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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versión On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.36 no.31 Rio de Jeneiro dic. 2014

 

ARTIGOS

 

Sintoma infantil: efeito da transmissão psíquica?

 

Child symptom: effect of psychic transmission?

 

 

Luciana Jaramillo Caruso de AzevedoI*; Terezinha Féres-CarneiroI**; Samuel Lincoln Bezerra LinsI***

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o intuito de refletir acerca do conceito de transmissão psíquica entre gerações e de sua contribuição na formação dos sintomas infantis. Em função da articulação estrutural entre o sintoma da criança e o discurso e desejo parentais, pode-se destacar que o sintoma infantil responde a uma demanda inconsciente dos pais. No entanto, não se pode perder de vista que o sintoma também indica uma escolha do sujeito. Assim, neste trabalho é discutida a importância de considerar a sintomatologia infantil para além da perspectiva médica.

Palavras-chave: Sintomas infantis, teoria psicanalítica, transmissão psíquica.


ABSTRACT

The present article aims at reflecting on the concept of psychic transmission among generations and its contribution to the constitution of children's symptoms. Due to the structural articulation between the child's symptom and the parental discourse and desires, we can put in relief that a child's symptom responds to an unconscious parental demand. However, one cannot lose sight of the notion that the symptom also indicates a subject's choice. Hence, in this work we discuss the importance of considering child's symptomatology beyond the medical perspective.

Keywords: Child symptoms, psychoanalytical theory, psychic transmission.


 

 

A partir do trabalho psicanalítico com crianças, pode-se observar que são frequentes as queixas relacionadas a uma grande variedade de sintomas. No cenário contemporâneo, os sofrimentos têm sido codificados em termos de uma nomeação própria do discurso médico e se socializam amplamente, passando a ordenar a relação do sujeito com a sua subjetividade. Nesse sentido, cabe pensar que os procedimentos de medicalização surgidos nos cuidados com a população adulta foram estendidos também às crianças. Contudo, a prática psicanalítica com crianças se destaca por ser uma área do conhecimento que apresenta significativas especificidades, incluindo a abertura de espaço para a escuta dos pais nas entrevistas preliminares e o trabalho com eles, quando necessário. Assim, por estar incluído o trabalho com os pais e por parecer uma alternativa diante da medicalização desenfreada, se faz necessário um constante aprofundamento teórico das peculiaridades da clínica psicanalítica infantil. No âmbito desta clínica, o conceito de transmissão psíquica corresponde a um recurso teórico de grande valia a ser investigado.

De acordo com Zornig (2010), uma das especificidades encontradas nessa prática não se deve ao fato de as crianças não terem a internalização completa de seu superego ou ter a sua verbalização incipiente, mas há articulação estrutural entre o sintoma infantil e o discurso e o desejo parentais. Outra importante característica do atendimento infantil é a abertura de espaço para a escuta dos pais, tanto nas entrevistas preliminares quanto no intercurso do tratamento (CARAM, 2003).

Já no início da década de 1980, quando ainda predominava, no campo da psicanálise infantil, a postura de o analista da criança não ter contato com a família, Féres-Carneiro (1980) aponta, em seu estudo a respeito da relação conjugal e suas repercussões no comportamento dos filhos, que - na maioria das vezes - os distúrbios apresentados pela criança encontram suas raízes na relação dos pais. A autora ressalta, inclusive, que uma intervenção com o casal pode ser suficiente para que haja uma remissão de grande parte dos sintomas apresentados pelos filhos. Além disso, na atualidade, é fundamental que possamos refletir a respeito do lugar designado à criança diante das diversas formas contemporâneas de arranjos familiares, como as famílias homoparentais, famílias monoparentais e famílias recasadas (FÉRES-CARNEIRO; ZIVIANI, 2010).

É notório que a criança precisa de adultos na função de pais. A psicanálise freudiana enfatiza a importância das primeiras relações objetais e do narcisismo parental em relação ao filho. A criança, mesmo antes de nascer, já existe no discurso e na fantasia dos pais. Sua entrada, na ordem da cultura e da linguagem, depende do lugar que lhe é designado a partir das expectativas e desejos parentais. O referido lugar humaniza a criança e garante sua sobrevivência. Por sua dependência dos adultos, no exercício das funções parentais, é frequente que o sintoma da criança esteja atrelado à sua relação com seus pais. Sendo assim, o narcisismo e o investimento dos pais têm uma função determinante na construção da subjetividade da criança e na produção de seus sintomas (ZORNIG, 2010).

