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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versión On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.34 no.26 Rio de Jeneiro jun. 2012
Artigos
Dor e resistência na clínica psicanalítica. O manejo das transferências negativas em Freud
Pain and resistance in psychoanalytical clinic. The handling of negative transferences in Freud’s work
Priscila Pereira Robert*; Daniel Kupermann**
Universidad de São Paulo
Resumo
O manejo da transferência negativa na obra de Freud é problematizado a partir do conceito de resistência. Abordamos os problemas da clínica da histeria, das neuroses narcísicas, do trauma e do masoquismo, com o intuito de demonstrar o percurso teórico-clínico do qual emerge uma dimensão do manejo que, para além da interpretação, consiste na sustentação e circulação dos afetos hostis que se manifestam como resistência à submissão no trabalho analítico e como condição para a criação de possibilidades de lidar com o desamparo e a dor.
Palavras-chaves: Transferência negativa, manejo, resistência, dor, clínica psicanalítica, Sigmund Freud (1856-1939).
Abstract
The handling of negative transference in Freud’s work is problematized based on the concept of resistance. We approach the problems of the clinics of hysteria, narcissistic neurosis, trauma and masochism. We aim to demonstrate the theoretical and clinical course from which emmerge a dimmension of the handling that, beyond interpretation, consists in supporting and circulating hostile emotions that manifests as resistance to submission within the analytical work. This would be the condition to create possibilities of coping with traumatic helplessness and pain.
Key-words: Negative transference, handling, resistance, pain, psychoanalytical clinic, Sigmund Freud (1856-1939).
Introdução
Se percorrermos os textos freudianos sobre a técnica analítica, desde Estudos sobre histeria (1895) até Esboço de psicanálise (1937), não é possível deixar de notar a insistência de Freud em lançar luz sobre os problemas e impasses da clínica psicanalítica. As diferentes modulações que o conceito de transferência adquire ao longo da obra de Freud demonstram o esforço contínuo de sistematização de uma teoria da técnica que tenta abarcar as mais variadas manifestações de resistência ao trabalho analítico.
O percurso teórico-clínico de Freud permite relacionar essas diferentes formas clínicas de resistência às diferentes maneiras que o sujeito encontra para lidar com as vivências de dor. Nas articulações sobre a clínica da histeria, a resistência aparece como evitação da dor que a admissão na consciência de uma ideia conflitante recalcada pode causar. A clínica do trauma e do masoquismo, por sua vez, aponta para uma resistência que se refere à dimensão traumática do desamparo. Pretendemos demonstrar que o manejo da transferência na clínica freudiana visa criar condições para que o sujeito possa suportar a dor e o desamparo, o que impôs a Freud a criação de estratégias de manejo que levassem em conta a diversidade de resistências apresentadas por seus analisandos.
É com este pano de fundo que os problemas relativos ao manejo dos afetos hostis dirigidos ao analista na clínica psicanalítica serão apresentados. Partiremos da clínica da histeria, circunscrevendo os afetos hostis dirigidos ao analista no campo do desejo e na teoria da técnica dela derivada, para, em seguida, demonstrar como os casos de "neuroses graves" – as "neuroses narcísicas", nas quais se evidenciam as problemáticas do trauma e do masoquismo – levaram a mudanças no estatuto metapsicológico da agressividade, bem como abertura para outras possibilidades de manejo da transferência negativa, contempladas apenas de forma marginal em sua teoria da técnica.
Transferências negativas na histeria e na neurose obsessiva
As clássicas imagens de pacientes histéricas em cenas exuberantes, publicadas em Iconographie photographique de La Salpêtrière (1876-1880), de Charcot, renovam a lembrança do contexto no qual emergiu a psicanálise e, também, a do caráter inédito da invenção freudiana no tratamento da histeria (Pinto Junior, 2009). Na clínica psicanalítica nascente, a catalogação médica de manifestações sintomáticas e a exibição pública e iconográfica dos pacientes histéricos foram substituídas pelo modelo clínico que deslocou a cena da histeria para a construção de um teatro particular, singular e histórico, no qual o analista adquire rapidamente estatuto de personagem importante, senão protagonista.
