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Imaginário

versión impresa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

O deslocamento das cidades, uma tradição hispanoamericana? O caso de Parangaricutiro (México, 1944)

 

The displacement of the cities, a Hispano-American tradition? The Parangaricutiro case (Mexico, 1944)

 

El desplazamiento de las ciudades, ¿una tradición hispanoamericana? El caso de Parangaricutiro (México, 1944)

 

Alain Musset*

Institut Universitaire de France

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em 1943, a erupção do vulcão Paricutín conduziu ao abandono de San Juan Parangaricutiro (Michoacán, México) e à fundação de uma nova cidade, que obedecia a normas urbanísticas herdadas da época colonial. O objetivo deste artigo é de re-situar esse estudo de caso no contexto mais geral das dezenas de deslocamentos que caracterizaram a instabilidade do sistema urbano hispano-americano desde o início da conquista até meados do século XX. A comparação entre os arquivos coloniais e os da Presidência de Manuel Ávila Camacho permite mostrar a continuidade dos meca-nismos institucionais e dos processos instalados para garantir o deslocamento de uma cidade e de seus habitantes numa situação de crise.

Palavras-chave: San Juan Parangaricutiro, 1944, Deslocamento, História urbana, Organização do território.


ABSTRACT

In 1943, the eruption of the Paricutín volcano led to the abandonment of San Juan Parangaricutiro (Michoacán, Mexico) and to the foundation of a new city, which followed the urbanistic rules inherited from the colonial period. This article aims at replacing this case study within the most general context of the tens of displacement that characterize the Hispano-American urban system’s unsteadiness since the beginning of the conquest until the middle of the XX century. The comparison between the colonial files and those of Manuel Ávila Camacho’s Presidence allows showing the continuity of the institutional mechanisms and the processes set to ensure the displacement of a city and its inhabitants in a crisis situation.

Keywords: San Juan Parangaricutiro, 1944, Displacement, Urban history, Territory organization.


RESUMEN

En 1943, la erupción del volcán Paricutín condujo al abandono de San Juan Parangaricutiro (Michoacán, México) y a la fundación de una nueva ciudad, que obedecía a normas urbanísticas heredadas de la época colonial. El objetivo de este artículo es re-situar este estudio de caso en el contexto más general de decenas de desplazamientos que caracterizaron la inestabilidad del sistema urbano hispanoamericano desde el inicio de la conquista hasta mediados del siglo XX. La comparación entre los archivos coloniales y los de la Presidencia de Manuel Ávila Camacho permite mostrar la continuidad de los mecanismos institucionales y de los procesos instalados para garantizar el desplazamiento de una ciudad y de sus habitantes en una situación de crisis.

Palabras clave: San Juan Parangaricutiro-1944, Desplazamiento, Historia urbana, Organización del territorio.


 

 

Introdução

O deslocamento de uma cidade inteira pode aparecer como um acontecimento excepcional ligado a circunstâncias muito particulares e dificilmente reprodutíveis. No entanto, contrariamente aos portugueses, que pouco utilizaram esse método para adaptar sua rede urbana às realidades geográficas, econômicas ou geopolíticas do mundo brasileiro1, os espanhóis instalados na América não hesitaram em mudar constantemente de lugar suas cidades quando as circunstâncias o exigiam. Após sete anos de estudos sobre esse tema, contei pelo menos 160 cidades deslocadas desde o início da Conquista espanhola e o fim da época colonial (nos anos 1820), sem contar aquelas que tiveram a mesma sorte nos séculos XIX e XX, como San Juan Parangaricutiro no México, Baeza e Pelileo no Equador, ou Chillan no Chile (MUSSET, 2002).2

A relativa facilidade dos deslocamentos (principalmente durante o século XVI) explica-se em grande parte porque a aglomeração, recentemente fundada, muitas vezes era apenas um simples burgo construído com materiais perecíveis. Com efeito, as leis de fundação promulgadas pela Coroa e sintetizadas nas Nouvelles ordonnances de découverte et de peuplement [Novas Ordens de descoberta e de povoamento] de 1573 exigiam um mínimo de pelo menos trinta vecinos para se fundar uma cidade, o que representava uma população espanhola inferior a cento e cinqüenta habitantes. Essas cidades, pouco populosas, construídas às pressas, podiam facilmente mudar de lugar antes de encontrar seu sítio definitivo. Em contrapartida, quando a transferência era efetuada após vários decênios de presença no mesmo local, o problema atingia outra amplitude: a cidade havia se enraizado, e uma sociedade urbana, com sua hierarquia, seus códigos, seus conflitos internos, havia tido tempo de implantar-se e as relações com o mundo rural estavam solidamente estabelecidas.

Estudar o deslocamento das cidades na América hispânica possibilita uma reflexão sobre as formas e as funções da cidade e também possibilita compreender melhor as relações constantemente conflituais mantidas hoje pelos estabelecimentos humanos com seu meio ambiente. Além disso, tal abordagem valoriza as contradições internas da sociedade urbana, pois nem sempre é fácil tomar a decisão da transferência: ela é a manifestação dos determinantes de poder e de dinheiro que fragilizam uma comunidade cujos membros não manifestam os mesmos interesses nem as mesmas preocupações quando devem enfrentar uma crise maior.

Nesse contexto, o deslocamento de San Juan Parangaricutiro (Michoacan, México) é particularmente interessante, pois foi realizado na metade do século XX, seguindo à risca regras herdadas da época colonial. Ora, é somente transportando-se esse episódio recente para uma tradição muito mais antiga que se pode compreender não apenas o comportamento dos habitantes, mas também a reação das autoridades regionais ou nacionais durante as diferentes etapas do processo de decisão.

 

O desastre “natural” e sua interpretação

Os primeiros sinais da atividade telúrica que vai provocar a ruína de San Juan Parangaricutiro intervêm em 8 de fevereiro de 1943, quando um terremoto de grande amplitude, seguido de numerosas réplicas, provoca um início de pânico na população. Alguns dias mais tarde, quando trabalhava em seu campo de milho, Don Dionisio Pulido vêse preso num turbilhão de cinzas e fumaça, acompanhado de explosões ensurdecedoras: ele assiste, apesar de si, ao nascimento de um novo vulcão, o Paricutín, cujo cone acabará elevando-se a mais de 2.600 metros numa zona montanhosa que ultrapassa 2.000 metros de altitude média. Muito rapidamente, os rios de lava engolem a cidadezinha de Paricutín, cujos habitantes devem encontrar refúgio perto da cidade principal, Uruapan. O vulcão cospe então uma coluna de fumaça negra que se eleva a mais de seis quilômetros e cujas partículas mais finas recaem sobre a cidade do México, situada a mais de 350 quilômetros.