Em função da necessidade constante de aprofundamento teórico, que a prática clínica com crianças demanda e das suas particularidades, este artigo tem o objetivo de analisar a relação entre a transmissão psíquica e a constituição dos sintomas infantis.

 

O conceito de transmissão em Freud

Desde os primórdios da psicanálise, a transmissão da vida psíquica é um tema a ser considerado e estudado. A propósito do texto freudiano de 1908, A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna, Kaës (2005) afirma que o interesse de Freud sobre a transmissão psíquica manifesta-se a partir do momento em que ele aborda a questão recorrente da transmissão da neurose.

Ao longo de sua obra, Freud aborda a questão da transmissão em textos diversos, sendo possível distinguir concepções diferentes. No que se refere à transmissão intrapsíquica, podemos citar o texto Interpretação dos sonhos (1900), que indica a transmissão de uma instância psíquica para outra. Todavia, em seu texto denominado Rascunho L, Freud (1969 [1892-1899]) postula que as fantasias combinam o que foi vivenciado com o que foi ouvido, o passado da história dos pais e antecessores com o que é presenciado pelo sujeito. Desse modo, o que foi ouvido por cada sujeito resulta no produto de uma combinatória entre o ouvido e o visto/vivenciado por outras gerações que, transmitido, se converte em trama fantasmática familiar. As diferentes articulações das cenas vão se ligando e formando um tecido, como uma produção conjunta, na qual as cenas vivenciadas por alguns são portadas por outro (SEVERO, 2006).

Ainda em Totem e tabu, Freud distingue entre a transmissão por identificação aos modelos parentais e a transmissão constituída por traços mnemônicos das relações com as gerações anteriores. O primeiro processo refere-se à história e o segundo à pré-história do sujeito. Inclui-se na pré-história a transmissão de objetos perdidos por aqueles que nos precederam e que nos são transmitidos enlutados, mesmo que parcialmente (KAËS, 1998).

Em Introdução ao narcisismo, Freud (1914) postula que o amor parental nada mais é do que um retorno e reprodução do narcisismo dos pais. Mediante as suas aspirações, colocam o filho em um lugar ideal. Assim, podemos pensar que é transmitido à "sua majestade o Bebê" a tarefa de realizar o sonho dos pais. A partir dessa perspectiva, Kaës (1998) mostra que o infante é o depositário, o servidor e o herdeiro dos sonhos e desejos dos pais. É ele que dará lugar e sentido a estas predisposições que o precedem, que o violentam, mas que são as condições de sua constituição propriamente psíquica.

No clássico caso clínico O homem dos lobos, Freud (1914) mostra, em algumas passagens, a influência do que é transmitido através dos ditos e das histórias familiares nas construções psíquicas do menino que, mais tarde, se tornaria seu paciente. Segundo Roudinesco e Plon (1998), a história do Homem dos Lobos é o terceiro e último grande tratamento psicanalítico conduzido por Sigmund Freud, depois do caso Dora (1905) e do Homem dos ratos (1909). Comentada inúmeras vezes por todas as escolas psicanalíticas e pelos mais diversos autores, a história do Homem dos Lobos também foi descrita pelo próprio paciente que, depois de sobreviver às duas guerras mundiais, redigiu uma autobiografia (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Segundo o conhecido caso doHomem dos lobos (1914), Freud aponta para as histórias ouvidas por seu paciente sobre a sua infância, nas quais ele é retratado como uma criança tranquila, de muito boa índole e tratável. Contudo, um dia, ao voltarem das férias, os pais o encontraram transformado. Tornara-se inquieto, irritável e violento. Inclusive, dirigindo sua hostilidade à governanta inglesa, a quem a mãe e avó atribuíam à irritabilidade do menino. No entanto, Freud acrescenta que a governanta pode ter tido apenas uma participação muito remota na sedução e nas suas consequências. Todavia, cabia incluí-la na composição imaginativa do seu paciente na medida em que, poderíamos dizer que algo era transmitido ao menino a respeito da governanta, através do discurso da mãe e da avó.

No texto Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud (1921) mostra como se efetua a passagem de um objeto individual a um objeto comum a todos os membros de um grupo. Neste texto, é mostrado que o que se transmite é feito, essencialmente, pela via das identificações. Assim, o processo implica no abandono dos ideais individuais e a colocação, no seu lugar, do ideal de ego de um outro. De outro modo, o objeto ideal comum, ligando os membros de um grupo ou de uma instituição nas suas identificações imaginárias mútuas (KAËS, 1998; BENGHOZI, 2010).

