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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versión On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro dic. 2012
Artigos
A psicanálise hoje: produção de novas subjetividades?
Psychoanalysis nowadays: production of new subjectivities?
Fernanda Ferreira Montes*
Universidade Federal Fluminense
Resumo
O artigo visa questionar a ideia acerca das "novas subjetividades", abordando a problemática da contemporaneidade através da relação do sujeito com a temporalidade e com a narrativa. Assim, o artigo pretende articular teoria, clínica e cultura a partir dos conceitos de trauma em Freud e Ferenezi, e da abordagem de Walter Benjamin sobre a narrativa, além da contribuição de pensadores contemporâneos.
Palavras-chaves: Subjetividade, contemporaneidade, temporalidade, narrativa, trauma.
Abstract
This article aims to question the idea about "new subjectivities", addressing the problems of contemporary world through the subject's relation with temporality and narrative. Thus, the article intends to articulate the theory, clinical and culture from Freud and Ferenczi's trauma concepts, and Walter Benjamin´s approach on narrative, beyond the contribution of contemporary thinkers.
Key-words: Subjectivity, contemporary, temporality, narrative, trauma.
Este artigo visa discutir a constituição subjetiva na atualidade, interrogando o estatuto de "novas subjetividades" para o campo psicanalítico. Nesse sentido devemos, em primeiro lugar, abordar a problemática da contemporaneidade. No entanto, podemos delinear esse tema a partir de diversos vieses. Sendo assim, priorizamos a relação do sujeito com a temporalidade, já que se trata de uma mudança óbvia num mundo de celulares, internet e de toda uma tecnologia em função da velocidade.
Temos que, no contexto de hoje, o sujeito se relaciona com o tempo principalmente através da modalidade de temporalidade que designamos por presentificação. Ou seja, o sujeito se encontraria em suspensão temporal. Essa temporalidade pode ser compreendida através do privilégio do discurso literal; de uma forma de narrativa literal que não pressupõe uma continuidade temporal. Trata-se de uma narrativa descritiva, onde uma cena não pressupõe a anterior, nem remete à posterior. E ela traz à tona um discurso unívoco, ou seja, as palavras têm apenas um único significado e essa fala não é carregada de enigma.
Isso leva alguns autores da psicanálise a relacionar os sintomas ditos contemporâneos – síndrome do pânico, somatizações, etc – a uma falta de capacidade de simbolização e, conseqüentemente, de associação, por parte do sujeito. Esses "novos sintomas" estariam remetidos ao tempo presentificado da compulsão e à narrativa literal do "esvaziamento subjetivo". Segundo Birman (2001), a subjetividade construída no início da modernidade era pautada a partir da noção de interioridade. Hoje, essa ideia caiu por terra e deu lugar à exterioridade e ao autocentramento, assumindo uma configuração estetizante, quando o olhar do outro é tomado "ao pé da letra" (BIRMAN, 2001).
Porém, já encontramos tanto em Freud quanto em Ferenczi um esforço no sentido de lidar com esta narrativa. Freud, ao apresentar a segunda teoria das pulsões, através do trauma de 1920. Ferenczi, conceituando sobre o choque traumático. Tal narrativa, nos dois autores, é construída num tempo presentificado que pode se apresentar como uma imagem fixa. Então, verificamos não ser cabível pensar nessa forma narrativa como um sintoma contemporâneo.
Portanto, concluímos que se trata da predominância de um modo de funcionamento psíquico que se insinua através de sintomas relacionados ao trauma, fato que relacionamos ao contexto social em que vivemos. Trata-se mais propriamente de uma maior prevalência dos sintomas relacionados ao choque traumático. Devemos considerar o que foi colocado por autores como Seligmann- Silva (2000) e Sennett (1999), que descrevem a contemporaneidade como uma época em que o choque não é mais um estado de exceção na vida das pessoas, mas faz parte do dia-a-dia.
Sem dúvida, o que inaugurou a psicanálise foi a questão da histeria, levando Freud a conceber o funcionamento do psiquismo pautado no modelo do recalque. Sonhos, fantasia e sexualidade eram as figuras prevalecentes no discurso psicanalítico. Nessa direção, compreendemos que os sintomas devem ser contextualizados. Para abordar o modo de funcionamento psíquico predominante na atualidade, partimos do princípio que existem diferentes modalidades de temporalidade quando nos referimos à organização psíquica e que, atualmente, a presentificação expressa pela literalidade ganhou a cena. Partindo de Freud, temos pelo menos duas modalidades temporais: a noção de posterioridade tão cara à construção da primeira tópica e a presentificação apresentada a partir da compreensão do trauma e da pulsão de morte em 1920. Nesta perspectiva, compreendemos que a preponderância da literalidade não torna a psicanálise ultrapassada. Essa ideia faz com que nosso problema mude de figura. Temos a necessidade de se fazer uma releitura da clínica a partir de noções que já conhecemos, dentre elas: trauma, choque, angústia, pulsão de morte. O que nos impele a olhar para este campo teórico, que é a psicanálise, com novas lentes.
A prevalência da narrativa literal na clínica é estranha ao modelo de subjetividade calcado no conflito psíquico, mas ajusta-se ao contexto da atualidade. Aqui recorreremos a Walter Benjamin, que em 1933 já anunciava este problema. No artigo Experiência e pobreza (1933/1994), Benjamin afirma que a experiência (Erfahrung) está em baixa. Nos primórdios da sociedade moderna capitalista a narrativa tradicional ou alegórica entrou em crise por conta da desvalorização da experiência (Erfahrung). A vivência (Erlebnis) toma conta da vida do indivíduo moderno. Ela não garante a memória social, pois não é calcada na transmissão da palavra. A vivência está de acordo com a estrutura de trabalho fragmentária proposta pelo capitalismo moderno, que acelera o tempo.
