indivíduo pensa sobre si; já os testes de inteligência emocional informam quais habilidades fundamentais, problemas e potenciais, a pessoa possui atualmente. Os autores acreditam que inteligência emocional oferece uma nova perspectiva dentro do desenvolvimento de carreiras, seleção de pessoal, equipes e desenvolvimento de líderes.
Mayer e Salovey (1997) rejeitam a idéia de que inteligência emocional seja fundamental em todos os aspectos da nossa vida, mas acreditam que ela pode ser importante em áreas como liderança, desenvolvimento de carreiras, desenvolvimento de gerência, eficácia da equipe e vida profissional em geral. Os autores ainda afirmam que inteligência emocional pode realçar os resultados no trabalho, mas, em contrapartida, a ausência dela não leva necessariamente a insucessos. Reconhecem que alguns trabalhos requerem um nível mais elevado de inteligência emocional do que outros e até consideram a possibilidade de que em alguns a inteligência emocional pode ser uma desvantagem. O trabalho do policial militar, que é a população aqui estudada, parece requerer um nível maior de inteligência emocional, principalmente em relação ao gerenciamento das emoções, pois o policial precisa ter controle das emoções, administrar as emoções para poder comportar-se eficientemente em ambientes com contingências adversas e mesmo perigosas, que podem inclusive envolver risco de vida.
A escolha da amostra de policiais militares parte de uma característica que parece ser muito importante para as pessoas que trabalham nessa profissão: o controle emocional. A Academia de Polícia Militar do Barro Branco, na seleção de candidatos, busca, por meio de exame psicológico, pessoas que tenham elevado controle emocional, e para isso definem esse construto como:
... habilidade do candidato para reconhecer as próprias emoções diante de um estímulo qualquer, antes que as mesmas interfiram em seu comportamento, controlando-as, a fim de que sejam manifestadas de maneira adequada no meio em que estiver inserido, devendo o candidato adaptar-se às exigências ambientais, mantendo intacta a capacidade de raciocínio” (Academia de Polícia Militar do Barro Branco, 2003 p. 4)
Essa definição parece associada ao gerenciamento das emoções, que é a quarta faceta1 do teste MSCEIT. Os policiais militares também precisam possuir uma série de características ligadas à disciplina, zelo, bom relacionamento interpessoal, entre outros, para poderem obter uma avaliação de desempenho positiva. Como na literatura de inteligência emocional encontram-se relatos que essa inteligência contribui para o bom desempenho no trabalho, é importante investigar se essas afirmações podem ser generalizadas para esse grupo específico de pessoas.
Na seleção de policiais militares são utilizados procedimentos de avaliação médica, física e psicológica, abarcando testes e entrevista. Na avaliação psicológica, normalmente são utilizados testes de capacidades cognitivas, habilidades psicomotoras e traços de personalidade. Testes de inteligência emocional não são utilizados, porque não existem testes aprovados para uso no Brasil. A presente pesquisa pretende buscar evidência de validade do MSCEIT em relação à sua predição no desempenho profissional de policiais militares e assim contribuir, caso os dados sejam favoráveis, para que um dia o teste de inteligência emocional possa ser utilizado no processo de seleção.
A fonte de evidência de validade aqui estudada é a relação com outras variáveis utilizando o procedimento teste-critério. Evidência com base na relação com outras variáveis é uma análise da relação dos escores do teste com variáveis externas. As variáveis externas podem ser medidas obtidas por outros testes que supostamente meçam o mesmo construto, construtos relacionados ou ainda construtos diferentes. O estudo da relação teste-critério busca compreender a eficácia dos escores do teste em predizer determinado critério. A variável-critério é uma medida de algum evento que, por si só, já é importante (como acidente no trânsito) e que não é necessariamente um processo mental, mas tem relação teórica com os construtos psicológicos medidos pelos testes. A escolha do critério, bem como o procedimento de mensuração utilizado para obter as medidas do critério é ponto central, pois o valor do estudo depende da relevância, precisão e validade dessas medidas de critério. Nesse estudo buscamos, portanto, verificar a validade do MSCEIT em prever a variável critério desempenho profissional.
Método
Participantes
Participaram do presente estudo 80 policiais militares, 40 policiais de uma cidade situada no interior e outros 40 da capital do estado de São Paulo. Desses participantes, 78,8% eram do sexo masculino. A idade média foi de 30,11, com desvio padrão de 7,40, sendo que a idade mínima foi de 20 anos e a máxima de 47 anos.