Ao se dar conta de que sua condição de partícipe nas histórias de amor fantasiadas pelas pacientes histéricas operava como obstáculo ao tratamento, Freud é levado à elaboração do conceito de transferência. Em Psicoterapia da histeria (1895), compreende as transferências como resultado de uma mésalliance – falsa ligação –, que faz com que uma cota de afetos seja transferida para figura do analista. Como estratégia de manejo, Freud busca tornar consciente essa falsa ligação e inseri-la em nexo associativo com a história do paciente, buscando relacioná-la a situações traumáticas às quais o sintoma histérico deve sua origem. (Freud, 1895)
Convocado a participar do campo de fantasias atualizado na relação transferencial e percebendo seus riscos tanto do ponto de vista ético quanto técnico, Freud logo enuncia a necessidade de não atender às demandas de amor de suas pacientes: cordialidade e empenho têm que bastar na condição de substituto do amor demandado (Freud, 1895). Este cenário do amor de transferência levará Freud a formular o princípio de abstinência, condição sine qua non para o manejo da transferência na histeria (Freud, 1915[1914]).
Neste campo profícuo para o estabelecimento de ligações – campo de Eros, por excelência (Freud, 1920) – é que o manejo da transferência em Freud ganhará seus contornos; a dimensão ambivalente do amor de transferência operará como veículo para o tratamento e também como sua principal resistência. A positividade desejante da histeria, colocada em cena pela experiência analítica, é o fundamento para a problematização freudiana do manejo transferencial, e faz com que os afetos hostis dirigidos ao analista sejam atrelados ao registro do sintoma e da sexualidade (Birman, 2009). Neste contexto metapsicológico, a teoria do recalque e a problemática edípica operam como pedra angular.
Em Dinâmica da transferência (1912), Freud apresenta duas formas clínicas da transferência como resistência na neurose: a transferência positiva de impulsos eróticos recalcados e a transferência negativa, relativa a afetos hostis dirigidos à figura do analista. Na histeria, elas operam em dimensão ambivalente, como é claramente observado na discussão freudiana sobre a transferência no caso Dora (Freud, 1905). A atuação do "desejo de vingança" de Dora, que leva à interrupção prematura do tratamento, revela a faceta negativa da transferência, que é claramente articulada à dimensão positiva do amor de transferência. A questão central de Dora, como bem apontou Lacan (1951), é relativa ao desejo.
Apesar de a agressividade não ter recebido estatuto metapsicológico autônomo nos primeiros escritos de Freud, e de a teoria do manejo transferencial ser construída a partir do amor de transferência, desde Psicoterapia da histeria (1895), Freud identifica outros afetos hostis operando como obstáculo ao tratamento. Além das resistências de transferência, Freud destaca duas formas de queixas relativas ao analista: perda da confiança, quando a paciente se sente pouco amada e insultada ou quando ouviu algum comentário desfavorável sobre o analista ou o método de tratamento, e medo da dependência. Lagache (1990) refere-se a essas queixas como "reações persecutórias", quando o "amor- -próprio" do paciente estaria posto em xeque. As soluções encontradas por Freud (1895) para superar estes obstáculos – "discussão e explicação" – demonstram que essas manifestações de hostilidade do paciente não impõem a necessidade de criação de estratégias de manejo para além do uso da autoridade e do esclarecimento pelo saber teórico. Assim, estas reações não são analisadas, mas apaziguadas através da explicação, de modo a retomar o estado de confiança anterior. Solução bastante distinta do manejo das resistências compreendidas como transferências, que entram em nexo associativo e permitem a circulação afetiva necessária ao trabalho clínico.
Já a problemática do ódio passa a ganhar relevância na obra de Freud a partir dos estudos acerca da neurose obsessiva. Na análise do Homem dos Ratos, Freud se vê diante de uma crescente transferência negativa. (Freud, 1909) De início, insiste no trabalho interpretativo do ódio pelo viés da sexualidade mas, aos poucos, o paciente demonstra a Freud que a relação do ódio com a sexualidade não é tão evidente, conforme aponta Mezan (1998, p. 129):
No começo, Freud tem uma ideia muito clara do que significam as falas do Homem dos Ratos, e propõe suas interpretações com a maior liberdade. Paulatinamente, vai sendo obrigado a modificar o estilo e o tom dessas interpretações, porque o paciente o coloca diante de uma explosão de agressividade e hostilidade surpreendente até mesmo para Freud, que, no entanto, já havia visto antes outras neuroses obsessivas.
