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Estudos de Psicologia (Natal)

versión impresa ISSN 1413-294Xversión On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.23 no.2 Natal abr./jun. 2018

https://doi.org/10.22491/1678-4669.20180014 

DOI: 10.22491/1678-4669.20180014

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

"Minha pior experiência escolar": Caracterização retrospectiva da vitimização de estudantes

 

My worst school experience: A retrospective characterization of student's victimization

 

Mi peor experiencia escolar: Caracterización retrospectiva de victimización de los estudiantes

 

 

Paloma Pegolo de AlbuquerqueI; Lúcia Cavalcanti de Albuquerque WilliamsII

IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro
IIUniversidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo desse estudo foi descrever as piores experiências escolares vivenciadas por estudantes, apontando a frequência e a duração desses eventos, os principais autores da violência, bem como as características dos alvos de violência (idade, série, tipo de escola). Para tanto, 691 estudantes universitários de ambos os sexos (média de 21,1 anos) responderam a uma versão traduzida e adaptada para o Brasil do instrumento retrospectivo Student Alienation and Trauma Survey – R. Os tipos de piores experiências mais frequentes foram violência relacional (35,7%) e verbal (27,4%). As meninas sofreram com mais frequência violência verbal, relacional e sexual e os meninos violência física e disciplina injusta; sendo que os autores da violência foram, em sua maioria, estudantes do sexo masculino. A idade média de ocorrência das experiências foi 12,3 anos, e 10,5% dos participantes apontaram que a pior experiência durou "anos". Tais dados contribuem para a caracterização da violência escolar no Brasil, reforçando a urgência de intervenções.

Palavras-chave: violência escolar; experiência de vitimização; bullying.


ABSTRACT

The aim of this study was to describe the worst school events experienced by Brazilian university students, pointing to its frequency, duration, main perpetrators and victims' characteristics (age, grade and type of school). To this end, 691 university students of both genders (mean 21.1 years) responded to a version of the retrospective instrument Student Alienation and Trauma Survey – R, translated and adapted to Brazil. The most frequent worst school experience modality described were relational (35.7%), and verbal violence (27.4%). Girls suffered verbal, relational and sexual violence more often, and boys suffered physical violence and unfair discipline. Perpetrators were mostly another male student. The mean age of the worst experience occurrence was 12.3 years, and 10.5% of participants indicated that the worst school experience had lasted "years". These data contribute to characterization of school violence in Brazil, stressing urgent need of interventions.

Keywords: school violence; victimization experience; bullying.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue describir las peores experiencias escolares que experimentan los estudiantes, señalando la frecuencia y la duración de estos eventos, los principales agresores, y las características de las víctimas (edad, grado, tipo de escuela). Para tanto, 691 estudiantes universitarios de ambos sexos (media 21,1 años) respondieron a un instrumento retrospectivo traducido y adaptado para el de Brasil, Student Alienation and Trauma Survey. Los tipos de las peores experiencias de violencia más frecuentes fueron violencia relacional (35,7%) y violencia verbal (27,4%). Las niñas experimentaron más violencia verbal, relacional y violencia sexual y los niños experimentaron la violencia física y la disciplina injusta. Los atacantes eran en su mayoría estudiantes de género masculino. La edad media de comienzo de la experiencia fue de 12,3 años, y 10,5% de los participantes indicaron que la peor experiencia escolar tuvo "años" de duración. Estos datos contribuyen a la caracterización de la violencia escolar en Brasil, reforzando la urgencia de las intervenciones.

Palabras clave: violencia escolar; experiencia de vitimización; intimidación.


 

 

Violência escolar perpetrada por pares e professores

Diversas pesquisas têm apontado que os índices de violência vivenciada no contexto escolar são cada vez mais elevados (Cook, Williams, Guerra, Kim, & Sadek, 2010; Craig et al. 2009), sendo necessária a identificação das variáveis relacionadas à vitimização dos estudantes. Segundo Stelko-Pereira e Williams (2010) para caracterizar a violência escolar é importante considerar os locais nos quais essa violência ocorre, a tipologia dos atos violentos, a gravidade ou frequência de tais atos, as pessoas envolvidas (como estudantes, funcionários e professores) e os papéis dos envolvidos (tais como alvo ou autor da violência).

A vitimização frequente por pares ou estudantes é chamada de bullying. Para Olweus (1993), bullying é um tipo de violência na qual um estudante é exposto, repetida e intencionalmente, a ações negativas por parte de um ou mais estudantes. Diversos estudos têm apontado uma alta prevalência de bullying. Por exemplo, no estudo clássico descrito por Olweus (1993) com 84.000 estudantes noruegueses de 7-13 anos, 9% dos estudantes declararam que eram alvos de bullying, sendo que 3% eram vitimizados "uma vez por semana" ou mais frequentemente.

A literatura aponta uma tendência dos meninos sofrerem e aplicarem mais bullying do que as meninas (Nansel et al., 2001). De acordo com Craig e Pepler (2003), a prevalência de meninos que reportam bullying é quase três vezes mais alta do que a das meninas. No estudo de Olweus (1993), mais de 60% das meninas que sofriam bullying relataram que o agressor era menino e a maioria dos meninos (mais de 80%), apontou que o agressor era menino também.

Para Schafer et al. (2004) os homens reportam com mais frequência terem sido vitimizados por homens, em sua maioria. Com o objetivo de examinar a prevalência de vitimização entre meninos e meninas em 40 países, Craig et al. (2009) fizeram um estudo com 202.056 estudantes de 11 a 15 anos e notaram que o envolvimento em bullying variou de 8,6% a 45,2% entre meninos e 4,8% a 35,8% entre meninas. Os meninos tiveram índices de vitimização mais altos em 29 dos 40 países.