Em 15 de janeiro de 1944, após um longo ano de atividade vulcânica ininterrupta, foi enviado um relatório ao presidente da República, Manuel Ávila Camacho, com o objetivo de descrever a extensão do desastre. 3 Num raio de três quilômetros à volta do vulcão, nada restava da rica floresta que antes cobria as montanhas. Num raio de seis quilômetros, uma espessa camada de cinzas recobria as árvores, impedindo-as de respirar. Num perímetro ainda mais amplo (sete quilômetros), toda a vegetação herbácea havia desaparecido. O gado, privado de sua alimentação natural, teve de ser deslocado para zonas menos expostas. Até 10 quilômetros do ponto de emissão, todas as terras aráveis haviam se tornado estéreis, e o ar, carregado de partículas em suspensão, provocava nos habitantes numerosas afecções respiratórias. Ora, segundo o engenheiro Ezquiel Ordoñez, encarregado desse estudo, nesse momento ainda havia duas mil pessoas em San Juan Parangaricutiro e quase cinco mil na zona afetada.

A questão sobre a origem divina do desastre foi rapidamente abordada pelos habitantes da região, desejosos de dar um sentido escatológico ao mal que os atingia. Num México que acabava de sair de uma longa guerra civil que havia oposto um Estado anti-clerical a camponeses muito religiosos4, poderia ser tentador interpretar essa erupção vulcânica como uma manifestação do todo-poder do Senhor. Tal era a opinião de Vicente Aguilar, cujo testemunho foi colhido por Rafael Mendoza Valentin:

A lo mejor lo del volcan fue un castigo, porque el 20 de febrero anterior habíamos ido muchísimas personas a la piedra del horno donde pusimos una cruz grande de madera […] Pero sucedió que unas personas de Paricutín la tumbaron a hachazos porque pensaron que nosotros los de San Juan, nos habíamos valido del “credo”, para poner el lindero de la comunidad, pero no fue asi (VALENTIN, 1995, p. 54).

Outra testemunha da erupção vulcânica, Silviano Toral, lembrou que há muitos anos Deus enviava sinais (luzes misteriosas em plena noite) para anunciar a catástrofe aos habitantes da região, mas que eles não haviam sabido interpretar a mensagem divina (idem, p. 62). Essa explicação místico-religiosa se expressa hoje de modo ingênuo por meio de uma grande maquete instalada num dos lados da basílica do Nuevo San Juan: vê-se aí um diabo com chifres vestido de vermelho montar guarda diante do vulcão, como se a lava expelida pelo Paricutín saísse diretamente das profundezas do inferno (fotografia nº. 1).

 

 

Nesse sentido, a sociedade mexicana dos anos 1940 apenas seguia a linha traçada desde a época colonial pelas ordens religiosas que haviam evangelizado as populações ameríndias. Assim, no dia seguinte à destruição da Ciudad de Santiago de Guatemala, em 1541, a gráfica de Juan Cromberger, instalada na Cidade do México, publicou um texto que ressaltava os aspectos fantásticos do acontecimento. Segundo o autor do relato, enquanto um habitante tentava socorrer a viúva do adelantado Pedro de Alvarado, refugiada em sua capela, um animal fabuloso (uma vaca com um meiochifre) veio barrar-lhe a passagem, prova irrefutável da intervenção das forças sobrenaturais na destruição da Ciudad de Santiago (MEDINA, 1989, p. 7). No fim do século XVI, raros eram os espanhóis educados que acreditavam ainda em vulcões alimentados pelo fogo do inferno, mas o padre Joseph de Acosta, em sua Historia natural y moral de las Indias, sentia-se obrigado a refutar essa teoria. Segundo ele, o inferno situava-se excessivamente longe da superfície terrestre para que corrêssemos o risco de sermos engolidos, mas o fogo onde queimavam os condenados era ainda mais ardente do que o dos vulcões (ACOSTA, 1985, p.136).

Sem negligenciar interpretações religiosas solidamente enraizadas na mentalidade coletiva, também era preciso encontrar explicações científicas destinadas a assegurar a população. Ao lado dos geólogos autorizados pelo governo para estudar a evolução das correntes de lava e das emanações de gás e cinzas, numerosos habitantes arquitetavam suas próprias hipóteses. Interrogado 40 anos após o desastre, Tiburcio Rincón reconhecia que ele não havia se impressionado pelo que se passava então, pois haviam lhe explicado as causas naturais da erupção: “nos decian que era un resuello de la tierra, porque ya estaba muy sofocada y necesitaba un respiradero” (VALENTIN, 1995, p. 48). A idéia de uma terra que estava sufocando e buscando um meio de respirar foi reutilizada em agosto de 1943 por um habitante de Guadalajara, Gabriel Ramirez, que desejava ajudar os habitantes da região. Em 10 de agosto, ele escreveu uma carta ao presidente da República para dar sua interpretação sobre a erupção vulcânica e preconizar uma solução radical:

Dei-me conta de que a boca do vulcão não é bastante grande para que ele possa respirar convenientemente, e é por isso mesmo que ele não pára de entrar em erupção, porque no interior o sufocamento é terrível, e enquanto não fizermos outras aberturas para aumentar sua boca para que ele assim possa respirar melhor, parar um pouco de entrar em erupção e parar de cuspir lava, pois tenho certeza de que ele vai continuar a crescer e a destruir tudo o que se encontra em sua passagem. Penso então em jogar bombas de grande alcance e de grande potência em torno da boca do vulcão; não importa que a abertura já seja grande; a boca da cratera será ainda maior e permitirá uma maior respiração, de tal modo que ele cessará de sufocar no interior. Esta idéia me veio porque fiz a experiência com uma panela de água fervendo, cuja tampa tinha pequenos furos; ora, através desses furos saia o vapor, e eu me disse que eles não eram suficientes, pois apesar deles a água fervendo subia e se difundia; bastava então retirar a tampa e a água descia rapidamente e parava de ferver; e disso tudo me veio a idéia de que o vulcão tinha o mesmo problema: sua boca não era bastante grande.5

