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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

ANÁLISES CLÍNICAS

 

Clinica e metapsicologia de Freud a Lacan

 

 

Richard Theisen Simanke

Universidade de São Paulo

 

 

INTRODUÇÃO

A psicanálise nasce já ciosa de sua autonomia. Com Freud e - ainda mais intransigentemente - com Lacan, ela defende a originalidade de seu método, de sua doutrina, enfim, de sua abordagem do campo do conhecimento que se atribui. Contudo, ao menos nos dois autores - ambos médicos - aqui em foco, é de uma discussão estritamente interna à medicina que emergem as idéias psicanalíticas: no caso de Freud, o aparato conceituai de base que engendrará e definirá a nova disciplina; no de Lacan, as diretrizes e as premissas para uma ampla reformulação teórica dentro da psicanálise. Em ambos os casos, é a vocação clínica da medicina que põe em movimento uma reflexão teórica que toma como objeto uma afecção essencialmente problemática à explicação médica e, por consequência, refratária à intervenção. Histeria e paranóia vão - ao erigirem-se em paradigmas clínicos para a investigação freudiana e lacaniana - condicionar toda a teorização subsequente, com sua problematicidade inerente empurrando a reflexão clínica até os limites de epistemologia, levando, ao fim e ao cabo, à constituição de uma nova disciplina e de um corpo de conceitos fundamentais específicos, ou seja, de algo que, valendose do neologismo cunhado por Freud e estendendo-o a Lacan, se pode chamar de metapsicologia.

Sem colocar em dúvida a especificidade epistêmica da psicanálise, este trabalho se propõe a discutir em torno de polêmicas nitidamente médicas - aquelas em torno do localizacionismo, em Freud, e em torno do reducionismo, em Lacan, por exemplo - emergem os conceitos fundamentais de suas concepções da psicanálise e, por extensão, a reflexão metapsicológica. Pretende-se assim contribuir para a elucidação do significado do termo, bem como do estatuto do estilo de reflexão que ele nomeia, sem perder de vista a vocação essencialmente clínica que a psicanálise herdou de sua filiação médica. A análise das respostas diferenciadas que Freud e Lacan deram a este problema e de como ambos operaram sua passagem da medicina à psicanálise deverá permitir compreender um pouco melhor o sentido da reinterpretação lacaniana de Freud e como, de uma significativa discordância inicial, chega-se a justificar, teoricamente, uma convergência possível.

 

FREUD: DE UMA CLÍNICA DO AUDÍVEL A UMA METAPSICOLOGIA DO DISCURSO

Desde seu mito de origem predileto - o caso de Anna. O., com sua talking cure - a psicanálise se constitui como um método que estamos chamando de metapsicologia do discurso (cf. a expressão de Forrester, 1980). Para explicitar as condições de seu surgimento, trata-se agora de pôr em questão a necessidade de ruptura imposta pelo objeto clínico ao estilo vigente de apreensão médica deste segmento específico da patologia.

Dificilmente se pode pôr em dúvida o privilégio de que desfruta a histeria enquanto paradigma clínico do período inaugural da psicanálise. Mas, se ele impõe a ruptura, sua eleição não está menos determinada por um debate que o precede e que é ainda interno à ciência médica: aquele em torno de teoria das localizações germes da doutrina psicanalítica.

É no estudo freudiano sobre as afasias (Freud, 1988) que tem início a elaboração das hipóteses que serão depois transplantadas para o terreno da histeria. Com sua viagem de estudos à França, em 1885, Freud entrara em contato com uma psiquiatria que se afastava do mecanicismo estrito da academia alemã, do qual Meynert, seu antigo professor, era um dos principais defensores. Contudo, se o ensino de Charcot permitiu o surgimento do conceito de neurose - em certo sentido, criado por ele e, mais tarde, redefinido por Freud (cf. Nassif, 1975) - encontrava-se ainda demasiadamente comprometido com uma psicologia abstrata das faculdades mentais, que tendia mais a uma tipologia dos indivíduos do que à produção de categorias objetivas de análise. É, pois, como um esforço no sentido de prover a clínica da neurose de um fundamento conceituai mais sólido, que pode ser entendido o trabalho desenvolvido por Freud em Zur Auffassung der Aphasien.