Além disso, no que se refere ao tipo de vitimização vivenciada, os meninos tendem a ser mais expostos a bullying direto ou físico e meninas ao indireto ou relacional (Craig & Pepler, 2003). Em Portugal, o estudo de Martins (2005), com 572 estudantes com média de 14,7 anos, apontou que os meninos tendem a sofrer mais agressão física do que as meninas. Na pesquisa de Felix, Furlong e Austin (2009), realizada com 70.600 estudantes das séries 7, 9 e 11 da Califórnia, nos Estados Unidos, as meninas reportaram como vitimização mais frequente o assédio sexual e a agressão relacional e os meninos a vitimização física. Os meninos também tiveram maior probabilidade de ter a propriedade roubada, ver alguém carregando uma arma e ser ameaçado com o uso da mesma. No Brasil, Lopes Neto (2005) apontou em sua pesquisa, da qual participaram 5500 alunos de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental, que os meninos reportaram quatro vezes mais bullying direto do que as meninas. Em pesquisa com 60.973 estudantes do 9o ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas das 26 capitais dos estados brasileiros e do Distrito Federal, 5,4% dos participantes relataram ter sofrido bullying quase sempre ou sempre nos últimos 30 dias, sendo que os meninos relataram mais bullying que as meninas (Malta et al., 2010).

No que se refere à idade de ocorrência da vitimização por pares, segundo Orpinas e Horne (2006), o bullying tende a aumentar durante o fim do primeiro ciclo do Ensino Fundamental, por volta dos 11 anos, atingir o pico em torno dos 15 anos e decrescer no fim do Ensino Fundamental. No estudo relatado por Olweus (1993) a porcentagem de estudantes que sofreu bullying decresceu conforme aumentou a série escolar; no entanto, entre as idades de 13 a 16 anos havia uma curva decrescente mais acentuada, com menor uso de violência física nas séries finais. Outras pesquisas apontam esse decréscimo da vitimização conforme aumenta a idade ou série escolar (Craig et al., 2009; Martins, 2005). No entanto, na pesquisa de Felix et al. (2009), que avaliava também o assédio sexual, percebeu-se que esse tipo de vitimização tendeu a aumentar com o aumento das séries escolares. Para Craig et al. (2009) a vitimização pode não decrescer com a idade e sim mudar de forma.

Estudos longitudinais, como o de Olweus (1993), apontam que estudantes que afirmaram ser alvos de bullying em um determinado período também tendiam a sofrer bullying anos depois. Scholte, Engels, Overbeek, Kemp e Haselager (2007) perceberam, em um estudo longitudinal, que 43% das crianças vítimas na infância persistiam nessa condição até a adolescência. Na pesquisa de Schafer et al. (2004), buscando examinar a relação entre a vitimização na escola e aspectos de funcionamento na vida adulta, com 884 adultos de três países (Espanha, Alemanha e Reino Unido), mais da metade dos que afirmaram ter sido vitimizados relatou ter sofrido bullying prolongado durando "semanas ou meses" ou mais tempo.

A literatura também tem apontado que os estudantes podem sofrer vitimização pela equipe escolar, algo que ainda tem sido pouco estudado (Benbenishty, Zeira, Astor, & Khoury-Kassabri, 2002; Campbell, 2004; Khoury-Kassabri, 2009; Khoury-Kassabri, Astor, & Benbenishty, 2008; Stelko-Pereira, Santini, & Williams, 2011; Whitted & Dupper, 2008). Tais vitimizações podem envolver abusos emocionais, verbais, físicos e sexuais. De acordo com Benbenishty et al., (2002) os abusos emocionais incluem humilhações em público, xingamentos, ameaças a estudantes e suas famílias, ridicularizar a aparência dos estudantes, condição física e de saúde, discriminações e outros comportamentos degradantes. Benbenishty, Zeira e Astor (2002) pontuam que o assédio sexual pode ocorrer na forma de investidas sexuais, comentários e toques impróprios. Hyman, Zelikoff e Clarke (1988) apontam, também, que os professores podem utilizar punições físicas, quando se utiliza a força física com a intenção de causar dor ou desconforto à criança, mas não machucar, com o propósito de corrigir ou controlar o comportamento da mesma (Gershoff, 2008).

Khoury-Kassabri (2009) realizou estudo com 16.604 estudantes israelenses da escola secundária e apontou que mais do que 33,2% dos estudantes reportaram ter sofrido ao menos uma forma de violência emocional por parte da equipe escolar; e 20,7% reportaram uma forma de maus-tratos psicológicos. Adicionalmente, 10% afirmaram ter sido vitimizados pelos pares mais do que duas vezes durante o último ano. Khoury-Kassabri (2009) apontou ainda que os estudantes que não estiveram envolvidos com bullying reportaram níveis mais baixos de maus-tratos sofridos pela equipe escolar, enquanto o contrário ocorreu.

No Brasil, Stelko-Pereira, Albuquerque e Williams (2012) apresentaram dados de uma pesquisa realizada com 668 estudantes de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental de três escolas públicas de Curitiba. Os resultados principais apontam que 78% relataram ter sido xingados, 54% ameaçados e 54% agredidos fisicamente na presença de funcionários escolares. Apenas 19% afirmou que contava aos professores as agressões sofridas. Stelko-Pereira et al. (2011) investigaram casos de agressões físicas por funcionários escolares com 396 estudantes de duas escolas públicas. No total, 21 (5,3%) alunos relataram ter sofrido castigo corporal nos últimos seis meses, sendo as meninas em maior proporção, bem como estudantes mais violentos com os pares e com maior índice de depressão.

