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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versión On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.40 Rio de Jeneiro eneri/jun. 2019

 

ARTIGOS

 

A dicção: revezes retóricos - um breve estudo sobre a distinção dos conceitos de língua, linguagem, fala e discurso em Lacan

 

A diction: rhetorical setbacks - a brief study on the distinction of the concepts of language, language, speech and discourse in Lacan

 

 

Estanislau Alves da Silva Filho*

Elabora Psicanálise Acessível - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Haveria como dizer algo sem que isso fosse logo e prontamente transformado em sentido, decifrado e digerido? Haveria como equivocar um pouco, deixar as bases levemente inconsistentes de modo a sustentar uma insignificância? E mesmo assim dizer, falando sobre uma distinção, discorrendo e discursando sobre a língua falada e combinada, de modo a trazer à tona e reluzir alguma Coisa que esteja em campo, nesse campo psicanalítico da fala e da linguagem, cuja função do equívoco aparece no campo da lalíngua: é o que tentamos, por agridoce que seja. Ou, mais simplesmente, como intento do presente trabalho, visa-se uma discussão acerca de alguns conceitos centrais do pensamento lacaniano - a saber, língua, linguagem, fala e discurso -, de modo a realizar uma reflexão relacionada aos impasses de nosso veicular (e vincular) simbólico.

Palavras-chave: Linguagem, Língua, Fala, Discurso, Psicanálise.


ABSTRACT

Would it there be a way to say something without it being soon and readily transformed into meaning, deciphered and digested? Could it be a mistake to make the bases slightly inconsistent in order to maintain insignificance? And yet to say, speaking of a distinction, expatiating and discourse on spoken and combined language, so as to bring forth and spark some Thing which is in the field, in this psychoanalytic field of speech and language, whose function of equivocation appears in the field of lalangue: that's what we tried, however bittersweet it may be. Or, more simply, as an attempt of the present work, it is aimed at a discussion about some central concepts of the Lacanian thought - namely, language, language, speech and discourse -, in order to realize a weighting related to the impasses of our vehicular symbolic.

Keywords: Language, Language, Speaks, Speech, Psychoanalysis.


 

 

esse cancro que defini como sendo a linguagem, porque não sei de que outro modo chamá-lo.
Jacques Lacan, na Conferência de Genebra de 1975

Desta titulação se poderia esperar a boa dosagem do desaparecimento, da perda de si, ou melhor, do fading, que é mais bem traduzido por desvanecimento, presente no processamento linguajeiro. Daria também para se esperar pela colheita da valiosa lavoura que se cultivou no revés da letra enviada, que perdida faz dos que passam por sua sombra tornarem-se seu reflexo, que apresenta os que entraram de posse da carta como que possuídos pelo seu sentido. Diria do vício, da paixão, do jogador automaton que questiona sempre o significante pelo teu significado? Sem dúvida busca-se explanar sobre descaminhos e percalços do labiríntico campo da interlocução. Talvez se diga algo da mentira na palavra, algo da sedução que lhe pode acompanhar - aí o amor não poderia deixar de contar naquilo que Lacan belamente descreveu como o que "cessa de não se escrever", em contiguidade com aquilo que é impossível, ou "não cessa de não se escrever", e seu correlato necessário, ou sintomático, que "não cessa de se escrever". Poderia aqui fabular, ou ficar confabulando, caso considerasse a fábula tão apropriada quanto outra história para esclarecimentos. E o considero! Que a gente só fala falácias, eis uma perspectiva importante. Que não se transmite o que se intenta também o é. As ficções e as relações com a verdade, ou a Verdade, ou as verdades; o enlaçamento de uma linguagem que é potência de semblante com a não existência de um saber pré-inscrito, todas essas, e as anteriores, seriam coisas bastante complexas. Bom, então que possamos nos contentar e ficar felizes mesmo com os Holzwege, os "caminhos do bosque" de Heidegger, que não conduzem nada a lugar algum, pois que são os caminhos dos lenhadores, que vão fazer seu trabalho e regressam. Nisso insiste o diferente ensino lacaniano - quando comparado ao freudiano - que de valioso tem os efeitos, é o que dele se espera, e não os saberes retransmitidos, mesmo que Freud fosse goethiano o suficiente para anunciar que "o que podes saber de melhor, não vais podê-lo transmitir". Sem maiores adiantos, caminhemos.