Instrumentos
Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT). Este instrumento é composto por 141 itens, distribuídos em 8 seções conforme mostra a Tabela 1. As seções A (faces) e E (paisagem) são destinadas a avaliação da capacidade de perceber emoções em faces e paisagens, respectivamente; as seções B (facilitação) e F (sensação) são compostas por tarefas relacionadas à utilização da emoção para facilitação do pensamento; a compreensão de emoções é avaliada pelas tarefas propostas nas seções C (transição) e G (mistura); e , finalmente, o gerenciamento das emoções é avaliada por meio das tarefas das seções D (administração de emoções) e H (Relações emocionais). Na Tabela 1 também estão demonstrados os diferentes níveis de combinação dos subtestes para se obterem escores para quatro facetas, duas áreas ou um escore geral. Nesse estudo utilizamos os escores nos subtestes. A precisão desses subtestes realizada neste estudo por meio do alfa de Cronbach apresentou os seguintes índices: Faces 0,77, Paisagem 0,82, Facilitação 0,62, Sensação 0,76, Transição 0,48, Mistura 0,45, Administração das emoções 0,79 e Relações emocionais 0,58.
O método adotado para pontuação foi o da atribuição de pontos proporcionais à concordância com o consenso. Segundo este critério o sujeito recebe pontos proporcionalmente ao número de pessoas que escolheu a mesma alternativa que ele. Assim, se o sujeito escolheu uma alternativa junto com 80% da amostra, então sua pontuação naquele item é de 0,80. Os sujeitos obtiveram um escore em cada subteste: faces, figuras, facilitação, sensações, transição, misturas, administração das emoções e relações emocionais.
Escala de Avaliação do Desempenho dos Policiais. A Escala de Avaliação de Desempenho dos Policiais foi inicialmente desenvolvida para avaliar o desempenho de guardas municipais para outro estudo de validade do Rorschach elaborado no LabAPE (Lima & Primi, 2004). Na criação dos itens, houve a contribuição de um comandante da Guarda-Municipal. Essa escala é subdividida em duas partes. A primeira é composta por 19 itens relacionados a características consideradas desejadas e indesejadas para o desempenho da função de guarda municipal. Ex: Disciplina, Resignação, Agressões Físicas, entre outros. Foi instituída uma escala de 1 a 4 na qual 1 refere-se à ausência de comportamento, 2 a comportamento pouco freqüente, 3 a comportamento freqüente e 4 a comportamento muito freqüente. A segunda parte são itens que listam 24 ocorrências negativas que podem acontecer no exercício da função desses guardas. Ex: não uso do cinto de segurança, disparo acidental de arma de fogo, perda de munições, entre outros. Esse instrumento constou de uma escala de 0 a 1, na qual 0 se refere à ausência da ocorrência e 1 se refere à presença da ocorrência.
Para esse instrumento foi feito um estudo de precisão, obtido por meio das avaliações de desempenho de 27 guardas-municipais, respondidas por dois superiores da Guarda. A precisão entre os avaliadores foi de r = 0,81 (p = 0,0001) para o instrumento total e r = 0,66 (p = 0,0001) para os itens relacionados a características de comportamento e r = 0,86 (p = 0,0001) para os itens que se referem às ocorrências (Primi, Lima, Petrini, Nascimento & Cruz 2005).
Procedimentos
Primeiramente, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade São Francisco. Após a aceitação do comitê, houve o contato com superiores da Polícia Militar dos locais onde os dados da pesquisa foram coletados, para expor a finalidade do estudo. Em seguida, junto com os superiores dos policiais que participaram da pesquisa, foi analisado se a Avaliação de Desempenho elaborada para os guardas municipais adequava-se para o contexto dos policiais militares. Essa verificação indicou que a escala era adequada. Na seqüência, os superiores avaliaram os policiais sob seu comando.
A segunda etapa consistiu na aplicação coletiva do Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT) nos policiais participantes. Com os dados coletados foram feitas as análises da pesquisa. Ressalta-se que a coleta dos dados ocorreu depois do consentimento dos policiais voluntários participantes da pesquisa e da assinatura do Termo de Consentimento.