Por outro lado, autores, como Benbenishty et al. (2002), indicaram que os meninos estão mais envolvidos em conflitos de natureza disciplinar e são punidos mais frequentemente do que as meninas. Nos dados apresentados por eles, 25,9% dos meninos pesquisados reportaram ter vivenciado ao menos um tipo de vitimização física no mês anterior à pesquisa, versus 16,4% das meninas. Por exemplo: 16,3% dos meninos reportaram ter sido agarrados ou empurrados, versus 9,2% das meninas. No entanto, as diferenças foram menos evidentes no que se refere à vitimização emocional: 30,2% dos meninos e 26,6% das meninas reportaram essa violência (Benbenishty et al., 2002).

Existem evidências de que crianças e jovens podem experienciar vitimização escolar como um evento traumático, seja aquela perpetrada por pares, seja a pela equipe escolar. As consequências para alunos vitimizados na escola incluem sintomas físicos, doenças psicossomáticas, prejuízos sociais, emocionais, acadêmicos e psiquiátricos. Nos casos de vitimização por pares são descritos sintomas de depressão (Bond, Carlin, Thomas, Rubin, & Patton, 2001), ansiedade (Fekkes, Pijpers, Fridriks, Vogels, & Verloove-Vanhorick, 2010) e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Albuquerque, Williams, & D'Affonseca, 2013; Ateah & Cohen, 2009; McGuckin Lewis, Cummins, & Cruise, 2012). Os alunos vitimizados por professores podem apresentar problemas acadêmicos, queixas somáticas (Benbenishty et al., 2002), medo intenso, horror e desesperança (Ateah & Cohen, 2009).

 

Piores experiências escolares

Para melhor compreender a vitimização escolar e os envolvidos nesse tipo de violência alguns estudos avaliaram as piores experiências escolares dos estudantes durante a vida escolar aplicando o instrumento Student Alienation and Trauma Survey (SATS-R), de Hyman e Snook (2002). Nos Estados Unidos, Whitted e Dupper (2008) fizeram um estudo com 50 estudantes de 11 a 18 anos, pertencentes a uma escola especial para alunos com problemas de comportamento e perceberam que 64,4% reportaram que um adulto estava envolvido na pior experiência escolar e 35,6% que estudantes estavam.

Os estudos descritos a seguir, além de utilizarem o mesmo instrumento, também foram retrospectivos como a presente pesquisa, contando com a participação de estudantes universitários. Ateah e Cohen (2009) realizaram uma pesquisa com 1007 estudantes universitários dos Estados Unidos e 210 do Canadá, notando que 43% dos americanos identificaram violência relacional e verbal como as piores experiências, 15% disciplina escolar e 5% vitimização física; 38% dos canadenses identificaram vitimização relacional e verbal como as piores experiências, 17% disciplina escolar e 4% vitimização física. No Canadá, 30,5% apontou que o autor da violência era um adulto e 60,5% era um estudante; e nos Estados Unidos 44% indicaram um adulto e 56% um outro estudante. Nos dois países o autor da violência era, na maioria das vezes, do sexo masculino.

Campbell (2004) investigou 95 estudantes universitários australianos, constatando que 29,5% identificaram a pior experiência foi perpetrada por professores; 64,2% assinalaram a autoria de estudantes; e 5,3% indicaram o envolvimento de ambos. As piores experiências tenderam a ter um efeito social na vida dos estudantes, sendo tal dado apontado por 65% dos meninos e 74,7% das meninas. Cerca de metade (55,8%) relatou que a pior experiência na escola ocorreu no ensino fundamental e 43,2% na escola secundária.

Na Irlanda, McGuckin et al. (2012) fizeram um estudo do qual participaram 154 estudantes, percebendo que tanto os meninos quanto as meninas reportaram, em sua maioria, experiências de violência relacional e verbal como as piores experiências. Kay (2005) investigou as dez piores experiências de um grupo de participantes composto por 1007 estudantes universitários norte-americanos e 373 ingleses e também notou que a violência relacional foi o tipo mais comum de pior experiência escolar. Nos Estados Unidos 73,3% dos participantes apontaram que o autor da experiência era um estudante e na Inglaterra 70,1%. A autoria de professores foi apontada por 12,8% nos Estados Unidos e 18,9% na Inglaterra.

No Brasil, Williams, D'Affonseca, Correia e Albuquerque (2011) realizaram um estudo piloto com 81 estudantes de graduação de uma universidade pública do interior do estado de São Paulo e 52% dos participantes apontaram que o causador da pior experiência era um estudante, 38% era um professor e 8% um diretor. Além disso, 52% afirmou que o agressor era do sexo feminino e 40% do masculino. Os autores também perceberam que as piores experiências foram mais frequentes na faixa de idade de 11 a 14 anos.

Buscando esclarecimentos sobre a vitimização escolar dos estudantes brasileiros, o propósito do presente estudo retrospectivo foi descrever as piores experiências escolares vivenciadas por estudantes universitários, apontando a frequência e duração desses eventos, os principais autores da violência, bem como as características dos alvos (gênero, idade, série e tipo de escola).

 

Método

Participantes

Os participantes foram 691 estudantes de uma universidade pública do Estado de São Paulo, com idade média de 21,1 anos, variando de 17 a 61 (DP = 3,48); 54,8% era do sexo feminino e 45,2% do sexo masculino. Tal amostra fez parte de um estudo mais amplo sobre o impacto traumático da vitimização na escola (Albuquerque & Williams, 2015a; Albuquerque & Williams, 2015b; Albuquerque & Williams, 2015c). Os estudantes universitários eram pertencentes aos 34 cursos de graduação presencial da universidade, sendo que 42,3% eram de cursos de Ciências Exatas; 29,9% de cursos de Ciências biológicas e da Saúde e 27,5% de cursos de Ciências Humanas. A maioria dos participantes estava nos primeiros anos do curso: 26,5% cursavam o primeiro ano; 36% o segundo; 20,1% o terceiro; 6% o quarto e apenas 2,3% o quinto ano; 9,1% não responderam a essa questão. Em relação ao recrutamento dos participantes, vale apontar que a pesquisa contou com a participação de pelo menos uma das turmas dos 34 cursos de graduação presenciais da universidade para buscar uma amostra representativa aos cursos.

