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Construção psicopedagógica

versión impresa ISSN 1415-6954versión On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.34 no.35 São Paulo  2024  Epub 24-Jun-2024

https://doi.org/10.37388/cp2024/v34n35a05 

RELATO DE PEQUISA

A PARTICIPAÇÃO DO CUIDADO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

THE INFLUENCE OF THE CARE OF THE TEACHERS OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN THE SUBJECTIVE CONSTITUTION

Maria Aparecida de Carvalho1 

Rosa Maria Tosta2 

1 Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Membro e triadora da rede de atendimentos do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos. E-mail: map.decarvalho@gmail.com.

2 Doutora em Psicologia Clínica e docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Membro do EPW-SP - Espaço Potencial Winnicott/Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: rosamariarmt@terra.com.br.


RESUMO

O objetivo do presente artigo foi apontar a percepção que educadoras – professoras e coordenadora – de um Centro de Educação Infantil (CEI) da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) têm sobre o cuidado praticado em suas funções diárias, como parte do desenvolvimento emocional infantil, bem como que lugar esse conhecimento opera na prática cotidiana. Empregou-se o método psicanalítico para a análise de cinco entrevistas semidirigidas, realizadas em uma unidade educacional. A faixa etária (0 a 3 anos e 11 meses) atendida pelos CEIs compreende uma fase do desenvolvimento à qual importantes autores da psicanálise conferem relevância. A explanação do tema se deu a partir dos excertos extraídos das entrevistas, fundamentadas na psicanálise – especialmente de Donald W. Winnicott e de contribuições advindas de seus comentadores e autores que, de algum modo, estabelecem um diálogo entre a psicanálise. Com os resultados da pesquisa, buscamos refletir e contribuir com intervenções que contemplem a educação, em duas frentes, quais sejam: com discussões que pautem a construção de políticas públicas na educação infantil; sobre o cuidado do professor como propulsor e participante da constituição subjetiva da criança, professor este que se mostra com capacidade de exercer cuidados suficientemente bons, mesmo sem ter se apropriado das teorizações. Pois, embora não o saibam, as educadoras, em muitas ações e discursos, apresentam preceitos da psicanálise, e este intercâmbio se mostra promissor, na medida em que alguns de seus conceitos podem efetivamente contribuir, fornecendo sustentação ao ambiente e ações, de modo a ressignificar a educação, com prevenção, e também na promoção de saúde.

Palavras-Chave: Desenvolvimento emocional; Cuidado; Professor de educação infantil; Psicanálise

ABSTRACT

The objective of this article was to point out the perception that educators – teachers and coordinator – of a Child Education Center (CEI) of the Municipality of São Paulo (PMSP) have about the care practiced in their daily functions, as part of the emotional development of children, as well as what place this knowledge operates in everyday practice. The psychoanalytical method was used for the analysis of five semi-directed interviews, carried out within the educational unit. The age group (0 to 3 years and 11 months) served by the CEIs comprises a phase of development to which important authors of psychoanalysis give relevance. The explanation of the theme was based on excerpts extracted from the interviews, grounded in psychoanalysis – especially Donald W. Winnicott and contributions from his commentators and authors who, in some way, establish a dialogue between psychoanalysis. With the research results, we seek to reflect and contribute with interventions that contemplate education, on two fronts, namely: with discussions that guide the construction of public policies in early childhood education; about the teacher’s care as a driver and participant in the subjective constitution of the child, a teacher who shows himself with the ability to exercise good enough care, even without having appropriated the theorizations. For, although they do not know it, the educators, in many actions and speeches, present precepts of psychoanalysis, and this exchange is promising, insofar as some of their concepts can effectively contribute, providing support to the environment and actions, in order to re-signify education, with prevention, and also in health promotion.

Key words: Emotional development; Care; Early childhood education teacher; Psychoanalysis

Introdução

O presente artigo deriva da experiência profissional da pesquisadora na educação pública em Centros de Educação Infantil (CEIs) da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), bem como no atendimento na clínica psicanalítica. Trata-se, portanto, de um trabalho de interface, que estabelece uma interlocução entre educação e psicanálise.

As crianças que frequentam os CEIs passam boa parte das fases de seu desenvolvimento emocional no interior da unidade escolar, período este em que ocorrem importantes processos e aquisições de ordem emocional. Tal aspecto nos motivou a refletir acerca da importância dos cuidados como propulsores no avanço dos processos de desenvolvimento, razão pela qual apontamos a estreita relação existente entre saúde e educação.