Assim, Freud se vê diante de uma manifestação compulsiva do ódio no campo transferencial, que aponta para a necessidade de mudanças no manejo clínico. Em Dinâmica da transferência (1912), vemos que Freud atribui à manifestação transferencial ambivalente na neurose obsessiva um caráter especial: "uma separação antecipada dos ‘pares de contrários’ parece ser característica de sua vida instintual e uma de suas precondições constitucionais" (Freud, 1912, p. 119). Do ponto de vista da teoria da técnica, o conceito de elaboração, que aparecerá em Recordar, repetir e elaborar (1914a), parece ser uma das vias para apreensão da especificidade do manejo das manifestações compulsivas de ódio na neurose obsessiva. A virada metapsicológica dos anos 1920, ao trazer à tona o problema do masoquismo, fornece o fundamento que permite esta articulação, neste momento da obra de Freud, ainda um tanto nebulosa.
Transferências negativas nas neuroses narcísicas
Antes disso, no entanto, começa a ganhar relevo na teorização freudiana o problema das psicoses, que culmina na publicação do texto sobre o narcisismo (Freud, 1914b). O conceito de narcisismo permite a Freud abarcar a paranoia, a esquizofrenia e a melancolia – que possuem manifestações clínicas bastante distintas – no campo das neuroses narcísicas, em oposição às neuroses de transferência. O que há em comum nas neuroses narcísicas é a incapacidade de realizar transferência positiva, sendo, portanto, intratáveis pela técnica clássica. Os sinais "positivo" e "negativo" da transferência passam a se referir, além da distinção entre amor e ódio, à possibilidade ou não de se deixar influenciar pelo trabalho analítico. As manifestações transferenciais ambivalentes na histeria, o ódio na neurose obsessiva, as reações persecutórias da paranoia e a indiferença na melancolia são, deste modo, compreendidas como manifestações de transferência negativa. (Freud, 1917b, 1917c)
O campo das alterações do eu na psicanálise começa aqui a ser esboçado. Ao reconhecer a inadequação do trabalho de superação das resistências relativas ao recalque nas neuroses narcísicas, Freud é levado a pensar na necessidade de outra descrição topográfica para explicar o conflito básico entre eu e libido. (Freud, 1917b). A agressividade, neste contexto clínico e metapsicológico, pende ora para o polo das pulsões sexuais, ora para o das pulsões do eu. No entanto, em Pulsões e destinos da pulsão (1915), Freud arrisca postular uma gênese específica para o ódio, embora não o articule ainda com a precisão metapsicológica observada a partir da segunda tópica.
O narcisismo situado no campo do não-analisável pela técnica clássica poderia ter encerrado o âmbito da intervenção psicanalítica estritamente às neuroses de transferência, nas quais as capacidades egoicas de síntese e de associação estão relativamente preservadas (Freud, 1919,1923). No entanto, Freud permitiu-se certa flexibilidade na técnica nos casos por ele denominados "neuroses graves", nos quais, inicialmente sem se dar conta, estava lidando com dimensões de resistência para além do recalque, em pacientes cuja capacidade de ligação estava prejudicada. Em Caminhos da terapia psicanalítica (1919), diante da estagnação nas análises de casos de fobias e obsessões graves, Freud defende A adoção de uma atitude ativa por parte do analista, além daquela exigida pelo trabalho de interpretação. Seria preciso, de modo a conduzir essas análises a termo, incitar o analisando, no momento oportuno, ao enfrentamento do objeto da sua fobia ou do horror ao ato que o paralisa. Dessa maneira, Freud autoriza a experiência da "técnica ativa" que vinha sendo ensaiada, em Budapeste, por Sándor Ferenczi (1919). No entanto, nem Freud nem Ferenczi levam adiante a empreitada, entre outros motivos, pelo reconhecimento de que qualquer tentativa de encurtamento do tratamento analítico estava fadada ao fracasso (Ferenczi, 1926; Freud, 1937).
Mesmo sem desenvolver a "técnica ativa", os impasses do tratamento psicanalítico dos neuróticos graves e a consequente necessidade de flexibilização da técnica oferecem a Freud material clínico importante para a elaboração da segunda tópica e do dualismo pulsões de vida – pulsão de morte, no qual a agressividade ganhará destaque especial. Do ponto de vista da configuração do campo transferencial, Freud se encontra diante de uma excessiva adesividade da libido. Os pacientes aceitam de bom grado as interpretações oferecidas sem, no entanto, inseri-las efetivamente no fluxo associativo, como ocorria na clínica da histeria dos primeiros anos da psicanálise.