No que se refere à etnia, 77% se declararam brancos; 4,3% negros; 12,3% pardos; 5,5% asiáticos; 0,6% escolheram a opção "outro"; e 0,3% não responderam. Acerca da renda familiar, 43% se consideraram "Ligeiramente melhor do que a maioria"; 33,1% "Semelhante aos outros lares"; 20,7% "Muito melhor do que a maioria"; 2,6% "Ligeiramente pior do que a maioria"; e apenas 0,6% "Muito pior do que a maioria". Sobre a escolaridade do membro da família que contribui com a maior renda, 34,4% afirmaram que ele(a) "Concluiu o Curso Superior"; 22,7% "Concluiu o Ensino Médio e não ingressou em Curso Superior"; 17% "Fez Pós-Graduação ou Cursos de Especialização"; 11,1% "Não concluiu o Ensino Fundamental"; 8,7% "Ingressou em Curso Superior, mas não se formou"; e 6,1% "Iniciou o Ensino Médio, mas não concluiu".

Instrumento

Foi usado o instrumento norte-americano Student Alienation and Trauma Survey – R (SATS-R), de autoria de Hyman e Snook (2002). A versão utilizada foi traduzida e adaptada (validação de conteúdo) para o Brasil por Albuquerque e Williams (2014), sendo denominada "Escala sobre Experiências Escolares Traumáticas em Estudantes". As primeiras questões do instrumento referem-se a dados sócio-demográficos, tais como: sexo, etnia, renda e grau de escolaridade dos pais. Em seguida, o SATS-R é dividido em duas partes. Na Parte I, há uma lista de 58 eventos traumáticos que podem ocorrer na escola: violência física (VF) (atos que ameacem a integridade física, como tapas e empurrões); violência relacional (VR) (atos que danificam o relacionamento entre pares, como exclusão de atividades, propagação de fofocas e mentiras); violência de caráter sexual (VS) (atos contra a sexualidade do indivíduo, como toques sem consentimento); violência verbal (VV) (atos verbais que podem provocar dano, como xingamentos); violência contra o patrimônio (VP) (envolve atos como quebrar, danificar materiais ou roubar); disciplina escolar injusta (DI) (refere-se a comportamentos tomados por autoridades escolares considerados injustos pelos estudantes); e presenciar um evento negativo (PR), que seja considerado danoso ao bem estar do indivíduo. Para cada um desses itens, o participante deve identificar a frequência de cada evento em uma escala do tipo Likert com seis gradações (indo do Nunca a O tempo todo). Além disso, indica o responsável pelo ato agressivo (Um outro estudante ou Professor). Há, então, indicação para que o participante selecione entre os 58 eventos aquele que foi sua pior experiência escolar, descrevendo-o. Em seguida, existem questões relacionadas à pior experiência, de forma a identificar o que teria ocasionado o evento, algumas informações sobre o autor da violência, a idade do participante quando o episódio ocorreu, qual a série escolar dele na época e o local.

Procedimento

Antes de iniciar a coleta de dados, o projeto de pesquisa foi encaminhado para o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos e obteve aprovação (Parecer Nº 277/2010). A aplicação do instrumento foi executada coletivamente em salas de aula da universidade, em horário de aula. Os participantes receberam informações sobre a coleta de dados, que envolvia questões sobre episódios negativos de sua vida e que sua participação poderia gerar algum tipo de desconforto ou estresse ao lembrarem-se disso. Em seguida, houve o preenchimento dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e, posteriormente, entregue uma cópia do instrumento com numeração para manter em sigilo a identidade dos estudantes, sendo dadas instruções detalhadas sobre como respondê-lo. Cabe apontar que a primeira autora se colocava à disposição para conversar com os participantes que apresentassem necessidade após o preenchimento dos questionários, tendo realizado três encaminhamentos para serviços de atendimento psicológico.

Procedimento de Análise de Dados

Os dados foram tabulados de acordo com a parte I do instrumento (dados sociodemográficos, dados específicos sobre a pior experiência e descrição da mesma) utilizando-se arquivos Excel e Word. Foi realizada uma distribuição de frequência dos 58 itens referentes aos eventos traumáticos que podem ocorrer na escola (indo do nunca a o tempo todo), sendo os mesmos agrupados segundo as categorias existentes no instrumento descritas anteriormente (violência relacional, violência verbal, violência física, violência sexual, disciplina injusta, violência contra o patrimônio e presenciar violência). Foi, também, realizada uma distribuição de frequência dos dados sobre os autores da pior experiência, sendo que o participante poderia indicar o envolvimento de mais de uma categoria de indivíduos (estudantes, professores, funcionários etc.)

Em relação ao relato da pior experiência escolar vivenciada foi utilizada a própria classificação feita pelo participante (uma vez que deveria selecionar um dos itens como pior experiência, descrevendo posteriormente tal episódio). Por fim, buscando-se aferir a possível associação entre as variáveis (como sexo, tipo de violência e duração da pior experiência) foram realizadas análises de estatística inferencial, por meio do teste Qui-quadrado ().

