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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versión On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.34 no.26 Rio de Jeneiro jun. 2012
Objeto voz: incidências do supereu no masoquismo
Objectvoice: incidence of the superego in masochism
Adelina Helena F. Lima F. Freitas*
Universidade Veiga de Almeida
Resumo
Nesta apresentação faremos um esboço de algumas formulações psicanalíticas sobre a dor e o existir articulados ao objeto, ao supereu e ao masoquismo. A teoria freudiana tematiza sobre o sujeito sempre na procura frustrada do reencontro com o primeiro objeto perdido da experiência de satisfação, enquanto Lacan sustenta que a falta existe desde sempre, ou seja, o objeto nunca existiu, o que designa como objeto a. A relação do supereu com o masoquismo nos permite a compreensão da importância que tem para o sujeito o objeto a, em sua vertente de voz que comanda.
Palavras-chaves: Objeto a, supereu, voz, masoquismo.
Abstract
In this presentation we will outline some psychoanalytic formulations about pain and existence related to the object, the superego and the masochism. Freud´s theory thematizes the subject always in a frustrated search of the first lost object of the experience of satisfaction, while Lacan sustains that the lack has always exists, in other words, the object has never really existed. That's what he refers as 'object a'. The relation between the superego and the masochism allows us to understand the importance of the 'object a' to the subject, as a voice that commands.
Key-words: Object a, superego, voice, masochism.
I. O Objeto na psicanálise
Para a psicanálise a relação com o objeto, é a relação com sua falta, com algo perdido desde sempre, calcado numa base de angústia. Freud designa como "das Ding", presença que se dá por algum indício sinalizado no nível das representações, que não é um disfarce da Coisa e sim um vazio que não pode ser preenchido de forma perfeita, o que promove a busca de um reencontro sempre impossível, podendo apenas acontecer o encontro com um objeto substituto. Devemos apontar aqui uma diferença importante para a compreensão da questão do objeto. Freud parte do objeto perdido, sendo a primeira experiência de satisfação referida a uma origem mítica que levaria o sujeito a uma procura sempre frustrada, a um encontro parcial com algum representante de "das Ding". Já Lacan afirma que este objeto nunca existiu, falta desde sempre, não existe nem mesmo esta forma mítica. Trata-se de uma incompletude estrutural, o que exige uma estratégia para lidar com um vazio que não pode ser preenchido de forma perfeita por nenhum objeto, o que Lacan denomina objeto a, índice de um furo impossível de ser recuperado.
Encontramos no autor francês diferentes referências ao objeto: é o outro semelhante e a imagem construída a partir do vínculo com o semelhante, é o agalma, o objeto perdido e o objeto a como a causa de desejo, o mais-de-gozar e o semblante. Ao falar do objeto estamos nos referindo, portanto, às três dimensões apontadas por Lacan: a vertente imaginária que diz respeito à relação entre eus, calcada na oposição igual/diferente, mas que implica elementos classificados a partir de parâmetros simbólicos decorrentes da relação com o Outro como linguagem. Porém, a captura do sujeito pelo significante não é completa, não existe um significante que o constitua plenamente, algo de seu ser fica como não simbolizado. A dimensão real diz respeito, então, ao que resiste à simbolização e insiste num retorno repetido do sujeito a esse ponto.
Ao buscar uma precisão sobre a complexidade inaugural do sujeito e sua constituição no campo do Outro, Lacan introduz, no Seminário X ([1962] 2005), uma concepção própria a respeito do objeto. Recorre à divisão através da qual o sujeito e o Outro passam a ser barrados, e deste processo fica um resto, o objeto a que cai desta partição e não se sabe a qual dos dois pertence. Porém, sua produção significa que ao Outro algo falta, o que institui sua condição desejante pela via da barra que incide sobre ele. Assim, a constituição subjetiva comporta um corte e produz o objeto a, única prova que resta desta operação e que atesta a caráter de alteridade do Outro. Esta concepção marca, portanto, a dimensão do desejo ligada a uma falta que se mostra de caráter irredutível, incapaz de ser preenchida por um objeto real.