O indivíduo moderno em Benjamin: fim da narrativa?
Walter Benjamin faz uma crítica à modernidade capitalista através das questões do tempo e da narrativa. Em Experiência e pobreza (1933/1994), Benjamin afirma que as ações da experiência estão em baixa. Essa pobreza da experiência não é privada, mas de toda a humanidade. No texto O narrador (BENJAMIN,1936/1994) temos a proposição de estarmos diante do fim da narrativa na modernidade. A sociedade moderna capitalista não valoriza a narrativa, pois não valoriza a experiência (Erfahrung). Benjamin explicita isto nos seguintes termos:
(...) a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1936/1994, p. 198).
Um exemplo da perda desta capacidade seria o fato de que aconselhar se tornou antiquado. Para Benjamin, não podemos aconselhar quando as experiências não são comunicáveis. Não podemos dar conselhos ao outro, nem a nós mesmos. E assim perdemos a capacidade de conversar conosco, o que chamamos de interiorização. Aconselhar é dar continuidade a uma história que está sendo narrada.
Ao discorrer sobre a narrativa, Benjamin se refere à narrativa oral, que tem como condição de possibilidade a experiência. Assim, para o autor, o primeiro indício de fim da narrativa está no surgimento do romance. Em primeiro lugar, o romance está vinculado à escrita. Por isso, o romancista é segregado. Nas palavras de Benjamin:
A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive (BENJAMIN, 1936/1994, p. 201).
Benjamin assinala que o romance, cujos primórdios remontam à antiguidade, encontrou na burguesia moderna os elementos para sua ascendência. A narrativa foi ficando arcaica, mas conseguiu se modificar e agregar novos conteúdos provindos do romance. A principal responsável por sua derrocada foi, enfim, o surgimento de outro tipo de comunicação muito caro à burguesia: a informação. Ela surge juntamente com a imprensa, um importante instrumento do capitalismo moderno. Assim, Benjamin reconhece que a imprensa inaugura, de fato, outra narrativa, a jornalística, calcada na literalidade da informação. Entretanto, a literalidade se distancia do conceito estrito de narrativa benjaminiano por se afastar da experiência, tratando do vivido. Ela não se pauta pela oralidade; não faz referência ao miraculoso, não comportando sonhos e fantasia. Sobre a relação do homem com a informação, Benjamin ressalta:
(...) Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações (...) O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1936/1994, p. 203).
Benjamin critica a literalidade da informação jornalística porque esta se contrapõe a narrativa tradicional, aberta a interpretações. Reconhecemos uma similaridade entre essa narrativa tradicional e a regra fundamental do tratamento analítico: ambas promovem a associação livre. E é exatamente a falta de capacidade de associar livremente por parte dos pacientes que instiga os analistas, ultimamente, levando-os a declarar que esses pacientes possuem dificuldade para representar. Kristeva (2002) discorre sobre este assunto:
Os analistas são levados então a inventar novas nosografias que dão conta dos 'narcisismos' feridos, das 'falsas personalidades', dos 'estados-limite', dos 'psicossomáticos'. Em que pese às diferenças dessas novas sintomatologias, há, unindo-as, um denominador comum: a dificuldade de representar (KRISTEVA, 2002, p. 15-16).
Acontece que o texto do paciente não flui, não entra em um fluxo temporal. Ele é parado, restringe-se ao presente. Esse é o tempo da informação. A linguagem jornalística narra o atual e exclui o sujeito da experiência, já que a informação acaba, pois só vale enquanto é novidade. Por isso precisa ser explicada rapidamente. Na experiência, o passado é eterno porque permanece como o que poderia ter sido; ele é sonhado. A narrativa seria uma forma artesanal de comunicação, é um compartilhar da experiência. Compartilhar da experiência sobre a vida, a cultura, a tradição. Na origem da narrativa deve estar o saber e a autoridade.
Como salienta Gagnebin, no prefácio das Obras escolhidas – v. I (1994), de acordo com Benjamin a historiografia burguesa e progressista se apóiam na concepção de um tempo vazio, ou melhor, cronológico e linear. Assim, o autor propõe um tipo "materialista" de se fazer história em contraposição a isso. O historiador materialista é capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados, dando uma nova face às esperanças frustradas. Assim, fundaria outro conceito de tempo, o "tempo de agora" (Jetztzeit), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade. Brevidade porque o passado não é um bloco imóvel, mas se atualiza no presente. Em lugar de apontar para uma "imagem eterna do passado" ou para um futuro progressista, como faz o historicismo, o historiador materialista deve constituir uma experiência (Erfahrung) com o passado. O "tempo de agora" estaria atrelado à noção de experiência e busca analogias entre o passado e o presente. Encontramos no presente a presença do passado. O presente atualiza o passado. É a abertura para novos sentidos. Desta maneira, a ideia de Benjamin sobre o "tempo de agora" pode ser aproximada ao a posteriori freudiano: só posteriormente, o presente, tornando-se passado, ganha uma nova significação. O passado nada mais é do que a apropriação de uma reminiscência por parte do sujeito.