Trata-se, aí, de um livro eminentemente crítico: Freud se propõe a renovar a teoria das perturbações da linguagem mediante uma discussão das teses dos grandes neurologistas da época notadamente Wernicke e Meynert (cf. Gabbi Jr., 1991). Entende-se sua necessidade: a neurologia localizacionista, elementarista e mecanicista destes não permitia ao conceito de neurose senão um estatuto epifenomênico; era uma neurologia de laboratório, não de clínicos. Em sentido inverso, o trabalho clínico empreendido e ensinado por Charcot não encontrava um fundamento apropriado na psicologia disponível. Era, então, preciso buscar uma teoria neurológica capaz de dar à neurose um estatuto objetivo; foi esta possibilidade que Freud vislumbrou nas concepções de Jackson, que alimentam boa parte do trabalho crítico de Para uma concepção das Afasias.

Dois conceitos de Jackson são especialmente aproveitados: o de processo e o de dissolução. O primeiro se adapta perfeitamente uma crítica do localizacionismo e do elementarismo neurológico. Ao analisar a linguagem em busca de um traço comum a todos os transtornos af ásicos, Jackson não parte do uso da palavra, mas do uso da oração, dando atenção ao fato clínico de que uma palavra pode estar indisponível para o afásico em certo contexto (cf. Cassirer, 1923/29), mas acessível em outro, o que contraria a noção wernickeana da afasia nuclear (causada pela destruição dos núcleos onde se encontrariam "armazenadas" as palavras). Esta ênfase na sintaxe em detrimento da morfologia corresponde, no nível neurológico, a um privilégio do processo sobre o registro neuronal atômico: aquele, assim como a frase, é a unidade de análise ou, em outras palavras, o verdadeiro objeto de uma neurologia que se pretenda científica.

Ora, esta noção de processo, enquanto encadeamento dinâmico de eventos neuronais, permite a Freud, antes de tudo, escapar ao dualismo que assombrava ainda a psicologia francesa das faculdades mentais, com seus insolúveis paradoxos da relação mente/corpo, na medida em que não é uma noção estritamente psíquica (no sentido tradicional), nem estritamente fisiológica: é o jogo dinâmico, ele mesmo, que se elege como objeto de investigação, não a fisiologia que ele põe em movimento, nem os efeitos que ele eventualmente produza no nível da consciência. O conceito do processo acarreta, ainda, uma noção de lugar que não é mais aquela do localizacionismo, ou seja, a de um lugar puramente orgânico, material, onde um traço psíquico viesse, de alguma maneira misteriosa, se inscrever (conforme a noção de engrama). Esta concepção supõe um córtex compartimentado em unidades estanques, partes extra partes, onde a informação (por exemplo, a descrição do córtex cerebral implicada pelo conceito de projeção de Meynert). Com isso, introduz-se - e passa a exigir solução - o problema da síntese psíquica das representações complexas a partir destes elementos, problema que remonta às origens humeanas da psicologia sensualista. Ao contrário, o conceito jacksoniano supõe um córtex homogêneo, onde as diferenciações são produzidas pelos processos que aí se desenvolvem. É o processo que engendra o lugar (cf. Nassif, 1977), ou seja, este último adquire agora uma acepção funcional e não mais morfológica: a espacialização da psíquico não precisa mais coincidir com o espaço anatômico do cérebro. Não é preciso esforçar-se muito para ver aí as origens da concepção estritamente freudiana de tópica, tal como é afirmada na clássica passagem, no início da seção B do capítulo VII da Traumdeutung (Freud, 1900): não é necessário supor que os diversos sistemas psíquicos estejam anatomicamente dispostos tal como propõe o esquema do aparelho, mas apenas que a excitação os percorra em uma determinada ordem; isto é, esta sequência é uma função da passagem da excitação. A topografia psíquica não pré-existe ao processo, mas é estabelecida por ele.

Um outro problema espinhoso da psicologia associacionista evitado pelo endosso freudiano das idéias de Jackson é o da análise das representações. Numa concepção elementarista o complexo sempre pode, de direito, ser reconduzido ao simples que lhe deu origem por combinação. Mas, no caso psicológico, a busca dos elementos das representações (as sensações simples) acaba sempre reecontrando os paradoxos do paralelismo psicofísico, que é a forma oitocentista por excelência do problema mente/corpo. Ora, na concepção jacksoniana de processo, os elementos são os próprios eventos (cf. Nassif, 1977), ou seja, encontram-se, por assim dizer, num nível ontológico diferente: aquele da física da condução nervosa. O objeto da investigação e unidade mínima de análise é a interação dinâmica destes eventos, nos quais consistem os processos neurológicos em geral e, em particular já que é da afasia que se trata - da linguagem concebida como processo.