O fato de o objeto nunca ter sido encontrado autoriza a pensá-lo como essencialmente fantasmático, sem correspondência com alguma lembrança concreta dos primórdios da vida. Reside no centro da fantasia e alimenta como causa a busca interminável de um encontro, que sempre será faltoso, promovendo, desta forma, a continuação do processo. É, portanto uma concepção de nostalgia que liga o sujeito ao objeto perdido, situando-o na ordem da repetição. A dimensão do desejo está articulada à realidade psíquica e a pulsão irá encontrar, ou não, um objeto para sua satisfação, numa tensão constante que tenta alcançar sua finalidade o tempo todo. A montagem pulsional comporta um fim e um objeto que, por não ser natural, se apresenta contingente, sempre da ordem da parcialidade, de acordo com o caráter da pulsão. Isto indica que a pulsão pretende um retorno em circuito a sua fonte, razão que permite entender como ela pode ser satisfeita sem atingir seu alvo. No texto freudiano Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, [1905]1974) fica evidente a impossibilidade de o sujeito achar um objeto que estabeleça uma complementaridade no tocante a sua realização plena. O desejo se constrói em torno de elementos substitutos que satisfazem parcialmente a exigência pulsional por nunca preencherem a lacuna no ser.
É importante salientar que o objeto para a psicanálise está numa posição distinta da satisfação da necessidade. O que ocorre é a possibilidade de uma realização que está distante da ideia de adaptação vital, não é algo da realidade física; como dito antes, está no registro da produção fantasmática, inconsciente. O único objeto que pode responder por alguma satisfação de desejo é o objeto a, nos ensina Lacan. Por ser faltante, este objeto inscreve a presença de um vazio que qualquer outro poderá ocupar. Constatamos, assim, que nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a pulsão, nem mesmo sua relação indica o que o Outro realmente quer. O desejo do Outro não é o que o Outro pede, está aquém da demanda e além da necessidade. A pulsão parcial pode ser descrita como uma energia potencial que, apesar de estar articulada ao desejo, é dele distinta. O desejo sempre remete à falta e ao "das Ding", cuja exsistência remete ao real.
Fica evidente, portanto, que desejo e falta são elementos vinculados: o primeiro resulta da existência do segundo. O objeto nunca foi perdido, posto que nunca existiu, e mesmo quando, na repetição, o sujeito visa a seu reencontro, é sua função de causa que se coloca em jogo, orientando uma busca, aparentemente paradoxal; ou seja, reencontrar o que nunca se teve. Desejar é lamentar esta falta, sem saber nunca como preenchê-la, e quando o sujeito supõe que o conseguiu, o desejo já deslizou em seu movimento metonímico. Assim sendo, o objeto a não se caracteriza por qualidades específicas que poderiam satisfazer ou mesmo frustrar por uma presença ou ausência; sua função é muito mais suscitar o desejo, justamente por esta dimensão de indicar um nada. Trata-se do objeto impossível, que articula pulsão e gozo.
O desejo é busca constante por algo a mais e não há como satisfazê-lo plenamente, nem extingui-lo; está fundamentalmente preso ao movimento dialético de um significante para o próximo significante, e é oposto à fixação. Não procura satisfação, mas sim continuar desejando: não tem objeto, tem causa. O objeto a como causa é aquilo que pode evocar o desejo, sendo responsável por seu advento, forma e intensidade. O que causa desejo na criança é o desejo do Outro e não sua demanda, nem mesmo quando direcionada para algo ou alguém específico: a mãe, por exemplo. A causa do desejo é a pura capacidade de desejar. Pode contar muito mais, por exemplo, para uma escolha de objeto amoroso, uma determinada forma de olhar, um timbre de voz, do que outros atributos, mesmo que estes tenham alta importância social: beleza, posição, conteúdos discursivos, etc.. O parceiro muitas vezes tem pouco ou nenhum valor se não apresentar alguns desses elementos, por vezes de forma sutil, mas que constituem aquilo que poderá despertar o desejo de cada um (FINK, 1998).
