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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.1 Ribeirão Preto abr. 1995

 

A educação de filhos em camadas médias: transformações no ideário e orientação de pais

 

 

Regina Helena Lima Caldana(1)

Universidade de São Paulo

 

 

Não são os filhos que nos devem. São os pais que devem a eles.
Estatuto do passado. Resquício do Pater Famílias do Direito
Romano - o Pai tem todos os direitos e os filhos todos os deveres.
Assim era, assim foi.Hoje, sem precisar leis, nem decretos, nem
códigos, pela força da evolução humana, através dos séculos,
vencendo resistências, abrogando artigos e parágrafos, se fez o
inverso. O Pai tem todos os deveres e os filhos todos os direitos.
Princípio de justiça incontestado pelos próprios pais e juizes
destes tempos novos"
(Coralina, 1984, p.127)

E assim que, na poesia Pai e Filho, Coralina (1984) descreve de forma precisa o sentido das transformações ocorridas nas relações pais e filhos em nosso século. E aos olhos da poetisa - que viveu a infância no início do século - a situação atual é vista de forma positiva: "Nego o amor dos pais do passado, salvante exceções" é o verso com que adentra a segunda parte de seu poema, em que descreve os sofrimentos, castigos e humilhações a que a criança era submetida naqueles "tempos antigos", situações que "de resto" ela prefere "não esmiuçar".

Em um artigo veiculado pela Revista Cláudia, Gikovate (1989, p. 182) um médico psiquiatra - faz descrição semelhante desta transformação; mas, ao contrário de Coralina (1984), assume uma postura bastante crítica:

Com medo de traumatizar as crianças, estamos criando uma geração que acredita que aos pais cabe o dever de tudo dar e, e aos filhos o direito de receber tudo.(...) De repente, ficamos com medo de educar. Preferimos errar por omissão a agir com excessivo rigor e provocar marcas definitivas. Nos acovardamos e perdemos a confiança em nossas idéias(...). Sem que nos apercebêssemos, estávamos fazendo uma inversãode 180 graus em relação ao padrão anterior de educação(...) antes as crianças morriam de medo de perder o amor dos pais; hoje, são os pais que têm medo de perder o afeto dos filhos(...).

Um outro depoimento, o de Snyders (1984, pp.15-16), em seu belíssimo livro cujo sugestivo título é Não é Fácil Amar Nossos Filhos, retrata de forma eloqüente o resultado, ao nível das vivências dos pais, desta inversão apontada por tanto por Gikovate (1989) quanto por Coralina (1984):

Serei eu capaz de o amar bem? Está bem, sim, amo-o; mas é porque o amo que não consigo amá-lo. Desejo tanto que ele seja feliz; uma criança é feita para ser feliz. Sonho que as provas por que tem de passar sejam doces para ele, que eu possa amaciar-lhas - e não consigo; quero mal a mim próprio, quero-lhe mal a ele por não conseguir ser feliz comigo, graças a mim(...). Inquietações, responsabilidades, e estas responsabilidades são tanto mais pesadas para mim quanto mais me repetem, de todos os lados, que são pesadas, que se meus filhos estagnarem, ou se desviarem, será porque não soubemos criar a atmosfera familiar que lhes teria sido favorável.

E, finalmente, Zagury (1992), em um livro de muito sucesso dirigido a pais, faz análise semelhante, como o próprio título anuncia: Sem Padecer no Paraíso: em Defesa dos Pais ou sobre a Tirania dos Filhos. Nele, além de defender a idéia de que a educação dos filhos é uma tarefa que vem se tornando cada vez mais difícil em função da inversão radical de papéis, em que os pais passam de tiranos a escravos e ocorre o inverso com os filhos, aponta como causa básica desta situação a difusão maciça de informações sobre educação infantil, vinculadas principalmente à pedagogia, psicologia e psicanálise. Embora admita que contribuam para esta situação um conjunto complexo de fatores, Zagury considera que estas informações confundiriam os pais por levá-los a uma postura excessivamente liberal, marcada pela preocupação em não frustrar (tornado equivalente de traumatizar), e pelo concomitante despertar do sentimento de culpa nos momentos em que procuram impor limites aos filhos.

