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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dic. 1993

 

Relações de gênero na escola: ações e significações de meninas e meninos das classes populares

 

 

Nara Maria Guazzelli Bernardes

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

 

 

Este estudo, que focaliza a construção da subjetividade, do modo próprio de se pôr no mundo (Arendt, 1989) de meninas negras e não-negras e de meninos negros e não-negros das classes populares, tem como pressuposto teórico que as relações de gênero são relações socialmente construídas no contexto de sociedades e culturas patriarcais e se articulam com outras subordinações sociais como classe, raça e idade (Rosemberg, Piza, Montenegro, 1990; Scott, 1990).

A experiência vivida, no cotidiano escolar, de um grupo de vinte e oito crianças de 9 a 12 anos de idade que habitam uma vila na periferia urbana da região metropolitana de Porto Alegre (RS), foi o ponto de partida para a investigação (Bernardes, 1989).

As vivências e significações das crianças bem como dos adultos que fazem parte de seu mundo, as quais foram sistematizadas por meio de uma análise compreensiva de base fenomenológica (Bernardes, 1991), possibilitaram-me refletir sobre aspectos da subjetividade das crianças e o modo como operam as opressões de gênero, classe, raça e idade.

Tais reflexões dizem respeito à convivência de meninos e meninas, ao significado da escola para crianças e adultos, à ocupação dos espaços internos e externos da escola, ao envolvimento das crianças em atividades instrucionais, à bagunça.

A escola aparece como o espaço privilegiado de convívio social, especialmente entre meninos e meninas. Aí acontecem vivências que geram percepções favoráveis ou desfavoráveis a determinados atributos e ações que podem ser associadas ao gênero das crianças. Os meninos valorizam atributos e ações que são típicas da mulher dócil que convive com seus parceiros de forma amigável e harmoniosa, que socialmente não ocupa espaço e está disponível para ajudar os outros. Simultaneamente, rejeitam o que caracteriza a mulher que disputa o espaço social com o homem, que não se deixa dominar, que toma iniciativas. A percepção das meninas em relação aos meninos, por sua vez, tem como critério de valorização/desvalorização atributos associados à convivência amigável e harmoniosa entre as pessoas.

A visão maniqueísta dos meninos reproduz imagens estereotipadas e reducionistas da mulher e do homem presentes numa sociedade patriarcal e machista como a nossa. Em oposição, ao valorizarem atributos ou ações dos meninos que expressam a dimensão afetiva das relações entre as pessoas, bem como ao resistirem a permanecer numa posição submissa e sem visibilidade, as meninas representam um questionamento a tais imagens.

Ações de convivência entre meninos e meninas também revelam jogos de sedução, desejo de namorar e mostram que, devido às possibilidades mais restritas de circulação no espaço público, impostas pelas normas familiares, as crianças podem viver, no espaço escolar, experiências da esfera da sexualidade. Livres, portanto, do controle direto dos adultos da família.

O controle familiar, que incide de forma mais explícita e vigorosa sobre a menina, pode ser entendido à luz da ideologia que, para justificar a divisão sexual do trabalho, opera a separação entre a vida social ou esfera pública (domínio masculino) e a esfera privada ou doméstica (domínio feminino). A oposição homem-mulher articula-se com a complementaridade de papéis e com a assimetria de poder. A assimetria de poder também se configura na díade adulto-criança, gerada inicialmente pela dependência biológica do bebê e mantida por meio da educação. Em relação à menina, esta assimetria é mais intensa por esta ser, a um só tempo, mulher e criança.

Na vila, a imposição ideológica do controle é reforçada por condições objetivas: uma das conseqüências do desenvolvimento capitalista nas últimas décadas em nosso país e do processo de urbanização resultante, principalmente nas regiões metropolitanas, foi transformar o espaço exterior à casa em um mundo significado como hostil e perigoso. Este mundo ameaçador e caótico escapa aos esquemas conhecidos de compreensão; é um mundo selvagem no qual a pessoa corre riscos permanentemente.