Em Moisés e o monoteísmo: três ensaios, Freud (1939) postula o conceito de herança arcaica para explicar aquilo que opera em nosso psiquismo sem que tenhamos tido a experiência direta. No entanto, embora essa herança independa da comunicação direta, visto que se refere ao não experimentado, o seu despertar estaria vinculado a uma repetição real e recente do acontecimento, seria o elo entre dois tempos (MAZZARELLA, 2006).

Na análise do caso do pequeno Hans, Freud (1909) constata o aparecimento de sintomas transitórios em quase toda criança em determinada fase, sugerindo que, ao invés de constituírem uma patologia, eles podem apontar para um momento de organização psíquica. Desse modo, a apresentação do caso Hans é um exemplo da constituição da neurose infantil, que seria o resultado da constituição do aparelho psíquico ou da instauração do recalcamento originário (ZORNIG, 2008). Freud (1926) postulou ainda que as neuroses da infância são, em geral, episódios regulares do desenvolvimento. Sendo assim, a maioria das neuroses da infância é superada espontaneamente no curso do crescimento. Nesse sentido, a propósito do caso Hans e, partindo da premissa de que no princípio da fobia está a angústia, Flesler (2012) argumenta que as várias expressões da angústia foram rebatizadas nos últimos tempos, de modo precipitado, como "transtorno de ansiedade".

 

O sintoma infantil

No âmbito da clínica psicanalítica infantil, inúmeros autores apontam para a articulação entre a demanda inconsciente dos pais e o sintoma infantil. Dolto (1988) compreende que a criança encarna e presentifica - através dos seus sintomas - as consequências de um conflito vivo, familiar ou conjugal, camuflado e aceito por seus pais. Cabe a ela suportar, inconscientemente, o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional sexual inconsciente em ação nos pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tanto mais intenso quanto mais se guarda ao seu redor o silêncio e o segredo. Logo, os sintomas infantis manifestos de impotência são uma ressonância às angústias ou aos processos reativos às angústias dos pais.

Mannoni (1988) pontua que é raro que não se perceba, por trás de um sintoma infantil, certa desordem familiar. Entretanto, não é certo que essa desordem tenha uma relação explícita com os distúrbios apresentados pela criança. O que se mostra prejudicial ao sujeito não é tanto o confronto real da criança com uma verdade penosa e traumatizante, mas aquilo que não foi claramente verbalizado, que vem a ser o seu confronto com a "mentira" do adulto. É o não-dito que assume relevo por poder ocasionar danos psíquicos. A autora destaca a importância tanto da palavra de ambos os pais como da palavra da mãe, especificamente. A posição do pai para a criança vai depender do lugar que ele ocupa no discurso materno. Dolto (2002) também ressalta a primazia da palavra e a importância do "falar à criança". A autora ratifica a importância de "falar a verdade", posto que o silêncio enganador gera angústia e, a verdade, se dita de parte a parte, permite ao sujeito construir-se e humanizar-se.

Assim, observa-se a relevância dos conteúdos não-ditos para a formação do psiquismo. Tais conteúdos podem, inclusive, favorecer o surgimento de sintomas. Seguindo essa perspectiva, com objetivo de refletir um pouco mais sobre o tema, é válido retomar a noção de segredo. Os segredos consistem em histórias não verbalizadas e repetitivas, que intrigam a nova geração, cabendo a esta o trabalho de individualizar-se frente aos enigmas que tipificam a história familiar. Por esse motivo, os segredos são a trama dorsal da temática familiar e podem atravessar gerações e desencadear sintomas transmitidos geracionalmente. Os segredos referem-se a conteúdos que foram ocultados por gerações anteriores por estarem associados à vergonha e à culpa. No entanto, algumas histórias, embora não faladas, retornam nas gerações seguintes. Dessa forma, podemos entender alguns sintomas físicos e psíquicos como sinais de algo transmitido geracionalmente (MAZZARELLA, 2006).