Este conjunto de depoimentos permitem que sejam assinalados os seguintes aspectos em relação à educação de filhos atualmente: 1. o declínio da autoridade parental; 2. a responsabilização dos pais por quaisquer desvios do caminho que leva à felicidade - bem supremo - dos filhos; e 3. a ligação entre esta situação e a veiculação de conhecimentos ligados à psicologia e psicanálise.

Compreender estes aspectos dentro de uma perspectiva sócio-históricocultural, que permita contextualizá-los, é fundamental para aquele profissional que lida com pais. Se esta necessidade não pode ser dispensada quando o que está em jogo são fenômenos humanos, muito menos pode sê-lo quando se estuda a socialização infantil que, como coloca Micela (1984), é o lugar por excelência da confluência entre relações sociais, produção simbólica e afetividade.

A idéia presente aqui é a da necessária interdisciplinaridade: é preciso incorporar contribuições da sociologia, da antropologia, da filosofia e da história. No entanto, se o domínio destas áreas de produção extensa e complexa não é simples, o que propomos é a utilização de informações delas oriundas, de tal modo que se possam compreender os fatores a que estão expostos a subjetividade e afetividade dos pais. Deste entrecruzamento de informações podem - e devem - ser definidos alguns pontos que constituam-se em guias para a prática profissional do psicólogo que lida com pais, tal como procuraremos mostrar neste trabalho.

O declínio da autoridade parental ao longo deste século é algo já sobejamente apontado, tanto na literatura cujo tema são as relações familiares em geral (Nogueira, 1962; Horkheimer, 1970; Pôster, 1979; Reis, 1984), quanto naquela voltada para a discussão das práticas de educação usadas pela família com a criança (Doumanis, 1983; Alwin, 1984; Bronfenbrenner, 1984; Dias da Silva, 1986; Biasoli-Alves, Caldana e Dias da Silva, 1989; Palácios, 1990); em geral relacionado ao contexto de modernização societária das sociedades urbanizadas e industrializadas, seus efeitos se fazem sentir nos mais diversos extratos da população, atingindo de forma especial - e principalmente no caso brasileiro - as camadas médias (Romanelli, 1987).

Com o objetivo de conhecer melhor os elementos da transformação no ideário relativo à autoridade parental, efetuou-se um estudo das idéias sobre educação de filhos veiculadas pela Revista Família Cristã ao longo do período de 1935 a 1988 (Caldana, 1991). A Igreja Católica é uma instituição de reconhecido poder de influência sobre a vida familiar no país (Azzi, 1987), e o estudo da revista - porta-voz de um setor da Igreja - permitiu a descrição do ideário referente à educação de filhos veiculado particularmente por este segmento, mas capaz de expressar um processo mais geral, uma vez que, dada a reconhecida capacidade aggiornamento desta instituição, ela consegue incorporar comportamentos e valores vigentes independentemente de sua orientação (Prandi, 1981).

A análise deste veículo permitiu que se delineasse o percurso de algumas idéias sobre educação de filhos a que foram exposto os pais no período e, neste momento, em função daquilo que pretendemos, traçaremos um retrato destas idéias no início do período - 1935, e ao seu final - 1988.

O ano de 1935

No ano de 1935, predomina na revista a preocupação em difundir as idéias religiosas e, portanto, as idéias sobre educação de filhos são apresentadas em íntima relação com o ideário religioso.

Neste período atribui-se à mãe - figura central na vida familiar - poder e prestígio, pois considera-se que ela, através de sua relação com o filho, pode modelálo completamente, desempenhando, então, a função de "esteio moral da sociedade" e de "formadora de santos para o céu".