Segundo Gagnebin (1994), nos textos de 1930, o enfraquecimento da experiência no contexto capitalista moderno, apontado por Benjamin, está relacionado ao esfacelamento do social na medida em que a vivência (Erlebnis) não é suficiente para garantir a memória da sociedade como um todo. Benjamin afirma que na sociedade capitalista moderna não existem condições para a transmissão da experiência, que deve ser compartilhada pelo narrador e o ouvinte. O capitalismo moderno, com sua estrutura de trabalho fragmentária, veio impossibilitar uma comunidade de vida e de discurso na medida em que acelera o tempo e não permite uma sedimentação progressiva das experiências e da palavra. Portanto, com a emergência do pensamento capitalista, tivemos o declínio da tradição e da memória, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligada ao trabalho e ao tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e linguagem. Sennett (1999) aponta para a radicalização dessas questões na atualidade. Segundo ele, na época do chamado "capitalismo burocrático", a experiência de cada um se acumulava física e materialmente, e a vida era construída numa narrativa linear que apontava para um amanhã. Ainda, segundo as palavras de Sennett:
O sinal mais tangível dessa mudança talvez seja o lema 'Não há longo prazo'. No trabalho, a carreira tradicional, que avança passo a passo pelos corredores de uma ou duas instituições está fenecendo; e também a utilização de um único conjunto de qualificações no decorrer de uma vida de trabalho (2004: 21).
Para o autor, o princípio de que "não há longo prazo" limita a formação de laços sociais, assim como a criação de laços de confiança. Adverte, ainda, que também no âmbito social mais amplo, a dimensão do tempo no novo capitalismo afeta diretamente a vida das pessoas. Afinal, este lema significa, conforme ressaltado acima, não se comprometer e não poder acreditar que o outro esteja comprometido. Tendo como foco a questão do trabalho, Sennett (2004) vai apontar as dificuldades com que o ser humano se defronta, na contemporaneidade, para formar uma imagem de si, levando-o a formular a seguinte indagação: "Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?" (2004: 27).
Retomando Benjamin (1936/1994), a partir da relação existente entre experiência (Erfahrung) e a transmissão da palavra, uma reconstrução da experiência deve ser acompanhada de uma forma de narrativa que regate a arte de contar.
Na narrativa alegórica a abertura se apoia na profusão de sentidos que tem lugar devido a seu não-acabamento essencial. Nesse tipo de narrativa um texto aponta para outro; uma história desencadeia outra. Há um grande destaque para a interpretação. A história admite interpretações diferentes e, portanto, permanece aberta. A narrativa antiga tem esse caráter de alegoria, ancorando- -se na experiência (Erfahrung).
A narrativa moderna é referida à experiência vivida isolada ou ao que Benjamin conceitua como vivência (Erlebnis). É representada pelo romance e a informação jornalística (narrativa literal), que são pautados pela busca da verdade. Assim, o herói da modernidade busca sua verdade. Anteriormente, a existência seguia regras determinadas e reconhecidas por todos. O sujeito moderno busca no romance o que não é encontrado na sociedade: o sentido explícito e reconhecido do existir. Enquanto a narrativa antiga estava baseada na abertura para sentidos diversos, o romance está baseado na conclusão, no sentido final. A narrativa antiga mantinha um olhar para o passado que, atualizado, era um "espaço de possibilidades de sentido" e abertura para o novo. A modernidade, sem a certeza da ordem da razão sobre o passado, lança o olhar para o futuro. Sendo assim, é a experiência vivida que funda o sujeito moderno angustiado com o existir; com um fim último para sua existência. Experiência com o passado é abertura e, para Benjamin, cada um deve construir uma experiência com o passado. Benjamin propõe que se busque sentidos no passado através da interpretação. Isso é o "tempo do agora". O presente é uma atualização do passado. Isso é próximo à ideia de posterioridade em Freud, que, assim como Benjamin, preza pela abertura do sentido. Sem essa noção, não seria possível a construção de todo arsenal psicanalítico baseado na interpretação. O funcionamento do inconsciente, demonstrado no capítulo VII de A Interpretação dos sonhos (1900), pressupõe a sobredeterminação, que nada mais é do que a abertura do sentido. O aparelho psíquico de interpretação segue o método alegórico. A psicanálise produz um sujeito com uma narrativa alegórica. Dizemos "produz" porque o sujeito do inconsciente é produzido na clínica e ele só passou a ter lugar em resposta à crise da modernidade. O sujeito moderno é aquele do fim da narrativa. Daí a psicanálise surge com uma proposta de construção de narrativas sobre si mesmo. Narrativas essencialmente alegóricas.
Nesta perspectiva, a literalidade na clínica e na cultura se apresenta enquanto forma discursiva desde os tempos de Freud. Constatamos essa narrativa no delineamento freudiano sobre a neurose traumática em 1920. Em Ferenczi, temos a literalidade presente na teoria sobre o trauma patológico e buscamos mostrar que esta forma narrativa é, de fato, uma resposta ao choque. Assim, admitimos a narrativa literal como uma possível conseqüência dos dois tipos de trauma: uma suspensão do tempo. A literalidade, em Benjamin, aparece exprimindo a experiência vivida, solitária, pontual. Ela pertence ao presente, sem remetimento ao passado e à tradição. Não há nenhuma inserção no "tempo do agora", quando o presente contém uma história e é uma atualização do passado. A experiência vivida aponta para o futuro, para o desvelamento de um sentido único. A palavra pretende a univocidade, não é polissêmica.
E a questão atravessa o tempo: a clínica psicanalítica hoje
Investigando as modalidades de temporalidade, presentes no processo de subjetivação em Freud e Ferenczi, encontramos um tipo de temporalidade: a presentificação, comum no choque traumático. Essa temporalidade é expressa através da repetição e da literalidade. O discurso do traumatizado não é rico em metáforas, me, repleto de alegorias. Ao contrário, é uma narrativa literal, dura, sem eufemismos. Em Freud, essa narrativa aparece no texto de 1920 com os neuróticos de guerra. Em Ferenczi, o tempo presentificado, em que o sujeito se encontra, coloca em cena a narrativa literal, tanto no setting analítico quanto nos sonhos e sintomas. Pretendemos sustentar que essa narrativa é uma resposta à catástrofe e que pode ser engendrada frente a qualquer tipo de trauma; inclusive, traumas estruturantes.