Neste sentido, notáveis autores da psicanálise conferem relevância ao desenvolvimento emocional, nos anos iniciais da criança, e ao seu caráter determinante no curso da estruturação psíquica. Assim, destacamos a figura de Donald Woods Winnicott, que assinala que muitas coisas ocorrem no primeiro ano de vida da criança e, deste modo, o desenvolvimento emocional vai se dando no decorrer da evolução da personalidade e do caráter do indivíduo. Também não se pode ignorar os acontecimentos ocorridos nos primeiros dias e horas de vida, já que, do pré-natal até o nascimento, toda experiência pode ser significativa, o que, inevitavelmente, inclui a relação com o outro, por meio dos cuidados primários.

Sigmund Freud ([1969] 1996) destaca a questão da escolha de objetos proveniente da primeira infância. Em suas palavras:

Pode-se considerar como ocorrência típica que a escolha de objetos se efetue em dois tempos, em duas ondas. A primeira delas começa entre os dois e cinco anos e retrocede ou é detida pelo período de latência (...) (FREUD, [1969] 1996, p. 188).

Na etapa da primeira onda supramencionada por Freud, as crianças que frequentam os CEIs permanecem diariamente em contato com educadores e/ou demais funcionários das unidades escolares por mais de nove horas. Decorre daí a importância relativa à comunicação nesta relação, que demanda do professor condições para “decodificar” as necessidades das crianças. Nesta direção, Tosta (2012) discorre sobre a mutualidade, isto é, relação entre mãe e bebê (em conjunto com a provisão ambiental). E, aqui, podemos transpor também para a relação professor e criança, já que o primeiro compõe o ambiente, podendo ocupar o espaço na função de holding, destacada pela função “mãe ambiente”, considerando-se o enquadre winnicottiano.

O longo período de permanência das crianças nas unidades escolares confere à subjetividade relevância nesta comunicação silenciosa mencionada por Winnicott. Os educadores ocupam um lugar que lhes possibilita oferecer holding (sustentação); os CEIs figuram, para a maioria das crianças neles atendidas, como a primeira experiência de contato extrafamiliar, o que proporciona à unidade escolar uma oportunidade de aproximação precoce no que concerne aos estados iniciais da vida dessas crianças e, até mesmo, em relação a possíveis questões relativas a riscos na saúde psíquica, não percebidas no núcleo familiar.

O período de adaptação na unidade escolar exemplifica uma situação que pode ser vivenciada com maior ou menor dificuldade para a criança, educadores e família, a depender de como é visto e/ou manejado. O corpo docente e a equipe de gestão podem ou não dispor de condições para acolher possíveis dificuldades, o que traz desdobramentos.

Em geral, a dificuldade apresentada pela criança no período de adaptação indica uma insegurança parental ou dos responsáveis por seus cuidados básicos no que se refere à instituição, gestão e/ou professores, ou às suas possíveis reações negativas, tais como choro, recusa alimentar etc. Esta situação e também outras disparadoras de tensão podem se dissolver se este responsável puder, em alguma medida, explicitar seus anseios e incômodos e, assim, experimentar acolhimento por parte de professores e/ou gestão da instituição que recebe seu filho. Neste sentido, consideramos importante conhecer os meandros das relações estabelecidas no interior das unidades escolares, por meio dos objetivos a seguir: 1. Analisar a percepção que educadoras, professoras e coordenadora de um CEI da PMSP têm acerca do desenvolvimento emocional das crianças e se tal percepção está respaldada pela psicanálise; e investigar que noções dos cuidados apresentam e qual lugar esse conhecimento opera na prática cotidiana; 2. Verificar as regularidades e singularidades na execução da rotina de trabalho de cuidados com as crianças; 3. Observar a existência ou não de um cuidado dirigido ao professor e ao ambiente como sustentador.

No que concerne à metodologia, este estudo foi realizado segundo o método psicanalítico. Foi utilizado o referencial teórico winnicottiano sobre desenvolvimento emocional, bem como contribuições de alguns comentadores de Winnicott e de autores que dialogam com a psicanálise e a educação. A partir das entrevistadas das cinco educadoras; as professoras dos quatro agrupamentos (que atendem crianças de 0 a 3 anos e 11 meses) e a coordenadora pedagógica da unidade escolar, realizamos uma análise dos dados a partir de uma imbricação entre a mencionada teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott, e a experiência da própria pesquisadora em educação e psicanálise.