Como contrapartida deste poder, existe a cobrança nada amena pelo bom desempenho da tarefa; o fracasso seria de sua inteira responsabilidade, sujeitandoa aos piores remorsos e à privação de qualquer consolo:

(...) por cima do poder materno há a consciência para o tormentar, por cima da consciência há Deus que lhe fará sem-rir a sua palavra de juiz: o que fizeste a seus filhos? Pois a alma dos filhos não corrigida pela mãe quando ela tinha o dever de fazê-lo, pede vingança junto a Deus (...) [essas mães] terão um dia de derramar lágrimas dolorosas: a sua velhice será envenenada pelos contínuos remorsos. Gritarão, então, à injustiça, amaldiçoarão a sorte, mas inutilmente (...). (Tia Brígida, 1935c, p. 8)

Diante de tamanha responsabilidade, a mãe deve retirar sua força da religião, bem como apoiar-se na experiência dos mais velhos: quem fala às mães na revista é quase sempre a "Tia Brígida", que aparece nas ilustrações como uma "avó": idosa, lenço no cabelo, xale nos ombros e dedo em riste: "Prestai-me atenção, vos falo inspirada pela experiência e pelo amor de vosso bem" (Tia Brígida, 1934, p. 5).

Tendo como objetivo a formação de almas para o céu e bons cidadãos para a terra, a educação da criança reveste-se de uma conotação moral, pressupondo o combate aos vícios, às más inclinações e às paixões do corpo. Para tanto, várias são as recomendações de ordem geral:

1. A religião deve ser ensinada desde o início da vida da criança e o tempo todo;

2. Todo mal deve ser combatido desde seu início, caso contrário é impossível vencê-lo: "Não espereis que irrompa o fogo da paixão, preveni o ma r (Marchi, 1935, p.7);

3. O contato com o mundo deve ser controlado, já que este é o portador dos males que desviam do caminho do céu;

4. Os pais devem vigiar constantemente os filhos e não confiar neles de forma irrestrita: "Dos pais que acreditam piamente em tudo que lhes diz o filho, sob o pretexto de que nunca mentiu, livrai-nos Senhor" (Ladainhas da actualidade, 1935, p. 4), e

5. Deve-se ocupar constantemente o filho pois o ócio é o convite à perversão.

Por um lado considera-se fundamental, na educação da criança, o exemplo e a imitação e, por outro, o afeto e a autoridade, estando estes aspectos interligados; se "para que a educação se torne fácil e persuasiva é necessário o que haja bom exemplo [já que] por meio do exemplo, a vida moral insinua-se como um assopro, infiltra-se como o ar. " (Tia Brígida, 1935c, p.8), para que o processo de imitação efetivamente ocorra, é necessária a existência de um forte vínculo afetivo entre o adulto e a criança: "porque a criança toma de boa vontade para modelo de sua conducta, a pessoa que mais ama e estima" (Tia Brígida, 1935c, p.8).

Assim, a ligação entre a mãe e filho deve ser forte e indestrutível, e utilizada tanto como recurso para a induzir a criança ao comportamento desejado, quanto seu rompimento deve ser apresentado como forma de punição. É este vinculo ainda que aparece como o responsável, em inúmeras situações, para o retorno de um filho já adulto ao "bom caminho".

É importante, no entanto, que a mãe tome o cuidado de não se deixar dominar pelo afeto e com isto descuide-se de sua tarefa, o que faz necessário reforçar o contraponto do amor, que é o exercício eficiente e inconteste da autoridade.

Mas como conseguir a obediência e o acatamento estrito às normas tal como preconizado? Para isto a revista fornece, quase à moda de um receituário, uma série de instruções a respeito da forma que a ação precisa assumir. São elas:

1. As ordens devem ser dadas com firmeza, de modo a não deixar em aberto a possibilidade de não serem acatadas;

2. Todos os defeitos devem ser corrigidos, por menores que sejam, e o perdão imediato jamais concedido, mesmo mediante o arrependimento da criança: "[mãe] si, realmente descobres arrependimento, no momento, não aceites beijo, não sorrias, mas tendo feito imprimir um beijo sobre o crucifixo, espera ver o fruto da correção "(Tia Brígida, 1935b, p.7);

3. À exceção da obediência, nenhuma outra atitude da criança deve ser objeto de valorização explícita por parte dos pais;

4 .Da mesma forma, explicações ou conversas com a criança são desaconselháveis, pois seriam o reconhecimento para a própria criança de sua importância. Assim a autoridade deve caracterizar-se pela distância:

O sino que sempre toca acostuma o ouvido de quem escuta, em modo que toca sem ser obedecido. Corrige com poucas palavras (...) si o teu filho se permite dirigir-te uma só palavra de observação, castiga-o sem piedade; tu não deves nunca raciocinar com o teu filho mal educado (...) (Tia Brígida, 1935a, p.7);

5.Deve existir consistência entre o prometido e o cumprido e na manutenção das ordens e das correções; neste último caso, um recuo da mãe é visto como uma derrota, o que deve impedí-la de voltar atrás mesmo se foi injusta com a criança.