Resultados e discussão
Antes de apresentar as análises correlacionais, é importante ressaltar que por meio de análises descritivas de média e desvio-padrão das duas escalas de medida de desempenho constatou-se que a média da amostra na Escala 1 ,que avalia a freqüência de bom comportamento, foi alta, o que significa dizer que a maioria dos policiais avaliados apresentam “bons comportamentos”. Já em relação à Escala 2, que mensura as ocorrências de comportamentos inadequados no trabalho, a média foi 0. Com isso percebe-se que a amostra não tende a apresentar os comportamentos inventariados nesta Escala 2 (Primi & cols, 2005).
Para investigar se indivíduos com maior capacidade de inteligência emocional apresentam melhores pontuações nas avaliações de desempenho, correlacionaram-se primeiramente os subtestes da inteligência emocional e a Escala 1 de avaliação de desempenho. Optou-se por trabalhar apenas com os subtestes, uma vez que tanto o escore geral da inteligência emocional quanto as facetas são somatórias dos subtestes, consistindo, portanto, em informações redundantes. Os resultados são apresentados na Tabela 2.
As correlações encontradas entre os subtestes da inteligência emocional e os itens da Escala 1 foram Paisagem com Autocontrole (r = 0,45 p<0,01) e Agressões físicas (r =- 0,23 p<0,05), Facilitação com Companheirismo (r = -0,24 p<0,05), Transição com Negligência (r = -0,22 p<0,05), Administração com Disciplina (r = 0,24 p<0,05), Resignação (r = 0,31 p<0,01) e Humildade (r = 0,31 p<0,05).
O subteste Paisagem compõe a faceta Percepção das emoções, que avalia a capacidade de o indivíduo perceber emoções em si e nos outros e bem como expressar de forma mais adequada suas emoções. A correlação encontrada entre esse subteste e os itens Autocontrole e Agressões físicas sustenta essa colocação das expressões adequadas das emoções em indivíduos com capacidade de percepção emocional. Esse dado parece demonstrar que pessoas que possuem maior capacidade em percepção emocional conseguem controlar melhor suas emoções e com isso não reagir de maneira inadequada perante o outro, como cometer agressões físicas.
A correlação negativa entre o subteste Facilitação e o item Companheirismo parece estranha, pois independentemente do subteste, se esperaria que a inteligência emocional estivesse associada a comportamentos que levam ao estabelecimento de relações adequadas com o outro. O subteste Facilitação faz parte da faceta Facilitação do pensamento. Indivíduos com escore alto em Facilitação demonstram maior capacidade em mesclar emoção com o pensamento de forma a facilitar a tomada de decisões. No entanto, ressalta-se que uma relação adequada com próximo não necessariamente precisa ser adequada às expectativas das pessoas com as quais o sujeito interage. Muitas vezes um comportamento em determinada situação é o mais correto, no entanto não agrada a todas as pessoas.
Outra explicação para essa correlação inesperada pode estar vinculada ao fato de que, talvez, nem todas as capacidades da inteligência emocional estejam associadas a um bom relacionamento com o outro. Facilitação do pensamento pode ser uma capacidade ligada ao bem-estar do próprio indivíduo, ou seja, como ele utiliza as emoções para auxiliá-lo no processo de pensamento para que conseqüentemente tome uma decisão ou resolva um problema que será benéfico a ele próprio. O que isso pode provocar nas relações não está implicado nesta capacidade. No entanto essa explicação necessita de maiores investigações, pois não está de acordo com a teoria da inteligência emocional, a qual especifica que todas as dimensões da inteligência emocional devem estar associadas a um bom relacionamento com o outro.
A correlação negativa entre o subteste Transição e o item Negligência indica que pessoas com escore alto em Transição tendem a não infringir as regras. O subteste Transição avalia a compreensão das emoções, mais especificamente a mudança de intensidade e a passagem de uma emoção para a outra. Essa capacidade parece estar ligada à capacidade de discernimento do indivíduo. Esse resultado sugere que, assim como indivíduos com alto escore em Transição conseguem discernir as emoções, eles também tendem a ter esse discernimento quanto às regras, bem como conseguem cumpri-las.