II. A dor como condição do ser humano
Falar de dor é referir-se a própria condição do ser humano de ver-se faltoso. Freud trabalhou o tema da dor em vários trabalhos, destacando-se em Luto e melancolia ([1915] 1974), ao indicar que o luto pela perda do objeto é um processo doloroso. Acrescentou, também, com a formulação da segunda tópica, conceitos importantes para a compreensão deste tema, como a pulsão de morte, o supereu e o masoquismo. A dor corresponde, por um lado, à satisfação da pulsão de morte, o que fica claro, por exemplo, no masoquismo e na ação do supereu, e por outro, está associada às perdas que podem ir desde as mais simples até os piores rompimentos. São circunstãncias que evidenciam tanto os efeitos ligados à vivência de castração, que se presentifica a cada nova experiência de perda de um elemento que poderia encobri-la, quanto ao trabalho de luto que deverá ser feito para que o sujeito possa ultrapassar essa circunstância. A dor diz respeito a uma carcaterística imposível de ser eliminada e, dependendo do que foi perdido e do que significa para a economia psíquica, vamos encontrar diferentes configurações que podem indicar a existência de quadros de luto, depressão ou melancolia.
A depressão, tão referida nos nossos tempos, inclui a tristeza pela impossibilidade de sustentação de um ideal que poderia escamotear a falta e possibiltar ao sujeito escapar à vivência de castração, com a ilusão de completude. Fazer o luto do ideal, transformando o não consigo porque sou impotente no impossível de ser alcançado, ao qual todos estão submetidos, leva à assunção da castração. Em Kant com Sade, Lacan se refere a essa situação como a "dor de existir" ([1963], 1998, p. 788), concepção baseada no budismo que considera a duração limitada de tudo que existe, não sendo possível, desta forma, escapar da dor por conta da convivência com o vazio e a falta-a-ser. O afeto depressivo da dor de existir remete ao furo próprio da estrutura da linguagem e a passagem da impotência ao impossível marca a saída da depressão, constituindo uma estratégia para suturar a falta, um estado permanente e impossível de ser suprimido. Neste sentido, é o acesso à condição desejante e a neutralização da pulsão de morte e do masoquismo erógeno que possibilitam alguma mudança. Entretanto, mesmo reconhecendo o caráter irredutível da falta e do vazio que podem gerar a dor, podemos considerar que nem sempre esta circunstância apresenta um aspecto negativo. A arte está aí, para constituir com suas possibilidades criativas uma maneira de tratar o vazio, nos diz Lacan no Seminário VII ([1960] 1988 ). A Coisa da qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de não poder ser representada senão por outra coisa. Mas em toda forma o vazio será determinante.
Portanto, se o confronto ao longo da vida com o vazio, as perdas e as dores é inevitável, o que poderá proteger o sujeito de um colapso é o desejo como uma forma de enfrentar essa situação por constituir uma manifestação de outra ordem da função da falta. Quando o sujeito abre mão de desejar, alienando- -se ao que o Outro determina, a falta constitutiva pode se transformar em falha moral e o resultado é a culpa com desdobramentos, que vão desde culpar a sociedade que não disponibiliza os objetos adequados de gozo, passando pelo Outro que não dá o que o sujeito quer porque também é inconsistente, e o gozo pleno lhe falta do mesmo modo, até se atribuir a culpa pela castração (QUINET, 1997). A falta moral realimenta a culpa, índice da ação superegóica de vigilância implacável, que cobra, critica, acusa e pune de uma forma cruel. O sujeito se sente culpado por não cumprir os mandatos do supereu, não conseguindo se livrar das suas exigências cada vez mais vorazes, sempre distante do ideal que deveria alcançar.
III. O Supereu, a voz e o masoquismo
A ligação supereu/objeto em Lacan está formulada claramente com o objeto a, em sua vertente de voz, e em Freud encontramos os resíduos verbais articulados ao imperativo categórico, que testemunham essa relação, continuando uma ação sustentada inicialmente pelos pais e, posteriormente, por outros elementos da sociedade. Embora não sejam elementos inteiramente equivalentes, encontramos em ambos autores a importância do registro vocal nesse campo.