Assim, é possível notar que a concepção freudiana da transferência negativa vai adquirindo contornos específicos a partir das diferentes modalidades de sofrimento apresentadas pelos analisandos, que resultam em diferentes configurações do campo transferencial. As manifestações clínicas da transferência negativa e suas gradações demandam de Freud a reordenação da agressividade em sua metapsicologia, o que demonstra que clínica e metapsicologia permanecem, até seus últimos textos, intimamente relacionadas.
Transferências negativas no campo do masoquismo e do trauma
A reinscrição do dualismo pulsional em termos de pulsão de vida e pulsão de morte e a elaboração da segunda tópica fornecem os elementos teóricos que permitem a ampliação do conceito de resistência na clínica psicanalítica. Os fenômenos clínicos da compulsão à repetição e a reação terapêutica negativa, que apareciam de maneira marginal nas elaborações freudianas, ganham agora destaque, apontando para problemas decisivos do manejo da transferência.
Em Inibições, sintomas e ansiedade (1926), Freud nomeia, ao lado das resistências do eu, (relativas ao recalque e ao ganho secundário do sintoma) e das resistências de transferência, as resistências do isso e do supereu. Assim, o campo do manejo transferencial passa a englobar os fenômenos de compulsão à repetição e as atuações que incidem no tratamento psicanalítico, e que conduzem à inércia e ao impasse na condução clínica.
A partir de então, o estatuto da agressividade na clínica psicanalítica passa a ser mais matizado, englobando uma problemática mais complexa do que aquela apresentada na primeira tópica. A agressividade passa a ser compreendida a partir da intrincação/desintricação entre pulsões de vida e pulsão de morte e das relações estabelecidas entre as diferentes instâncias psíquicas (isso, eu e supereu). A figura clínica do masoquismo, em sua dimensão constitutiva e patológica, vem lançar luz sobre os problemas clínicos que fazem obstáculo ao tratamento, especialmente os da neurose obsessiva e da melancolia (Freud, 1924, 1930[1929]).
As resistências do supereu, afirma Freud, dizem respeito à relação sadomasoquista estabelecida entre essa instância e o eu. O sadismo do supereu e o masoquismo do eu seriam responsáveis pelo sentimento inconsciente de culpa e pela consequente necessidade de punição, que faz com que os pacientes resistam à cura. Masoquismo moral é o termo utilizado para tratar desta complexa relação de submissão e servidão entre as instâncias psíquicas (Freud, 1924). No campo do masoquismo moral, há certo nível de desfusão pulsional que leva à inércia e à autodestrutividade. A dimensão mortífera da melancolia aparece aqui como a manifestação mais explícita da pulsão de morte e da crueldade do supereu. Em termos de manejo, Freud afirma que essa autodestrutividade silenciosa, voltada para o próprio eu, se não atrapalha o trabalho de interpretação, o torna completamente inoperante, o que permite, como a experiência clínica demonstra, que esses pacientes utilizem as interpretações do analista como justificativa para autopunições. Diante dessas formas clínicas de resistência, relativas ao supereu e à pulsão de morte, Freud diz que não há nada a fazer, senão continuar esperando e tentar promover "a lenta demolição do supereu hostil" (Freud, 1940[1937]).