Desta forma, entendemos que o choque traumático estaria no registro do tempo presentificado e produziria este tipo de narrativa literal. De maneira geral, temos que a literalidade é consequência de um tempo presentificado. Este, por sua vez, está relacionado à compulsão à repetição. Podemos fazer uma aproximação entre a literalidade e a compulsão à repetição, pois ambos são mecanismos que buscam promover uma primeira ligação (Bindung).
mecanismos que buscam promover uma primeira ligação (Bindung). Esse modalidade narrativa não aponta necessariamente para uma configuração traumática organizadora da subjetividade, nos termos propostos por Ferenczi em relação ao trauma desestruturante (1933/1992). O que encontramos na narrativa literal é o esvaziamento do eu, a perda da autenticidade. Assim, ela se apresenta em diferentes configurações subjetivas. O trauma desestruturante ferencziano (FERENCZI, 1933/1992) produz uma constituição subjetiva defensiva que se dá através da clivagem. Essa teoria do trauma em Ferenczi remete o sujeito a cenas literais e clivadas, onde ele não se reconhece e guarda lembrança do ocorrido como impressões corporais (FERENCZI, 1873- 1933/1990). O que marca o trauma desestruturante é a perda da certeza de si. No choque traumático descrito por Freud (1920/1996) não há perda da certeza de si; não há a produção de uma forma particular de organização psíquica. O trauma em 1920 (FREUD, 1920/1996) inaugura uma nova dualidade pulsional no plano psíquico, quando pulsões de vida e pulsões de morte trabalham imbricadas. Os efeitos das pulsões de vida são agregadores e os das pulsões de morte desagregadores. A figura da compulsão à repetição é um bom exemplo. Há a repetição daquilo que é irrepresentável e que denominamos pulsão de morte. Mas esse movimento já é uma tentativa de inscrição e, sendo assim, há um esforço da pulsão de vida nesse sentido. A narrativa literal seria da ordem desse esforço da pulsão de vida. Pretendemos trabalhar com a ideia de que essa narrativa literal é uma produção subjetiva que visa integrar impressões, cenas e afetos. Ela estaria relacionada à repetição do inominável que visa ligar a excitação.
Apontamos que a literalidade seria uma maneira de lidar com o choque a fim de estabelecer uma ligação entre a predominância desta modalidade narrativa na atualidade e a indicação de Seligmann-Silva (2000) sobre a inclusão do choque no cotidiano. Conforme Seligmann-Silva (2000), tratar a realidade como catástrofe implica repensar o estatuto da representação: "com a nova definição da realidade como catástrofe, a representação, vista na sua forma tradicional, passou ela mesma, aos poucos, a ser tratada como impossível" (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.75). Nesta perspectiva, buscamos uma concepção de psiquismo que inclua registros diferentes do representativo. Afinal, o evento catastrófico, da ordem do choque traumático, não se inscreve psiquicamente como memória através da representação.
Hoje, quando se fala em "novas formas de constituição subjetiva" ou "novos sintomas", os sintomas relacionados à pulsão de morte, ao choque, à compulsão ou à passagem ao ato ganham destaque. Além disso, muito se fala na perda de um mundo rico em fantasias, quando o sujeito pode se imaginar ocupando outros lugares, fazer projetos para o futuro, reavaliar seu passado, enfim, romancear a vida. Nossos pacientes trazem frequentemente um mundo vazio, de solidão e depressão. São pessoas que não aprenderam a conversar com elas mesmas. Nestes termos, a vida psíquica, atualmente, encontra-se numa encruzilhada entre os sintomas somáticos e a transformação dos desejos em imagens (KRISTEVA, 2002). Os sintomas somáticos não dizem nada ao sujeito. Ele nem se interroga sobre isso. É algo exterior ao sujeito, que vem de fora e não tem sentido. E as imagens capturam o desejo, subtraindo seu sentido. A imagem oferecida pela mídia provoca o desejo e logo lhe oferece um objeto. Com esta perspectiva Kristeva afirma (2002):
(...) pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os homens e mulheres de hoje economizam essa representação de sua experiência a que chamamos vida psíquica (...) Não se dispõe nem do tempo nem do espaço necessários para constituir uma alma (KRISTEVA, 2002, p. 14).
Neste contexto, essas pessoas nos apresentam o mundo através de um discurso por imagens, que parece sem afeto, sem interiorização, sem interpretação. Um tipo de narrativa que nos remete ao tempo presentificado ou "tempo do instante": aquela cena narrada existe no instante que é descrita e não tem um passado, um enredo, não se associa a nenhum pensamento, nenhuma ideia. Podemos ter uma primeira impressão de que se trata da resistência, porém todo o tratamento segue assim e logo nos damos conta que aquela forma que nos parece tão estranha é a forma daquele sujeito de falar de si.
Mas, por que denominar essa narrativa de literal? Bem, a literalidade é a insistência de se compreender ao pé da letra. E compreender desta maneira é semelhante a decifrar. Logo, é a inclusão de cada detalhe de algo novo em nosso mundo. Cada detalhe daquilo que não tinha nome. Tendo um nome, ganha um contorno, faz parte da memória enquanto seqüência de ideias. No entanto, a literalidade exclui a possibilidade de metaforizar. Daí a necessidade da referência a cenas imobilizadas no tempo presente.