O conceito de supereu para Freud congrega as funções de auto-observação, consciência moral e articulação dos ideais. Apresenta em sua constituição duas faces: uma associada à função normatizante da estrutura edipiana, à identificação ao pai e ao juízo crítico da consciência moral, e outra expressa por seu aspecto tirânico, ligada ao isso, ao masoquismo primário, resíduo da pulsão de morte que exorta o sujeito ao gozo mesmo da morte, fazendo sentir, desta forma, sua pressão mortificante. Está indicado em Freud, como resto mnêmico da palavra que pulsa, manifestando-se sob a forma de um imperativo categórico que submete o eu com seu caráter agressivo e violento, além de exacerbar a consciência moral. Por estar associado à Tânatos, é um dos fatores determinantes da gravidade de uma doença neurótica, relacionado ao sentimento de culpa, que se expressa sob diferentes condições (FREITAS, 2005).
Lacan, por seu turno, afasta-se da referência ao ideal ao formular o supereu com um caráter obsceno e feroz. Verificamos que não existem muitas referências em sua obra sobre o tema, principalmente quando comparado com outros conceitos. Também chama a atenção que a maioria contemple o período do ensino lacaniano que vai até o seminário da angústia, escasseando após essa data, embora sem desaparecer completamente da produção do autor Gerez- Ambertin (2003), Krutzen (2009). Não podemos, inclusive, deixar de nos lembrar de sua curiosa afirmação no Seminário 18: "a única coisa de que nunca tratei é do supereu" (LACAN [1971], 2009, p. 84). Sempre instigante, Lacan nos põe a pensar o que isso significa, visto que foi através desse tema que aproximou- se da psicanálise, por seu interesse em crimes que foram relacionados à ação do supereu, como o caso Aimeé e das irmãs Papin. O supereu se refere a uma lei desprovida de sentido, embora sustentada na linguagem. Na realidade, encontramos neste caso uma cisão que se produz nas relações do sujeito com a lei (FREITAS, 2011).
O conceito de supereu na obra lacaniana é desenvolvido numa articulação aos três registros: imaginário, real e simbólico. Na tese de 1932 o autor se refere ao supereu como a reincorporação desses objetos que resumem em si todas as restrições que a sociedade exerce sobre o sujeito, ou seja, os pais e seus substitutos,colocando em pauta sua dimensão imaginária enquanto efeito da repressão cultural. A figura feroz (LACAN, [1954] 1983, p. 123) é a expressão utilizada para identificar as enunciações que compõem uma lei insensata que coage o sujeito e impulsiona ao ato, e da qual ele não consegue se livrar. O imperativo do dever é uma das suas expressões, podendo chegar mesmo a uma devastação.
Além disso, Lacan nos remete à vertente do simbólico e apresenta o supereu como um resto da entrada de cada futuro sujeito na ordem da linguagem:
O mundo humano... não implica somente a existência das significações, mas a ordem significante.... mas é preciso ainda que a ordem significante, o sujeito a adquira, a conquiste, seja colocado em seu lugar numa relação de implicação que afeta seu ser, o que resulta na formação do que chamamos em nossa linguagem o superego (LACAN, [1955-1956] 1985, p. 216).
Todavia, apesar do caráter universal da linguagem, cada sujeito terá uma marcação singular dos significantes, é a relação que estabelece com a ordem simbólica que conta: ".... significante que marca, imprime, impõe o selo no homem de sua relação com o significante... a isso se chama o supereu" (LACAN, [1956-1957] 1995, p. 216).
Ao final do ensino lacaniano é a vertente do real que será privilegiada, de modo que o supereu associado ao gozo que ganha uma dimensão da ordem do inalcançável (LACAN, [1972] 1982), razão de atos extremos e paradoxais, que está em oposição à renúncia pulsional postulada por Freud. A noção de gozo é utilizada em diferentes acepções na obra de Lacan e, embora já falando do tema desde 1938 no texto sobre a família, o conceito ganha importância maior a partir do seminário sobre a ética, quando é relacionado à satisfação da pulsão. O gozo é proibido e o que defende o sujeito é o desejo.