A maioria dos adultos revela nítidas preocupações com os riscos de abuso ou violência sexual a que crianças e adolescentes se encontram sujeitos. Segundo a percepção dos adultos, a vítima mais freqüente da violência e do abuso sexual é a mulher. Na rua, portanto, "mora o perigo". Perigo não só objetivo mas também aquele representado pelo fato de a criança ou o adolescente, particularmente a do gênero feminino, estar fora do alcance do controle direto dos adultos.

Para os adultos da família, portanto, a escola significa o espaço público que reproduz ou deve reproduzir o controle e a segurança presentes no espaço doméstico. Para as crianças, mesmo que implicitamente, a escola constitui locus privilegiado de vivências sexuais que são interditadas no espaço doméstico. Se a contradição entre a significação da família e as vivências e/ou significações das crianças aparece como ameaçadora ao controle familiar, pode ocorrer a retirada da menina da escola.

Quando ocupado pelas crianças (ao chegarem, ao saírem ou na falta da professora), o espaço externo da escola (pátio e corredores) mostra-se barulhento e turbulento. De modo geral, as crianças não atendem ordens que visam diminuir ou eliminar a movimentação ruidosa. Parecem considerar este espaço seu território por excelência. A presença dos adultos neste território somente se torna mais visível nas situações em que a convivência de alunos e/ou de alunas se caracteriza por abranger ações conflituosas agressivas, as quais podem resultar em danos corporais para os(as) envolvidos(as), segundo a percepção dos(as) colegas. Assim, via de regra, são as próprias crianças que solicitam ou exigem a presença do adulto que tenta controlar a situação por meio de ameaças, persuasão ou negociação.

Este território, entretanto, revela-se ocupado de forma diferenciada conforme o gênero: ao se deslocarem com mais energia e com movimentos corporais mais amplos, os meninos, de modo geral, acabam por utilizar e explorar maiores porções do espaço físico externo da escola.

No interior da sala de aula, quando a professora não determina o lugar da(o) aluna(o) sentar-se (procedimento usado para controlar suas ações), os meninos tendem a ocupar os lugares mais distantes da professora enquanto as meninas tendem a localizar-se nas posições mais centrais ou mais próximas à professora. Aparece também uma tendência das meninas a utilizarem as carteiras que são duplas e que facilitam ou exigem uma proximidade física maior.

Em sala de aula e na presença da professora, embora alguns meninos permaneçam sentados em seus lugares durante a maior parte do tempo de aula, outros costumam movimentar-se ao redor da carteira ou circular pela sala. Tais ações modificam-se no momento em que a professora sai da sala, mesmo que por poucos minutos. Tornam-se, predominantemente, correrias pela sala, chute de objetos etc. De forma semelhante aos meninos, na ausência da professora, as meninas costumam circular pela sala mais intensamente, embora algumas também o façam na presença da professora.

Assim como no caso da ocupação do espaço externo, os meninos, de modo geral, acabam por usufruir maiores porções do espaço interior da sala de aula.

As experiências de convivência e de se colocar nos espaços da escola, que são peculiares ao gênero das crianças, mostram que meninos e meninas vivem o corpo de modo distinto. Os primeiros realizam movimentos mais amplos e ocupam maiores porções do espaço físico. Envolvem-se mais freqüentemente do que as meninas em ações de caráter agressivo com seus pares, via linguagem do corpo. As meninas participam, predominantemente, de ações de convivência amigável com suas colegas; toques carinhosos entre as próprias meninas fazem parte destas ações. As manifestações de carinho dos meninos por meio da linguagem do corpo (beijos, abraços, mãos dadas, contato físico mais íntimo) são reservadas à convivência com pessoas do gênero feminino, adultos ou crianças.

Outro aspecto que apresenta distinções de gênero diz respeito à participação nas atividades instrucionais.