Histórico da Educação Infantil e CEIs

Segundo Ariès ([1973]1981), a escola, inicialmente não colocava a educação da infância em destaque. Na Idade Média, era uma espécie de escola técnica destinada à instrução dos clérigos, fossem estes “jovens ou velhos”. A postura dos adultos que hoje em dia lidam com crianças difere daquela do período medieval, no tocante à ideia de infância. Atualmente, no âmbito dos CEIs, é crescente a preocupação relativa ao protagonismo infantil nas propostas pedagógicas. Isto pode ser verificado por meio de documentos pedagógicos que apontam interesse e necessidade de ampliação acerca dessa compreensão para se desenvolver ações que concretizem tal intenção.

Marin (2018) tece considerações sobre o atendimento nos séculos XVII e XVIII às crianças pertencentes a camadas de baixo poder aquisitivo: iniciou-se dirigido a crianças pequenas oriundas de contextos vulneráveis, mais pobres. A escola era, portanto, para poucos, e proporcionaria àquelas crianças em situações vulneráveis o desenvolvimento de projetos educacionais e pesquisas.

Atualmente, o número de crianças atendidas por sala/educador nos CEIs é considerado excessivo pelos educadores, embora esteja dentro dos parâmetros estipulados pelos órgãos oficiais (que é de 1,5m2 por criança até 2 anos e 11 meses e 1 m2 por criança de 3 anos a 3 anos e 11 meses). As salas são compostas por uma ou duas turmas de: sete crianças de 0 a 11 meses (BI); nove crianças de 12 meses a 1 ano e 11 meses (BII); 11 crianças de 2 anos a 2 anos e 11 meses (MGI); e 20 a 22 crianças entre 3 anos e 11 meses (MGII), sendo 1 professor por turma.

Com base nas publicações da PMSP, os CEIs eram designados, inicialmente, como creches. Em 2002, foi iniciado o atendimento dentro dos parâmetros da Secretaria Municipal de Educação (SME), por meio do Decreto nº 41.588, de 28 de dezembro de 2001. De acordo com Panizzolo (2017), as primeiras creches de São Paulo dirigidas pelo poder público municipal foram criadas na década de 1950, por meio de convênios entre entidades beneficentes e a Comissão de Assistência Social Municipal (CASMU).

A educação infantil no Brasil passou por lentas e gradativas transformações ao longo de sua história, do período do seu descobrimento ao momento presente. Muitas referências e considerações foram feitas acerca da evolução dessas instituições, de sua constituição, bem como de influências europeias como consequência do período de colonização, as quais se estenderam por anos, sendo que, em algum momento, passou a receber influências de teorias difundidas também pelos Estados Unidos.

Constatamos que atualmente, é almejado um cenário que contemple transformações consistentes e que também potencialize o desenvolvimento global das crianças. Neste sentido, consideramos que é sim possível vislumbrar e concretizar transformações exitosas, desde que as experiências possam contar com a integração – teoria e prática – e, a partir disso, promover reflexão, amparada por escuta e sustentação ambiental.

O Desenvolvimento Emocional segundo Winnicott

Na teoria winnicottiana, o papel do ambiente é primordial no tocante ao desenvolvimento emocional que se dá por meio das fases de dependência, desde a experiência do nascimento. Winnicott ([1994] 2007) pontua que, quando o ambiente é facilitador, o indivíduo passa por um desenvolvimento integrador. Assim, o processo de amadurecimento pressupõe três aspectos do meio ambiente facilitador, a saber: a sustentação (holding); o manejo (handling), que representa o manuseio corporal do bebê; e a apresentação de objeto.

Winnicott ([1988] 1990, p. 174) postula que “é mais fácil para a criança suportar e recobrar-se da morte de um dos pais do que das complicações provocadas pelas dificuldades emocionais entre eles”. Aqui, o autor faz alusão à relevância do clima emocional como parte integrante e fundamental do ambiente.