As resistências do isso, por sua vez, referem-se à compulsão à repetição. Ao lado do problema da fixação em traumas, nos casos de neuroses graves (Freud, 1917a), os sonhos traumáticos são o ponto de partida para a compreensão da compulsão à repetição que traz novamente à tona problemas da economia psíquica abordados por Freud em Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). O que se repete nos sonhos dos neuróticos traumatizados de guerra é uma vivência de desprazer que busca simbolização, estando os sonhos traumáticos situados em registro diferente dos sonhos que são realizações de desejo e analisáveis pela técnica clássica (Freud, 1920). O desprazer que se repete, no campo das neuroses traumáticas, refere-se à vivência de horror que acaba com as fronteiras do aparelho psíquico: "Não existe proteção possível em relação ao horror, pois aquilo que aterroriza não se circunscreve no tempo e no espaço, mas se apodera da subjetividade como uma presa, algo que lhe invade" (Birman, 1999, p. 148). Nessa dimensão do trauma desestruturante, a ideia de conflito é parcialmente abandonada em favor da ideia de transbordamento do aparelho psíquico (Souza, 2007). A repetição na transferência, nesses casos, já não tem relação com a compulsão a associar, como na histeria, mas na reincidência de uma vivência de desprazer não simbolizada. Trata-se da repetição insistente do traumático, em ato na transferência. Neste momento, Freud recorre novamente ao conceito de elaboração, que demanda do analista uma presença sensível no contexto do tratamento dessas repetições, para que algo novo possa surgir. Não se trata mais do trabalho de desvendamento dos sentidos, como na clínica da histeria, mas de "algo de ordem prospectiva, isto é, num vir-a-ser da subjetividade em análise" (Birman, 2006, p. 333).
Vimos que, no manejo transferencial da histeria a interpretação da transferência auxilia no trabalho de admissão na consciência de uma ideia com intensidade até então insuportável: saber dói, e a análise auxilia a suportar essa dor (Kupermann, 2008). No campo da reincidência do traumático, não se trata de uma representação recalcada que causa a resposta de angústia no eu. Pelo contrário, é o próprio desprazer que reincide e pede simbolização. O conceito de elaboração como destino possível para os fenômenos de compulsão à repetição aponta a abertura, em Freud, para a dimensão sensível da clínica, na qual a simbolização se constrói atrelada ao campo afetivo da experiência analítica (Kupermann, 2010).
A problemática do trauma e do masoquismo, fruto da clínica com pacientes neuróticos graves, aponta, portanto, já em Freud, uma tendência para outras possibilidades de manejo da transferência a partir dos problemas impostos pelas relações entre as diferentes instâncias psíquicas e pelos problemas das alterações do eu. Freud (1940[1937]) afirma que o eu desses pacientes encontra- se inibido pelo supereu, não consegue se desviar do id, possui uma organização danificada, perdeu a capacidade de síntese e está dilacerado por impulsos mutuamente opostos.
Em pacientes com esse nível de alteração no eu, a transferência negativa pode se apresentar como um grande obstáculo ao tratamento. Diante das tentativas do analista de tornar as resistências conscientes e colocá-las em conexão com o restante do eu, Freud nota que esses pacientes deixam de apoiar os esforços do analista, descumprem a regra fundamental e perdem a convicção do poder curativo da análise. Em outras palavras, Freud se depara com "uma resistência contra a revelação de resistências" (Freud, 1940[1937], p. 255):
(...) sob influência dos impulsos desprazerosos que sente em resultado da nova ativação de seus conflitos defensivos, as transferências negativas podem agora levar a melhor e anular completamente a situação analítica. O paciente agora encara o analista como um estranho que lhe está fazendo exigências desagradáveis e comporta-se para com ele exatamente como uma criança que não gosta do estranho e não acredita em nada do que este diz. Se o analista tenta explicar ao paciente uma das deformações por este efetuada para fins de defesa, e corrigi-la, encontra-o incompreensivo e inacessível a argumentos bem fundados (Freud, 1940[1937], p. 255).
Aqui novamente aparecem afetos hostis dirigidos ao analista como obstáculo à revelação das resistências, que já haviam sido identificados por Freud desde Estudos sobre histeria (1895). Se, no entanto, no caso das pacientes histéricas, a confiança no analista era facilmente restabelecida com "discussão" e "explicação", no caso desses pacientes, cujo nível de alteração do eu aponta para uma organização subjetiva "não-neurótica" (Green, 2008), qualquer insistência argumentativa ou interpretativa se mostra infrutífera.
Se levarmos adiante a afirmação freudiana de que nos fenômenos de compulsão à repetição o trabalho se desloca da interpretação para a sustentação do manejo transferencial, para que a elaboração possa acontecer, é possível atribuir outro estatuto às manifestações de transferência negativa. Se o desprazer que se repete na transferência é da ordem do traumático não-simbolizado, a defesa agressiva frente a uma "revelação" do analista pode ser efetivamente um ato inédito de um eu que, diante da reincidência do trauma, está agora em condições de resistir (Birman, 2006).