 

Distinção honrosa?

Língua não é linguagem, fala não é discurso, escrever não é dizer e significação não é sentido. É o que se pode depreender não sem boas razões e expensas a partir da elaboração teórica de Jacques Lacan. Mas seriam essas assertivas privilégios psicanalíticos ou prerrogativas da ciência linguística? Vulgarmente parecem soar como sacrilégios. Seja como for, há aí um caminho de valores a se esquadrinhar, e eis o que se pretende apontar.

Senão vejamos, sem delongar, que para Lacan, não temos uma linguagem, mas que, da linguagem, não temos "senão uma série de línguas encarnadas"; sendo "uma língua entre outras nada além da integral de equívocos que sua história deixou persistirem nela"; que "não existe metalinguagem que possa ser falada". Que a fala implica um buraco de silêncio em que cada locutor espera em vão a palavra justa que corresponderia a seu desejo. Que é somente na fala que é possível advir como sujeito, e que se os seres falantes utilizassem tão somente a palavra justa, não haveria fala, haveria apenas a língua impressa no dicionário, lá depositada. Claro, frisa-se, falar supõe de fato um depósito de palavras disponíveis e convencionais, a língua sobre a qual a fala repousa e se funda. Mas "a fala se distingue da linguagem porque cobre o campo da verdade singular, ao passo que esta outra encobrirá o da lei" (Lacan em "Remarque sur le rapport de Daniel Lagache" apud KAUFMANN, 1996, p. 189)1. A posição particular da fala será pois a de produzir um efeito de sentido (KAUFMANN, 1996). Pautando-se nisso, de que a fala é esse conjunto de marcas da emergência subjetiva - que emerge e urge -, será cabível aqui fazer uma volta.

Disse Lacan uma certa vez que o inconsciente era estruturado como uma linguagem (que "o inconsciente é o que dizemos"). E disse outra vez, "Meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do campo da linguística". A primeira é formulação célebre. A segunda, do vigésimo tempo de seu ensino, merece sempre mais luzes. Mas para poder dizer uma ou outra coisa, é preciso supor que se dispõe de uma definição geral e não vaga do que é ou não é uma linguagem. Uma linguagem, diremos acompanhando Jean-Claude Milner, então, é um conjunto em que (i) a metáfora e a metonímia são possíveis como leis de composição interna, e (ii) em que apenas a metáfora e a metonímia são possíveis. A noção de linguagem revelar-se-ia, pois, como sendo um caso particular de uma noção mais geral. A questão se coloca: como nomear essa noção geral? Conhece-se a solução dos estruturalistas: a noção geral se define como estrutura. Mas Lacan jamais admitiu essa solução, que tem o defeito de acentuar as totalidades (nesse sentido, Lacan é certamente um antiestruturalista convicto); o nome que ele propôs para designar o modo de existência específico daquilo que tem as propriedades de uma linguagem (sem depender necessariamente da linguagem - uma primeira modificação substancialmente importante, lembrando que Saussure havia excluído de seu campo tudo o que era do foro da fala [parole]) acentua não a totalidade, mas o elemento: é o significante. Daí que significante é aquilo que não tem existência e propriedades senão por oposição, relação e negação; são corpúsculos não físicos, ainda que dotados de uma mecânica rigorosa, que se contrastam e se excluem, sucessiva e alternadamente, de modo que as propriedades não precedem a distinção, além de não haver estatuto para a semelhança (ao menos com Saussure). Assim, na proposição "um significante representa um sujeito para um outro significante", a definição estrita do significante repousa, aí, na expressão "representar para", estenograma de uma existência opositiva, relativa e negativa. O termo significante vem evidentemente de Saussure, mas não sem uma alteração profunda: são abandonados o horizonte do signo e, ao mesmo tempo, a oposição ativo/passivo que modelava o casal significante/significado. Como assinala seu próprio nome, o significante é essencialmente ação (MILNER, 2010).