No Seminário 18 são levantadas algumas questões importantes sobre a essência do supereu articuladas ao pai original, num apelo de gozo puro, à não castração. O supereu comanda o gozar, o que é da ordem do impossível de satisfazer: "Goza!" (LACAN [1971] 2009, p. 166). E apresenta uma severidade crescente na proporção das tentativas de obediência, além da atribuição de uma culpabilidade inteiramente incontornável.
Neste sentido, o supereu não se coloca como um representante da lei, pelo contrário, é mesmo seu reverso. Resulta de uma fissura da lei simbólica, constituindo-se como discurso primitivo imposto e marcado por uma arbitrariedade básica. É ao mesmo tempo a lei e sua destruição. A marca do traço imperativo leva o sujeito a situações extremas, de cunho paradoxal, onde a satisfação se dá no registro desta lei implacável e incompreendida. Este caráter tirânico parece ser condição para o surgimento de fenômenos tais como escrupulosidade excessiva, atitudes imperativas, culpa e castigo. Podemos identificar, aqui, a função da voz da consciência como exteriorização do supereu, fundamental para este entendimento, já que por esta via o sujeito pode torturar-se com conflitos terríveis. Ao vigiar e julgar as atuações do eu, o supereu exerce sobre este uma censura, por vezes de uma violência ímpar. Assim, falar em voz da consciência implica reconhecer um lugar fundamental à marca auditiva, sinalizada por Freud e radicalizada na formulação de Lacan: a vociferação da qual o sujeito não escapa, que o exorta a uma ação da ordem do impossível, como por exemplo, nos pensamentos obsessivos ou nas vozes da psicose. Aparece, aqui, o que há de mais devastador na experiência do sujeito. O supereu encarna aí não a lei organizadora, mas esta lei de caráter incompreensível, que continua atuando repetitivamente como exortação insensata, voz que não se assimila, apenas é incorporada (LACAN, [1962- 1963] 2005).
Ao referir-se à dimensão auditiva na formulação do supereu, Lacan retoma Freud ([1956-1957] 1995), no que este enfatiza, no Ego e o id ([1923] 1974), a importância dos resíduos verbais com seus efeitos para o sujeito, remetendo a origem dessa instância àquilo que foi ouvido. O objeto a deve ser buscado do lado da voz desligada de seu suporte, não modulada, um objeto que se presentifica sem possibilidade de metaforização, uma presença real. Aparece como ordem descarnada a partir do campo do Outro. Não é um significante que se articula a outros significantes, é pura presença do objeto, voz despojada de toda dialética. Voz que para Freud é herança paterna, mas que na perspectiva lacaniana está relacionada aos enunciados primordiais. Nesse sentido, a voz materna desempenha um papel crucial ao construir uma imagem para a criança no estádio do espelho, imagem a qual ficará alienada, e que vem acompanhada de uma palavra integrada antes mesmo que seu sentido seja percebido, e quando apenas sua estrutura é captada. Esta é a forma de conceber o supereu pela escuta dos significantes sem sentido, mas que retornam como voz. "Ouvir implica em obedecer.... o (sujeito) uma vez que ouve é conduzido" (LACAN, [1955-1956] 1985, p. 339), afirmação que indica a condição de submissão do sujeito ao discurso que o invade. Assim, o supereu apresenta seu caráter imperativo, mortificando com seu mandato impossível que determina a posição de comandado. Como afirma Lacan, "não pode haver concepção analítica válida do supereu que esqueça que em sua fase mais profunda a voz é uma das formas do objeto a" ([1962-1963] 2005, p. 321). São as vozes do supereu que entram em cena, pois a lei é transmitida de forma vocal e é sempre do Outro que o imperativo moral nos afeta. Fazer-se voz para atingir o ouvido do Outro, ouvido que "no campo do inconsciente [é] o único orifício que não se pode fechar" (LACAN, [1964] 1985, p. 184). É um se fazer ouvir pelo Outro como objeto voz, é voz do Outro ou a voz no Outro, a voz separada que causa estranheza.