A proposta de Gabriel Ramirez permaneceu como letra morta, mas esse tipo de discurso, fundado sobre a observação da natureza, inscreve-se numa tradição científica de mais de dois mil anos, da qual pode-se seguir a pista desde a época romana até meados do século XX (para não dizer mais), o que prova que as idéias morrem lentamente. É assim que, por ocasião do terremoto de 1651, os oficiais municipais da Guatemala pediram aos habitantes da capital para cavar buracos em seus jardins para lutar contra os sismos (LUJAN, 1987, p. 16). Essa ordem parece incompreensível quando não se sabe que, para Aristóteles (Metereológica) e para Sêneca (Questões naturais), os terremotos são provocados pelo ar sob pressão que circula sob a crosta terrestre e que busca um caminho na superfície para chegar a seu lugar natural, segundo a teoria dos elementos:

A grande causa dos terremotos é, portanto, o ar, um elemento móvel por natureza e que circula de um lugar a outro. […] Depois, quando ele percorreu, sem poder escapar, todo o lugar que o mantinha fechado, ele bate nas paredes sobre as quais ele havia se jogado com a maior força, e então, ou ele se perde nas passagens secretas criadas pela desagregação gerada pelo terremoto, ou ele se lança através da nova abertura que ele infligiu ao solo. Nenhum agregado pode retê-lo; ele rompe todos os entraves, leva com ele qualquer carga e, deslizando por estreitas fissuras, abre espaço e se liberta graças à potência indomável de sua natureza, sobretudo quando, violentamente agitado, ele faz valer seu direito (SÊNECA, 1961, p. 272).

Essas teorias foram trazidas ao gosto da época por sábios, como o padre jesuíta Joseph de Acosta (Historia natural y moral de las Indias, 1590) ou o doutor Juan de Cárdenas (Problemas y secretos maravillosos de las Indias, 1591), que tentavam explicar as particularidades da natureza americana. Este, num texto ornado por numerosas expressões metafóricas (a superfície do solo é comparada à pele de uma castanha ou à casca de um ovo mergulhado em água fervente), situa a ciência de sua época e explica por que a terra das Índias ocidentais é particularmente propícia aos terremotos:

Eu digo que, já que o abismo índico é cavernoso e a parte superficial da terra é muito densa e muito fechada, ocorre que os vapores, dissolvidos pelo sol a partir da umidade do centro, em muitos casos não podem escapar, pois os poros da terra, por onde deveriam sair, fecham-se e se apertam com muita facilidade; é por isso que, buscando uma saída e uma abertura, eles fazem tremer e sacudir a terra com frequência; e assim o problema é resolvido (CARDENAS, 1988, p. 96).

Assim, tendo pedido aos habitantes da Guatemala para cavar buracos em seus jardins, as autoridades municipais pensavam oferecer uma passagem aos ventos violentos que, para furar a crosta que os aprisiona, sacodem a superfície do solo. Essas escavações, concebidas como os poros da pele, deveriam ter o papel de verdadeiras válvulas de segurança. Essa interpretação foi amplamente difundida na literatura científica do mundo antigo. Ela é encontrada no grande poema intitulado Etna, geralmente atribuído a Virgílio, apesar de todas as dúvidas sobre sua redação: “São os ventos que provocam esses distúrbios violentos; através de seus furiosos turbilhões, lançam essas matérias contra si mesmas, massa espessa que eles fazem girar e rolar para fora das profundezas. Eis a causa que permite prever o iminente incêndio da mon-tanha” (VIRGILIO, 1961, p. 17). Sem o saber, Gabriel Ramírez inscrevia-se assim numa tradição científica muito antiga que teve um papel central em numerosos deslocamentos de cidades na América hispânica durante a época colonial (MUSSET, 2002, p. 61).

 

A realização da transferência

Em 2 de março de 1943, os geólogos enviados pelo governo central consideravam ainda que as cidades em torno do Paricutin não corriam perigo imediato: “é por isso que fizemos um grande trabalho de persuasão para convencer os habitantes a irem para casa. Como conseqüência dos acontecimentos anteriores, o turismo aumentou de modo considerável”6, enquanto numerosas famílias sem recursos já haviam começado a deixar as zonas mais ameaçadas. Essa atitude se explica em parte pelo desejo do Estado de não abandonar uma polegada do território nacional. Nesse sentido, o governo mexicano se posicionava de modo diferente das estratégias desenvolvidas pela Coroa durante o período colonial para garantir a continuidade da presença espanhola em espaços muito vastos e mal controlados. Como os conquistadores haviam feito dos centros urbanos os pivôs e os guardiões de seu sistema políticoeconômico, a administração real freqüentemente hesitou antes de permitir a dispersão dos cidadãos dos quais ela tanto precisava para impor sua presença no Novo Mundo. Esse é o sentido da carta de 21 de fevereiro de 1607 endereçada pelo Rei às autoridades peruanas para felicitá-los por ter impedido os habitantes de Arequipa, fortemente atingida por um violento terremoto, de desertar suas casas: “isto foi muito bom, como vocês nos disseram ter feito, de animar e reconfortar os habitantes de Arequipa, de Arica e da Villa de Anama, para reparar os estragos provocados pelo terremoto que os atingiu e para que eles não abandonem, mas, ao contrário, reconstruam”7

Entretanto, apesar da vontade política apregoada de não ceder às forças da natureza, os habitantes da cidadezinha de Paricutin foram obrigados a abandonar o lugar a partir do mês de abril de 1943. Instalaram-se a alguns quilômetros dali, em Caltzontzin, em terras compradas pelo Estado de proprietários privados ou cedidas por ejidos vindos da Revolução. A tarefa de planejar a nova aldeia e de distribuir de modo equivalente as terras agrícolas necessárias à sobrevivência das famílias foi confiada às autoridades locais (Delegación Agraria do Michoacán e Oficina de Promoción Ejidal). Alguns meses mais tarde, a corrente de lava começou a aproximar-se perigosamente de San Juan Parangaricutiro. O município inundou com cartas e telegramas os serviços da Presidência e os escritórios do governador do Estado para expor às autoridades competentes o terror de sua cidade agonizante. A partir de setembro de 1943, a agricultura local não podia mais alimentar a população. Em dezembro, as reservas de milho, de feijão e de arroz estavam esgotadas, e o espectro da fome havia feito sua aparição. Como na época colonial, quando o cabildo pedia ao Rei, sem muita esperança, que ele viesse visitar as populações atingidas por um terremoto, os membros do conselho municipal sugeriam ao presidente que viesse ao local para dar-se conta da situação: “o caso é tão grave que mereceria sua visita às zonas afetadas, e então encontraríamos um remédio definitivo”8.

