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Psicologia: ciência e profissão

versión impresa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.8 n.2 Brasília  1988

 

A violência contra a mulher

 

 

São de vários tipos as violências cometidas contra a mulher, mas silenciadas pela absoluta falta de mecanismos sociais que garantam a preservação de seus direitos. Recentemente, passaram a ser denunciadas devido ao surgimento de entidades especializadas no atendimento destas mulheres. É o caso da Casa da Mulher fundada em 1977 por um grupo feminista, em São Paulo. Além de atividades de conscientização feminista, a Casa oferece atendimento gratuito a mulheres vítimas de violências físicas, morais, sexuais etc. Faz parte da equipe de atendimento da Casa da Mulher a psicóloga Denise Medeiros Furtado Varela que prestou o seguinte depoimento:

"De início, a Casa da Mulher trabalhava só na linha do feminismo propriamente dito. Participava de encontros, promovia palestras e fazia grupos de orientação feminista. De 5 anos para cá, também começou a fazer uma prestação de serviços gratuita para as mulheres vítimas de agressões, de violência etc.

Há pouco tempo, a mulher agredida procurava fazer queixa na Delegacia Policial do bairro e quem a atendia batia nas costas dela, dizendo: 'vai para casa porque é assim mesmo; briga de marido e mulher a gente não mete a colher'. Então, não se fazia nada. Agora, depois da criação das Delegacias da Mulher, as vítimas de violência começaram a aparecer e elas são encaminhadas para a Casa da Mulher, que tem um convênio com a Procuradoria do Estado, a fim de entrar com os processos na Justiça e acompanhá-los. Passamos a atender uma demanda muito grande de mulheres encaminhadas para a Casa da Mulher pelas Delegacias. Fizemos um levantamento no 1º semestre de 88 e atendemos 356 mulheres em uma primeira entrevista.

Como é feito o atendimento?

Existe uma triagem inicial do ponto de vista jurídico. As mulheres recebem das advogadas orientações relativas aos seus direitos nos casos de separação conjugal. A partir daí, existe a possibilidade de atendimento psicológico individual ou grupal. Para as mulheres, o atendimento jurídico que resolva a questão familiar é prioritário, mas procuramos mostrar para elas a importância do atendimento psicológico. Mostramos que resolver na Justiça é importante, mas elas precisam também mudar a sua atitude diante da vida para que esses problemas não retornem.

Elas trazem com freqüência problemas de espancamento ou de ameaça de violência. São as mulheres chamadas de alto risco de violência. Elas trazem o Boletim de Ocorrência (BO) policial e já fizeram o exame de corpo-delito. Às vezes, trazem um calhamaço de BOs e dizem para tirar esse marido de dentro da casa porque 'ele vai me matar ou eu mato ele; não tem mais condições de vivermos juntos'. Neste caso, elas ficam recolhidas na Casa da Mulher Espancada, fundada em junho deste ano, durante um período de até 3 meses, levando os filhos para lá enquanto começam a tentar uma reestruturação de sua vida.

Existe uma série de problemas de relacionamento que já vêm ocorrendo e culminam com a violência física, sexual ou ameaça de violência moral. Às vezes, a mulher vem até nós e diz: 'O meu marido não é tão ruim porque ele não me bate'. Se formos verificar toda a situação, este marido a agride verbalmente, desmoralizando-a. Estamos procurando trabalhar no sentido de diminuir este tipo de problema.

De forma geral, constatamos que a questão econômica determina muito o grau de violência praticada. São as pressões de desemprego, de moradia, de dupla jornada de trabalho da mulher, de a mulher ser ainda uma força de trabalho menos paga em termos de atividades iguais às do homem etc. Tudo isso faz com que se crie um clima de tensão interna que acaba levando à violência.

Uma forte dependência emocional

Um problema muito mais sério do que a dependência financeira de mulheres trabalhadoras em nível operacional (domésticas, copeiras, faxineiras etc.) é a dependência emocional muito grande em relação ao marido. Por exemplo, um marido alcoólatra que espanca a mulher, que não provê a casa etc. Essa mulher vive nessa situação durante 15, 20 anos. Ela não pode alegar que não se separa por causa dos filhos porque estes já estão criados e afastados de casa. Alguém pergunta para essa mulher: 'Por que você não resolve o seu problema?'. Ela responde: 'Ah, eu tenho pena dele porque, se eu me separar dele, ele vai virar indigente'. Acontece que ela confunde os papéis de esposa com os de mãe. Ela também assume a condição de maternidade em relação ao marido, mantendo o casamento deles durante muitos e muitos anos. Isso se constata num grande número de casos que nós atendemos, porque apenas 50% dizem que vão se separar e fazem realmente o que se propuseram.