É justamente ao aplicar estas teses à explicação da linguagem que se percebe sua relevância maior para a psicanálise e, mesmo, seu alcance filosófico; pois é o antigo problema das relações entre pensamento e linguagem que é recolocado em questão. Do lado da psicanálise, é sua teoria da representação que estã em formação. O conceito de representação é empregado por Freud no estudo sobre as afasias para se contrapor à noção meynertiana de projeção: na medida em que há uma defasagem (esta idéia também se encontra em Jackson) entre o aparelho cortical e o cérebro-espinhal - em termos estruturais, uma diminuição do número de fibras de condução do segundo para o primeiro - a informação periférica não se projeta mais ponto a ponto no córtex, não configura uma cópia do que é obtido via percepção, mas, ao contrário, encontra-se ali tão somente representada (Cassirer, 1923/29) vê aí a contribuição destas teorias da afasia para a questão do significado da linguagem na construção do mundo da percepção). Com isso, a percepção aparece desponjada de conteúdo cognitivo; ela já não é mais algo meramente dado e dotado em si mesmo de significado, no qual deve repousar o significado da linguagem e do simbolismo em geral: nenhuma percepção pura pode jamais atingir a consciência, mas apenas uma representação construída pelos processos neurológicos no nível cortical (basta lembrar o esquema da Traumdeutung, onde percepção e consciência situam-se em extremos opostos do aparato psíquico). No limite, para Freud, ela deixa até mesmo de ser um fato psíquico, mas relaciona-se apenas aos aspectos físicos da excitabilidade.

Deste modo, o problema das relações entre pensamento e linguagem parece ser resolvido na direção da identidade. Se toda representação é um complexo, os elementos deste complexo não são eles mesmos de ordem representacional. Se para Freud - como, depois, para a Gestaltheorie - perceber é sempre associar imediatamente, essa necessidade da associação não é mais uma propriedade da percepção, mas dos sistemas mnêmicos (lembrando, de passagem, que são estes que, a partir do Projeto... [Freud, 1895 (1950)], vão merecer a designação de psi), sendo que memória, aqui, não designa nada mais do que os processos excitatórios que constituem as representações. Com o aparelho neuronal transposto em um aparelho de linguagem, percebe-se como Freud, apoiando-se em Jackson, consegue operar a passagem diretamente do neurológico para o linguístico, fazendo economia do que se poderia chamar de "mental"; contorna assim os impasses do dualismo substancialista, obtendo uma definição do psíquico que é unicamente funcional. A teoria freudiana da representação não é mais uma teoria psicológica, ao menos no sentido tradicional.

A questão da consciência - que Freud nunca vai deixar de considerar como estreitamento relacionada com o da percepção - concentra, nesse momento, as críticas freudianas ao localizacionismo: ela não será localizável, na exata medida em que passa a ser concebida como processo. Contudo, como a teoria de Jackson permite pensar a idéia de processo aquém do critério da necessária com o psíquico e passa a constituir um problema para a explicação neurológica e, depois, psicanalítica. Problema renitente, que não chegou a encontrar resposta satisfatória ao longo de toda a obra freudiana (sintomaticamente, um dos sete artigos de metapsicologia que foram engavetados tinha por objeto o tema da consciência). Talvez Freud nunca tenha encontrado melhor solução do que aquela proposta já em Para uma Concepção das Afasias: a vinculação da consciência às imagens acústicas da palavra, que se reflete ainda em uma obra tão tardia quanto O ego e o id (Freud, 1923).