O subteste Administração obteve maior número de correlações com os itens da Escala 1. Essas correlações foram com os itens Disciplina, Resignação e Humildade, todas positivas, sugerindo que indivíduos com escore alto em Administração tendem a apresentar esses comportamentos. Esses itens estão relacionados à capacidade de gerenciar e controlar as próprias emoções, sendo esta a capacidade avaliada pelo subteste Administração, motivo pelo qual, possivelmente, observaram-se as correlações mencionadas. Esses resultados são condizentes com o que foi encontrado por Cobêro (2004).
Com relação à Escala 2, não foi possível calcular as correlações em razão do número muito reduzido de ocorrências. Por meio de uma análise de freqüência, constatou-se que apenas um indivíduo apresentou ocorrência nos itens selecionados para análise. Isso então inviabilizou o cálculo das correlações. A Tabela 3 mostra as correlações obtidas entre o escore geral da Escala 1 da avaliação de desempenho e o escore total do instrumento, agregando as duas com as medidas de inteligência emocional. Uma vez que não foi possível calcular correlações com a Escala 2, devido à insuficiência de dados, os resultados referentes a esta escala foram excluídos da Tabela 3.
A Tabela 3 mostra as correlações entre os subtestes do MSCEIT e o escore geral da Escala 1. Como pode ser observado o subteste Paisagem foi o único que se correlacionou significativamente com os escore geral da Escala 1 (r = 0,23 p<0,05). Esse resultado indica que as pessoas com maior capacidade de percepção emocional tendem a receber avaliações mais positivas. O que chamou a atenção foi a ausência de correlação entre o subteste Administração e o escore geral da Escala 1. Quando esse subteste é analisado com os itens da Escala 1 observam-se três correlações significativas, portanto seria esperado encontrar uma correlação significativa desse subteste com a Escala 1. Para analisar melhor esse dado formaram-se duas novas variáveis, uma somando os itens da Escala 1 (EG1b) e outra somando somente os itens que se correlacionaram com o subteste Administração (EG1a). A Tabela 4 apresenta as correlações encontradas.
Como pode ser observado houve apenas correlação significativa entre o subteste Administração e a variável EG1a, o que já era esperado, pois essa variável é a soma de itens que se correlacionam com esse subteste. Contudo a nova variável obteve correlação de maior magnitude. Para explorar em mais detalhes essas associações foi criado um gráfico de dispersão das correlações do subteste Administração com as duas variáveis (ver Figura 1).
Observando-se os dois gráficos da Figura 1, pode-se perceber que, quando todos os itens da Escala 1 são somados, os escores se aproximam do teto da escala, prejudicando a diferenciação entre bom e mau desempenho em quem demonstra maior capacidade no subteste Administração. Isso é explicado porque realmente a média da Escala 1 foi alta. Sabe-se, porém, que há pessoas com escores não muito bons na Escala 1. Então, quando se separam os itens que se correlacionam com o subteste Administração pode-se visualizar que existem dois grupos, um com escores altos e outro com escores baixos nesses itens. Com isso, apesar do subteste Administração não apresentar correlação com a escala geral 1, este subteste parece ser um indicador considerável de bom desempenho quando se considera um subconjunto de itens dessa escala.
A capacidade da inteligência emocional em prever o desempenho profissional ainda é pouco estudada no meio científico. Existem somente duas referências, uma que utiliza medida de auto-relato da inteligência emocional & EJI (Bedwell, s.d.) - e outra que trabalha com o MSCEIT (Cobêro, 2004). Na pesquisa de Bedwell, o autor encontrou correlações positivas e significativas entre Avaliação de Desempenho geral e as escalas do EJI: Consciência emocional, identificação das emoções; Usando a emoção para resolver problemas; e Expressão das emoções. Nessa pesquisa também foi averiguado que inteligência emocional, quando comparada com personalidade, possui validade incremental. Os resultados obtidos por Cobêro (2004) indicaram correlações positivas e significativas entre Avaliação de Desempenho Geral e o subteste Administração, bem como com a faceta Gerenciamento das emoções, que é composta por este subteste e pelo subteste Relações emocionais.
Os dados verificados na presente pesquisa corroboram, em parte, os dados das pesquisas anteriores (Bedwell, s.d. e Cobêro, 2004). No atual trabalho foram encontradas correlações entre os subtestes Paisagem com Autocontrole e Agressões físicas, Facilitação com Companheirismo, Transição com Negligência, Administração com Disciplina, Resignação e Humildade. Comparando-se esses dados com a pesquisa de Bedwell, dados semelhantes foram encontrados com relação aos subtestes Paisagem, Facilitação e Transição, pois estes avaliam identificação e expressão das emoções, uso da emoção para facilitar o pensamento e consciência emocional, respectivamente. Com a pesquisa de Cobêro (2004) o dado que se confirmou neste trabalho foi a associação entre desempenho e o subteste Administração.