Em relação à sintomática apresentada pela criança, no texto Duas notas sobre a criança (1969), Lacan indica que o sintoma da criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar. Neste mesmo artigo, o autor aponta para uma função de resíduo, exercida e mantida pela família conjugal, na evolução das sociedades, que destaca a irredutibilidade de uma transmissão. No entanto, na medida em que a criança oferta o seu sintoma como resposta ao que há de sintomático na estrutura familiar, o sintoma da criança não é considerado apenas como um mero efeito do discurso dos pais. Se a criança coloca-se nessa estrutura fantasmática, podemos considerar sua implicação subjetiva como forma de responder ao desejo do Outro.

Lacan (1969) afirma que o sintoma da criança apresenta uma forma particular de articulação cuja verdade é "capaz de responder pelo que há de sintomático na estrutura familiar", representando a "verdade do par familiar". Essa primeira definição do sintoma tem a lei do interdito do incesto como uma de suas variantes, na qual se inscreve o significante paterno como aquele que conjuga a lei com o desejo. Em outras palavras, existe uma articulação significante que sobre determina o sintoma infantil e que, ao mesmo tempo, por se referir à verdade do casal parental, está ligado à metáfora paterna que lhe dá acesso à significação fálica. Nesse contexto, a criança responde com o sintoma para fazer face ao desejo materno que, desde a sua origem, está articulado à metáfora paterna (BRANDÃO, 2013).

A "verdade do par familiar", indicada por Lacan (1969), refere-se à verdade da relação entre os pais, que, mesmo um fazendo do outro seu sintoma, ele não funciona bem, ou seja, falha. Logo, a verdade do par familiar é que não há relação sexual. A 'não existência da relação sexual' é o que Lacan desenvolve, no final dos anos sessenta, a propósito do efeito da castração simbólica na partilha entre os sexos. Tal partilha divide-se em duas modalidades de gozo possíveis (todo fálico ou não todo fálico), onde se inscreve o ser falante e assinala, principalmente, a dessimetria fundamental na relação entre o homem e a mulher (BRANDÃO, 2012).

Se a mulher é tomada por um homem enquanto objeto, causa de desejo, por um lado, por outro, ela mesma, enquanto sujeito, toma a criança como objeto em sua fantasia. Ou seja, em sua fantasia, a criança da à mãe "aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua existência, aparecendo no real" (LACAN, 1969, p. 369).

Portanto, existe uma dialética, na qual a criança busca uma resposta frente ao enigmático desejo do Outro que, inicialmente localizado no desejo materno, fornece uma pista de como a criança coloca-se como objeto desejável em sua própria fantasia. A criança torna-se o objeto enganador, fazendo-se de falo imaginário, como sendo aquele capaz de saciar o que, a rigor, é insaciável, a saber, o desejo materno. Ela não sabe o lugar que ocupa neste último e, para não arriscar a sua existência subjetiva, acena para a mãe com a realidade do falo imaginário, realizando o que Lacan chama de "dialética intersubjetiva do engodo". Há um engano do lado da criança e ao mesmo tempo um engano do lado da mãe, que não pode ser completada pelo falo. Nesse jogo, a criança torna-se amável em sua fantasia, ao mesmo tempo em que, num certo limite, apazigua a mãe (BRANDÃO, 2013).

Não obstante, no mesmo texto, Lacan observa que a criança ocupa um lugar condensador de gozo da mulher. Assim, Lacan lança luz sobre um segundo tipo de articulação do sintoma da criança, ou seja, de que esta "se torna objeto da mãe e não tem outra função que a de revelar a verdade desse objeto" (LACAN, 1969, p. 370). Nesse tipo de articulação, a criança satura a falta em que se apoia o desejo do Outro materno, deixando-a "aberta a todas as capturas fantasmáticas". Dito de outro modo, a criança ocupa um lugar condensador de gozo, realizando a presença do objeto a - objeto mais gozar - na fantasia. "Ela", a criança, "aliena em si qualquer acesso possível da mãe à sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até exigência de ser protegida" (LACAN, 1969, p. 370).

Caram (2003) destaca que, para Lacan (1969), o sintoma da criança denuncia algo que vai além dela e diz respeito ao "par familiar", ou seja, a demanda dos pais implica em uma série de posições subjetivas que a criança possa vir a ocupar, fazendo dela um substituto do gozo perdido dos pais. O sujeito deve encontrar uma saída para o enunciado de seus pais, cujos desejos particulares se dissimulam na demanda. Desse modo, a criança tem que tentar preencher o lugar desejado por seus familiares (DUARTE, 2012). Sendo assim, não é de se estranhar que uma mudança na posição subjetiva da criança - provocada pelos efeitos da análise - se faça presente na estrutura como um todo, afetando os pais e provocando alterações na maneira como esses respondem ao que há de sintomático por parte deles (CARAM, 2003). Por esse motivo, ressalta-se a importância do trabalho com os pais na condução e manutenção da análise de crianças.