A questão do abandono da cidade e do deslocamento da população para um lugar menos exposto tornou-se um assunto de debates intensos no seio da comunidade, pois tal decisão nunca é fácil de ser tomada. Já na época colonial, ela era freqüentemente percebida como um fracasso pelos habitantes, obrigados não somente a abandonar suas residências e perder seu patrimônio em terras mas também a questionar o status social que eles puderam adquirir ao longo do tempo. Apenas a menção desse tema já separava a cidade em dois campos (partidários e adversários da transferência), como o demonstram os grandes debates organizados em 1717 na Guatemala, por ocasião das reuniões do Conselho municipal ampliado à população, ou os da controvérsia de 1773, quando a Coroa finalmente impôs a evacuação da Ciudad de Santiago. Podem ser encontrados esquemas idênticos, complicados por rivalidades pessoais e disputas políticas ou religiosas, em quase todos os projetos de deslocamento. A hora da escolha é assim um momento chave da história da cidade hispano-americana, quando as solidariedades de fachada apagam-se diante das profundas clivagens da vida colonial e que a sociedade humana se revela em toda a sua diversidade (MUSSET, 2002, p. 203).

Na transferência de San Juan Parangaricutiro, as mesmas hesitações paralisaram os membros da comunidade, divididos entre o medo de perder todos os seus bens, seu desejo de não abandonar uma cidade amada e a necessidade de escapar da ameaça vulcânica. Assim, Paula Galván recusou-se até o fim a abandonar sua casinha de Paricutín: “A mí, me trajeron a fuerzas, yo no queria salirme de mi pueblito, hasta nos enojábamos con mi esposo porque yo no quería salir” (VALENTIN, 1995, p. 40). Em contrapartida, após uma visita realizada à região, em maio de 1943, o bispo auxiliar de Zamora, Salvador Martinez Silva, declarou-se abertamente a favor do abandono da aldeia e até mesmo de San Juan, no entanto mais afastada da cratera em fogo, apesar da oposição de uma grande parte dos habitantes:

todos tienen opiniones distintas sobre lo que debe hacer el pueblo y todos se empeñan en que se haga lo que piensan, especialmente un grupo numero de hijos de San Juan insisten en no salir y en que no salga el señor de los Milagros (idem, p. 45).

Em 27 de dezembro de 1943, um debate público foi organizado pelas autoridades municipais na prefeitura, para ouvir as propostas de cada uma das 250 pessoas (“todos vecinos y Jefes de casa”) que participaram dessa reunião, como nos cabildos abiertos da época colonial. Recusando a idéia de abandonar sua casa, J. Jesús Ortíz tentou convencer a assembléia de que não era necessário preparar um deslocamento, pois a lava ainda não havia atingido a aldeia. Outros ressaltaram que as propostas de re-alojamento feitas pelas comunidades vizinhas não eram viáveis, pois os agricultores não poderiam dispor de terras cultiváveis em quantidade suficiente. Entretanto, a situação era muito crítica para retardar ainda mais o inevitável e uma moção quase desesperada foi votada pela maioria: “tan luego como la lava abanse hasta el panteón municipal del lugar, se prosederá al traslado del pueblo”.9

Em 1997, pude encontrar um dos protagonistas da transferência, don Celedonio Gutierrez Acosta, à época com 32 anos. Conversando com ele, eu tinha a impressão de folhear as páginas vivas de um dossiê que nunca havia sido colocado na poeira dos arquivos. No início dos anos 1940, don Celedonio era um pequeno camponês, que, como quase todos os seus vizinhos, cultivava milho e feijão e coletava a resina do pinheiro. Idealizador e proprietário de um minúsculo museu, dedicado à erupção do Paricutín e ao deslocamento de San Juan Parangaricutiro, ele me confirmou que muitos habitantes não estavam de acordo em abandonar suas casas. Intermináveis reuniões (“juntas y mas juntas”, para retomar a expressão de don Celedonio) precederam a decisão final, tomada a contragosto quando a lava já atingia as primeiras construções e corria lentamente pelas ruas da cidade.

No entanto, em pequenos grupos, os sinistrados já haviam começado a abandonar o lugar durante o ano de 1943 levando consigo suas magras economias. Um telegrama lacônico enviado pelo Presidente da República resume a situação desses infelizes: “partiram hoje os primeiros habitantes desse município, para Ario de Rosales, em busca de terras a colonizar. São 31 chefes de família, num total de 125 pessoas. A esses elementos falta absolutamente tudo”10. Somente no início de maio de 1944 os últimos ocupantes fecharam bagagens, em busca de um lugar favorável à instalação de suas famílias. Como lembra o museu oficial da nova cidade em que um afresco colorido representa a tragédia de 9 de maio de 1944: “Com lágrimas nos olhos, os habitantes deixam San Juan. A imagem abençoada do Senhor dos Milagres preside e guia sua peregrinação” (fotografia nº. 2). Até mesmo o padre Ezequiel Montaño, vigário da paróquia, reconheceu que essa decisão foi mal recebida por uma parte dos habitantes, que esperavam ainda uma intervenção divina. A saída da aldeia foi difícil, pois muitos habitantes tentaram impedir a partida do Cristo que protegia a comunidade (VALENTIN, 1995, p. 60)11

 

 

 

A escolha do novo lugar

Como revelam os arquivos da Presidência do general Avila Camacho, a escolha de um novo sítio para os habitantes de San Juan não foi fácil. Desde junho de 1943, o governo mexicano estudou diferentes possibilidades com o objetivo de partilhar seus próprios interesses, os projetos do município, os das comunidades vizinhas ou as propostas de particulares, cujas intenções nem sempre eram claras. Assim, desde agosto de 1943, os decisores de Villa Escalante (a antiga Santa Clara del Cobre), comovidos com a situação trágica dos habitantes de San Juan, propuseram aos sinistrados vir instalar-se nas terras de sua comunidade. Ela dispunha, com efeito, de bons terrenos para construir, que o governo poderia comprar e redistribuir aos novos cidadãos. Além disso, os agricultores privados de seus campos teriam a possibilidade de trabalhar nas terras agrícolas que certos proprietários já estavam dispostos a devolver ao Estado, como uma honesta retribuição. Além dos pequenos lucros que certos habitantes de Villa Escalante contavam realizar, o prefeito pensava nas possibilidades de desenvolvimento que poderiam ser oferecidas a uma comunidade cujo peso demográfico iria quase dobrar: “Nosso honorável conselho municipal considerou uma infinidade de razões de caráter econômico, consultando pessoas autorizadas deste local, que auguram uma era de progresso para nossas duas populações reunidas, tanto no plano político quanto econômico, graças a um crescimento notável das atividades”12.