Pretendemos mostrar que nessa narrativa literal existe a tentativa de integrar as cenas, sensações, ou melhor, as impressões com os afetos e formar um texto. Assim, compreendemos que a literalidade estaria, sobretudo, no registro das impressões sensíveis e o sujeito fala sobre sua vida a partir de cenas que contém ou remetem a essas impressões, para que elas sejam significadas, para que possam compor uma história. Por isso esse sujeito procura a análise e, muitas vezes, não desiste de seu tratamento mesmo quando não tem o que dizer ao analista além de, por exemplo: "O tempo está chuvoso hoje..." Ou quando esse sujeito diz claramente: "Não sei como é que eu sinto, não sei o que é amor, gostar, ter raiva... Só sei que às vezes o coração bate mais forte". Se significar os afetos não é possível, se não é possível fazer um texto sobre si mesmo, falar de emoções e ansiedades, o sentimento é de não ser autêntico.
Essa configuração, apesar de distante do ideal de sujeito psicanalítico referido ao conflito, não é estranha ao contexto social da atualidade. O mundo atual concebido como o mundo do curto prazo, do capitalismo flexível, da velocidade da informação, não confere um grande valor à narrativa de uma história, entendendo-se, com isso, o que permite ao sujeito se representar para o outro e para si próprio (MONTES; HERZOG, 2005). Configuração que nos conduz a indagar se, hoje, o discurso do sujeito, não apontaria muito mais para um texto imagético, no sentido de um discurso que remete à descrição de imagens sem conexão entre si:
Na experiência analítica, o texto imagético se sobressai por meio da descrição minuciosa de um cenário que captura a linguagem em uma concretude espacial, delimitando uma narrativa muito distante do que propõe o convite freudiano à associação livre (PINHEIRO; MARTINS, p. 59).
Alinhavando...
De acordo com Benjamin (1936/1994), desde o início da modernidade estamos diante de um processo que põe fim à narrativa, que é o da desvalorização da experiência (Erfahrung). Transpondo para termos psicanalíticos, sugerimos que a experiência pode ser entendida como o processo de subjetivação, visto que também só se realiza através do outro e da cultura. Se pensarmos nos termos do narcisismo, constatamos a necessidade desse outro para que um sujeito seja inventado. E esse outro está imerso numa cultura, identificado com diversos outros.
A vivência ou experiência vivida (Erlebnis) é pontual, não faz referência ao outro, ao social, à cultura. É representada pelo sujeito isolado em busca de uma verdade que dê sentido à vida. Benjamin atrela a narrativa literal, informativa e rasteira à vivência em contraposição à narrativa alegórica da experiência.
Diante deste quadro lançamos três questões que, direta ou indiretamente, rondam o campo psicanalítico. A primeira diz respeito à ideia de fim da narrativa: "a narrativa teve fim?" A segunda questão, versa sobre a literalidade: "a literalidade não é uma forma narrativa?" E a terceira envolve as condições de possibilidade para a psicanálise ser exercida: "Por que falar em fim da psicanálise no contexto contemporâneo?"
Ora, a psicanálise teve início na modernidade, inserida naquele panorama que, segundo Benjamin, apontava para o fim da narrativa. A modernidade, produzindo o sujeito da vivência (Erlebnis), inaugurou um tipo de sofrimento em torno do existir que propiciou a emergência da psicanálise. Portanto, a derrocada da narrativa alegórica não pode estar relacionada ao fim da eficácia da psicanálise. Sobre as duas primeiras questões, escolhemos tomar a literalidade como uma forma narrativa e resolvemos positivá-la, ao invés de apenas contrapô-la à narrativa alegórica. Logo, consideramos não estarmos diante do fim da narrativa, mas frente a uma predominância da narrativa literal, o que é justificado pelo contexto social em que vivemos.
Sendo assim, precisamos resgatar a literalidade como uma forma narrativa, nos textos de Freud e Ferenczi. Em ambos, essa forma narrativa expressa o tempo presentificado em que se encontra o sujeito. Em Freud, através da figura da compulsão à repetição e do choque, que podem estar presentes em qualquer configuração psíquica. E em Ferenczi, como uma resposta ao trauma, sendo que o trauma desestruturante produz uma forma peculiar de subjetivação.
A compulsão à repetição em Freud inaugura um tempo imóvel, presentificado: a forma menos dúbia, onde podemos identificá-la é no sonho traumático. Esse sonho não traz prazer para nenhuma instância psíquica. Ele repete o mesmo: o trauma. Repete na tentativa de dominá-lo, de ligá-lo, representá-lo. Ou, ao menos, repete para livrar o sujeito da surpresa e gerar a ansiedade, que o protege do choque. Essa repetição é diferente daquela encontrada no jogo infantil do fort-da, na transferência e na própria neurose. O que caracteriza a compulsão à repetição no sonho traumático é a pulsão de morte e esta parece presente em silêncio nesses outros fenômenos. Porém, nesses outros fenômenos, verificamos a existência de algum tipo de prazer. Na brincadeira infantil, que repete a experiência desprazerosa, há o prazer de dominar a situação; na transferência há a necessidade da repetição do sintoma como uma experiência contemporânea, dirigida à figura do analista. A neurose, que tende a repetir o sintoma, torna-se neurose de transferência. A repetição da neurose causa desprazer para o ego, mas gera prazer para outra instância: o inconsciente. Esse entrave é objeto de tratamento na análise. E a partir de 1920 compreendemos que tal entrave é gerado pelo conflito das pulsões de vida e de morte. É o embate que temos na repetição de uma maneira geral. Nesse palco, há prazer e sofrimento. Porém, no caso do sonho traumático só há desprazer e sofrimento. Mais do que sofrimento, que pode ser colocado em palavras, há um estado de choque que impossibilita que o tempo siga seu curso.
Mas o que é sofrimento, desprazer? Qual a diferença entre esses termos e o choque traumático? Afinal, não basta dizermos que o choque produz desprazer. Ele parece ser mais do que isso.