É importante não restringir a sintomatologia apresentada pela criança à perspectiva médica, visto que, nos últimos trinta anos, reforçou-se uma tendência de pensar todos os seus conflitos e dificuldades em termos médicos, mais especificamente psiquiátricos (CAPONI, 2012). Os avanços da medicalização transformaram-se na forma majoritária de intervenção terapêutica, na atualidade, em função dos novos procedimentos diagnósticos propostos a partir da produção da série - DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (GUARIDO, 2006). Crianças desatentas ou inquietas, que demandariam um cuidado especial de seus professores e familiares, passaram a ser diagnosticadas com TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Pessoas que vivem em situações de precariedade laboral e que convivem com ameaça permanente de desemprego recebem, frequentemente, o diagnóstico de transtorno de ansiedade (CAPONI, 2012). O discurso médico difundido na mídia, que naturaliza o sofrimento infantil e seus "problemas de aprendizagem", apresenta-se na escola de forma marcante. É comum que professores e coordenadores utilizem diagnósticos diante da observação de certos comportamentos das crianças, especialmente de TDAH, e as encaminhem para avaliação psiquiátrica, neurológica ou psicológica (GUARIDO, 2006).

Atualmente, no trabalho clínico com crianças, podemos observar, com frequência, a chegada de pacientes portadores de diagnósticos psiquiátricos que apresentam queixas relacionadas a uma grande variedade de sintomas. A partir disso, cabe pensar que os procedimentos de medicalização surgidos nos cuidados com a população adulta foram estendidos também para as crianças. Pode-se observar também, um abandono crescente da descrição causal e de sentido dos sintomas apresentados pelo sujeito em benefício de uma noção em que os sintomas são reconhecidos como manifestações de desordem da bioquímica cerebral. Desse modo, a produção de saber sobre o sofrimento psíquico tem sido associada à produção da indústria farmacêutica de remédios, que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. A psicologização da escola parece ceder lugar hoje à psiquiatrização do discurso escolar. Assim, a ampla gama de sintomas presentes nos manuais, bem como as formas diagnósticas propostas por eles permitem que muitos acontecimentos cotidianos, sofrimentos passageiros ou outros comportamentos, possam ser registrados como sintomas próprios dos transtornos mentais (GUARIDO, 2006).

De outro modo, não rejeitando todo e qualquer uso de psicofármacos, podemos pensar a noção de sintoma infantil para além do sentido estrito do discurso médico, com o intuito de se estudar - à luz da teoria psicanalítica - a articulação entre o sintoma da criança e outros fatores relevantes na vida do sujeito. Nesse sentido, cabe refletir sobre a relação entre o sintoma apresentado pela criança e a transmissão psíquica.

 

O sintoma infantil e a transmissão psíquica

O sintoma da criança denuncia a sua não conformidade ao ideal social de "ser uma criança feliz", demonstrando, por meio de sua angústia, o confronto com a castração e a perda da possibilidade de se colocar como objeto de desejo do Outro (ZORNIG, 2008). No entanto, a criança é um produto da situação gerada pela formação de um par que, em si mesmo, é uma fonte de dinâmica. Antes mesmo do seu nascimento, o bebê faz parte das fantasias dos pais e é "moldado" por elas. Após o seu nascimento, surge uma nova dinâmica relativa às exigências do bebê. Contudo, a dupla parental demanda do recém-chegado que seja cúmplice nas suas fantasias inconscientes (MEYER, 1983).

De outro modo, o autor afirma que o padrão de atitudes parentais também estará relacionado ao meio ambiente cultural, ao mesmo tempo em que irá definir os papéis dos membros da família e estabelecer as bases de suas interações. Diante dessa perspectiva, a dinâmica do relacionamento do casal tem a propensão de tornar-se a dinâmica familiar, assim, o casal recém-formado é o "veículo de transporte" das expectativas e necessidades que foram cunhadas em uma situação ancestral.

A neurose dos pais tem um papel fundamental na eclosão dos sintomas da criança, pois está fixa à sua existência, num lugar determinado pelos pais no seu sistema de fantasias e desejos. A criança procura responder ao enigma dos significantes obscuros propostos pelos adultos, identificando-se com o que julga ser o objeto materno, tentando preencher a falta estrutural do outro e evitar a angústia de castração.