 

Resultados

Piores Experiências Escolares

A frequência dos tipos de vitimização relatados pelos participantes foi: violência relacional (ao menos um item relatado por 85,2%); violência verbal (77,7%); violência física (50,8%); disciplina injusta (43,1%); violência contra o patrimônio (33,4%); presenciar violência (27,9%); e violência de caráter sexual (21,4%). Dentre todas as experiências assinaladas pelos participantes, os mesmos selecionaram as piores experiências escolares (PEE), dividas nas categorias: violência relacional (indicada por 35,7%); violência verbal (27,4%); violência física (12,9%); disciplina injusta (10,8%); presenciar violência (4,8%); violência de caráter sexual (2,4%); violência contra o patrimônio (2,2%); e outras (3,8%). Na categoria "outras" foram descritas vitimizações e conflitos diversos ocorridos na escola.

Em relação à violência relacional, o item do instrumento mais indicado como reação mais frequente foi "Eu fiquei com vergonha" (8%). Outras experiências que chamam a atenção foram: "Alguém fez com que os outros não gostassem de mim" (4,6%); "Perseguiram-me" (3,6%); "Alguém mentiu a meu respeito e eu me envolvi em problemas" (3,3%); "Fui deixado(a) de lado" (3,3%); "Alguém inventou uma história sobre mim" (3%); e "Escolheram-me por último" (2,6%). Os relatos referentes à violência relacional observados no presente estudo podem exemplificar tais vivências, como o da participante 191:

Os outros alunos me excluíam e tiravam sarro o tempo todo por eu ter entrado depois na escola e porque estava acima do peso. Era uma experiência muito ruim, pois mesmo eu tentando evitar as pessoas que me zoavam, eles vinham atrás para falar do meu cabelo, do meu peso. Zoavam até das minhas qualidades, transformando-as em defeitos ou relacionando com algo ruim. Quando mudei para essa escola, no segundo dia chorei e não queria mais ir pra aula, mas meus pais me convenceram a ficar. Durante três anos sofri com xingamentos, ofensas. Tudo era motivo, até meu tênis, meu cabelo, minha família, as coisas que eu gostava.

Acerca da violência verbal, o item mais frequente foi "As pessoas me 'zoavam'" (16,6%). Alguns outros itens de destaque foram: "Alguém ameaçou fazer mal a mim ou às pessoas que eu quero bem" (2%); "Alguém disse coisas ruins sobre minha mãe ou minha família" (2%); e "Alguém tirou 'sarro' de minhas roupas" (1,9%) e "Alguém tirou 'sarro' devido a minha etnia ou raça" (2,3%), como demonstra o relato da participante seguinte:

Eu sofri racismo na minha escola. Era uma escola de pessoas de alta renda. Entrei lá na quinta série, com muito esforço dos meus pais. Na minha sala havia apenas eu e mais um garoto de cor negra. Éramos excluídos da sala. Além de tudo éramos mais pobres do que os outros. Eu tinha apenas dois amigos (homens) na sala, que faziam as atividades comigo e não me deixavam sozinha. O restante da sala me deixava de lado e muitos zombavam de mim. E eu tive dificuldade de acompanhar a escola no começo, pois o nível de ensino era superior ao da escola que estudei. Um episódio em especial me marcou: o garoto que mais me tirava sarro na sala, fez festa de aniversário, convidou a sala toda, menos a mim e me disse que era porque eu era negra. Eu ia à sala da psicóloga todos os dias (P27).

Acerca da violência física a experiência mais relatada foi "Eu me meti numa briga" (5,4%), como pode ser observado pelo relato de P340:

Não gostava do modo dos alunos em sala, assim começaram a me perseguir. Me bateram. Durante três anos tudo que eu queria era mudar de escola, tinha medo de ir ao banheiro, e ficar sozinha quando estava na escola. Minha mãe teve que durante três anos me buscar e me levar na porta, isso durou três anos.

Sobre disciplina injusta, o evento mais frequente foi "Eu fui punido injustamente" (5,6%) e acerca de presenciar violência, o item mais relatado foi "Eu vi algo muito ruim acontecer" (2%), seguido por "Eu vi alguém ser ameaçado com um revólver, faca ou outra arma", apontado por 0,7%. Por fim, em relação à violência de caráter sexual, o item mais frequente foi "Fizeram comentários sexuais sobre mim" (1,6%). Outra experiência de destaque foi "Tocaram em mim sexualmente", apontada por 0,4%, como demonstra o participante 264: "Era pequeno e fui à aula de ginástica com um shorts novo. Lembro-me que no fim da aula, enquanto todos saiam o professor me chamou me perguntando sobre o shorts e o abriu".

Frequência e Duração das Piores Experiências

No que se refere à frequência de ocorrência das piores experiências, 35,6% apontou "uma vez"; 30,7% "poucas vezes"; 15,8% "mais do que poucas vezes"; 12,2% "muitas vezes" e 2,3% "o tempo todo". Assim, a maior parte dos relatos refere-se a frequências baixas ("uma vez" ou "poucas vezes").

Acerca do tempo de duração da PEE, 32,1% afirmaram que a "pior experiência" durou apenas "um dia"; 19,4% "dias ou semanas"; 22,6% "meses"; 8,4% "um ano"; e 10,5% relataram ter durado "anos" (variando de dois até oito anos); 6,5% não responderam à questão. No que concerne aos tipos específicos de piores experiências houve diferença estatisticamente significativa entre a duração de experiência e o tipo de pior experiência vivenciada [(28) 168,54, p < 0,001]. A maioria das vitimizações teve duração rápida (dias ou semanas): disciplina injusta (86,1%), presenciar violência (84,4%) e violência contra patrimônio (93,3%). No entanto, observou-se que alguns tipos de vitimização tiveram duração maior. Por exemplo, entre os que vivenciaram violência verbal, 39,1% apontaram que essa durou "um ano ou anos" e 38% indicaram "dias ou semanas". Quanto à violência relacional, embora 45,1% tenham apontado a duração de "dias ou semanas", 26,6% indicaram "um ano ou anos" e 24,9% "meses". Nos casos de violência de caráter sexual, 43,8% apontaram "um ano ou anos" e 25% "dias ou semanas".