Fulgêncio (2016) aponta a sustentação ambiental como aspecto crucial para o desenvolvimento emocional, ao ressaltar que o bebê só existe a partir dessa dependência, pois, inicialmente, não existe enquanto entidade autônoma, e sim como amálgama mãe-bebê. De início, um ambiente suficientemente bom se caracteriza pela propriedade de atendimento e adaptação às necessidades do bebê, sem que este perceba a distinção entre ele e o ambiente. Uma série de integrações cognitivas e emocionais ocorrem e, gradativamente, o bebê percebe que nem tudo advém dele.

Neste sentido, os relatos das professoras entrevistadas demonstram dedicação e cuidado com o ambiente, o que fica expresso a seguir:

[...] às vezes, a gente só organiza um cantinho com almofada... a gente coloca colchão, eles dormem encostados na almofadinha ali. Se está brincando, tem sono em algum momento, então, adormece brincando e a gente só cuida para que não fique no meio dos outros, para não ser pisoteado pelos bebês no solário...

Diariamente, as professoras dos CEIs seguram bebês no colo, o que justifica a relevância de entenderem a significação deste ato, para além da ação objetiva. Ainda que, naturalmente, não façam uso da nomenclatura holding, observamos que as professoras têm uma ideia acerca disso, já que o olhar, a atenção e a observação foram sempre referidos ao longo das entrevistas. Tal aspecto fica expresso no relato de uma delas, ao se deparar com uma situação em que sente a necessidade de sair da sala com uma criança sob intenso estresse emocional, a qual estava chorando, em evidente desconforto:

[...] então, a gente percebe que para o bem-estar do grupo e da gente, precisa ter essa separação, a gente vai estudando dia a dia para poder promover, a princípio, o bem-estar [...].

Notamos também uma compreensão sobre o aspecto global do ambiente, de modo que essa ação preserva tanto a criança em questão quanto as demais que ali se encontram. Ou seja, ao mesmo tempo em que favorece o bem-estar no ambiente, oferece holding à criança que dele é retirada. Winnicott ([1979] 1983) salienta que o cuidado satisfatório pressupõe: um holding, além do segurar físico, e que a provisão ambiental total é anterior ao conceito de viver com; relações objetais; a emergência do lactente do estado de estar fundido com a mãe; e sua percepção dos objetos como externos a ele próprio. A manipulação deficiente prejudica o desenvolvimento do tônus muscular, bem como da coordenação motora; logo, afeta a capacidade de a criança gozar a experiência do funcionamento corporal e de SER.

Para Winnicott ([1994] 2007), o crescimento emocional decorre de uma progressão dos estágios iniciais de dependência – da absoluta para a relativa –, seguindo rumo à independência. Assim, o indivíduo herda um processo de amadurecimento, e no caso de haver um meio ambiente facilitador, ele progride.

Winnicott ([1989] 2011) também acentua que toda ocorrência no primeiro ano de vida lança as fundações da saúde mental do indivíduo. As entrevistadas evidenciaram que possuem noções relativas à necessidade de dedicação e cuidado do ambiente, embora nem sempre tais noções tenham sido declaradas de forma direta.

No tocante ao desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott ([1988] 1990) propõe três linguagens para a descrição dos fenômenos, a saber: o estabelecimento da relação com a realidade externa; a integração do self como unidade a partir do estado de não integração; e o assentamento da psique no corpo.

Fulgêncio (2020) postula que o desenvolvimento saudável parte da concepção de um estado de não integração inicial até se chegar à distinção entre o EU e o NÃO EU. Tendo corrido tudo bem, emerge o estado de pessoa inteira, que se relaciona com pessoas inteiras.

Pela classificação de Winnicott ([1979] 1983), o desenvolvimento emocional se inicia na dependência absoluta, quando o lactente não se dá conta do cuidado materno. Isto é, ele não tem controle sobre o que é bem ou mal, apenas se beneficia ou sofre com as deficiências do ambiente. À mãe cumpre exercer uma função de ego auxiliar, o bebê ainda não separa o NÃO EU do EU. A provisão é naturalmente dirigida às necessidades da criança, o que significa um nível intenso de adaptação.

Do nascimento até por volta do quarto mês de vida se estabelece o estado denominado por Winnicott ([1971] 1975) como preocupação materna primária, o qual é caracterizado por alto grau de adaptação da mãe às necessidades do bebê. Segundo Winnicott ([1958] 2000), inicialmente, o relacionamento entre mãe e bebê tem importância máxima, e só gradualmente passa ao segundo plano em relação à dependência do bebê. Um ambiente suficientemente bom possibilita ao bebê alcançar, a cada etapa, satisfações, ansiedades e conflitos relativos a cada fase do desenvolvimento. A mãe é biologicamente preparada para lidar de modo especial com as necessidades do bebê.