Pode-se dizer que uma das teses fundamentais daquela obra é privilégio concedido ao elemento acústico dentre as associçoes estabelecidas pela linguagem. Ele nao só condiciona o aprendizado da língua, como constitui a linha de associações primitivas, da qual todas as outras vao depender (Freud, 1889). Além disso, a imagem sonora da palavra desempenha um papel crucial na concepção das afasias que Freud quer estabelecer e, num sentido mais amplo, no estabelecimento das condições para o uso significativo da linguagem. De fato, a imagem sonora é o único ponto em que se articulam a representação da palavra e as associações que compoen o objeto, no esquema que embasa a classificação das afasias que Freud quer fazer substituir-se à de Wernicke (Freud, 1889): demolida a concepção que distingue entre as afasias nucleares e as de condução, Freud propõe a distinção entre as afasias verbais, onde estão interrompidas as vias de condução entre os elementos da representação de palavra, e as afasias assimbólicas, onde está impedida a via entre a representação de palavra e a de objeto e mais especificamente, a que conduz, da imagem sonora da palavra, à associação visual do objeto, ponto exclusivo de articulação. Fica claro como a linguagem, nesta concepção, nao representa o mundo da percepção: o objeto da representação de palavra é uma outra representação - a de objeto -, ambas configurando complexos cujos elementos sao de origem perceptiva, mas nao pertencem, enquanto tais, à esfera representacional.

Pouco é necessário acrescentar para se obter a famosa distinção entre as representações de coisa e representações de palavra exposta na última seção do artigo metapsicológico "O inconsciente" (Freud, 1915), a nao ser alguns detalhes na terminologia (neste último texto, representação de objeto designa a totalidade do complexo formado pela representação de coisa mais a representação de palavra). Esta talvez possa ser considerada - juntamente com o conceito de pulsao - a distinção fundamental da metapsicologia, já que visa, precisamente, definir o estatuto metapsicológico do inconsciente.

Do ponto de vista clínico, a concepção exposta no estudo sobre as afasias vai dar origem à concepção que remete toda a patologia a um problema de comunicação entre as representações, e nao ao aniquilamento desta ou daquela, como acontecia na afasia nuclear de Wernicke, o que conduz, praticamente, à idéia de uma indestrutibilidade virtual da memória (haja vista que, segundo a psicanálise, todo esquecimento se explica pelas condições dinâmicas do inconsciente). É o segundo conceito crucial importado de Jackson - o de dissolução - que vai inspirar, a partir daqui, a psicopatologia freudiana. Freud vai empregá-lo, principalmente, para a superação das teorias psiquiátricas da degenerescência: a idéia de dissolução dos processos em Jackson, de forma alguma, é inteiramente negativa. Ela nao pode sê-lo, já que, em sua concepção dinâmica e funcional do funcionamento nervoso, o estado patológico tem que, forçosamente, ser concebido também como um processo: a dissolução patológica apenas abre caminho para uma nova organização. Apropriando-se deste conceito e apoiando-se, ainda, nas idéias de Bastian - que propõe uma hierarquia ao mesmo tempo genética e funcional para os processos de excitação entre os centros nervosos (cf. Gabbi Jr., 1991) - Freud vai cunhar seu próprio conceito de regressão, alicerce de sua concepção do patológico e motor da construção de suas primeiras tópicas (a versão que se encontra na Traumdeutung é tao somente a culminação de uma série de tentativas de conceber o psíquico em termos espaciais).

Assim, em Freud, as noções de dissolução e de descompasso entre os processos irao dando lugar às noções de regressão e clivagem; quanto a esta última, será privilegiada justamente aquela que se dá entre a representação de palavra e a de objeto: é a afasia assimbólica, portanto, que vai fornecer o modelo para a compreensão freudiana da neurose, notadamente, da histeria (cf. Gabbi, 1991). Ora, é este privilégio que vai inaugurar a possibilidade de um diagnóstico clínico das afasias, concebidas doravante como "doenças de um aparelho de linguagem" (Nassif, 1977, p. 162), ou seja, vai permitir que a escuta das produções verbais do af ásico se eleva à categoria de método de investigação, capaz de fornecer os critérios diagnósticos e classificatórios. Nesse sentido, pode-se dizer que as concepções freudianas sobre a afasia dao margem ao surgimento de uma clínica do audível (a expressão é de Nassif, 1977) condição de possibilidade da "cura pela linguagem", que vem a constituir o método psicanalítico. A medida da ruptura estabelecida em relação à tradição do discurso médico torna-se flagrante, quando recordamos como este último se constituiu histórica e eminentemente, sobre uma clínica do visível e do palpável e quando consideramos como a objetividade da ciência médica é urna função da acuidade do olhar, segundo as análises de Foucault (1987). Nao é menos flagrante, porém, que esta ruptura é produto de urna crítica de natureza epistemológica dos métodos, dos conceitos e dos objetos tipicamente médicos que foram seu ponto de partida.