Houve diferença estatisticamente significativa entre homens e mulheres no que se refere à duração da pior experiência [(2) = 7,051, p = 0,029], sendo que entre os que afirmaram que sua pior experiência durou "meses", 11,2% eram mulheres e 6,4% homens; entre os que afirmaram que durou "um ano ou anos", 15,7% eram mulheres e 10,1% homens.

Além disso, houve associação entre a duração e a frequência da pior experiência [(4) =152,977, p < 0,001]. Entre os que vivenciaram vitimização por dias ou semanas, 47% afirmaram que a frequência era baixa e para 3,1% era alta. Entre os que vivenciaram por anos, 8,6% indicaram que era baixa e 10,9% que era alta.

Autoria das "Piores Experiências Escolares"

No que se refere à autoria da PEE, o estudante poderia assinalar diversas opções de resposta (tais como estudante, professor e funcionário) e/ou descrever outros envolvidos na opção "outros", sendo que 78,1% dos participantes apontaram que sua pior experiência envolveu apenas um indivíduo. Do total, 79,9% relataram o envolvimento de um outro estudante; para 22,6% havia o envolvimento de um(a) professor(a); 7,1% apontaram funcionários, tendo sido citados principalmente diretores ou vice-diretores; 1,9% indicaram "outros" (assaltantes, polícia, pai e mãe de alunos, jovens desconhecidos e morador da região da escola); e 1,7% não responderam.

No que se concerne ao sexo dos autores, quando este era um(a) estudante, 55,4% dos participantes da presente pesquisa apontaram que o mesmo era do sexo masculino, 30,4% do feminino, 12,9% indicaram que eram pertencentes aos dois sexos (mais de um estudante) e 1,3% não especificaram. Quando o autor era um(a) professor(a) 62,3% apontaram que esse era do sexo feminino, 27,3% do masculino, 5,8% de ambos os sexos e 4,6% não especificaram. Quanto aos funcionários, a porcentagem de homens e mulheres foi similar.

Os tipos de PEE mais frequentes perpetradas por estudantes foram: violência relacional (37,3%), violência verbal (32,4%) e violência física (15%). As piores experiências mais frequentes perpetradas por professores foram: disciplina injusta (38,7%) e violência relacional (28%). Quanto às piores experiências perpetradas por "outros" (funcionários, diretores etc.) encontrou-se: violência relacional (33,6%), disciplina injusta (26,5%) e violência verbal (16,8%). Um teste de apontou diferença entre o autor da experiência e o tipo de pior experiência vivenciada [(14) 145,57, p < 0,001]. Na maioria dos tipos de vitimização, a agressão foi perpetrada por um estudante: violência relacional (74,3%), violência física (82,2%), violência verbal (83,2%), presenciar violência (75%) e violência de caráter sexual (81,2%). No entanto, nos casos de disciplina injusta, 40,3% apontaram que os autores eram professores e 41,7% indicaram "outros"; e nos casos de violência contra o patrimônio, embora 73,3% tenham apontado alunos como autores, 26,7% apontaram "outros".

Características dos Alvos de Vitimização Escolar

A idade de início da PEE foi em média 12,3 anos (DP: 2,74), variando de 4 a 20 anos. Quanto à faixa de idade do participante na época da ocorrência do evento, 36% apontaram que tinham entre 13 a 15 anos; 33,4% entre 10 a 12 anos; 12,4% entre 7 a 9 anos; 10,5% entre 16 e 20 anos; 2% entre 4 a 6 anos; e 5,7% não responderam à questão ou deram respostas imprecisas.

No que se refere à série ou período escolar dos participantes na época da PEE, 71,3% estavam no Ensino Fundamental (EF); 19,5% estavam no Ensino Médio (EM) e 2% na Educação Infantil (EI); 6,7% não responderam à questão. A maioria dos participantes, portanto, estava no Ensino Fundamental na época da PEE, sendo que as séries mais citadas foram a quinta até a oitava séries.

A Tabela 1 aponta a porcentagem dos tipos de piores experiências de acordo com: a série escolar, o tipo de escola e o sexo do estudante.

 

 

Nota-se que a maioria das vitimizações ocorreu de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental: violência relacional (49,4%); violência física (46,5%); violência verbal (59,2%), disciplina injusta (43,1%); violência contra o patrimônio (73,3%) e violência de caráter sexual (62,5%). Presenciar violência ocorreu mais frequentemente no Ensino Médio (46,9%), sendo que apenas 34,4% apontaram tal ocorrência nas séries de quinta a oitava do EF.

Em relação ao tipo de escola em que o participante estudava, 42,1% apontou que essa era pública, 55,4% escola particular e 2,5% não responderam à questão. As piores experiências mais frequentes na escola pública foram: violência verbal (27,2%) e violência relacional (28%); e na particular foram: violência relacional (41,1%) e violência verbal (27,5%). Alguns tipos de vitimização foram mais frequentes na escola pública comparados a escola particular: violência física (61,6% X 38,4%); presenciar violência (62,5% X 37,5%); e violência contra o patrimônio (53,3% X 46,4%). Na escola particular, os tipos de vitimização mais frequentes comparados à pública foram: violência relacional (65% X 32,9%); violência verbal (56% X 41,3%); e violência de caráter sexual (56,2% X 43,8%).