Durante o tempo de permanência nos CEIs, os bebês que os frequentam desde a mais tenra idade – ou seja, a partir do nascimento – não têm à disposição uma preocupação tal como aquela materna primária “clássica”. No entanto, poderá dispor de um tipo de preocupação por parte do educador em sua função de cuidado. Segundo Winnicott ([1958] 2000), caso haja falha substancial nesse primeiro estágio, o bebê estará sujeito a mecanismos de defesa primitivos, como, por exemplo, o falso EU.

Os relatos das professoras sugerem algum nível de entendimento relativo à importância do atendimento especializado, que deve ser ofertado pela mãe ao bebê nos primeiros meses de vida. Tal aspecto fica explicitado nas considerações que elas fazem abaixo referente à precocidade da entrada das crianças na unidade escolar:

colocar em uma escola com seis meses de idade [...].

Uma outra afirma:

[...] às vezes, fez a inscrição e já sai a vaga, um mês de vida, nem está esperando, aí elas dizem: “mas eu não queria trazer agora, não”. Fica calma, a gente vai te orientando, a gente vai ficar em contato e na hora que tiver, que sentir que chegou a hora para você, você traz...

Mesmo que tal atendimento especializado não tenha sido nomeado desta maneira pela professora, e que não haja dimensão acerca do alcance deste gesto, entendemos que este abriga uma espécie de holding, ofertado à mãe, que, consequentemente, pode, em alguma medida, reverberar em sua relação com o bebê, ou seja, ela pode transferir, de algum modo, o cuidado recebido.

A situação de amamentação exemplifica a ilusão de onipotência. Consoante Winnicott ([1988] 1990), se a mãe se adapta suficientemente bem, o bebê conclui que o mamilo e o leite resultam de um gesto produzido por sua necessidade, e, logo, tem a ilusão de que a satisfação deriva disso.

Assevera Winnicott ([1988] 1990) que, se a onipotência ilusória não pode se concretizar, desenvolvem-se dois tipos diferentes de relação objetal, as quais, existindo desconectadas uma da outra, podem constituir patologias, tal como a esquizofrenia, por exemplo. De um lado, o bebê pode estabelecer relacionamentos lastreados em sua capacidade de criar; e, de outro, estará um falso self, baseado em submissão, e se relacionando, de forma passiva, com as exigências da realidade externa.

Por meio das entrevistas, notamos que as professoras figuram como possíveis ocupantes do lugar de quem pode, por um tempo, conter e manter a ilusão de onipotência da criança, para, gradativamente, ir se afastando e, assim, possibilitando contato com o ambiente real.

Ainda segundo Winnicott ([1988] 1990), a integração possui uma tendência herdada, assim como o estímulo do cuidado ambiental também contribui neste sentido; além disso, neste estágio, o cuidado físico é também cuidado psicológico. A dependência do ambiente, neste estágio, é tão absoluta que é impossível pensar no indivíduo como sendo uma unidade. Conforme o self se constitui, o indivíduo vai se tornando capaz de incorporar e de reter lembranças do cuidado ambiental, e, assim, de cuidar de si mesmo. Logo, a integração vai se concretizando na medida em que a dependência diminui.

Tosta (2001) aponta a integração como tarefa central tanto no início da vida, quanto no decorrer do processo de amadurecimento – de modo a abranger quase todas as tarefas do desenvolvimento –, ao conduzir o bebê a uma categoria unitária, ao pronome pessoal “EU”, o que torna possível o “EU SOU” e dá sentido ao “EU FAÇO”.

Em consonância com Winnicott ([1979] 1983), em um ambiente facilitador, o lactente tem metas a atingir, além da integração: a personalização e a capacidade de estabelecer relações objetais. A personalização representa a conquista de uma relação íntima entre a psique e o corpo.

A partir da primeira mamada teórica, o bebê tem material para criar e, aos poucos, torna-se capaz de alucinar o mamilo coincidentemente quando a mãe está pronta para oferecê-lo. Deste modo, as memórias são construídas por intermédio das impressões sensoriais e, com o decorrer do tempo, o bebê sente a confiança de que o objeto do desejo pode ser encontrado, passando, portanto, gradualmente, a tolerar sua ausência.