Estas constatações vao ser imediatamente transpostas por Freud para o caso da histeria. Em outras palavras, mantendo a idéia de uma clinica do audível, a escuta do discurso afásico fornecem as bases e as condições para a escuta do discurso histérico (cf. Nassif, 1977). Já no artigo Histeria (Freud, 1888), na enciclopédia Villaret, Freud assinalara q que os sintomas histéricos nao constituem cópias das condições anatômicas do sistema nervoso. Trata-se, pois, da oposição entre projeção (Meynert) e representação já sendo aplicada à histeria. Freud tentava explicar a liberdade de que desfrutavam os sintomas histéricos - as paralisias, anestesias, hiperestesias, principalmente - segundo os parâmetros de Jackson. Contudo, mesmo a noção de uma desordem de natureza meramente funcional, no nível neurológico, parece estar demais aqui. É, em geral, aceito que é no texto sobre as paralisias orgánicas e histéricas (Freud [1893]) que a ruptura se consuma (cf. Forrester, 1983 e Gabbi Jr., 1991, por exemplo). Daí em diante, as relações causais restringir-se-ao ao nível representacional, já que a histeria se comporta como se não tivesse nenhum conhecimento da anatomia sendo as paralisias e outras manifestações determinadas pela representação comum do órgão e nao pela sua estrutura real. A histeria atinge uma anatomia fantástica, constituída por aquilo que o sujeito conhece de seu próprio corpo e que ele é, de direito, capaz de veicular verbalmente. A cura pela palavra passa, então, a fundamentar-se no reconhecimento do sintoma como um fato de linguagem, o que se expressa magnificamente em uma surpreendente afirmação freudiana: a paralisia histérica é causada, em última instância, pela lesão de uma representação (Freud, 1888).

Uma vez estabelecido que a determinação da histeria se esgota na linguagem, a elaboração daquilo que estamos chamando, seguindo Forrester, de uma metapsicologia do discurso impõe-se naturalmente como o passo seguinte. É o que Freud empreende no formidável esforço especulativo em que consiste o Projeto de Psicologia (Freud 1895 [1950]): a construção de uma maquinaria teórica capaz de explicar os efeitos da linguagem na determinação dos sintomas corporais que caracterizam a histeria. O Projeto... pode, assim, ser considerado - como já se disse - o capítulo teórico que Freud não escreveu para os Estudos sobre a Histeria, uma vez que ele já discordava significativamente das posições de Breuer antes mesmo da publicação desta obra. Não há espaço, aqui, para a exposição das teses do Projeto... em sua complexidade, de como elas estão em continuidade com a problemática descrita até agora, nem de como se prolongam na versão final que recebem em A Interpretação dos Sonhos. Acrescentemos apenas que aparelho neuronal, aparelho de linguagem ou aparelho psíquico constituem fundamentalmente o mesmo "aparelho" nas referências de Freud. Freud não renuncia, na Traumdeutung, à localização anatômica, mais do já havia renunciado a ela no estudo sobre as afasias. Isto, de nenhuma maneira, impediu de colocar a linguagem na posição de universal da psicanálise, de operar a identificação entre a fala e o sintoma e de delimitar o domínio específico para a nova disciplina que emerge destas reflexões. A questão é muito mais complexa do que uma simples opção entre a neurologia e a psicologia. Isto talvez permita compreender melhor a profissão de fé materialista mantida por Freud até o final de sua obra, tal como se manifesta, por exemplo, no Esboço de Psicanálise, (Freud (1938) [1940]).

 

LACAN: AS CONDIÇÕES PARA UM RETORNO A FREUD

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a possibilidade de um "retorno" lacaniano a Freud é um ponto problemático. Se bem que o projeto de Lacan consistia em restituir a psicanálise às suas raízes freudianas, sua própria obra como psiquiatra e como psicanalista - já bastante desenvolvida na época em que enuncia seu projeto - é, em muitos pontos, avessa à do criador da psicanálise. Resta saber se Lacan simplesmente renunciou às suas teses fundamentais para abraçar, de alma limpa, a psicanálise freudiana. Ora, flagrantemente, este não é o caso: "ninguém ignora que o famoso retorno a Freud não se limita a um esforço filológico a serviço da ortodoxia" (Prado Jr. [1991. p. 54]). A alternativa contrária é que este retorno não passe de um expediente de retórica ou, no máximo, de uma bandeira política. Ele é tudo isso, mas gostaríamos de indicar brevemente, a título de conclusão deste ensaio, qual o significado e o alcance teórico que pode ter esta proposta de retomada da letra do texto freudiano, tendo em vista as premissas da constituição da metapsicologia freudiana recapituladas acima; em outras palavras, sob que condições as empresas metapsicológicas de Freud e Lacan podem convergir e, de fato, convergem.