O conceito de neurose infantil pode indicar o ponto culminante do processo de construção da realidade psíquica do sujeito, em que os sintomas constituem uma tentativa da criança de interpretar os significantes enigmáticos propostos pelo adulto e que lhe propiciam atravessar o Édipo, separando-se da lógica binária em que se encontra com a mãe. Observa-se, então, a natureza essencialmente traumática da sexualidade humana, tendo em vista que a criança não dispõe de meios para interpretá-la, o que a conduz a construir as teorias sexuais infantis (ZORNIG, 2008).

A entrada de um terceiro, do pai, ou da função paterna, ao instituir a lei, separará da mãe a criança. E assim, introduz-se a falta e, consequentemente, o desejo. Logo, a resposta para a questão: "o que o Outro deseja de mim?", provém da fantasia. Dito de outro modo, ao não poder responder à questão enigmática sobre o seu desejo e o desejo do Outro, o sujeito cria mitos sobre as questões essenciais ao seu ser (MARCONI, 2008). Nesse sentido, Sales (2002) destaca que a criança se utiliza dos acontecimentos na vida de seus ancestrais para suprimir os vazios da verdade individual.

A constituição de um sujeito se baseia em sua origem, sua história e suas fantasias sobre as relações que compõem seu romance familiar. Para tanto, o essencial é o inconsciente que se forma por meio de resíduos de linguagem, ouvidos no discurso que circula em sua família. Trata-se de significantes impostos ao sujeito, que os escuta porque não pode furtar-se às palavras (MARCONI, 2008). Quando nasce uma criança, ela herda parte da função de recomposição da família a partir das alianças das duas descendências. Desse modo, a criança deve conservar o conjunto e alimentar-se desta herança (ANDRÉ-FUSTIER; AUBERTEL, 1998).

A questão da transmissão psíquica é central no grupo familiar e nos remete à inscrição do sujeito, em uma cadeia geracional da qual ele é um elo e à qual ele se submete. A transmissão psíquica consiste na precedência do sujeito por mais de um outro, na necessidade de ser herdeiro forçado, beneficiário, mas também pensador e, até mesmo criador, daquilo que lhe foi transmitido. Cada um, bem como cada grupo, tem como tarefa construir, organizar e transformar certas heranças não elaboradas, mantidas em estado bruto e que infiltram o presente (GRANJON, 2000). Portanto, verifica-se o papel primordial da família no que se refere à transmissão psíquica, sendo ela o lugar e o aparelho da transmissão (ANDRÉ-FUSTIER; AUBERTEL, 1998). Granjon (2000) acrescenta que o projeto do grupo familiar é transmitir a herança psíquica adquirida e fundadora tanto dos membros como do conjunto, perpetuando, conservando a sua identidade e dando vida para além dos mortos.

Diversos autores debruçam-se sobre o estudo da transmissão psíquica (BENGHOZI, 2010; KAËS, 1998, 2001, 2005; ANDRÉ-FUSTIER, AUBERTEL, 1998; CORREA, 2000; MAGALHÃES, FÉRES-CARNEIRO, 2004; SANTOS; GHAZZI, 2012 entre outros), distinguindo dois modos de transmissão. A primeira modalidade de transmissão é a intergeracional, na qual há uma elaboração, uma transformação do legado de uma geração à outra. Nesta modalidade, a transmissão constitui a "herança positiva" da filiação (CORREA, 2000), transmitindo àquilo que ampara e assegura as continuidades narcísicas, a conservação das formas, dos processos de conservação e de complexidade da vida (KAËS, 1998). A segunda modalidade de transmissão psíquica é a transgeracional, que se refere a uma transmissão "defeituosa". Essa modalidade de transmissão psíquica ocorre quando o trabalho de transmissão falha, sendo a transmissão alienante e não estruturante para o sujeito. Assim, o que será transmitido será o traço daquilo que se passou e que não pode ser pensado ou elaborado, sendo um tipo de transmissão pelas gerações e não entre as gerações (SANTOS; GHAZZI, 2012).

Féres-Carneiro e Magalhães (2008) apontam para os estudos desenvolvidos por Abraham e Torok (1972) com o intuito de salientar que, a partir de então, outros estudos voltados para a questão da transmissão psíquica articularam-se sobre a noção de falha na simbolização do material psíquico transmitido e sobre os processos de identificação que permeiam a transmissão. A partir das falhas no processo de metabolização da herança psíquica, podemos observar o esboço de diversas patologias (CORREA, 2000).