O trecho transcrito a seguir retrata um exemplo acerca da percepção da necessidade da criança e manejo ambiental protagonizado por uma das professoras entrevistadas:

[...] os espaços nem sempre naquele momento são apropriados para o grupo inteiro, então, você precisa separar o grupo... então, eu saio só com ele. Se não tivesse a equipe de apoio, como é que eu saio com um bebezinho, para dar essa espairecida, essa arejada, se eu deixo a minha parceira sozinha? Então, a gente tem que ter esse olhar, essa observação, essa flexibilidade.

A professora sugere que é necessário que haja um suporte por parte da instituição a fim de que este artifício da saída temporária da sala possa se concretizar, sem prejuízo do atendimento às demais crianças que permanecem na sala.

Nesta fase, gradativamente, a mãe vai retornando à sua própria vida, e o crescimento da criança corresponde à retomada, por parte da mãe, de sua própria independência. Assim, a mãe reduz sua capacidade de adaptação às necessidades emocionais do bebê, e a ilusão surge como fato, até que o bebê tenha possibilidades de aceitar e utilizar a desilusão. Tal fase é marcada pelo desmame, pelo estabelecimento dos fenômenos transicionais e pelo estágio EU SOU. A dependência relativa corresponde a um estágio de adaptação à falha gradual dessa mesma adaptação.

O desmame se apresenta como uma das missões de pais e educadores. Caso tudo corra bem no processo gradativo de desilusão, haverá espaço para frustrações, para o desmame. A dependência do bebê passa, então, de absoluta para relativa – da ilusão da onipotência para a desilusão – e a “mãe suficientemente boa” começa a gradualmente a “fracassar”, já que há a oportunidade de constituição do EU SOU.

Muitas vezes – e, inevitavelmente –, o bebê é cuidado por outras pessoas além da mãe (ou cuidador primário), tal como ocorre nos CEIs, em que existe a possibilidade de atendimento em período integral desde o primeiro mês de vida (havendo disponibilidade de vaga na unidade escolar).

O relato de uma professora explicita essa realidade:

A gente tá com bebezinho que vai completar oito meses e com criança que já tem dois anos. Houve até a possibilidade de levar essa criança para o BI, mas se leva, abre vaga, e entra outro, pode ser até menor ainda, porque a especificação é: sala multietária.

Naturalmente, no âmbito do cenário da unidade escolar, impõe-se uma situação em que há a participação do professor como aquele que pode ocupar o lugar de quem vai, por um período significativo ao longo do dia, conter e manter na criança a ilusão de onipotência, para, gradativamente, ir se afastando e, assim, possibilitando o contato dela com o ambiente objetivo.

O objeto transicional e os fenômenos transicionais são a base do simbolismo e assinalam a origem – na vida do bebê e da criança – de uma de terceira área da existência. O objeto transicional é simbólico do objeto interno que é mantido vivo por meio da presença viva da mãe. Esta área intermediária relaciona-se à experiência de viver e difere do sonho e da relação de objeto. “Ao mesmo tempo em que não é nem um nem outro destes, é também ambos” (WINNICOTT, [1994] 2007, p. 161).

Na perspectiva de Winnicott ([1988] 1990), o objeto transicional inicia o processo de aceitação da diferença e similaridade. Assim, os objetos transicionais e os fenômenos transicionais pertencem ao domínio da ilusão, que está na base do início da experiência. A área intermediária da experiência constitui a parte maior da experiência do bebê, ampliando para o mundo cultural.

Vencidas as etapas anteriores, o indivíduo pode adquirir condições de alcançar a posição do EU SOU, de modo a conquistar unidade pessoal integrada. No processo de integração, é esperado que o ser humano se integre ao espaço, ao tempo, às relações e à sua unidade psicossomática. E também que alcance um estágio em que pode diferenciar o mundo externo do interno, constituindo uma unidade de sujeito psicológico – EU SOU, distinto de tudo aquilo que é caracterizado como NÃO EU – e estabelecendo relações como pessoa inteira com pessoas inteiras.

O bebê, na fase da independência relativa, pode perceber a personalidade da figura materna, o que pode resultar no sentimento de responsabilidade por suas experiências instintivas, físicas e ideativas, tendo destaque também as relações triangulares.