Algumas boas almas ofereceram, por sua vez, terrenos magníficos que não pediam mais que sua valorização pelos camponeses experimentados. Assim, a Sra. Elpidia Piñon Romero sugeriu ao presidente da República a troca de 103 hectares de terra situados em Tlalpujahua (Michoacán) contra apenas meio hectare de terras aráveis no Distrito Federal, com o objetivo de ajudar os sinistrados a garantir sua substância. 13 A proprietária esperava sem dúvida fazer um bom negócio, contando com a mais-valia operada pela revenda de um vasto terreno para construção na capital mexicana. Ainda mais ambiciosos, os irmãos Del Valle aproveitaram a ocasião para oferecer às vítimas do Paracutín a liberdade de instalar-se em terrenos em que deveriam garantir a colonização agrícola, no lado do Pacífico do Estado de Oaxaca, segundo um acordo anterior assinado com o governo.14

No entanto, nesse domínio, o prêmio do maquiavelismo cabe sem dúvida ao governador do Estado de Chiapas, Rafael Pascacio Gamboa, que ofereceu a instalação gratuita de mil famílias de camponeses expulsos de suas casas pela erupção vulcânica em 15 mil hectares de terras aráveis situadas no município de Mapastepec. Essa doação generosa ocultava pensamentos mais geopolíticos, pois tratava- se, antes de mais nada, para o governador, de acelerar a valorização de espaços rurais pouco povoados e pouco explorados para impedir os imigrantes guatemaltecos de penetrar no território mexicano: “para resolver integralmente o problema que existe na fronteira de nosso país com a república vizinha da Guatemala, considerando- se a grande porcentagem de população guatemalteca que reside hoje nessa entidade, torna-se imperativa a adoção de medidas urgentes destinadas a desenvolver um verdadeiro trabalho de mexicanização da dita zona fronteira”.15

Abandonados esses projetos, a escolha do governador fixou-se num terreno próximo à capital regional, Uruapan, num lugar chamado Los Conejos – o que representa uma distância de mais de 30 quilômetros em vôo de pássaro em relação às torres da antiga igreja, que, depois da catástrofe, emergem da gangue de basalto expelida pelo vulcão (fotografia nº. 3). Na maioria dos casos que estudei em todo o continente americano e num período de quatro séculos, os deslocamentos foram de baixa amplitude. A cidade era mais constantemente reconstruída nas proximidades do local primitivo para evitar a mudança dos equilíbrios regionais instalados pelos conquistadores espanhóis. Além disso, era preciso respeitar os limites administrativos e políticos das cidades vizinhas, bem como os direitos sobre a terra das comunidades indígenas. Finalmente, os habitantes raramente queriam afastar-se de suas propriedades agrícolas, de suas minas ou dos Índios, que, de diversas maneiras, trabalhavam gratuitamente para eles. Foi assim que, em 1614, a pequena cidade de Nexapa (Oaxaca, México) propôs a operação de um deslocamento, que, segundo o relato de testemunhas convocadas diante das autoridades reais para estabelecimento do dossiê, não ultrapassava 160 ou 170 – isto é, um tiro de bacamarte.16 Tratava-se então de um simples deslizamento da cidade para o pé da colina em que ela se situava.

 

 

Para escapar às correntes de lava do Paricutín, os habitantes de San Juan Parangaricutiro não se contentaram com um pulinho (mapa): seu êxodo para Uruapan os inscreve na categoria particular dos deslocamentos de grande envergadura, como Guatemala Ciudad, Riobamba (Equador) ou San Miguel de Tucuman (Argentina). A grande quantidade de cinza jogada na atmosfera e a progressão da corrente de lava para o norte levaram as autoridades mexicanas a instalar os sinistrados a sudeste da cratera em erupção, num lugar que deveria garantir sua segurança. Entretanto, segundo don Celedonio Gutierrez, a principal preocupação dos deslocados era a de encontrar um terreno plano, próximo às suas antigas habitações e de seus campos devastados pela lava, e principalmente bem alimentado por água. Os arquivos da presidência confirmam o relato de velho agricultor, porque, num memorando endereçado ao general Avila Camacho em 12 de janeiro de 1944, os representantes da municipalidade baseavam sua argumentação em critérios solidamente ancorados em sua mentalidade há várias centenas de anos:

 

 

(...) uma solução possível seria localizar neste mesmo Estado de Michoacán uma zona não insalubre e com terras laboráveis, para onde poderíamos transferir a localidade de Parangaricutiro como unidade sociológica, evitando assim a dispersão das famílias que se sentem estrangeiras em outros meios sociais onde são agredidas, o que aumenta seu sofrimento (...). Seria preciso que esta zona fosse situada o mais perto possível de nossa cidade, porque poderíamos assim continuar a explorar a riqueza florestal da comunidade, que ainda é considerável.17

No século XX, a escolha de um novo lugar ainda se colocava em termos idênticos aos da época colonial, pois as necessidades materiais das populações deslocadas, muito dependentes do mundo rural, haviam mudado pouco. Os critérios evocados em 1944 pelos especialistas do governo mexicano inspiravam-se ainda nas recomendações de santo Tomás de Aquino, contidas no De Regimine principum (Do Governo dos Príncipes) e nas Nouvelles Ordonnances de découverte et de peuplement [Novas Ordens de descoberta e de povoamento] promulgadas por Philippe II em 1573 (BERTHE, 1986). As mesmas preocupações eram expressas pelos habitantes de Concepción de Chile, pequena cidade portuária destruída em 1751 por um terremoto e um tsunami. Para escolher um novo lugar, seus representantes enumeravam as regras mais simples, que deveriam ser sistematicamente aplicadas para fundar uma nova cidade: “Sete são as coisas que se deve ter como prioridade para tentar fundar cidades nas Índias. A primeira é que haja água nas proximidades, de modo a poder trazê-la sem que isto custe muito caro aos habitantes. Em segundo lugar, que haja fácil provimento de víveres. Em terceiro, que os materiais de construção não estejam muito afastados. Em quarto, que o clima seja saudável. Em quinto, que não se esteja exposto aos ataques dos Índios. Em sexto, que possamos nos defender dos piratas e dos inimigos do mar. Em sétimo, que, se nos encontrarmos perto de um rio, não haja risco de inundação em caso de cheia”.18