A insistência do trabalho de interpretação, nestes casos, pode ser nociva quando o paciente traumatizado não encontra no espaço clínico condições de manifestação de resistência. Pode tanto anular a experiência analítica e levar o paciente à reincidência traumática quanto resultar em adesão submissa às interpretações do analista, como forma de proteção da revivência traumática, isolando a dimensão afetiva e tornando a análise interminável. (Robert; Robert, 2010)
Estamos agora em condições de articular o problema do masoquismo moral à questão do trauma que, não por acaso, emerge no mesmo contexto teórico. A adesão submissa e masoquista do eu aos imperativos superegoicos tem a importante função de garantir ao sujeito uma unidade narcísica que opera como proteção da vivência traumática do desamparo, tendo como resultado um eu culpado, enrijecido e reativo. Se concordarmos com Freud (1940[1937]), acerca da tendência dos neuróticos de colocarem o analista no lugar do seu supereu, vemos uma configuração transferencial que pode adquirir contornos sadomasoquistas, a partir do modelo do masoquismo moral.
É neste campo clínico que o manejo das transferências negativas parece adquirir maior complexidade, e também seu caráter mais paradoxal. Assim, se de um lado a transferência negativa pode operar como resistência para manter a unidade narcísica e proteger do desamparo, de outro, pode configurar uma tentativa de demolição do supereu hostil por meio das vicissitudes pulsionais proporcionadas pelo campo transferencial. O campo do imprevisível na clínica analítica se evidencia, aqui, abrindo espaço para a apreensão da transferência negativa não como obstáculo a ser vencido ou como o limite do analisável, mas como resistência à submissão e efetividade do trabalho clínico. Tal leitura é coerente com a concepção de agressividade compreendida a partir da intrincação da pulsão de vida com a pulsão de morte, que se direciona para o exterior, sendo, portanto, indispensável para afirmação da vida (Freud, 1924).
Apesar de trazer à luz os problemas clínicos relativos ao narcisismo, ao trauma e ao masoquismo e de enfatizar gradativamente o manejo da transferência, Freud (1940[1937]) mantém, até seu último escrito, a interpretação como horizonte do trabalho do analista. Será nas contribuições de Sandór Ferenczi e Donald Winnicott que encontraremos o desenvolvimento de uma teoria da técnica que permite maior cuidado no manejo transferencial. Abordá-las, no entanto, ultrapassaria o objetivo do presente trabalho. O que pretendemos ressaltar é que a clínica e a metapsicologia freudiana possuem abertura para a dimensão sensível da clínica e demonstram a preocupação de considerar as diferentes modalidades de sofrimento psíquico com as quais Freud se deparou ao longo de seus anos de clínica (Kupermann, 2008b).
Para concluir, podemos afirmar que, nos primeiros anos de clínica da histeria, as transferências negativas clinicamente significativas partiam do campo do desejo, fazendo parte do cenário erótico, ambivalente e rico em fantasias. Na clínica do trauma e do masoquismo, nos quais as manifestações destrutivas e autodestrutivas da pulsão de morte dominam o setting, é na aposta da possibilidade de emergência de Eros, com seu potencial de ligação e movimento, que se configura o manejo transferencial (Freud, 1920, 1930). Assim, o manejo da transferência negativa se desloca do campo interpretativo para a busca de condições de sustentação e suporte dos afetos hostis vivenciados. O espaço para que as transferências negativas atuem como resistência no encontro analítico – e não como resistência ao encontro afetivo – aparece aqui como condição para que análise possa evitar o destino funesto da reincidência desestruturante do abandono traumático e da consequente manutenção de uma posição masoquista de submissão, por parte do analisando. Pelo contrário, a agressividade expressa pelos analisandos, ao encontrar o suporte sensível do analista, favorece a criação de outras possibilidades de elaboração da dor e do desamparo.
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Endereço para correspondência:
Preiscila Pereira Robert e-mail: priscilafpr@gmail.com
Daniel Kupermann e-mail: dkupermann@usp.com
Tramitação: Recebido em 24/04/2012
Aprovado em 05/05/2012
* Psicóloga, psicanalista, mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia/USP.
** Psicanalista, membro da Formação Freudiana (Rio de Janeiro), professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, autor dos livros Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (editora Revan), Ousar rir: humor, criação e psicanálise, e Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica, ambos publicados pela editora Civilização Brasileira.