A idéia de que inteligência emocional é fundamental para o sucesso no trabalho não é muito destacada pelos autores Mayer e Salovey (1997), que colocam que para alguns profissionais essa capacidade pode contribuir mais; entretanto, dependendo da profissão exercida, a inteligência emocional pode não ter importância e eventualmente até se tornar uma desvantagem. No início do trabalho foi ressaltado que a profissão de policial militar requer maior inteligência emocional, principalmente nas capacidades relacionadas à faceta Gerenciamento das emoções, porque são profissionais que estão em contato diariamente com situações perigosas e precisam se preocupar com a segurança de si mesmos e de outras pessoas, o que pressupõe então o zelo e a eficiência, que podem ser afetados por flutuações extremas das emoções. Essa profissão também exige contato pessoal permanente. Segundo Bedwell (s.d.), a inteligência emocional parece ser mais relevante para trabalhos com intensa ou crônica necessidade de relacionamento interpessoal.
O subteste Administração das emoções, que avalia a capacidade do Gerenciamento das emoções, apresentou maior número de correlações com os itens da Escala 1 de Avaliação de Desempenho e todas positivas. Pode-se perceber, portanto, que o Gerenciamento das emoções é um bom preditor do desempenho profissional dos policiais. O subteste Paisagem apresentou correlação moderada com o item Autocontrole e correlação baixa e negativa com o item Agressão física. Essa associação mostra, mais uma vez, o controle emocional que os policiais necessitam ter, sendo que a percepção das emoções em si e nos outros colabora para que ocorra esse controle. Pode-se constatar que a inteligência emocional, especialmente as capacidades de Administração e Percepção das emoções parecem estar associadas ao bom desempenho em policiais.
Conclusão
Este estudo foi desenvolvido com a finalidade de investigar evidência de validade na relação com outra variável para o teste de inteligência emocional MSCEIT. O objetivo do trabalho foi verificar evidência de validade teste-critério para o MSCEIT verificando se esse teste era capaz de prever o desempenho de policiais. Diante dos dados obtidos pode-se perceber que o controle das emoções é realmente uma capacidade importante para os policiais militares no desempenho de suas funções. Com isso nota-se que foram encontrados dados positivos evidenciando a validade teste-critério para o MSCEIT.
É importante lembrar que todas as análises foram feitas a partir dos subtestes de inteligência emocional do MSCEIT e que de todas as correlações encontradas com a Avaliação de Desempenho foram observadas para subtestes específicos e nem sempre os mesmos subtestes. Então, as evidências de validade encontradas não dizem respeito à inteligência emocional como um todo, mas sim aos subtestes que avaliam uma ou outra capacidade mais específica da inteligência emocional.
Ressalta-se que seria interessante fazer pesquisas entre MSCEIT e grupos extremos em relação à Avaliação de Desempenho, pois na amostra do presente estudo não foi possível encontrar pessoas com avaliação de baixo desempenho. Portanto, a Avaliação de Desempenho apresentou uma restrição de amplitude de variação, fator que pode ter afetado a magnitude dos coeficientes de correlação. No geral a grande maioria dos sujeitos foi avaliada com bom desempenho, o que limita a identificação das possíveis associações entre inteligência emocional e desempenho.
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Endereço para correspondência
E-mail: mo_nascimento@yahoo.com.br
Recebido em novembro de 2006
Aceito em fevereiro de 2007
* Monalisa Muniz é doutoranda em Avaliação Psicológica pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Francisco e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP
** Ricardo Primi é psicólogo; Doutor em Psicologia; professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Francisco e pesquisador financiado pela FAPESP e CNPq
1 As capacidades de percepção, avaliação e expressão da emoção; emoção como facilitadora do pensamento; compreensão e análise das emoções e gerenciamento das emoções são classificadas como facetas da inteligência emocional, ou seja, esse construto, inteligência emocional, é constituído desses quatro fatores denominados facetas. Para mais detalhes, ver Tabela 1