Essas recomendações inspiram-se em grande parte nas instruções reais de 1573, pois os pontos 1 e 3 do texto citado correspondem ao artigo 39 (“o lugar e o sítio das localidades devem ser escolhidos em lugares onde haja água nas proximidades e que se possa desviar para melhor aproveitar (...) e onde se encontrará materiais necessários para construir edificações”); o ponto 2 faz referência ao artigo 35 (“do mesmo modo, que eles sejam férteis e abundem de todas as frutas e de todos os alimentos”); o 4, ao 34 (“que se escolha a província vizinha e a terra que deve ser povoada considerando- se que ela seja salubre”); o 6, ao 41 (“não se deve escolher lugares para cidades em locais marítimos por causa do perigo dos corsários”).

Levando em conta todos esses critérios (excluindo-se a referência aos ataques de piratas), as autoridades federais finalmente escolheram o sítio de Los Conejos para instalar os habitantes da velha San Juan. Em 5 de janeiro de 1944, o conselho municipal endereçava um novo relatório ao Comitê Central pro-damnificados del Parícutin com o objetivo de justificar essa decisão, que inscreviase involuntariamente numa tradição de vários séculos:

En la asemblea efectuada el 27 de diciembre del año pasado llevada a cabo por 250 jefes de familia, según acta que para tal efecto nos permitimos acompañar, llegamos a un acuerdo de transladarnos a los ranchos denominados, o mejor dicho al rancho “los Conejos” de la cercanía de la Ciudad de Uruapan, por llenar este rancho los requisitos de nuestras necesidades, agua suficiente, tierras laborables y pastos para criaderos de ganado.19

 

Organização da nova cidade

Mesmo no caso de uma pequena aldeia, como San Juan Parangaricutiro e as cidadezinhas que a cercavam, a transferência da população, a reconstrução dos imóveis públicos e privados e a reorganização das atividades produtivas requeriam um custo que as comunidades locais eram incapazes de assumir sozinhas, o que obrigou seus representantes a pedir ajuda às autoridades federais. A partir de junho de 1943, o ministério das finanças concedeu ao governador de Michoacán uma ajuda financeira de cem mil pesos para a compra e a organização de uma grande fazenda próxima à estação de Caltzontzin. Tratava-se de criar um centro agrícola destinado a alojar habitantes da cidadezinha de Paricutín, engolida pela lava, e de dar-lhes terra cultiváveis: ao todo, 1.314 hectares, dos quais três quartos provinham de ejidos já constituídos, os de San Francisco Uruapan, de Toreo el Alto e de Toreo el Bajo. Essa decisão, adaptada sem dificuldade pelos agricultores de San Francisco, foi violentamente criticada pelo conselho ejidal de Toreo el Bajo, que se sentia destituído de uma parte de seu território e de seus recursos econômicos.

Os serviços administrativos do ministério da agricultura prestaram auxílio aos sinistrados para planejar a reconstrução de sua cidade. Os especialistas decidiram que seria possível construir dois tipos de casas: as de adobe eram incontestavelmente mais econômicas (650 pesos) e mais robustas, mas não se podia construir em plena estação de chuvas. Foi preciso então voltar-se sobre edifícios de madeira, não apenas mais custosos (1.200 pesos por unidade), como mais frágeis. Além disso, tratava-se somente de alojamentos pequenos e rudimentares, de 6x4 metros, com 3,5 metros de altura.20

Quando, após muitas hesitações e delongas, o deslocamento de San Juan Parangaricutiro pareceu inevitável, os notáveis de San Juan enviaram por sua vez um memorando ao presidente Avila Camacho para deixá-lo a par do grande desamparo dos habitantes. Eles lhes pediam para garantir seu sustento permitindo-lhes instalar-se em novas terras: “para cada chefe de família dar-se-ia uma parcela suficiente conforme a qualidade do terreno, instrumentos de trabalho, sementes e uma casa para sua família, ainda que muito modesta e o menos custosa possível”.21 Os habitantes se declaram prontos a reembolsar ao Estado uma parte das somas avançadas, se o trabalho dos campos permitisse, dentro de um prazo mais ou menos longo, retirar lucros. No caso em que não mais fosse possível explorar as florestas de pinheiros, que representavam uma grande fonte de renda para a economia local, os representantes da comunidade sugeriram que o governo favorecesse o desenvolvimento do artesanato e da pequena indústria na região, oferecendo ferramentas e máquinas aos camponeses sinistrados: “compreendemos bem que tudo isso é muito custoso, mas é a esse preço que se salva uma cidade”.22

Por outro lado, os chefes de família se declararam prontos a emigrar temporariamente para os Estados Unidos para trabalhar como diaristas (braceros) nas grandes explorações agrícolas instaladas ao norte do Rio Bravo. Alguns, como o marido de Paula Galvan, trabalharam vários meses nas plantações de laranja da Califórnia para ter com que suprir as necessidades de sua família (MENDOZA, 1995, p. 40). De qualquer modo, as autoridades federais e federativas encarregaram- se de boa parte dos custos pelo deslocamento dos habitantes para o Valle de los Conejos. Num telegrama de 31 de julho de 1944, três meses depois da partida dos últimos irredutíveis de San Juan, o general Felix Ireta, governador de Michoacán, assinala que ele teve de garantir o transporte de grande quantidade de madeira de construção destinada aos habitantes instalados no novo local. Ora, estamos nessa época em plena estação de chuvas, o que não resolve a situação dos sinistrados. O prefeito da cidade abandonada pede às autoridades pregos e pranchas para consertar os tetos de ripas (tejamanil) estragados pelas cinzas e sob a ameaça de deixar passar a água por todo lado. Várias cartas enviadas ao presidente da República ou às autoridades locais mostram o estado de desamparo das pessoas deslocadas, como a de Antonio Vergara, de 24 de junho de 1945, que pede ao presidente um auxílio financeiro para construir sua casa, pois, depois de ter perdido toda fonte de renda, ele se encontra coberto de dívidas.