Paralelamente a este regime, no entanto, algumas considerações são feitas de tal modo que se evitem atitudes que levariam a resultados opostos ao esperado: as intenções da criança devem ser levadas em conta no julgamento de suas faltas, caso contrário ela é impelida à mentira; não se deve exigir algo que esteja fora de seu alcance, levando em conta tanto sua disposição e quanto estado físico; e ainda é preciso que o adulto mantenha seu controle emocional, dando ordens ou castigos com calma.

O ano de 1988

Num contexto em que a informação técnica ocupa papel relevante na revista - quase mesmo de maior destaque que aquela diretamente ligada à religião à Psicologia caberá opinar sobre quase todos os assuntos, incluindo-se a saúde física, os problemas sociais e, é claro, a vida familiar.

As idéias nesta área são expostas, via de regra, através da fala de especialistas que podem ser pesquisadores, professores universitários e, mais freqüentemente "psicólogos clínicos". A cada artigo são consultados pelo menos dois "especialistas", e não é incomum o aparecimento de visões discrepantes e contraditórias, algumas vezes apontadas como tal, outras não. A linguagem utilizada é no geral simples, mas incorpora termos específicos e jargões da psicologia e da psicanálise: libido, repressão, vínculos, trauma, neurose, complexo, inconsciente, elaboração interna, fase psicossexual, fixações, repressão... . Nas análises apresentadas fica sempre presente um tom de explicação onde são raras as referências à sua incompletude ou parcialidade face à complexidade dos temas abordados, não sendo incomuns afirmações taxativas: do tipo "Num clima emocional inadequado (...) a criança vai sofrer imediatamente essa influência negativa" (Infa..., 1988, p. 13), e, em seção de resposta a cartas, interpretações categóricas das situações expostas pelos leitores.

A tônica dos assuntos relacionados à psicologia é a preocupação com saúde e problemas emocionais. Tão constantemente citada, no entanto, "saúde emocional" não se presta a uma fácil definição: para um psicólogo consultado ela é "uma sensação de bem estar e realização humana (...) [de] equilíbrio entre as vontades e frustrações" (Carvalho, 1988, p. 33); para outro, seria criada por uma "combinação ou equilíbrio " de vários fatores ou polaridades (tais como conflito x harmonia emocional, equilíbrio x desequilíbrio emocional, trauma x disponibilidade emocional, sentimentos positivos x negativos e contenção emocional x abertura emocional), num ideal em que a pessoa não deixe de manifestar suas emoções conforme as situações que a despertem, mas dentro de "nível de adequação" (Carvalho, 1988, p. 33).

A temática da saúde emocional é também o pano de fundo dos artigos que discutem a educação da criança na família e que trazem constantes as referências à existência de problemas e distúrbios de conduta atuais ou potenciais, de acordo com a idéia de que na infância estão as raízes das dificuldades e problemas dos adultos.

Algumas idéias gerais a respeito de educação de filhos podem ser delimitadas:

1. A importância da família, já que é nela que a pessoa vive sua tão determinante infância. Os pais são então chamados à responsabilidade de oferecer às crianças um ambiente adequado, que pressupõe necessariamente uma família "harmônica, saudável, amorosa", onde exista respeito, liberdade, compreensão e tolerância, e cujos membros sejam capazes de interagir, ocupem papéis bem definidos, e que resolvam todos os problemas com naturalidade.