Comparativamente às meninas, é mais comum que os meninos mostrem maior resistência para se envolverem nas atividades instrucionais propostas pelas professoras. Mesmo durante as aulas nas quais, em geral, exibem maior concentração nas tarefas, muitos meninos se ocupam mais com ações de convivência do que com ações de aprendizagem do saber escolar. Entretanto, quando a tarefa desperta interesse, os meninos participam com entusiasmo mais visível do que as meninas. Estas tendem a revelar maior concentração na realização das tarefas e a trocar idéias com as colegas. Já os meninos tendem a trabalhar mais sozinhos, movimentando-se, falando alto ou gritando.

Há momentos da situação de ensino-aprendizagem em que o desejo de conviver das crianças revela-se mais forte que o desejo de aprender. Em decorrência, elas passam a envolver-se mais intensamente em ações de convivência com os(as) colegas (de caráter harmonioso ou conflituoso) do que em ações de aprendizagem do saber escolar. Ao procurar inverter a razão conviver/aprender, uma parcela considerável do tempo da aula é usado pela professora para tentar dirigir a atenção, o interesse e a ação das crianças no sentidos de se envolverem nas atividades instrucionais propostas. Neste sentido, ela esforça-se para controlar a expressão espontânea das crianças, oral ou corporal, que se manifesta nas ações de convivência.

As tentativas (nem sempre bem sucedidas) fazem com que, nesses momentos, se manifeste nitidamente o culto ao silêncio por meio do controle da palavra ou o culto à imobilidade por meio do controle do corpo, mesmo quando isto não parece ser indispensável ao processo de aprendizagem. Mais do que por necessidades ligadas à maior eficiência da aprendizagem das crianças, tais ações de controle da professora são desencadeadas em função da superação dos seus limites de tolerância em relação à fala ou movimentação das meninas e dos meninos. Fala e movimentação que, muitas vezes, criam um clima qualificado, pelas crianças e pelos adultos, como "agitação", "desorganização", "indisciplina".

A desorganização, a agitação ou a indisciplina denominadas bagunça pelas crianças e pelos adultos, constitui tema relevante nas vivências e significações associadas à experiência de estar na escola.

Do ponto de vista das crianças, a bagunça engloba ações de natureza diversa: não prestar atenção ao que o adulto fala ou explica, não atender às suas determinações ou solicitações. Inclui também ações de convivência amigável de caráter agressivo ou de convivência conflituosa com colegas, que se expressam pela linguagem da palavra ou pela linguagem do corpo. Na ausência da professora aparecem também ações que resultam de uma relação inadequada com o espaço e os objetos materiais pois danificam os equipamentos da sala (bater em carteiras e cadeiras, quebrá-las, quebrar vidro, bater na porta). Tais ações costumam ser realizadas pelos meninos.

Entre as ações que são qualificadas de bagunça, encontram-se aquelas percebidas pelas meninas como sujeitas a maiores restrições pois implicam a moralidade sexual. São praticadas pelos meninos e dirigem-se às meninas: abraçar, agarrar, passar a mão, abusar. No caso de destinar-se a outro menino, consiste em tirar-lhe as calças.

As meninas esclarecem que, quando provocadas pelos meninos, costumam reagir à altura e usar os mesmos recursos que eles.

Ao tratar das causas possíveis da bagunça, as crianças mostram percepções diferenciadas. Amaioria dos meninos e algumas meninas pensam que a bagunça resulta de características de personalidade ou das relações familiares das crianças que independem da situação de ensino-aprendizagem.

De forma distinta, a maioria das meninas e alguns meninos consideram que a bagunça decorre de fatores presentes na própria situação de ensino-aprendizagem. Razões apontadas revelam que, para algumas crianças, a postura disciplinada das alunas e dos alunos é vista mais como uma conseqüência da ação pedagógica do que como um fator responsável pela sua eficiência.