O Outro não existe, é isso que o supereu vocifera, sua inconsistência. O supereu como voz ressoa no vazio do Outro, de sua falta de garantia (ABDALA, 2008), surge onde o furo do Outro não deveria existir. É exatamente porque há uma falha estrutural que é preciso preenchê-la, restituir a voz absoluta, mesmo que ao preço de criar um Outro interditor em contraposição a um sujeito submisso e incompetente para atender a todos os comandos que lhe são endereçados. É voz que surge quando alguma coisa é intimada pelo Outro e que, neste particular, é imperativa, exige obediência ou convicção.
Um aspecto fundamental, a ser incluído em nossas considerações a respeito da relação do supereu com a voz e a dor, é a ligação estabelecida com o masoquismo em 1924, por Freud, tema que Lacan continua ao desenvolver a tese de sua condição estrutural na subjetividade, produzida pela entrada do sujeito na linguagem. Ao registrar que a dor e o desprazer podem constituir alvos pulsionais, Freud eleva o masoquismo a uma posição fundamental, servindo a uma satisfação pulsional associada ao imperativo cruel do supereu que ordena gozar a qualquer preço (RUDGE, 1999). Considerando que a finalidade dos processos psíquicos é a busca do prazer e a evitação do desprazer, o movimento pulsional que visa o sofrimento se apresenta como enigmático. É preciso examinar esta contradição e explicar o fato da dor e do sofrimento poderem vir a ser um fim em si mesmo. Além disto, é preciso diferenciar o masoquismo como efeito do supereu que se evidencia na divisão do sujeito contra si mesmo, ou seja, o masoquismo como condição de estrutura, de posições subjetivas neuróticas ou perversas, onde o objeto a se diferencia como causa de desejo com relação à primeira ou objeto de gozo, no segundo caso (GETEZ-AMBERTIN, 2003).
Freud ([1924] 1974) se refere a três formas em O problema econômico do masoquismo: o masoquismo primário ou erógeno leva a outras duas derivadas que são a feminina, desenvolvida com relação às fantasias de espancamento e a moral que se articula ao sentimento de culpa e ao funcionamento da consciência, quando o próprio eu se satisfaz com a servidão, as humilhações e injúrias sem conhecimento deste prazer devido ao recalque dos impulsos sexuais.
A associação do masoquismo ao supereu é trabalhada nos textos freudianos ([1924], [1919] 1974) em relação à culpa e ao sacrifício, onde prima o submetimento à vontade paterna que serve à satisfação masoquista, sacrifício apresentado como paga inevitável da instalação da lei simbólica e do laço social. As afirmações encontradas no Seminário X que "reconhecer-se como objeto de desejo ...é sempre masoquista" e "se há masoquismo é porque o supereu é bem malvado" (LACAN [1962-1963] 2005, p. 119) nos levam a interrogar a articulação do masoquismo ao supereu e as exigências de sofrimento realizadas por esse último.
É, portanto, uma questão para a psicanálise, pensar no que pode levar o sujeito a visar esta posição de submetimento ao outro, de servidão e até mesmo de humilhação, além do sofrimento físico, que também poderá estar presente, embora não obrigatoriamente. Práticas milenares de flagelação ou atos de mortificação fazem parte da história do homem e demonstram o lugar que a servidão voluntária que une vítima e carrasco, dominante e dominado, relacionada aos prazeres do sexo e da depravação, refletindo compensações que denunciam a ligação entre a pulsão e o gozo (Roudinesco, 2008).
O masoquismo é efeito da divisão do sujeito contra si mesmo como condição de estrutura e a voz tem lugar marcado nesse contexto. Funda-se sobre o ponto de incidência da voz do Outro, o que faz com que a condição de servidão ganhe espaço. Há um gozo nesta reposição do Outro, gozo de uma ordem diferente daquela do sádico que, inversamente, tenta despojar o Outro de sua palavra impondo-lhe sua voz. O jogo da voz encontra aqui seu pleno registro.