2. A infância é considerada como uma fase da vida cujas características deveriam ser superadas e educá-la corresponde a socializá-la, a levá-la a "perceber que vive num mundo com outras pessoas, com as quais deve se relacionar, dar de si e também receber" (Albaneze, 1988, p. 30). Isto significa promover um ordenamento do "emaranhado" que constitui seu mundo emocional, para o que deve aprender a "dividir o afeto e a atenção das pessoas de quem (...) goste e de perceber que elas não tem um só objeto de afeição na vida" (Ciúme, 1988, p. 30), a conseguir seguir as normas sociais, cuidar de si e lidar com seu corpo, impulsos, temperamento, limites e qualidades; e ainda promover "uma interação entre o seu pensamento mágico, de grandeza e poder, e o mundo real no qual vive" (Albaneze, 1988., p. 31).

3. Para educar a criança, o adulto deve procurar conhecer tanto a infância em geral (o que seria esperado a cada fase de desenvolvimento), quanto seu próprio filho; este deve ser objeto de observação constante, para que se intervenha quando necessário, e se evite "ingenuamente, ignorar os riscos de uma ausência sistemática da vida dos filhos, como se eles fossem cogumelos que, tendo água e terra, crescem naturalmente" (Kedi, 1988, p. 38).

4. Cabe aos pais, também, esquematizar uma educação individualizada, sem predeterminar seus comportamentos. Neste sentido, eles devem acompanhar as mudanças dos tempos e se auto-analisar, pois são essenciais os novos modelos "passados aos filhos através das próprias atitudes e sentimentos" (Machismo, 1988, p. 27);

5. A individualização, vista como uma das dimensões envolvidas na construção da personalidade, é constantemente posta sob foco. Considera-se que para sua ocorrência a criança necessita de suporte tal que lhe dê segurança para se afastar sem medo das figuras de apego. Diversos conselhos voltam-se para o respeito à individualidade do filho: não interferir em seus caminhos e opções, respeitar seu ritmo próprio de aprendizado, não fazer comparações entre irmãos, oferecer atenção particular e individualizada a cada um e, fundamentalmente, aceitar o filho tal como ele é, a despeito de quaisquer expectativas e desejos, o que implica um auto-alerta para a possibilidade de uma rejeição tácita, expressa no distanciamento pai-filho.

6. Quanto à disciplina, tanto o rigor excessivo quanto a permissividade são considerados prejudiciais. O primeiro, se acompanhado de castigos físicos freqüentes, ocasiona "sentimentos de medo, insegurança, inferioridade" (AJbaneze, 1988, p.30); já a ausência de limites faz com que a criança cresça confusa, perdida, egoísta, enxergando somente a si mesma, onipotente e incapaz de compreender o mundo real. Como "métodos disciplinares" são recomendados "a persuasão e a aprovação afetiva do comportamento desejável" (Albaneze, 1988, p.31), proposições claras e firmes do que pode ou não ser feito, coerência, justiça, doçura e amor. Ainda que os limites sejam vistos como necessários, considera-se lícito seu questionamento por parte da criança, caracterizando-se o diálogo como fundamental, à medida em que torna as ordens compreensíveis e acessíveis à criança:

(...) é de grande importância que os adultos não se esqueçam de que a criança não pode ser chamada de qualquer maneira a entender e obedecer as ordens estabelecidas, exigindo que ela compreenda as razões dos adultos sem maiores explicações. E como se, pelo simples fato de ser pequena, não tivesse o direito de questionar os porquês das normas, como também de não as entender e, porque não, de reagir (...)" (Albaneze, 1988, p.30).

Estes dois quadros traçados referem-se a épocas distantes entre si por apenas 50 anos, e caracterizam uma transformação radical no que diz respeito ao ideário ligado à educação de filhos.

Como eixos principais desta transformação poderíamos apontar que a educação da criança passou de um sentido "moral" (onde a preocupação central eram os "bons" comportamentos) para um "psicológico" (onde o central é a "saúde emocional"); do apoio à sabedoria e à tradição chegou-se à valorização exclusiva do conhecimento técnico-científico; de um conjunto de prescrições claras e definidas a priori em função do comportamento desejado para a criança, a um conjunto de enunciados gerais que pregam a ausência de padronização da atitudes parentais. Da priorização do acatamento das normas definidas pelo grupo, à valorização daquilo que é individual e idiossincrático.