Kaës (2001) postula que a transmissão psíquica se organiza a partir do negativo, a partir do que falta e falha. O autor destaca que as reflexões sobre o negativo aparecem bem cedo na pesquisa de Freud, embora, o negativo enquanto categoria substantiva tenha surgido recentemente. Guillaumin acentua três principais conotações: a ausência de representação ou de representabilidade; um destino nocivo do funcionamento psíquico; a experiência de perda ou falta. Com a evolução das pesquisas psicanalíticas sobre o geracional, as significativas transformações dos dispositivos da psicanálise tiveram um papel considerável, sob o efeito das novas patologias das psicoses, dos estados-limite, dos distúrbios do narcisismo e da simbolização primária (KAËS, 2005).

Garcia e Penna (2010) ressaltam que a articulação entre o negativo e a transmissão psíquica pode ser evidenciada em inúmeros trabalhos sobre o tema, contudo, em casos de transmissão psíquica transgeracional, a versão estruturante do trabalho do negativo encontra-se prejudicada. Desse modo, no momento em que a transmissão de conteúdo e vivências sofre entraves, uma quantidade considerável de material traumático não elaborado, não simbolizado, é transmitida em seu estado bruto para a geração seguinte. Nesse caso, a transmissão é efetuada via diferentes formas patológicas do negativo e os processos de expulsão (excorporação), recalcamento e alucinação negativa, fundamentais para a constituição dos limites psíquicos e de uma relação de objeto estável, ficam comprometidos.

Para Eiguer (1998), o que se transmite, ou seja, o objeto de transmissão psíquica entre gerações, diz respeito a um ancestral que suscita fantasias, provoca identificações e intervém na constituição de instâncias psíquicas de um ou vários membros da família. O objeto de transmissão entre gerações apresenta a peculiaridade de se colocar como objeto de um outro e não como objeto direto de descarga pulsional. Granjon (2000) compreende que alguns ancestrais podem perturbar, consideravelmente, a vida dos seus descendentes.

Ora, se um sujeito se constitui com base em sua origem, sua história, sua fantasia sobre as relações que compõem seu romance familiar e, como vimos, o inconsciente se forma por meio de resíduos de linguagem, ouvidos no discurso que circula em sua família (MARCONI, 2008), podemos constatar a contribuição das histórias que habitam e circulam na esfera familiar da criança nas construções fantasísticas. Diante dessa perspectiva, todo sujeito chega sempre dentro de uma história que preexiste, da qual ele é herdeiro, podendo ser prisioneiro.

 

O aparelho psíquico familiar

De acordo com André-Fustier e Aubertel (1998), o aparelho psíquico familiar é definido como uma aparelhagem psíquica comum e partilhada pelos membros de uma família, cuja função é articular o funcionamento do "estar junto familiar" com os funcionamentos psíquicos individuais de cada um dos membros da família. Inicialmente, o aparelho psíquico familiar é externo e vai permitir ao lactente transformar suas experiências sensoriais em vivências psíquicas progressivamente relacionáveis entre si. Nesse sentido, o aparelho psíquico familiar funciona sempre como uma matriz de sentido, que serve de invólucro e de sustentáculo primários às psiques dos sujeitos que nascem no seio de uma família.

As funções do aparelho psíquico familiar são funções de continência, de ligação, de transformação e de transmissão. A função de transmissão na sucessão de gerações remete à maneira pela qual cada família dará à criança as chaves de acesso ao mundo. Com efeito, cada família transmite ao recém-nascido sua maneira de apreender o mundo exterior e de organizar o universo interno. É a partir desses utensílios psíquicos de decodificação que cada criança construirá seu mundo interno, colorido por suas fantasias pessoais. É válido ressaltar que com a função de transmissão psíquica, é introduzida a dimensão histórica do aparelho psíquico familiar (ANDRÉ-FUSTIER; AUBERTEL, 1998).

Assim, o berço psíquico familiar que acolhe a criança tem as suas características próprias. Por isso, verifica-se a importância de tratar do tema da transmissão psíquica, tendo em vista que ela veicula o modelo de parentesco, ordena as atrações e rejeições, prescrições e proscrições, distribui o lugar de cada membro da família e está na origem da transmissão dos mitos e dos ideais. O sujeito não pode construir completamente a sua história, ele se ancora em uma história familiar que o precede. Da história familiar ele extrairá a substância de suas fundações narcísicas para, enfim, tomar um lugar de sujeito (EIGUER, 1998).