A obra inaugural de Lacan - sua tese de doutorado em medicina Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade (Lacan, 1987) - visa uma apreensão da paranóia enquanto fenômeno total, ou seja, para além do reducionismo organicista, por um lado, e da psicologia introspeccionista tradicional, por outro. Para tanto, é introduzida a exigência que se calca na noção de relação de compreensão, importada da psiquiatria fenomenológica de Jaspers: Lacan vincula explicitamente a análise das relações de compreensão com o projeto de apreensão da psicose em sua totalidade (Lacan, 1987). Contudo, longe de reivindicar uma postura, por assim dizer, hermenêutica para a psiquiatria, Lacan se esforça em dar-lhe uma formulação científica - entendendo por isso, materialista, determinista, etc. (Lacan, 1987) que admita, no entanto, a idéia de compreensão. Trata-se, daí em diante, de buscar o determinismo específico dos fenômenos psicóticos e, por extensão, da própria personalidade, já que Lacan recusa a concepção da paranóia como fenômeno de deficit e define tanto a personalidade sadia quanto a patológica como estruturas reacionais frente a situações e crises que são, ao mesmo tempo, vitais e sociais. Assim, o percurso lacaniano na tese acarreta a reintrodução da noção de sujeito na reflexão médica (cf. Ogilvie, 1987), já que esta noção é essencial para a compreensão do sentido dos sintomas psicóticos enquanto atos intencionais de uma consciência delirante; mas esta não poderá ser mais uma subjetividade dependente, cuja determinação deve ser buscada num meio homogêneo humano. Este é a condição para escapar ao reducionismo, segundo Lacan: basear-se numa teoria da gênese social da personalidade, no meio social.

Dois problemas, duas necessidades teóricas, apresentam-se como cruciais a partir das conclusões da tese: primeiro, a formulação (ou a descoberta) de uma antropologia antiindividualista, isto é, que conceba o social como um meio autônomo, constituinte da - e não constituído pela - singularidade dos indivíduos que o integram, já que este meio deve compor uma ordem transcendente, porém homogênea, à qual remeter a causalidade específica dos fenômenos da personalidade (o que Ogilvie, 1987) chama da necessidade de "uma revolução da antropologia" (p. 51); segundo, a elaboração de uma teoria da constituição do sujeito, capaz de dar conta da formação tanto das estruturas normais quanto patológicas da personalidade.

Quanto à primeira, Lacan entrevê a sua concretização, inicialmente, na leitura kojeviana de Hegel, que interpreta a Fenomenologia do Espírito do ponto de vista de uma antropologia filosófica - mais especificamente, como uma teoria fisolófica da antropogênese (cf. Arantes [1992])(1), - e, mais tarde, na antropologia estruturalista de Levi-Strauss. Suas investigações nesta área recebem uma primeira síntese no artigo enciclopédico sobre "A família" (Lacan, 1990), que integra já a concepção freudiana dos complexos, bem como elementos de sua teoria do narcisismo. Este último era um dos poucos conceitos freudianos mencionados na Tese, se bem que submetido a uma severa crítica (Lacan, 1987). lacan vai imediatamente perceber a importância do conceito de identificação - estritamente relacionado ao narcisismo - para sua problemática da constituição do sujeito e empreende, nos anos que se seguem à Tese, uma ampla reformulação da teoria freudiana sobre o estágio narcísico - reformulação esta estritamente solidária com suas pesquisas na área da antropologia da família humana - que vai culminar na teoria da fase do espelho, apresentada pela primeira vez em 1936, mas que recebe sua forma definitiva no artigo O Estágio do Espelho como Formador da Função do Eu (Lacan, 1966). O resultado do esforço de resolução destes dois problemas correlatos que emergem da Tese é a elaboração do que pode ser chamada uma teoria antropológica do imaginário, na qual Lacan vai tentar fundamentar, primeiramente, uma psicologia concreta no estilo de Politzer - cuja influência faz-se sentir desde a Tese de 1932 - e, depois, já psicanalista, sua primeira reinterpretação em grande escala da obra de Freud, propondo o conceito de imago como o objeto por excelência da reflexão psicanalítica, no lugar do paradoxal conceito de representação inconsciente (cf. Merleau-Ponty, 1988). Com o posterior sucesso do aproveitamento antropológico das teorias estruturalistas da linguagem, Lacan sentir-se-à em condições de formular uma teoria estritamente formal do simbólico, para com ela, empreender sua releitura da Freud, já sem substituir os conceitos fundamentais por outros julgados mais apropriados ("representação inconsciente" por "imago", "inconsciente" por "imaginário" etc), mas sim partindo para uma reformalização do arsenal teórico freudiano de base.