Estas transformações podem ser melhor compreendidas a partir das análises do processo de modernização societária por que o Brasil passou a partir das décadas de 40 e 50 (Figueira, 1985, 1987; Nicolaci-da-Costa, 1985, 1989; Romanelli, 1987), e de sua conseqüências na vida familiar das camadas médias. Neste período houve, segundo estes autores, nos setores médios da sociedade brasileira, a substituição do modelo de família hierárquica pela igualitária. A primeira caracteriza-se pela definição da identidade de seus membros em termos de sua posição, sexo e idade, com definições claras do "certo" e "errado" e mecanismos definidos de controle. Já na segunda, prevalece a concepção da igualdade acima de quaisquer outras diferenças, assentada na valorização do indivíduo enquanto tal; as noções bem delineadas de certo e errado perdem seu valor, e prevalece a pluralidade de escolhas cuja única limitação é a individualidade do outro. Esta mudança, é claro, não se opera sem dificuldades, e gera, além de angústia, conflitos entre os dois modelos, pois ambos são assimilados em épocas diferentes da vida e através de processos de identificação dos quais nem mesmo existe uma percepção clara para o próprio sujeito.

Se analisarmos o conteúdo veiculado em 1988, por exemplo, percebemos que, malgrado a adesão ao novo ideário em suas linhas gerais, restam ainda muitos traços do antigo, principalmente quando o que está em questão é o que se espera da criança: ainda que de forma não tão estrita quanto em 1935, pode-se dizer que, analogamente, se deseja dela adaptação ao grupo e acatamento das normas, só que a partir de uma conduta inversa por parte do adulto. E interessante apontar para esta situação porque ela reflete, ainda que em menor escala (pois estamos diante de um discurso que como tal se distancia das contradições e conflitos do cotidiano), aquilo que ocorre com os pais.

Podemos apontar, então, para um primeiro aspecto que nos parece dever ser levado em conta por aqueles profissionais que lidam com pais: a dificuldade de que a própria tarefa se reveste, dadas as características que lhe são atualmente inerentes(2). Isto para que não se particularize para um ou outro casal dificuldades que são geradas pelas características de nossa sociedade e consequentemente, em maior ou menor grau, vivenciadas por todos(3).

Fornecer aos próprios pais este referencial parece ser o ponto de partida em qualquer trabalho de orientação. É imprescindível que se explicite com eles os modelos de educação de filhos que se fazem sentir de forma direta ou não nas suas atitudes e/ou expectativas, de tal forma que possam tomar contato com possíveis contradições entre eles, passo inicial para que paulatinamente tenham condições de optar com maior clareza por um ou outro modelo - ou mesmo por uma composição - deliberada - entre ambos.

Face às dificuldades deste processo de transição de um ideário "tradicional" para o "moderno", a psicologia aparece como uma fonte de apoio especial para os pais (Figueira, 1985). No entanto, a descrição do material de 1988 mostrou-nos a veiculação de um conjunto de informações a que se pode atribuir pouco valor formativo: são fragmentadas, contraditórias, superficiais, fazem uso de jargões; pode-se dizer que além de não fornecer elementos para uma verdadeira compreensão do que dizem, são apresentadas como verdades acabadas e conclusivas.

Esta constatação torna necessárias algumas considerações a respeito da divulgação do conhecimento psicológico pelos meios de comunicação de massa; para isto lançaremos mão das análises de Adorno e Horkheimer (1985) a respeito da indústria cultural, pois a psicologia é um "bem cultural" atrativo por excelência: é a forma de saber técnico que administra as relações humanas - e nas sociedades industrializadas com ênfase no desenvolvimento tecnológico todo saber "tecnicista" é extremamente valorizado - e que dá atenção ao privado, à subjetividade e à individualidade, "itens" altamente cultivados nestas mesmas sociedades.