A solidariedade nacional expressou-se por meio de numerosas iniciativas: organização de rifas em benefício dos sinistrados, em dinheiro ou espécie... Em outubro de 1943, a companhia Techo Eterno Eureka e o Banco Nacional Hipotecario Urbano y de Obras Públicas ofereceram às famílias mais desfavorecidas 4.000 m2 de placas de fibrocimento para a reconstrução de suas casas. Entretanto, esse afluxo de dinheiro e de material provocou às vezes a inveja das comunidades vizinhas, ou melhor, de seus dirigentes. Foi assim que, em novembro de 1945, o prefeito de Uruapan tentou desviar em seu proveito (ou em proveito de seus administrativos), tubos destinados à alimentação de água potável dos habitantes de Nuevo San Juan, o que provocou a ira legítima das vítimas do roubo, “com a circunstância agravante de que o material e os tubos são de propriedades da dita localidade e foram comprados graças ao aporte pessoal de seus habitantes”.23 Em 12 de fevereiro de 1945, um novo memorando foi enviado ao presidente da República para dar parte dos problemas econômicos enfrentados pela pequena comunidade (380 famílias) reunida pelas autoridades no Valle de los Conejos. Segundo o autor do relatório, havia urgência em se oferecer terras a esses refugiados e portanto em investir 90.000 pesos na compra de duas propriedades agrícolas situadas a alguns quilômetros do Nuevo San Juan. Apesar do preço atraente, inferior ao real valor, tratava-se de um investimento considerável, podendo ser assumido apenas pelo Estado federal. Ainda era preciso acrescentar a essa soma o custo dos animais de tiro ou de carga, indispensáveis ao bom andamento de uma exploração tradicional.24

Entretanto, pouco a pouco a nova cidade tomava forma. O primeiro imóvel construído foi a basílica dedicada ao Cristo dos Milagres, inaugurada em 1955 (fotografia nº. 4). Nessa ocasião, o Estado anti-clerical vindo da Revolução não queria avivar o fogo com sua oposição ao grande projeto de uma Igreja católica, amplamente sustentado pela população. De um modo totalmente clássico, os engenheiros e arquitetos designados pelo governo elaboraram um projeto de urbanismo que não se diferenciava dos cânones em vigor na época colonial: em torno de uma grande praça central articulava-se uma rede de vias orientadas no sentido norte-sul e leste-oeste, que se cruzavam em ângulo reto, formando vastas manzanas perfeitamente geométricas. Mais uma vez, o confronto entre os arquivos coloniais (ou republicanos) e a memória de um habitante de San Juan Parangaricutiro mostra que a reconstrução de uma cidade nunca deixou de ser fonte de conflito entre grupos com interesses divergentes, mas também entre as autoridades locais e nacionais ou entre os arquitetos e a população. Quando o engenheiro enviado pelo presidente da República apresentou seu projeto urbano aos habitantes de Nuevo San Juan, em 1944, ele provocou incompreensão. “Por que o senhor faz ruas tão grandes ?”, perguntoulhe don Celedonio Gutierrez, observando que o projeto previa artérias de vinte metros de largura (fotografia nº 5).

 

 

 

Os lotes de maior prestígio, situados em torno da praça central, da igreja e da prefeitura, foram atribuídos às pessoas que poderiam construir imediatamente sua residência. Oficialmente, tratava-se assim de evitar a formação de “dentes esburacados” e de terrenos vagos durante a fase inicial da construção. Os outros, aqueles que não podiam financiar suas casas, foram instalados nas zonas periféricas da nova cidade. Foi o caso de don Celedonio, cuja modesta casa se encontra hoje num terreno que na época estava situado às margens do espaço urbanizado. Essa política restritiva permitia dar à cidade em construção, o mais rápido possível, um rosto quase definitivo, favorecendo a emergência de uma paisagem urbana homogênea. No plano funcional, a estratégia utilizada permitia rentabilizar as operações de organização urbana e reduzir o custo da implantação das redes, pois podia-se concentrar o esforço técnico e financeiro em espaços densamente ocupados em vez de dispersar as intervenções no conjunto do território a urbanizar. Ao mesmo tempo, tal escolha reforçava as estruturas tradicionais da cidade hispano-americana, pois todos os edifícios simbólicos do poder e do urbanismo encontravam-se reunidos num lugar central.

De modo indireto, a implantação desse modelo servia também (e talvez principalmente) para a reprodução das divisões espaciais e sociais que prevaleciam na cidade destruída. Através dos séculos, o mesmo sistema foi utilizado para que cada um permanecesse em seu lugar tanto na sociedade quanto no espaço urbano. Foi assim que, após o grande terremoto de 1751 e o deslocamento da cidade para Horca, os oficiais municipais de Chillán foram encarregados de vender e atribuir à maior oferta os lotes recortados em quarteirões próximos à praça central, a fim de preservar o equilíbrio econômico e social da comunidade. Esse sistema de atribuição permitia aos cidadãos mais ricos de instalarem-se perto dos locais do poder e assegurava a perenidade da organização política da cidade. Para garantir a legitimidade dessa partilha, todos aqueles que haviam obtido um cargo municipal eram considerados como prioritários para adquirir um terreno dos lados sul e oeste da praça central, ou nos oito quarteirões que formavam o primeiro quadrado da cidade. Os outros vecinos, menos afortunados ou menos implicados na vida pública (o que constantemente vinha junto) deviam passar pelo sorteio para receber um lote edificável.25 Nesse sentido, o abandono de San Juan Parangaricutiro e a construção do Nuevo San Juan inscrevem-se numa longa tradição hispano-americana em que, para as elites econômicas e para o poder político, a reprodução da forma urbana ainda é o melhor meio de garantir e de perpetuar a ordem social.

 

Conclusão

Segundo os dados do último recenseamento (2000), a Nova Parangaricutiro conta com mais de 15.000 habitantes e sua economia permanece voltada para o mundo rural e para a exploração dos recursos florestais. Paradoxalmente, a nova cidade deve uma parte de sua prosperidade atual ao desastre que conduziu à destruição da primeira San Juan. Com efeito, numerosos turistas nacionais ou estrangeiros continuam a visitar os vestígios da igreja engolida pela corrente de lava em 1944, ainda que os fluxos tenham se estagnado desde que o Paricutín não está mais em atividade. Questionado por Rafael Mendoza Valentin, Ramón Guerrero se lembra com melancolia dos bons tempos em que ele levava os visitantes às proximidades do vulcão:

Para nosotros y para los que vendían cosas en el campamento, era de mucha alegría lo del volcán. Estabamos gustosos, porque iban muchos turistas. Es que así nos llegaba nuestro dinerito (VALENTIN, 1995, p. 65).