Significante: culminante e inescapável bifurcação. De pronto: o significante não é um conceito delimitável no interior do campo linguístico propriamente dito, "ele é o desejo", foi-se dito. Se o signo "é o que representa alguma coisa para alguém", o significante só representará o pensamento do sujeito "de uma maneira alternante", um após o outro, em sequência, em cadeia, já que não há senão um efeito retroativo da significação, cada termo sendo antecipado na construção de todos os outros e inversamente selando seu sentido por seu efeito retroativo. Há que se notar a maquinação simbólica aqui operante e que é inoperável do ponto de vista dos que não assumem seus riscos, os da perda de sentido, e que não pagam o seu preço, a saber, o da morte da coisa. Isso implica o entendimento de que "a máquina é a estrutura como que isolada da atividade do sujeito. O mundo simbólico é o mundo da máquina", tal qual foi uma vez dito em 8 de dezembro de 1954. Algo que depois viria a ser conhecido como um dos três eixos delimitantes: "podemos, no próprio interior do fenômeno da fala, integrar os três planos do simbólico representados pelo significante (insistência), do imaginário, representado pela significação (consistência), e do real, que é o discurso mantido realmente em sua dimensão diacrônica (existência)"; em que também estaria a estrutura originária do "aparelho psíquico", com o imaginário na organização do estádio do espelho ("o homem é captado pela imagem de seu corpo" ao mesmo tempo em que corpo-reifica o mundo, o fazendo coisa à imagem de seu corpo), o simbólico, como já explícito, na cadeia significante e o real na impossibilidade (lógica) do encerramento (KAUFMANN, 1996, p. 474). Valem ainda três anotações: a) essas categorias imediatamente supracitadas se sobrepõem em parte umas às outras, com o simbólico, particularmente em posição mediana, assumindo o imaginário segundo as leis que lhe são próprias e consumando sua própria destruição na oposição da fala ao escrito; b) com o nó borromeano, do entrelaçamento dos três anéis RSI, Lacan pensa a estrutura sem uma referência ao Outro [repensa-se a formulação de que o significante é significante da falta no Outro]; c) de uma perspectiva prática, não se trata exatamente de um significado recalcado encontrar seu significante na fala: o sintoma é o nome mais autêntico da relação do sujeito com o significante (KRUGER, 1998) - onde se pode reconhecer o automatismo de repetição que tem seu princípio no que se denominou de insistência da cadeia significante, insistência repetitiva, insistência significativa; seguindo o deslindamento lacaniano "o inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que, em algum lugar (numa outra cena) se repete e insiste em interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e a cogitação a que ele dá forma" [a vertente do imaginário é a que sempre se apresenta prêt-à-porter, já que o imaginário é o que se aproveita do que comparece automático na repetição significante para, com o significante, fazer sempre a mesma coisa - sem perder a repetição intersubjetiva, com os sujeitos se revezando em deslocamento, em troca de posições ao entorno do significante puro, como na carta roubada]. Essa é a deixa para que passemos ao discurso, não sem antes passar pelo seguinte "posicionamento" feito por Humberto Haydt de S. Mello (1987):

Chamo de psicanálise ao que acontece quando aquele que ocupa o lugar deste objeto que não pôde ser trazido, só porque, como objeto, ele é impossível, quando aquele que ocupa este lugar de um vazio, e não o vazio de um lugar, sintomaticamente não partilha da sintomática crença na completude, mas que sabe desta se aproveitar para fazer o objeto, que é tomado como verdade, operar sobre o sujeito a esta mesma crença (p. 32). [...] Se pego o sonho, no que ele revela o sujeito que não sabe estar sendo revelado ali, como sujeito de mais um sonho, então estou fazendo psicanálise (p. 14). [...] a separação não é entre material revelado e pessoa reveladora, mas entre sintomatização reveladora e sujeito revelado (p. 16).