Apesar de, no texto de 1920, Freud privilegiar o aspecto econômico do aparelho psíquico, ele se questiona sobre o papel da qualidade no diferencial prazer/desprazer. Neste contexto, sugere a importância da percepção temporal: o tempo de espera pela satisfação, que só pode ocorrer numa dimensão do vivido singular (Reis, 2004). Em 1924, em O problema econômico do masoquismo, Freud (1923b/1996) retoma esta questão, lembrando que o estado de excitação sexual constitui o exemplo mais notável de um aumento prazeroso de estímulo. Conclui, mais uma vez, que o prazer e o desprazer não podem ser referidos somente a um aumento ou diminuição de uma quantidade, embora este seja um fator importante. E coloca que tais sentimentos dependem de alguma característica qualitativa: talvez o ritmo, a sequencia temporal de mudanças, elevações ou quedas na quantidade de estímulo. Para Freud, desde o texto do Projeto (1895a/1996), a qualidade está relacionada ao fator tempo; ao período de espera entre os estímulos. A novidade trazida pela segunda teoria das pulsões é que o fator traumático rompe com a percepção temporal e instaura um tempo único e imóvel que somente se repete (REIS, 2004). Desta forma, o choque impossibilitaria a existência de um período de espera entre os estímulos, o ritmo. O mesmo estímulo se repete incessantemente. Segundo a sugestão freudiana, não há, neste caso, espaço para a qualidade. Assim, não há espaço para qualquer diferencial. As diferenças se apagam. O sujeito é invadido por um quantum de energia insuportável que rompe qualquer barreira de proteção. Não há como dominar, capturar e dispor essa energia numa determinada ordenação própria do aparelho. Ela não será transcrita para a ordem psíquica, não se transformará em representação. Ela se presentifica na repetição do trauma e por isso o esforço desse sujeito é no sentido de esquecer o evento traumático; afinal, uma das sintomatologias do trauma é a literalidade da recordação da cena traumática. Mas esse não é o único trabalho do sujeito diante do trauma. Primeiramente, ele precisa integrar a cena de modo articulado à sua vida a fim de se desviar da patologia e somente assim será possível esquecê- la. Mas como representar algo que está para além da capacidade imaginativa? (SELIGMANN-SILVA, 2000) Como narrar um evento na temporalidade da experiência em termos benjaminianos, quando este evento transborda nossos sentidos e ameaça a integridade narcísica?
Diante destas questões, observamos que, ao propor o conceito de pulsão de morte, Freud contribui para uma melhor compreensão sobre as origens e o funcionamento do psiquismo. No texto de 1920 fica bastante claro que "a pulsão exige uma ação psíquica para ser transcrita para a ordem psíquica. Podemos dizer que essa ação é a introjeção das qualidades percebidas e apreendidas pelo psiquismo infantil (...)" (REIS, 2004, p. 45). Os estímulos endógenos e exógenos, capturados pelo aparelho psíquico, passam a compor uma ordem de sentido: a realidade psíquica. Aquilo que não é ligado permanece enquanto um resto, uma energia dispersa, denominada pulsão de morte.
No entanto, devemos lembrar que não podemos reduzir a questão da representatividade desta maneira. Não há apenas o representado, figurando a pulsão de vida, e o irrepresentável caracterizando a pulsão de morte. Entre o inscrito e o não-inscrito no aparelho psíquico, temos os signos de percepção apontados por Freud na Carta 52 (1896/1996). O sistema mnêmico, responsável pela inscrição psíquica, é composto de três registros. Os signos de percepção, concebidos como marcas ou impressões, são as primeiras transcrições da percepção.
Nesta direção, cabe adotarmos o conceito ferencziano de "introjeção", para falarmos sobre o que é apreendido pelo psiquismo, já que a introjeção abarca desde as impressões sensíveis, que estariam no registro dos signos de percepção, até as representações. A introjeção abrange todos os registros mnêmicos, alargando o Eu com afetos e palavras. Assim como Freud propõe o corpo sensório no início do sistema de memória na Carta 52 (1896/1996), Ferenczi considera as percepções corporais como o início do processo de introjeção no bebê. E quando Ferenczi fala em atribuição de sentido, também se refere ao mesmo processo: a introjeção. Portanto, se a introjeção se refere ao que é apreendido psiquicamente, o que não é introjetado é da ordem da pulsão de morte. Por isso o desmentido, impedindo a introjeção, é da ordem da pulsão de morte. É desagregador e carrega toda a sua violência, diante da qual o sujeito sucumbe. A confusão de línguas em si é estruturante. É uma catástrofe necessária, parte da constituição subjetiva. É o outro quem introjeta novos sentidos. Esse outro é o adulto, que está num registro diferente do que está a criança. A linguagem do adulto é a da paixão, enquanto a criança domina a linguagem da ternura. No trauma patológico, o desmentido é o fator decisivo. A palavra do trauma não é recalcada, não entra numa cadeia inconsciente. Ela é clivada e, dessa criança, é retirada a possibilidade da polissemia. É o outro quem tudo sabe e ela perde a certeza de si. A palavra torna-se literal e fica gravada no corpo literalmente (PINHEIRO, 1995).