Elas chegam a denunciar o marido, mas não chegam a se separar. Por sua vez, o homem acaba se acomodando porque lá na Delegacia não resolvem o problema. Inclusive, a própria mulher pode recuar. Ainda hoje se vê de forma muito negativa a mulher separada que é considerada uma ameaça, uma mulher de mil homens etc. O que elas mais afirmam é: 'ruim com ele, pior sem ele'. Como acabam, muitas vezes, não levando adiante a sua decisão, os maridos se acomodam também.

Os distúrbios emocionais mais graves

Em alguns casos, elas podem apresentar distúrbios mentais muito acentuados. Não sei dizer se são causa ou efeito, mas tenho encontrado alguns casos de mulheres que já apresentam um distúrbio mental até a nível de surto psicótico. Elas vivem num ambiente desses, como já descrevi, e acabam sendo as depositárias dos problemas de todo mundo. Dizem que 'ela é louca, desequilibrada, então vamos bater nela porque assim ela não dá trabalho para a gente'. São condições de tortura. Entretanto, quando analisamos a dinâmica familiar, constatamos que ela teve um distúrbio mental e ela é a pessoa mais estruturada nessa família porque ela denuncia os problemas.

Posso citar um outro caso bastante revelador. O problema do alcoolismo masculino é muito acentuado, embora também existam os casos femininos que são muito menos denunciados. Em um dos nossos grupos de mulheres, diversas delas tinham marido com problemas de alcoolismo. Uma delas dizia que o problema dela não era tão grave assim como as outras estavam falando. Ela dizia: 'O meu marido só fica nervoso quando bebe. Ele fica nervoso, pega o revólver e fica virando o tambor do revólver na minha cabeça, pela casa toda. Outro dia ele até deu um tiro na cozinha porque estava de fogo, mas ele não é assim'. Quer dizer, a patologia dessa mulher está tão preocupante quanto a do marido. Ela nem estava conseguindo perceber a gravidade da situação. Por isso, existem conteúdos que precisam ser trabalhados a nível emocional da mulher, para ela não precisar se apoiar tanto no marido como uma muleta. Ela consegue sentir-se gente somente quando tem um marido ao lado dela.

As diferenças entre a mulher espancada e a estuprada

A experiência de atendimento em grupo (no máximo de 15 participantes) dessas mulheres é importante porque cada uma ouve o depoimento da outra e isso serve para mobilizá-las mesmo. A mulher espancada se sente diferente da mulher estuprada. Elas distinguem estas duas situações, muito intensamente. Se a mulher chega muito machucada, há muita solidariedade no grupo para este tipo de problema. Por exemplo, uma delas diz que estava com hematoma no rosto porque tinha levado uma pancada com uma barra de ferro. Em resposta, uma outra abre a roupa e mostra: 'Olha, eu também estou machucada; só não estou no rosto como você' . Já no caso da violência sexual, as mulheres têm mais dificuldade de se colocar dessa forma.

No caso do estupro, é um problema peculiar porque o homem agressor não vê a mulher como pessoa, mas um objeto sexual. Existem homens que até dizem: 'Bom, fui eu que fiz essa mulher, então vou ser o primeiro a usar'. Por essas razões, a mulher estuprada vive um momento emocional mais conturbado do que a mulher espancada, e ela precisa de um atendimento individual, principalmente se essa mulher é esposa ou filha do homem que a violentou sexualmente.

As dificuldades diante do abuso sexual

O problema do abuso sexual é uma queixa que não aparece no início, mas somente no meio do atendimento. E muito difícil para a mulher chegar e declarar: 'olha, eu saí de casa porque o meu marido está tentando violentar a minha filha'. Somente aos poucos, vai aparecendo durante o atendimento o problema de o homem forçar a mulher a ter relações sexuais, ou por exemplo, usar os filhos como espectadores da situação. A mulher coloca na cabeça que deve se submeter e se comportar dessa maneira porque ela foi criada para servir ao marido no casamento. Só que, muitas vezes, isso vai criando uma proporção tamanha que ela precisa denunciar. Ainda quando resolve denunciar, ela se sente dividida e culpada.

Neste tipo de atendimento, enfatizamos a importância de fazer a denúncia para não ser cúmplice dessa violência. É o caso de um marido que abusa de uma enteada. A mulher encara essa situação como se a filha de 12 ou 13 anos estivesse 'provocando' o padrasto, então essa filha é colocada para fora de casa porque quer tirar o marido dela.

No atendimento de violência sexual, lidamos com a desestruturação emocional da mulher, sobretudo a situação de vergonha e de humilhação que ela vive. Não se chega a uma reestruturação de personalidade como se chega numa terapia de longa duração, embora este seja o objetivo do nosso trabalho psicológico, se tivermos condições de desenvolvê-lo."

O endereço da Casa da Mulher é: Rua 13 de Maio, 47, tel.: (011) 255-5732, São Paulo.