O discurso é o que se funda sobre as leis da linguagem e a relação com a fala induz lugares que inscrevem em ocos os termos oriundos dessas leis. A partir do momento em que uma fala se exprime, ela organiza um universo tal que se engendra uma relação fixa de quatro lugares: aquele que fala (agente) e aquele que recebe a fala (outro), o efeito produzido (produção ou mais-gozar) e o quarto lugar é o da verdade que articula a relação dos três primeiros termos [são, então: sítios permanentes e termos móveis]. O conjunto forma o núcleo sobre o qual repousa o sistema simbólico: a Fala só começa com a passagem do fingimento para a ordem significante e o significante exige um outro lugar - para que a Fala que ele suporta possa mentir, isto é, se propor como verdade: eis o semblante [e o ponto-chave consequente para uma psicanálise: uma interpretação analítica não age sobre o conteúdo, por assim dizer, patogênico explicando-o, e sim modifica o lugar simbólico do sujeito, de modo a mudar o dinamismo e o destino da "configuração" psíquica]. O semblante ocupa esse lugar que a verdade supõe; e a distorção entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação torna impossível a coincidência entre esses dois registros. Em seu discurso, o sujeito estará tão somente representado, numa posição que é uma condição, de lugar-tenente - que comanda na ausência do chefe - em relação à verdade de seu desejo. O eu que persiste no discurso oculta o sujeito do desejo [em complemento: diz Lacan que a interpretação analítica "desencadeia a verdade como tal"; a verdade quebra a cadeia - "que o inconsciente diga sempre a verdade e que minta é de sua parte algo perfeitamente admissível". O único discurso que não seria semblante é precisamente o discurso analítico2 que faz aparecer no lugar da verdade o saber inconsciente, que vai da sucessiva sincronia à simultânea diacronia do real, que produz um significante novo que faz efeito de furo] (KAUFMANN, 1996, p. 462).