Queixar-se é uma forma de gozo da condição subjetiva do masoquista, que usa freqüentemente esse artifício, falando muito de suas mazelas. Com isto se faz de vítima para mobilizar o Outro, no intuito de que este o garanta e neutralize, desta forma, a angústia que o desamparo constitutivo do ser humano lhe provoca. "Eu não tenho condição de nadar e preciso me agarrar nas tábuas que meu pai me deu. Ele me protege, me garante, não posso nem pensar que venha a morrer" é a posição de um analisando, que trabalha num negócio montado pelo pai, que segundo diz, não o considera competente para atuar em outra coisa. Apesar de não suportar o tipo de trabalho diz ter que agüentar, pois assim pode sempre apelar para que ele resolva suas dificuldades, sejam essas financeiras, emocionais ou mesmo referentes aos seus conflitos familiares. E o que o pai fala, ele toma como verdade; mais até, é comando ao qual não pode escapar, só lhe restando submeter-se e obedecer. Atitude que, por um lado, gratifica pela ilusão de garantia desse pai tornado poderoso por conta de sua posição servil, e por outro, gera horror na medida em que o destrói como sujeito desejante e estabelece uma dependência absoluta desse Outro, o que também é perigoso. Mas não deixa de ser uma estratégia de proteção, de evitar a terrível vivência de desamparo e de medo de assumir os riscos da vida, com suas indeterminações.
Mesmo considerando as características diferentes, no que tange à posição masoquista como condição de estrutura ou traço perverso, podemos identificar, em ambos os casos, evidentemente com nuances diferentes, um movimento de se oferecer ao Outro, estabelecendo um pacto, surdo nas relaçoes cotidianas do neurótico, mas que pode tornar-se ruidoso no contrato perverso, onde a dinâmica de submissão é central, com a cristalização de posições. Identificar uma fonte para a dor, eliminando outras origens para as perdas e até mesmo para as surpresas indesejáveis da vida, acaba sendo uma forma de controlar o sofrimento que passa a ser por algo determinado. E para mascarar a falta que faz sofrer, o sujeito monta cenas exageradas de submetimento que visam impor um gozo ao Outro.
Na cena sexual, de caráter ritualístico, o masoquista se mostra ao especatdor como objeto, além de provocar angústia no parceiro (Rudge, 1999). Uma analisanda, referindo-se ao companheiro das práticas masoquistas em que a violência, tanto física quanto verbal, era frequente diz: "ele cuida de mim", e reconhece a estranheza da afirmação. Vislumbramos aqui a hipótese de Uma criança é espancada (FREUD, [1919] 1974). No desdobramento do seu discurso fica claro, porém, o controle que exerce na cena, pois só ela pode interromper a situação através de uma palavra pactuada que funciona como um código entre os parceiros para colocar o limite aos maltratos. E, curiosamente, não fala, vai ao extremo do insuportável, e é o outro que se angustia pelo excesso que ele mesmo impõe. O mandato do supereu exige se fazer ao máximo de objeto, ocupando uma posição de servidão frente ao Outro, de desqualificação, injúria, resto. Entretanto é necessário assinalar que, mesmo nestas circusntâncias, não é possível encarnar totalmente esta posição, pois se trata de uma montagem: "no masoquismo a identificação com o objeto só aparece numa cena" (LACAN [1962-1963] 2005, p. 118).
Finalizando, podemos dizer que o masoquista tenta eliminar a castração do Outro, restituindo-lhe o objeto voz, ao qual se submete. Aqui, o gozo torna- -se quase um dever, gozo por contrato, numa cena onde a improvisação está excluída por assinalar que o Outro deseja algo diferente do acordado. O objetivo, então, é mascarar a falta e com isto se iludir que a castração não existe. O trabalho do masoquista é procurar restituir o objeto voz ao Outro, sendo que, para tal, permanece na condição de se fazer ouvir obedecendo e sustentando, desta forma a ilusão do Outro absoluto e garantidor.
Referências
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Endereço para correspondência
Adelina Lima Freitas
e-mail: adefrei@yahoo.com
Tramitação
Recebido em: 30/04/2012
Aprovado em: 18/05/2012
*Membro psicanalista/SPID, doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ, profa. da Graduação em Psicologia e da Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/Universidade Veiga de Almeida.