No primeiro tempo deste processo, o cuidado resulta no “concernimento”, o compadecimento e a responsabilidade pessoal da criança para com os resultados do uso instintual da mãe-ambiente e da mãe-objeto. No discurso das professoras, o concernimento se manifesta como cuidado que crianças demonstram com colegas e com as próprias educadoras, ou seja, quando se disponibilizam a ajudar em uma tarefa ou na oferta de um brinquedo ou objeto.

No que concerne ao brincar, sabemos que a criança adquire experiência por meio da brincadeira, assim como a personalidade do adulto se desenvolve por meio das experiências da vida. Neste sentido, a evolução da criança se dá pelas suas próprias brincadeiras, realizadas por ela, por outras crianças e por adultos.

O ato de brincar configura-se como uma conquista que se estende por toda a infância. Este aspecto recebeu destaque durante as entrevistas, sintetizando o discurso sobre o conhecimento que as educadoras possuem sobre o desenvolvimento emocional. As educadoras demonstram por meio de seus relatos que possuem um nível de compreensão sobre o papel do brincar no desenvolvimento emocional das crianças, e a ele atribuem máxima importância. Isto fica expresso nas seguintes falas:

A vida, para eles, é mais um brincar, aí no brincar é que eles vão conseguir fazer as interações, fazer as relações e, assim, ter grandes despertares também, eu acho, no momento da brincadeira, né? Que, às vezes, você vê que eles estão montando alguma coisa, de repente, eles descobrem que dá para fazer de outro jeito, né? Então, assim, é um grande momento de descoberta mesmo.

É a linguagem deles, a forma com que eles vivem, fazem as coisas, eles estão sempre brincando, se você for pensar, né?

É importante a gente promover as brincadeiras e brincar junto, né? Em muitas situações. Ora a gente brinca junto, ora a gente tem distanciamento para observar como está sendo essas brincadeiras, essas interações...

[...] quando a criança brinca, ela tá... existem as explorações, né? E, ao mesmo tempo, é o momento de aprendizagem, né? É o brincar, onde ela vai aprender e onde, ao mesmo tempo, ela vai conseguir soltar algumas coisas, vamos dizer assim, opiniões, questões que ela pode ter, que ele vivencia, né? Então, você vê nem uma brincadeira algo que ela vivenciou... a criança consegue se soltar, ela se põe à prova de muita coisa também, né? Eu acho importante, primeiro, brincar, para eles [...].

De modo unânime, brincar é reconhecidamente importante para as educadoras. E temos ciência de que ele carrega, em si, expressão de saúde mental: alegrias, tristezas, angústias, satisfações, insatisfações etc.; e percebemos que nas instituições de educação infantil – no discurso e na intencionalidade das professoras – o brincar tem seu espaço reservado.

Ademais, consideramos que o ato não se encerra nele mesmo, carregando em si diversas pistas acerca do desenvolvimento emocional e também algumas manifestações, sejam de satisfação, insatisfação, conflitos, angústias, enfim, sentimentos e emoções cujas expressões conduzem a um exitoso desenvolvimento emocional.

Cuidado, Saúde e Educação

A questão da adaptação ao ambiente, valorizada por Winnicott, refere-se ao cuidado ofertado pelo cuidador primordial. Os professores dos CEIs, principalmente do BI, encaixam-se como cuidadores primordiais, haja vista que ali, os bebês, normalmente, permanecem em torno de nove horas diárias.

Tal aspecto fica expresso por meio das seguintes falas de uma professora, que evidenciam um olhar individualizado, bem como um cuidado vinculado a uma necessidade individual – o sono:

[...] às vezes, você percebe que quer dormir mais, aí a gente deixa um pouco mais [...] aí, agora, eles já estão em um momento em que eles já vão acordando, um acorda, daqui a pouco é outro, aí acaba que todos acordam, e aí tudo bem. Agora, se tiver alguma criança que a gente está percebendo que está querendo dormir, a gente até deixa, e aí sempre tem alguém aqui que dá uma olhada na sala se for necessário.