Marcadamente se impõem diferenças entre dito e escrito. É claro, a própria escrita também é lugar de sintoma, como corroborado por lapsus calami, deformações ou omissões de palavras e de nomes, esquecimentos de assinatura, erros de cálculo; erotizada, ela pode representar mesmo um substituto do ato sexual, entre outros mais. E, sim, também as palavras são para serem lidas tal qual escritos para serem ouvidos. Mas escrever não é, de modo algum, a mesma coisa que o dizer. "Oxalá os escritos ficassem, como é, antes, o caso das falas: porque, destas, ao menos a dívida indelével fecunda nossos atos com suas transferências", anunciava lacônico no seminário sobre "a carta roubada", "Os escritos carregam ao vento as promissórias em branco de uma cavalgada louca. E se eles não fossem folhas volantes, não haveria letras roubadas, cartas que voaram" (LACAN, 2000, p. 30). E disse o Lacan da Conferência em Genebra sobre o sintoma (4 de outubro de 1975) que escrever e dizer sequer se parecem. Pois que com Escritos, queria ele apenas assinalar o que era um resíduo do seu ensino, que desejava com eles que algo do que dizia permanecesse. "Um escrito destinado a conservar algo do remoinho que minha palavra havia engendrado, a guardar um instrumento a que se poderia reportar" (LACAN, 1998, p. 7) [redemoinho]. É tão exatamente a prática analítica, discursiva, de posições e deposições, como já anteriormente descrita, que difere em muito da mera escrita, precisamente nesse aspecto veicular, embora em tudo possa habitar o fantasiar e o significar - lembrando que em "Subversão do sujeito", o sintoma é descrito como feito de dois elementos: fantasia e significação. A fantasia é problema a ser deixado para outra travessia; mas pra mencionar o sonho, importa o destaque que Jacque-Alain Miller (2011, p. 21) prestou: "um sintoma não é um sonho. A repressão [recalque], motor essencial do sonho, não é senão condição prévia para que se forme um sintoma." - repressão que é justamente o que se opõe ao dizer, ou, de maneira mais freudiana, o que se opõe a que as representações cheguem à consciência - "Os sonhos não ficam como uma opacidade subjetiva permanente que, em última instância, modifica o corpo. A diferença entre sonhos e sintomas, pontua Freud, é que '(...) os sintomas servem à mesma intenção'". Sintomas são fixantes, fixos ao que vem antes, evocando bem a Bedeutung, a referência a uma experiência anterior, repetitivamente falando, e atingindo a última oposição, das brigas últimas de Lacan. Conta ele quase que bravo (Será?): "Tive de traduzir [Bedeutung] por significação, por não achar um equivalente. Bedeutung é diferente de Sinn, do efeito de sentido, e designa a relação ao real" (LACAN, 1998) [Diz Miller no texto prontamente citado que a dificuldade de traduzir tal palavra para as línguas romanas se dá pelo fato de indicar, ao mesmo tempo, "significação" e "referência"]. O Sinn, efeito de sentido, é imaginário, consistente, é produto do significante, seu efeito significado ou, diretamente, significado. Sintoma, de fato, faz referência mais do que sentido, não é um efeito de Sinn habitual encarnado. "A linguagem está no lugar do sentido, o fim da linha do sentido é o sentido sexual, a saber, o sentido não-senso", anunciou Lacan em 20 de novembro de 1973 (Les non-dupes errent) (KAUFMANN, 1996, p. 464)3. Explica Miller (2011 p. 12): "O sentido só existe na linguagem e se explica pelo significante; o sentido supõe a função da fala e é a fala plena que proporciona o sentido; quando isto não ocorre (...) trata-se de uma fala vazia", mesmo que a diferença entre vazio e pleno fique aberta ou seja dada pelo critério de sentido. Ele acrescenta que "O sentido, se o situarmos no lugar do nascimento, está no eixo simbólico. O sentido precisa do símbolo, do significante" - embora não se possa desconsiderar a valiosa ponderação de Mireille Andrés, sob o verbete "Sentido", no dicionário enciclopédico de Kaufmann (1996, p. 463), em que ela explica que:

... se fosse preciso formular a questão de uma maneira arbitrária num plano temporal, o imaginário precederia o simbólico; "O sentido é aquilo pelo que alguma coisa responde que é diferente do simbólico, e essa alguma coisa, não há meio de suportá-la senão pelo imaginário de corpo". [...] a emergência de sentido se realiza como nomeação, e é o imaginário que tem por papel dar consistência e antecipar o que será retomado pelos processos significantes. [...] o nó borromeano é ele próprio da ordem do imaginário, porque é seu papel dar uma consistência. O simbólico não o pode fazer, pois, em razão da equivalência dos três campos (real, simbólico, imaginário), o sentido se encontra necessariamente no exterior do nó; nada permite situá-lo no interior, pois o que caracteriza os três nós é sua igual eficácia; nada permite tampouco situar o sentido no real, pois ele é por definição irrepresentável: "se portanto o nó se sustenta, é que o imaginário é tomado em sua consistência própria" [...] O efeito de sentido se vê a partir de então na junção do simbólico e do imaginário (p. 465).