Por fim, foi encontrada uma diferença estatisticamente significativa no que se refere à modalidade de PEE e o sexo do estudante [(7) 27,31, p < 0,001]. No que concerne ao sexo dos estudantes que passaram pela pior experiência, a maioria das mulheres sofreu vitimização relacional como pior experiência (42,1%), seguido de vitimização verbal (27,7%) e vitimização física (10,1%). Os homens sofreram mais vitimização relacional (27,7%), verbal (28%), física (16%) e disciplina injusta (15,7%). Comparando-se os sexos no que se refere aos tipos de vitimização, as mulheres sofreram mais violência relacional (65% X 35%); violência verbal (54,3% X 45,7%); presenciar violência (56,2% X 43,8%); e violência de caráter sexual (56,2% X 43,8). Os homens sofreram mais violência física (55,8% X 43%); disciplina injusta (65,3% X 34,7%); e violência contra o patrimônio (53,3% X 46,7%).

 

Discussão

Esse estudo apresenta dados para a caracterização da violência na escola e, mais especificamente, das piores experiências retrospectivas de estudantes universitários brasileiros, sendo tais informações inéditas na literatura brasileira. As modalidades de PEEs mais frequentemente descritas pelos participantes foram a violência relacional e a verbal, de acordo com os dados disponíveis na literatura revista, pois altos índices das piores experiências de vitimização relacional e verbal também foram encontrados nos estudos de Ateah e Cohen (2009), Campbell (2004), Kay (2005) e McGuckin et al. (2012), apontando para padrões de vitimização semelhantes entre países com características diversas como Brasil, Estados Unidos, Canadá, Irlanda e Inglaterra.

A porcentagem dos alunos envolvidos na PEE foi mais alta (79,9%) no presente estudo do que na literatura. Por exemplo, no estudo de Ateah e Cohen (2009) 60,5% da amostra canadense e 56% da amostra americana indicou a vitimização por estudantes; e, na pesquisa de Williams, D'Affonseca, Correia e Albuquerque (2011), 52% citaram ter sido outro estudante o responsável pela PEE. Tal dado não chega a ser surpreendente, pois tais países têm realizado estudos amplos de prevenção de bullying há mais tempo do que o Brasil. Os dados sobre o sexo dos estudantes autores das piores experiências estão de acordo com algumas pesquisas mostrando a vitimização maior por meninos em casos de vitimização por pares (Cerezo & Ato, 2010; Cook et al., 2010; Craig & Pepler, 2003; Orpinas & Horne, 2006). No geral, a maioria dos autores da violência era do sexo masculino, o que corrobora os dados apresentados por Ateah e Cohen (2009), cuja maior parte dos participantes relatou que o agressor era do sexo masculino; e os de Williams et al. (2011), no qual 52% dos agressores foi do sexo masculino.

Em relação à autoria da pior experiência por adultos (professores e funcionários) (29,7%), a porcentagem foi inferior à maioria dos estudos disponíveis que utilizaram o mesmo instrumento, como o de Ateah e Cohen (2009), em que 30,5% da amostra canadense e 44% na amostra americana indicaram a vitimização por adultos. Cabe apontar que as diferenças nesses resultados das pesquisas podem estar relacionadas às diferenças metodológicas entre os estudos, uma vez que na presente pesquisa os participantes poderiam indicar mais de um envolvido em sua pior experiência. No entanto, os resultados do presente estudo sobre a violência perpetrada por professores, interpretados em conjunto com os relatos dos participantes sobre as suas piores experiências, apontando diversas consequências para a saúde mental e bem-estar individual, indicam que muitas escolas apresentaram riscos para o desenvolvimento socioemocional dos estudantes, reforçando a necessidade urgente do aprimoramento das relações interpessoais nos ambientes educacionais brasileiros, capacitando nossos educadores para enfrentar alunos desafiadores sem violar os direitos dos mesmos. Adicionalmente, urge que nossos educadores tenham apoio escolar de profissionais de saúde que possam apoiá-los a intervir prontamente com alunos que apresentem níveis preocupantes de depressão ou agressividade, por exemplo.

Quanto aos alvos de violência, as meninas sofreram piores experiências relacionadas à violência verbal, relacional e de caráter sexual e os meninos à violência física e disciplina injusta. Esses dados estão de acordo com a literatura, uma vez que os meninos tendem a ser mais expostos a vitimização direta ou física por pares e meninas à indireta ou relacional (Craig & Pepler, 2003; Felix et al., 2009; Martins, 2005). Além disso, assim como na pesquisa de Felix et al. (2009), no presente estudo as meninas reportaram mais frequentemente violência sexual do que os meninos. Por fim, sobre a maior porcentagem de meninos relatando eventos de disciplina injusta, alguns autores, como Benbenishty et al. (2002) indicam que esses estão mais envolvidos em conflitos de natureza disciplinar e são punidos mais frequentemente que as meninas. Nos dados apresentados por tais autores, 25,9% dos meninos vitimizados reportaram ter vivenciado ao menos um tipo de mau trato físico praticado por professor no mês anterior à pesquisa, versus 16,4% das meninas.

A idade e série escolar dos estudantes na época de ocorrência da pior experiência escolar também estão de acordo com a literatura. Nesse sentido, Craig e Pepler (2003) pontuam que o tipo de agressão e a propensão a usar as várias formas de violência mudam de acordo com o desenvolvimento da criança. Isso porque conforme aumentam as habilidades verbais e sociais, aumenta a capacidade de articulação e o uso de estratégias coercitivas diminui. Tal fato acontece principalmente com o bullying físico, mas pode haver aumento de vitimização verbal e indireta e, com a sexualidade emergindo na puberdade, pode haver vitimização sexual (Craig & Pepler, 2003).