Segundo estes autores, numa sociedade de massas, os bens culturais são difundidos de acordo com o modelo industrial desde sua concepção até a elaboração e difusão para consumo, o que faz com que a indústria cultural opere de tal modo que o que importa não é o valor do conhecimento - ou do bem cultural - em si mesmo, mas simplesmente sua transformação em algo passível de venda e consumo. Criam-se, em função disto, mecanismos que garantem uma aparência de assimilação de cultura através de seus sinais exteriores (entre eles o uso de chavões), no lugar de uma formação propriamente dita pois ficam eliminados dos conteúdos sua complexidade, energia e potencial crítico. Ou, como coloca Chauí (1989), o que se procura oferecer é mais propriamente a ilusão de participar do saber.

Este quadro traduz, à perfeição, o conteúdo veiculado pela revista em 1988. E desta constatação, bem como da compreensão da força do processo que a engendra, delineia-se com clareza mais um dos aspectos que nos parecem essenciais para o trabalho com pais: uma investigação cuidadosa das informações relacionadas à psicologia que possuem e de qual sua compreensão delas, efetuando-se correções e complementações necessárias com a constante preocupação em verificar se houve uma assimilação adequada do exposto. E importante que - dentro dos limites da própria situação - não haja omissão das dúvidas, divergências ou incertezas que permeiam nossa área de conhecimento, tão complexa e fragmentada; se isto, com certeza não é fácil, parece-nos ser o único caminho segundo o qual a informação pode prestar um serviço aos pais, ao invés de os pais viverem a serviço de um pseudo saber científico.

Com esta preocupação, um ponto deve merecer atenção especial: a "culpa" dos pais. A comparação entre as duas épocas mostrou-nos que, embora com roupagens diferentes, a responsabilização dos pais mantém-se com uma intensidade semelhante. Mas dentro da literatura psicológica este é um item bastante polêmico e as discussões pouco conclusivas, o que faz da afirmação de que a educação oferecida pela família determina a saúde mental da criança algo leviano e pouco correto (Costa, 1984). Parece-nos, neste caso, haver uma tradição cultural muito arraigada no sentido de que os pais terem o poder de moldar a criança, o que leva a uma seleção e leitura viesada dos conhecimentos psicológicos, dos quais é necessário, portanto, oferecer uma dimensão mais correta para os pais.

Levando em conta as análises de Adorno e Horkheimer (1985), gostaríamos ainda de destacar uma outra característica da indústria cultural: sua habilidade em manipular o desejo, estimulando-o, mas ao mesmo tempo mantendo-o em suspenso, num jogo que se alimenta da ilusão da felicidade total através da exclusão da idéia de sofrimento; e isto num contexto de sociedade de consumo onde o ideal de felicidade consiste na satisfação de todos e quaisquer desejos, ou na ausência de carências de qualquer espécie.

Esta parece ser a chave para um outro viés de leitura das informações ligadas à psicologia: em nenhum momento encontramos na revista algo que endossasse a idéia de que a criança não deve passar por frustrações. No entanto, quando se diz que é preciso satisfazer as necessidades da criança para que ela se desenvolva bem e não se "traumatize", e esta informação não é traduzida "em miúdos" para os pais, é preciso um nada para que "necessidade" seja entendida como "vontade", e que "trauma" seja igualado a "sentir frustrações". Temos aqui, finalmente, um último tema que consideramos dever ser cuidadosamente esclarecido junto aos pais.

 

Referências Bibliográficas

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(1) Endereço para correpondência: Regina Helena Lima Caldana Depto. de Psicologia e Educação - FFCLRP/USP Av. Bandeirantes, 3900 14040-901 - Ribeirão Preto, SP. Tels. para contato: (016) 624-7847 (res.) (016)633-1010 R.358/373 (trab.)
(2) E, ressalte-se aqui, estamos nos referindo somente àquelas dificuldades ao nível das caractericticas do ideário; se estivéssemos levando em conta o cotidiano em si mesmo, poderiamos apontar várias outras.
(3) Não se trata aqui, é obvio, de negar dificuldades particulares e pessoais - afinal, cada um de nós lida com com os problemas que a nosssa sociedade nos coloca a partir de recursos que adquirimos ao longo tempo e que, neste sentido, são individualizados. O cuidado á mais propriamente o de não atribuir toda a dificuldade da tarefa a caracteristicas particulares, o que levaria à uma "psicologização" no mau sentido do termo.