Por ora, há que se retomar o fim da fala, essa que engaja, que me põe como sujeito. Que é um ato e também produção de desejo. É ela que instaura na realidade a mentira [ao pesar da sua função de introdução da realidade]. E é precisamente por introduzir o que não é que ela pode também introduzir o que é [é preciso haver nela algo que não engane - é o que permite também enganar]. Antes da fala, nada é nem deixa de ser. Provavelmente já está tudo lá, mas é somente com a fala que há coisas que são e coisas que não são. É com a dimensão da fala que se cava no real a verdade. "Não há nem verdadeiro nem falso na fala. Com ela se introduz a verdade, e também a mentira e ainda outros registros" (LACAN, Os escritos técnicos de Freud Seminário 1, 1953-54 apud KAUFMANN, 1996, p. 190)4. A fala verdadeira se opõe assim ao discurso, "a verdade de ambos se distinguindo pelo fato de a primeira constituir o reconhecimento pelos sujeitos de seus seres na medida em que estão inter-essados nisso, ao passo que a segunda é constituída pelo conhecimento do real, na medida em que ele é visado pelo sujeito nos objetos" (LACAN, "Variantes de la cure-type", Écrits apud KAUFMANN, 1996, p. 190)5. "É na medida em que a confissão do ser não chega a seu termo que a fala se sustenta inteira na vertente em que se agarra ao outro... Agarra-se ao outro porque o que é impelido para a fala não acedeu a ela". [Pausa] "A vinda interrompida da fala, desde que alguma coisa talvez a torne fundamentalmente impossível, é este o ponto-pivô em que, na análise, a fala bascula totalmente sobre sua primeira face e se reduz à sua função de relação com o outro". Assim: há-tensão: "Se a fala funciona então como mediação, é por não se ter realizado como revelação" (LACAN, Os escritos técnicos de Freud). O simbólico está inteiro na fala como efeito de um sujeito (KAUFMANN, 1996, p. 191)6. Bem como um sujeito está inteiro no simbólico, como efeito de uma fala.

Veja que se fazendo um retorno a um primeiro Lacan, algumas distinções podem ir imiscuindo-se. Um curioso reflexo excreto, que se possibilita mais um passo, é mais do que se almejaria lograr. Talvez exista algo nesse primeiro ensino a se percorrer e a se recorrer, repassando algo do que já foi na esperança do que há por vir. Mas deixemos este trilho por aqui, interrompido, aquém - porque, de qualquer jeito, as consequências da palavra sempre ultrapassam as suas premissas.

 

Enunciação que se denuncia, enunciado que renuncia a si mesmo, ignorância que se dissipa, em fim, declames e anúncios derradeiros

E por que o emissor recebe do receptor a sua mensagem de forma invertida? Emissor que recebe é, não menos, receptor. Claro, pois que a carta sempre chega à destinação. Destinação não confundida com possíveis destinatários, ou acidentais endereços marcados. Até porque desvios são suspensões necessárias, a possibilitarem reclamações. Mas tal primeira disjunção pré-clama e conjura, também, o desacordo do enunciado com a enunciação, a ser recomplicado com o dizer do dito. Aquele que enuncia pode até imaginar-se em enunciação - e estará certo em apostar que está -, mas mesmo conhecendo seu dito, nada poderá fazer a não ser esquecer o seu dizer, entregue ao ouvinte, confiado ao interlocutor, carteiro de mim. A técnica analítica consistirá em não confundir os dois pisos que, em realidade, aparecem superpostos. Quando tomada como dito, a interpretação apaga o dizer. É a tendência do dito a de recobrir e eclipsar, caso não seja a sua função. O dizer é face oculta da enunciação, esse bravo ato de comunicação, exigência de reconhecimento e esforço de evocação: investimento implicativo por excelência. Não há informar, menos ainda complementar, senão reverberar. E aí, interpretar (ou, devidamente, responder), não é agir sobre o conteúdo, que costuma evocar-se patogênico, explicando-o, e sim modificar um certo posicionamento, especialmente este que se impõe pelo próprio estruturar da emissão, que assombra por jogar-te à sombra de seu próprio reflexo; o cair em posse da carta, é justamente estar em posse de seu sentido: ela te possui, te enquadra, te posiciona ante ela. Subordina! (É uma petrificante Medusa) Eis que se trata de "libertar a fala da linguagem". Pulsar a vida aberto a uma não função insignificante. Mas, viver-se-ia uma vida sem efeito de sentido e significação? Como se pagariam as promissórias de ontem, e se daria bom dia hoje a quem ontem se deu a mão? Há que se ter uma boa identificação. Não, a questão é a imposição, a abertura à mudança de posição. Se se produz não sentido, com algo que não-quer-dizer, só se faz isso como ensejo de que disso se produza o desejo, um vácuo [não vazio] que possibilite a exclamação do desejar, mesmo que isto detenha impurezas de gozar de menos gozar. Aí haveria intersujeição?!