As crianças consideram que os meninos são os mais bagunceiros, principalmente nas situações de sala de aula, embora duas delas assegurem que as meninas costumam brigar entre si na sala de aula tanto quanto os meninos.

Para explicar as razões pelas quais os meninos mostram-se mais bagunceiros do que as meninas, as crianças apresentam argumentos tais como: mais do que as meninas, os meninos sabem fazer bagunça; meninos não são capazes de resistir ao apelo dos colegas para bagunçar; menino mau-caráter pratica ações indesejáveis que dizem respeito à moralidade sexual, sem a concordância da menina; entre adultos e crianças, circula a idéia de que os meninos, por serem homens, devem brigar entre si; as meninas não costumam bater umas nas outras, somente puxar cabelo e brigar; os meninos são malcriados, mal-educados e desrespeitosos; meninos maiores ensinam aos menores; meninos desejam provocar as meninas para irritá-las e ver sua reação; as meninas não participam tão prontamente da bagunça porque isto não é considerado apropriado para elas; as meninas têm menor capacidade para resistir às punições verbais dos adultos; na ausência do adulto, mais do que os meninos, as meninas são capazes de permanecer brincando e jogando de forma organizada; com mais facilidade do que os meninos, as meninas costumam permanecer sentadas e escrevendo, durante as aulas; as meninas são capazes de prestar mais atenção ao que a professora fala ou explica.

Com muita perspicácia, algumas meninas esclarecem que, apesar de as conversas constarem, igualmente, do repertório de ações dos meninos, elas costituem o modo predominante das meninas fazerem bagunça. Entretanto, como as meninas, muitas vezes, o fazem reservada e dissimuladamente, nem sempre a professora toma conhecimento destas ações. Embora seu repertório mostre-se diferente do repertório de bagunças masculinas, as meninas também são bagunceiras; porém, de forma menos ostensiva e visível.

Tais componentes do cotidiano escolar das meninas sugerem condutas, ações e significações de obediência às normas escolares, de conformismo aos padrões culturais. Contudo, há que interpretá-las também como formas de rebeldia, oposição ou resistência dissimulada, menos perceptível e, por isto mesmo, mais ajustavel à cultura escolar. (Anyon, 1990; Rosemberg, Piza, Montenegro, 1990).

Em suma, tentar compreender a experiência de estar na escola dessas crianças, por meio de uma análise compreensiva de base fenomenológica, possibilitou-me focalizar a paisagem escolar não apenas sob a ótica das situações de ensino-aprendizagem mas também como espaço de construção da subjetividade no que tange ao gênero.

A constituição do gênero das crianças negras e não negras das classes populares parece mostrar a acomodação a padrões culturais hegemônicos, principalmente no que diz respeito a ações e significações dos meninos, enquanto que as meninas, ao mesmo tempo em que também se acomodam a tais padrões, dão a ver ações e significações que podem ser entendidas como ensaios múltiplos e continuados de resistência nos planos da subjetividade ou da intersubjetividade.

 

Referencias Bibliográficas

Anyon, J. (1990) Intersecções de gênero e classe: acomodação e resistência de mulheres e meninas às ideologias de papéis sexuais. Cadernos de Pesquisa, 73,3-87.         [ Links ]

Arendt, H. (1989) A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Bernardes, N.M.G. (1989) Crianças oprimidas: autonomia e submissão. Tese de Doutoramento defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.         [ Links ]

Bernardes, N.M.G. (1991) Análise compreensiva de base fenomenológica e o estudo da experiência vivida de crianças e adultos. Educação, 14, 20,15-40.         [ Links ]

Rosemberg, F., Piza, E.P., Montenegro, T. (1990) Mulher e Educação Formal no Brasil. Estado da Arte e Bibliografia. INEP, REDUC.         [ Links ]

Scott, J. (1990) Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 16, 2,5-22.         [ Links ]

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