No que concerne à história de cada sujeito, Correa (2000) observa que os significantes que são transmitidos e precedem a nossa existência sob a forma de traços sem memória, esvaziados de sentido, podem permanecer congelados em uma pré-história geracional ausente de simbolização. Hipoteticamente, são os objetos "perdidos" por nossos ancestrais, que são transmitidos de forma inconsciente e fazem parte do nosso legado geracional. O material psíquico transmitido pode ser ou não metabolizado, tendo importante significado na configuração psíquica de cada sujeito. Contudo, as experiências não integradas de forma harmônica na vida psíquica podem obrigar os descendentes a simbolizar, durante várias gerações, o que não foi totalmente elaborado por seus ascendentes. Nesse sentido, Freud contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento posterior do conceito de transmissão. O que poderá ser observado no tópico apresentado a seguir.

 

Considerações finais

O discurso social moderno criou uma criança cuja consistência está no fato de ela ser submetida a uma educação nova, que implica vigilância, disciplina e segregação (KUPFER, 2001). Como consequência disso, vemos hoje que o diagnóstico e o tratamento das crianças são estabelecidos a partir das condições das mesmas para a aprendizagem. Isso é fruto da difícil separação do sofrimento psíquico da criança, de seu desenvolvimento psicológico e da expressão deste na apreensão pela criança dos códigos de moralidade vigentes, bem como de suas aquisições cognitivas.

Nobre (2004) acredita que convidar a criança a falar, no setting analítico, produzindo os seus significantes, é assim fazer falar do seu sintoma, da sua história, possibilitando-lhe articular sua relação primordial com o Outro, tanto na sua forma de fantasma enganoso, de engodo, quanto na forma de pergunta por aquilo que o Outro deseja. É convocar a criança, na transferência, a fazer-se sujeito, sujeito responsável. Assim, o sintoma da criança responde, por um lado, a uma demanda inconsciente dos pais e, por outro, à sua própria escolha como sujeito. Para responder ao enigma do desejo do Outro, a criança se identifica com o objeto, que, fantasmaticamente, imagina que possa completar. A sua resposta sintomática tem a marca das suas construções enquanto sujeito, com as suas respectivas responsabilidades e implicações. Neste sentido, Zornig (2008) ressalta as possibilidades de se fazer operar uma clínica que coloque a criança numa posição de sujeito perante sua história e perante sua vida, sem recorrer a soluções simplistas que desconsiderem sua inserção no discurso parental e social/escolar ou a coloque totalmente dependente desse discurso.

A história familiar e a maneira como a criança é introduzida na cadeia geracional também podem contribuir para o surgimento de sintomas. Por isso, é necessário compreender o lugar que foi designado à criança em uma história feita de diversos acontecimentos, desejos e palavras ditas e não ditas para, por fim, entendermos o que poderia ter alienado a criança em determinados significantes. Dessa forma, o que importa, na clínica com crianças, não são os sintomas aparentemente "positivos" ou "negativos" em si mesmos e nem simplesmente responder à angústia dos pais, mas sim procurar escutar o que significa para a criança seu sintoma, qual o sentido fundamental da sua dinâmica e quais as possibilidades que este sintoma preserva ou compromete.

Entender que a criança é sujeito de um grupo, coloca para o psicanalista uma questão fundamental: de que modo conceber e tratar o sujeito como tendo a si mesmo como o próprio fim e como elo, servidor, beneficiário e herdeiro de uma cadeia intersubjetiva à qual ele está submetido? Assim, escutar analiticamente certas histórias das crianças e de seus pais, parece dar lhes a oportunidade de serem compreendidos e de construírem conjuntamente novos significados.

 

 

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Artigo recebido em: 24/04/2014
Aprovado para publicação em: 23/07/2014

Endereço para correspondência
Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo
E-mail: lucianajaramillo@msn.com
Terezinha Féres-Carneiro
E-mail: teferca@puc-rio.br
Samuel Lincoln Bezerra Lins
E-mail: samuel.bezerra.lins@gmail.com

 

 

*Mestranda em Psicologia/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil.
**Profa. titular do Departamento de Psicologia e coordenadora do Curso de Especialização em Psicoterapia de Família e Casal/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
***Pós-doutorando em Psicologia/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).

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