 

 

Referências

KAUFMANN, P. (Org.). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.         [ Links ]

KRUGER, F. Gozar do sintoma. In: O sintoma-charlatão. Rio de Janeiro: Zahar, p. 1001-109, 1996.         [ Links ]

LACAN, J. A função criativa da palavra - Cap. XIX. In: Seminário I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.         [ Links ]

LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção lacaniana, n. 23, dezembro de 1998.         [ Links ]

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

MELLO, H. H. de S. Acta de psicanálise (vol. XII, cap. III - Colégio Freudiano de Psicanálise). Brasília: Linha Gráfica e Editora, 1987.         [ Links ]

MILLER, J-A. Seminário sobre caminhos da formação de sintomas. In: Opção lacaniana, n. 60, São Paulo, 2011, p. 11-37.         [ Links ]

MILNER, J-C. Linguística e Psicanálise. Rev. Estud. Lacan., Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2010.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 23/08/2018
Aprovado para publicação em: 26/06/2019

Endereço para correspondência
Estanislau Alves da Silva Filho
E-mail: stani-asf@hotmail.com

 

 

*Psicanalista. Tradutor em psicanálise. Membro do Elabora Psicanálise Acessível, São Paulo, SP, Brasil.
1Optou-se aqui - e em citações subsequentes - por manter a versão da menção tal como se apresenta no dicionário referenciado, por preferência de tradução, pois ainda que a tradutora possa ser mesma (Vera Ribeiro, no caso do Dicionário e dos Escritos), há diferenças. Assim, indica-se aqui para conferência na obra direta de Lacan: LACAN, Jacques. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: "Psicanálise e estrutura da personalidade". In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 659.
2A passagem de Lacan do discurso ao nó tem que ver com a "conclusão" de que todo discurso é de semblante. No Seminário 19 ele questiona a estrutura dos discursos em geral, e a conclusão é que nenhum discurso escapa do semblante, nem mesmo o objeto a-pequeno; é o que Lacan acrescenta no livro 20.
3"Os limites der Deutbarkeit. Se vocês lerem bem essas quatro páginas, notarão que o que assinala esse limite é exatamente o momento em que se chega ao sentido. A saber: que o sentido é, em suma, muito curto. Não são trinta e seis sentidos o que se descobre na dobradura final (bi-dubout) do inconsciente: é o sentido sexual. Quer dizer, muito precisamente, o sentido não- sentido. O sentido onde isso falha". Assim consta em: LACAN, Jacques. Os não-tolos erram/Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974 [tradução e organização de Frederico Denez e Gustavo Capobianco Volaco]. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 38.
4"Não há nem verdadeiro nem falso antes da palavra. Com ela se introduz a verdade e a mentira também, e outros registros". Assim consta em: LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954 (versão brasileira de Betty Milan). 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1986. p. 261. Vale frisar que a opção por verter parole em francês por "palavra" ao invés de "fala'" pode ser problemática, especialmente quando se refere ao que ficou conhecido como "Função e campo da fala e da linguagem" - não é função da palavra tão simplesmente, sendo "fala" uma palavra comumente mais próxima da noção de emprego dos significantes.
5Conferir: LACAN, Jacques. Variantes do tratamento-padrão. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 353.
6"Se a palavra funciona então como mediação, é por não se ter realizado como revelação." (nota-se, uma vez mais, a tradução de parole por "palavra" ao invés de "fala") Tal como consta em: LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954 (versão brasileira de Betty Milan). 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1986. p. 62.

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