Para abordar essa estranha e familiar relação entre o corpo e as palavras, lançaremos mão da diferenciação proposta por Dolto (2000) entre o esquema corporal e a imagem do corpo. O esquema corporal é a realidade de fato: nosso corpo biológico, que se relaciona com o meio físico. A imagem corporal é o corpo da linguagem, o corpo narcísico, que contém uma história singular. O esquema corporal oferece suporte à imagem do corpo para que esta entre em contato com o outro. Ele permite uma relação "linguageira" com os outros. A imagem corporal é memória inconsciente e, ao mesmo tempo, é atual e se relaciona com o mundo através de mímica, gestos, etc. Ou melhor, é a imagem corporal que empresta plasticidade ao esquema corporal. O esquema corporal é o vivido pontual do corpo; a imagem corporal comporta uma história e lança mão de um sistema de memória. Por isso, a mímica "conversa" diretamente com a imagem do corpo. Segundo Dolto, de uma maneira geral, a compreensão de uma palavra depende simultaneamente do esquema corporal e da imagem do corpo. O esquema corporal captaria o som e a imagem do corpo traduziria a palavra em termos singulares. Sobre essa tradução, Dolto nos diz que quando duas pessoas se referem à cor azul, não sabemos a que tom de azul cada um está se referindo. Lógico que a palavra tem sentido simbólico em si mesma. Mas o esquema corporal não tem como compreendê-la, caso ela não faça parte do repertório da imagem corporal. É o caso da diferença de línguas entre adultos e crianças, na teoria ferencziana. A linguagem adulta da paixão não faz parte do repertório infantil; não é compreendida pela imagem do corpo da criança. Assim sendo, se não é introjetada, não entra numa cadeia simbólica e fica retida no corpo. Antes de a palavra ter sentido, ela precisa tomar corpo. A linguagem é uma continuação da elaboração que começa no corpo, nossa primeira referência. O bebê apreende o mundo através de uma comparação de tudo o que vem de fora com suas percepções, sensações, movimentos (FERENCZI, 1913/1988). O trauma, na medida em que transborda a capacidade do sujeito lidar com sua intensidade, impede que a palavra tome corpo, sendo ele desestruturante ou não.
Se pensarmos a partir da perspectiva de Seligmann-Silva (2000) e Sennett (1999), tratando o choque não mais como um estado de exceção, mas como um fator do dia-a-dia, devemos pensar quais respostas o sujeito desenvolve para lidar com tais traumas. Nem todos transformam esses choques em traumas patológicos, em termos ferenczianos. É nesta direção que Ansermet discorre sobre o tema:
Sedução, agressão (...), doença grave, operação cirúrgica, que lugar tais fatos marcantes ocupam na história do sujeito? Um traumatismo pode ser também o resultado de uma coerção psíquica prolongada, de uma situação de alienação ou mesmo de um fato não muito importante, amplificado em razão de sua sujeição à fantasia (ANSERMET, 2003, p. 137).
A forma como cada um vai lidar com o trauma é muito particular. Depende da possibilidade de elaboração por parte do sujeito e do acolhimento do mundo externo. O que vai acontecer, a partir daí, tem relação direta com a maneira como o sujeito afeta e é afetado pelo mundo. Quando o trauma desestruturante ocorre, as saídas encontradas são a identificação com o agressor e o apelo à memória corporal. São tentativas de introjetar e de dar sentido ao que foi vivido. Mas se esses choques não são seguidos do desmentido, não há a perda da certeza de si e o trauma não é desestruturante. A forma que o sujeito encontra para lidar com tais choques também é através da introjeção. Para isso, ele pode lançar mão, por exemplo, de sintomas remetidos à memória corporal ou fazer uso da narrativa literal. Como no sonho, o que temos aqui é uma tentativa de cura; uma primeira captura ou uma primeira forma de ligar as impressões a imagens (figurabilidade). Nesse sentido, a literalidade é estruturante, pois está a serviço da introjeção, lembrando que esta inclui as impressões, os afetos, os objetos, as ideias e os sentidos no Eu. O choque imobiliza o sujeito no tempo presente, impedindo a experiência. Ele tem apenas a vivência do fato a ser descrito. Sem poder ser representado, o trauma permanece num primeiro registro, o das impressões sensíveis.
Trata-se de uma concepção de aparelho psíquico que inclui outros registros, não somente o registro da representação. E, desse modo, inclui a literalidade da palavra e do corpo, enquanto uma narrativa que expressa uma modalidade de tempo presentificado. Portanto, precisamos pensar no domínio psíquico de maneira mais abrangente, incluindo o verbal e o não-verbal; o dizível e o indizível. Devemos olhar para o corpo, para os pequenos gestos, escutar aquilo que, a princípio, não parece uma narrativa. Se considerarmos a narrativa em seu sentido tradicional (a narrativa alegórica), a literalidade gerada pelo trauma não é uma narrativa porque não há representação sem metáfora e a cena traumática permanece imutável no registro literal, sendo impossível metaforizá-la (SELIGMANN-SILVA, 2000).
No intuito de empreender uma leitura que considera a literalidade uma forma narrativa que não se reduz à informação, retomaremos Benjamin, no que este apresenta Kafka como um dos maiores narradores modernos, tal como Proust (GAGNEBIN, 1994). Kafka, apesar de fazer uso da literalidade, representa uma "experiência" única: a da perda da experiência, da desagregação da tradição e do desaparecimento do sentido. E em Kafka não encontramos a totalidade do sentido, mas trechos de histórias e sonhos. Fragmentos que tratam da perda da identidade e da univocidade da palavra: uma ameaça de destruição e abertura para a possibilidade de novas significações (GAGNEBIN, 1994). Assim também podemos descrever o embate das pulsões de vida e de morte. Desagregação e reunificação. Desligamento e ligação. É o embate do sujeito moderno, que agora se sobressai com outra roupagem. Não se mascara de drama romântico, não tem o tempo da tragédia. Aparece como um drama atual que pode se desenrolar no corpo, no horror da perda da certeza de si ou na busca de um sentido através da narrativa literal.