Mais do que as torres da velha igreja emergindo do mar de basalto, é a basílica do Senhor dos Milagres que a cada ano atrai milhares de peregrinos: graças à imagem do Cristo que soube proteger seus fiéis contra a cólera do vulcão, a Nova San Juan tornou-se um centro religioso de primeira importância. As paredes da basílica são cobertas de ex-votos e de pinturas primitivas evocando as curas miraculosas e as intervenções divinas atribuídas ao protetor da comunidade indígena. O Senhor dos Milagres atingiu tal renome que cópias são enviadas às paróquias mexicanas que as pedem e para as quais uma comissão avalia o mérito – pois trata-se de não desvalorizar uma imagem santa tão carregada de símbolo e de poder (fotografia nº. 6) . Esse brilho é a prova de que o deslocamento de San Juan Parangaricutiro para o Valle de los Conejos foi um sucesso, ainda que o abandono do primeiro local tenha sido um despedaçamento para seus habitantes. Esse caso exemplar não foi um acidente: ele se inscreve numa tradição solidamente ancorada nas práticas sociais e culturais importadas pelos espanhóis para o Novo Mundo e cujo impacto sobre os sistemas urbanos e a organização dos territórios ainda não foi bem avaliado.

 

 

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Endereço para correspondência
E-mail: musset@ehess.fr

Recebido em 11/07/2006
Aceito em 27/09/2006

 

 

*Nascido em 1959 em Marseille, na França. Geógrafo, especialista em América Latina, planejamento urbano e representações do espaço. Foi aluno da École Normale Supérieure - ENS (Paris). Membro do Groupe de géographie sociale et d' études urabines e membro honorário do Institut Universitaire de France.
1 Nesse contexto, a história extraordinária de Mazagão, deslocada da costa marroquina até a florestaamazônica no século XVIII, aparece como uma exceção e um caso extremo (ARAUJO, 1998; VIDAL, 2005)
2
Ainda que o número de casos seja impressionante, o con-junto não pretende ser exaus-tivo. Nenhum catálogo jamais poderá recensear as cidades que, nos últimos cinco séculos, foram deslocadas para um território tão vasto quanto o do antigo império espanhol da América. Além disso, certas cidades foram deslocadas várias vezes, como Truxillo (Venezuela), qualificada em sua época como “ciudad portatil” por Antonio de Alcedo (1967)
3 Archivo General de la Nación (AGN-México), Avila Camacho, 561.4/15-13. Comisión impulsora y coordinadora de la investigación científica, 15 de enero de 1944
4 Entre 1926 e 1929, a “Christiade” ensangüentou todo o México ocidental. Foi preciso esperar o ano de 1934 e a chegada ao poder do general Lázaro Cárdenas (originário de Michoacán, um dos principais centros da insurreição) para que as perseguições contra os padres e os cristeros (soldados do Cristo) fossem finalmente abandonadas
5 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Carta de del Sr Gabriel Ramírez al Sr Presidente de la República
6
Telegrama do governador do Estado de Michoacan ao Presidente da República, em 2 de março de 1943
7 Biblioteca Nacional (Madrid), Ms 2989, f. 362
8 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Carta al Gral Manuel Avila Camacho, 12 de enero de 1944
9 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Acta de la asemblea efectuada el 27 de diciembre de 1943
10 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13, telegrama nº 23 487, de 3 de agosto de 1943. 11 A viagem realizada para chegar ao local do Nuevo San Juan durou três dias. Uma primeira etapa conduziu os sinistrados até Angahuan (4 km), onde uma grande missa reuniu toda a comunidade. Em 11 de maio, chegaram a Uruapan, após uma longa marcha de 33 quilômetros. Esgotados, passam a noite diante da igreja de San Francisco. Na manhã seguin-te, um último esforço os leva para a “terra prometida”, o Valle de Los Conejos, situado a 10 quilômetros a oeste da capital regional 11 A viagem realizada para chegar ao local do Nuevo San Juan durou três dias. Uma primeira etapa conduziu os sinistrados até Angahuan (4 km), onde uma grande missa reuniu toda a comunidade. Em 11 de maio, chegaram a Uruapan, após uma longa marcha de 33 quilômetros. Esgotados, passam a noite diante da igreja de San Francisco. Na manhã seguin-te, um último esforço os leva para a “terra prometida”, o Valle de Los Conejos, situado a 10 quilômetros a oeste da capital regional
12 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Carta del Presidente Municipal de Villa Escalante al Presidente Municipal de San Juan Paran-garicutiro, 2 de agosto de 1943
13 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13, carta del 5 de abril de 1943
14 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13, carta del 7 de abril de 1943
15 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13, carta del 16 de diciembre de 1943
16 AGN, Tierras, 79, exp. 4
17 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13, Memorandum para el Señor Presidente de la República, 12 de enero de 1944
18 Archivo General de Indias (Sévilla), Chile, 147, 6a, f. 7 v
19 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Memorandum al Comité Central pro-damni-ficados del Parícutin, 5 de enero de 1944
20 Para evitar desvios de fundos, o governador de Michoacán sugeriu dar apenas 300 pesos para cada chefe de família, sendo o resto depositado à medida do avanço dos trabalhos. A ajuda financeira do governo federal era estimada em 55.800 pesos, aos quais se deviam acrescentar 21.500 pesos para a compra de 50 parelhas de bois e 1.500 pesos destinados à aquisição do mesmo número de carro-ças, sem contar o material necessário para levar água de uma fonte situada a 1.500 metros aos habitantes da nova cidade (AGN, Avila Camacho, 561.4/ 15-13. Me-morandum para el Señor General de División Manuel Avila Camacho, Presidente de la República, 11 de junio de 1943)
21
AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Memorandum para el Señor Presidente de la República, 12 de enero de 1944
22 Ibidem.
23 AGN, Avila Camacho, 561.4/15-13. Carta de 6 de dezembro de 1945, Confederación de Obreros y Campesinos de México
24 Nesta época, a paridade média do peso mexicano com o dólar norte-americano era de 4,85. O salário cotidiano da mão-de-obra não ultrapassava 1,5 pesos no Michoacán, mas uma família precisava de 6 a 7 pesos por dia para sobreviver
25 Archivo General de Chile, Capitanía General, vol. 983, n° 17514, f. 272-272v.

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