O que se pode perceber a partir desta brevíssima recapitulação dos movimentos iniciais do percurso teórico lacaniano é que seu ponto de partida é, em muitos pontos, quase que diametralmente oposto às posições freudianas descritas acima. Esta diferença pode se justificar, antes de tudo, pela formação médica distinta de ambos os autores: Freud, neurologista, parte de uma problemática que gira em torno da noção de aparelho, onde os sintomas aparecem como efeitos de mau funcionamento global e defronta com uma problemática dos signos, para as quais trata de constituir uma semiologia objetiva. Pode-se dizer, grosso modo, que a releitura lacaniana de Freud consiste em reconduzi-lo, de uma problemática do aparelho, a uma problemática dos signos, sem trair o espírito original de sua doutrina, o que só se torna possível pela disponibilidade de uma nova teoria do simbólico, que pode servir de base comum para ambas as teorias. Com isto, completavase a tríade que vai definir sua metapsicologia: os três registros do simbólico do imaginário e do real.

Uma outra diferença essencial no ponto de partida reside em que, para Freud, um dos ganhos teóricos obtidos com a noção jacksoniana de processo foi, juntamente com a dispensa do critério da consciência, ter tornado pensável a idéia de um funcionamento automático da linguagem e do psíquico, ou seja, um funcionamento psíquico sem sujeito, enquanto, como se viu, para Lacan era essencial a reintrodução do sujeito na reflexão psiquiátrica. Em parte, esta diferença se explica pela distinção estabelecida acima. Para Freud, as noções de processo e de aparelho lhe permitiam, justamente, falar de linguagem sem cair no psicologismo e interpretar os sintomas dispensando a intervenção das intenções conscientes: ele estava interessado em demonstrar, por trás da intencionalidade subjetiva, a existência do automatismo objetivável do inconsciente. A psicanálise é concebida como uma teoria dos processos sem sujeito (cf. Nassif, 1977). Lacan, ao elaborar a teoria de uma subjetividade determinada, criava um conceito que a Freud se afiguraria como paradoxal, mas, em última instância, buscava cumprir a mesma exigência de uma análise objetiva do psiquismo.

Vimos acima como Freud, apoiado nas idéias de Jackson, consegue evitar os paradoxos dualistas através de uma teoria que lhe permite passar diretamente do neurológico para a linguagem, fazendo desse movimento dinâmico das quantidades entre as representações o domínio específico da psicanálise: aquilo que denominou de psiquismo inconsciente. Esta teoria só deixa em aberto dois estatutos possíveis para o conceito de inconsciente: orgânico ou linguístico. Quando Lacan tentou constituir uma psicologia concreta inspirada na psicanálise, tropeçou justamente com a impossibilidade de definir o conceito crucial desta última - o de representação inconsciente - em termos psicológicos (é impensável, nestes termos, a idéia de uma representação que, em última instância, não representa). Seu erro e o de todos que pretenderam fazer da psicanálise uma psicologia foi o de não perceber que o inconsciente, em Freud, não tem, não pode ter um estatuto psicológico. Ora, as premissas anti-reducionistas de Lacan de forma alguma lhe permitiriam aceitar a noção - pré-freudiana, diga-se de passagem - de um inconsciente neurológico. A concepção estritamente formal que o estruturalismo tem da linguagem adaptada aos seus fins particulares, é verdade - foi assim o instrumento que lhe permitiu empreender o propalado "retorno a Freud" sem abrir mão de sua metapsicologia e - por que não dizer?" - de uma metafísica estritamente pessoal.

 

Referências Bibliográficas

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(1) Arantes, P.E. (1992) Um Hegel errado mas vivos. Notícia sobre o seminário de Alexandre Kojeke Mimeo.