Outra contribuição do presente estudo consistiu em revelar que para uma porcentagem considerável de alunos (10,5%) a PEE durou anos. Embora a maioria dos eventos negativos tenha tido e curta duração, as modalidades de violência verbal e violência relacional tiveram altas porcentagens de participantes (principalmente mulheres), indicando duração prolongada, sendo que alguns citaram espontaneamente que a pior experiência continuava acontecendo até a vida adulta. Tal fato descortina não apenas que tais indivíduos não tiveram acesso a intervenções voltadas à prevenção da violência escolar, como também traz inquietações sobre os efeitos nocivos à saúde de tal violência crômica para os participantes.

Pesquisas longitudinais apontam que estudantes vitimados por pares tendem a sofrer a mesma vitimização anos depois (Olweus, 1993; Schafer et al., 2004; Scholte et al., 2007). Pesquisas indicam que participantes afirmam continuar sofrendo vitimização na universidade (Chapell et al., 2004) e, também, no trabalho (Idsoe, Dyregrov, & Idsoe, 2012; Schafer et al., 2004; Smith, Singer, Hoel, & Cooper, 2003). Para os últimos autores, a vitimização pode afetar negativamente as percepções do indivíduo na vida adulta acerca de si mesmo e dos outros, prejudicando aspectos como autoestima, confiança nos outros e manutenção de amizades. Dessa forma, a vitimização frequente pode ter significativo impacto (Craig et al., 2009) e aumentar o risco para Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Albuquerque & Williams, 2015c). Scholte et al. (2007) indicam, ainda, que o bullying persistente pode ter outros efeitos como privação de experiências positivas em grupo, inibição da aquisição de habilidades pró-sociais e déficits de habilidades sociais. Como as crianças não aprendem reações adequadas em interações sociais, podem desenvolver estilos disfuncionais de interação, fazendo com que sejam mais propensas a problemas futuros de ajustamento social.

Os participantes da presente pesquisa eram provenientes de escolas públicas e particulares; e os tipos de vitimização apontados foram diferenciados, sendo que na pública ocorreram mais casos de violência contra o patrimônio, presenciar violência e violência física e, na escola particular, violência verbal, relacional e sexual. Esse dado sugere que a vitimização escolar está presente em contextos com características socioeconômicas diversas, como apontam Malta et al. (2010), no entanto, pesquisas futuras podem ajudar a compreender melhor as particularidades de diversas modalidades de violência associados a contextos diversos, tal como discutido por Stelko-Pereira e Williams (2013), pois sabe-se que um clima escolar positivo previne situações de violência, promovendo o desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes (Albuquerque, Stelko-Pereira, & Williams, 2013; Welsh, 2003).

A presente pesquisa apresenta como limitação o fato da amostra participante ser proveniente de uma única universidade, o que limita a generalização dos dados. No entanto, os resultados contribuem para a caracterização das PEEs mais comuns entre estudantes brasileiros, frequência e duração desses eventos, os autores dos mesmos e as principais características dos vitimizados (idade, série, tipo de escola).

 

Conclusões

As informações apresentadas no artigo podem ser úteis para o delineamento de novas pesquisas que esclareçam as lacunas existentes na literatura brasileira sobre a vitimização escolar, contribuindo com a complementação dos resultados aqui encontrados. Nesse sentido, permanecem dúvidas se, em amostras diferentes, os dados sobre autoria das vitimizações seriam semelhantes, como o envolvimento dos docentes nas experiências de vitimização dos estudantes, e também sobre os tipos de vitimização mais frequentes. O mesmo pode se afirmar acerca das diferenças de vitimização no que se refere ao gênero e a duração das piores experiências escolares. Por fim, pesquisas com amostras diferenciadas ajudariam a esclarecer também as diferenças encontradas no que se refere aos tipos de vitimização vivenciados em escolas públicas e particulares.

De forma geral, considerando os efeitos negativos que a vitimização escolar pode ter para o bem estar dos alunos envolvidos (Ateah & Cohen, 2009; Bond et al., 2001; Fekkes et al, 2010), os dados apresentados sobre as PEEs dos estudantes podem contribuir para o delineamento de programas de prevenção à violência escolar, e para a elaboração de intervenções destinadas aos estudantes vitimizados no contexto escolar, sensíveis às suas reais necessidades, como enfrentamento do racismo, tolerância à diversidade e respeito aos direitos humanos. Especificamente, os resultados sobre idade de vitimização mais frequente indicam períodos mais propícios ao desenvolvimento de programas de intervenção e de prevenção à violência escolar. No mesmo sentido, os dados sobre as características dos alvos e autores da violência também podem contribuir para a formulação de intervenções, na medida em que indicam o público alvo a ser atingido. Os dados sobre as modalidades de vitimização possibilitam o esclarecimento sobre os temas a serem abordados em intervenções escolares, bem como indicam áreas que necessitam de mais investimento, como por exemplo não subestimar o impacto da violência psicológica. Por fim, os dados sobre o tipo de escola em que a violência ocorreu, pública e particular, apontam a universalidade do problema, reafirmando a necessidade de trabalhos que considerem todos os contextos educacionais.

Sabe-se que violência entre pares ou bullying é um fenômeno complexo que demanda compreensão das diversas variáveis interligadas que o influenciam, dando condições para a elaboração de programas de intervenção e prevenção à violência que sejam realmente efetivos. Os dados provenientes dessa pesquisa podem contribuir para o panorama brasileiro de conhecimento sobre a violência na escola.

 

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Recebido em 15.Mar.16
Revisado em 26.Mar.18
Aceito em 10.Out.18

 

 

Paloma Pegolo de Albuquerque, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams, Doutora em Ciências (Psicologia) pela Universidade de São Paulo (USP), é Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: luciacawilliams@gmail.com

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