Benjamin critica severamente a literalidade, relacionada à vivência (Erlebnis). Mas, ele próprio sublinha que Proust mostra como a experiência vivida, particular e privada (Erlebnis), pode se transformar em uma busca universal (GAGNEBIN, 1994). A noção de memória involuntária de Proust mostra como é possível essa transformação. A memória involuntária intervém em função dos signos sensíveis, a apreensão de uma qualidade sensível como signo. Ela nos torna sensíveis aos signos e, em momentos privilegiados, nos permite interpretar alguns desses signos. Para Proust, as reminiscências são metáforas da vida porque a memória involuntária une dois momentos, vinculando-os a duas sensações através da identidade existente entre elas. E a memória involuntária só é capaz de realizar esta vinculação através dos signos sensíveis. "Os signos de memória constantemente nos preparam a armadilha de uma interpretação objetivista, mas também, e sobretudo, a tentação de uma interpretação inteiramente subjetivista" (DELEUZE, 1987, p.64). A memória involuntária, desta forma, transforma uma experiência vivida solitária (Erlebnis) numa busca pela eternidade; pelo tempo perdido: o passado puro; o ser em si do passado. Não pretendemos aqui realizar um estudo sobre o estatuto do tempo em Proust, mas apenas indicar, a partir da forma como Walter Benjamin (1929/1994) interpretava sua obra, que Proust conseguiu elevar o que seria uma vivência (Erlebnis) – um momento solitário, um instante – à categoria de experiência (Erfahrung), suscitando significações e afetos que podem ser partilhados a partir de um evento particular. Proust parte de uma vivência (Erlebnis) para abordar um tema universal: o tempo.
Talvez possamos dizer que Freud também procurou transformar a experiência vivida em uma experiência humana universal, ao postular o complexo de Édipo tal como colocou na carta a Fliess (1897):
Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua pressuposição do destino; e podemos entender por que os "dramas do destino" posteriores estavam fadados a fracassar lamentavelmente. Nossos sentimentos opõem-se a qualquer compulsão arbitrária e individual [do destino], tal como é pressuposto em Die Ahnfrau [de Grillparzer]etc. Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual (FREUD, 1897/1996, p. 316-317).
A princípio, a experiência coletiva (Erfahrung), não tem nenhuma relação com a vivência particular e privada. Mas podemos escutar os dramas privados, incluindo-os num contexto maior e, quiçá, resgatar a experiência subjetiva no sentido benjaminiano. Como afirma Seligmann-Silva (2000), a passagem do "literal" para o "figurativo" é terapêutica. No entanto, nem sempre essa transformação é possível. Apontamos nesse artigo que, nos momentos em que o abandono da literalidade não é possível, devemos trabalhar com o material de que dispomos e positivá-lo. Foi o que fizeram Freud e Ferenczi.
Portanto, interrogamos o estatuto das "novas subjetividades" como uma concepção atual, necessária para assegurar o lugar da psicanálise na sociedade de hoje. Através da questão do tempo e da narrativa, esse artigo pretendeu articular teoria, clínica e cultura a partir do arsenal psicanalítico freudiano e ferencziano. Afinal, o que precisamos é dirigir nosso olhar para a cultura e para o que esta produz, compreendendo a clínica psicanalítica como um dado cultural e cada sujeito como único. Nesse contexto, podemos afirmar a contemporaneidade do sujeito freudiano e seu eterno caráter de "novidade". Ele está sempre referido a seu tempo e, concomitantemente, constrói uma marca singular. É o que nos ensina a obra de Freud, tanto nos artigos metapsicológicos, quanto nos textos denominados culturais. Assim, nada mais pertinente do que recorrer ao contexto cultural na tentativa de dar conta das indagações acerca do modo como o sujeito lida com os impasses que se colocam na atualidade. Afinal, a psicanálise não se ocupa de um sujeito natural, mas de um sujeito constituído a partir da relação com o outro, imerso na cultura. O contexto social afeta a própria concepção acerca da constituição da subjetividade.
No intuito de positivar a narrativa literal, sugerimos uma releitura da clínica psicanalítica, interrogando a transferência e a técnica. Afinal, se a psicanálise não se propõe a normalizar o sujeito, não deve tentar enquadrá-lo numa única forma narrativa. É preciso saber escutar a literalidade da palavra e do corpo. Sublinhamos ser necessário levar em conta que o psiquismo está para além do campo representacional. Este abarca os signos de percepção, as impressões sensíveis e a memória corporal. Nesse sentido, a transferência suscita a repetição de impressões traumáticas. Se a escuta do analista estiver pautada no dispositivo que privilegia o conflito psíquico e o recalque, não será possível perceber o que se repete. É preciso estar aberto a outro tipo de escuta, que comporta o corpo, o gesto, o tom de voz, além da palavra. A literalidade, conforme estamos compreendendo neste ensaio, pressupõe a repetição nesse registro.
A fim de versar sobre a clínica psicanalítica, compreendendo o manejo dos afetos e propiciando um campo de afetação no setting analítico, recorremos à noção ferecziana de tato. Conforme Ferenczi (1928), o tato permite ao analista saber o momento de interpretar, aguardar e calar. Através do tato, o analista pode se pôr atento às forças da resistência. Ter tato é poder "sentir com". É se colocar no lugar do outro a partir da lógica de funcionamento desse outro, e não a partir de sua própria subjetividade. O "sentir com" é estar em sintonia afetiva e admitir que as impressões sensíveis são imprescindíveis no circuito da transferência. Esta afirmação é importante visto que coloca a necessidade, primeiramente, do testemunho de um analista catalisador que se promova uma "costura" entre todas as imagens e afetos circundantes do mundo do sujeito, a fim de produzir uma narrativa de vida.
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Endereço para correspondência:
Fernanda Ferreira Montes
e-mail: fernandamontes@globomail.com
Tramitação: Recebido em 24/07/2012
Aprovado em 04/09/2012
* Psicanalista, doutora pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ, profa. adjunta do Departamento de Psicologia/UFF-PURO, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC/UFRJ).