O relato supratranscrito demonstra que a noção de cuidado surge por meio da percepção e observação, do olhar atento e das ações dele provenientes. As professoras, naturalmente, não abordaram o termo integração tal como conceituado por Winnicott, mas suas ações cotidianas com as crianças indicam que há um entendimento acerca do desenvolvimento como um processo, na medida em que elas consideram a importância da faixa etária atendida; assim, tais ações se mostram promissoras no que tange às aquisições do desenvolvimento. Tal aspecto fica patente por meio do relato transcrito a seguir:

Aqui, eu acho que de zero a três, são as descobertas. Tudo novo para eles... [...] acho que é a fase em que eles experimentam as coisas, descobrem... é a fase em que a gente oferece uma série de vivências, de materiais, de brinquedos para eles explorarem. Aprendem a socializar, a ver o outro, a estar em grupo, né? Porque na família são poucas pessoas, aqui já é um grupo maior... São várias conquistas, né? É andar, é correr, saltar, falar, aqui é... onde tudo acontece.

A professora tem razão, e em minha experiência profissional acompanhei os primeiros passos (literalmente) e as primeiras palavras de muitas crianças no interior do CEI. De modo geral, esta vivência despertava comoção na família e até mesmo sentimentos ambíguos: às vezes, alegria pelas conquistas, outras vezes, pesar, por não ter presenciado um aprendizado inaugural da criança.

Tosta (2017) realiza uma síntese da classificação que Winnicott faz em relação à saúde: no primeiro grupo estão situados os indivíduos que tiveram uma boa introdução nas relações – que tendem, portanto, a ser saudáveis. Incluem-se aqui também os que foram traumatizados – que tendem a ter uma vida tensa, mas, talvez, com saúde; em um segundo grupo, situam-se os que se organizaram rigidamente, distanciados de uma vida saudável; o terceiro grupo, designado como paradoxal, é composto por pessoas que passaram pela experiência de ansiedades impensáveis, construíram uma organização de defesa contra tais ansiedades, e podem usar as oportunidades para adoecer e se aproximar do que se constitui como acontecimento e não vivência ou experiência.

Ainda segundo a autora, uma expressiva quantidade de pessoas vistas como superadaptadas aparenta saúde, no entanto, carecem de experiência com a criatividade e a espontaneidade. Assim, organizam um falso EU a fim de proteger o verdadeiro EU, tendo como custo dessa adaptação o distanciamento do centro criativo.

Notamos, por meio dos relatos que, de algum modo, as educadoras possuem uma parcela de entendimento – seja este intuitivo, proveniente da experiência, ou mesmo em decorrência do contato direto com o conhecimento teórico – acerca do papel que os cuidados recebidos por elas exercem. Isso fica expresso por meio do trecho transcrito a seguir:

Eu acho que envolve um pouco da experiência pessoal que a gente tem. Então, a gente observa muito, então, tem a questão das atitudes, que a gente vai percebendo. Dentro de tudo que a gente estudou também [...] com o estudo também que a gente fez, ao longo da nossa carreira...

Essa experiência pessoal referida no relato nos confere a ideia da propagação de um cuidado recebido e introjetado, ainda que a professora não o diga deste modo. É aquilo que a capacita para cuidar e fornece base para a manutenção de uma atitude de receptividade para agregar conhecimento também por meio das teorias.

Ser Professor de Educação Infantil: Motivações, Dificuldades e Provisão Ambiental

Questionada sobre as características necessárias para a execução da profissão, uma das educadoras afirma:

[...] não é só gostar de criança, gostar de bebê, tem que ter uma parte profissional muito forte, senão, não funciona, não é? A parte que mais interessa para a gente é ver o desenvolvimento acontecer a cada dia [...]

Neste sentido, as supostas características afetivas e disposições instintivas do gênero feminino, tal como mencionadas por Marafelli, Rodrigues e Brandão (2017), mostram-se insuficientes para que haja a concretização a contento do trabalho. A seguir, constam trechos selecionados em que as professoras abordam diretamente os motivos que as levaram às suas escolhas pelo Magistério:

Desde criança, eu tinha muito isso comigo, então, eu brincava muito com meus irmãos... Foi meio que assim, eu ganhei uma lousa. E a gente brincava de escolinha, e eu sempre queria ser a professora.

[...] eu lembro também de eu admirar muito uma professora que eu tinha, de português. A professora chamava Marian... terceira série, né? Então, eu gostava muito dela, e eu falava que eu queria ser professora de português. Então, tinha toda essa admiração.

Uma outra educadora declara:

Eu tive uma educação muito feliz, muito... [...] inclusive nesses dias, nós estávamos falando sobre isso, um livro: que quem educa marca o corpo do outro.

E ela prossegue:

E eu tive uma educadora que marcou muito a minha vida positivamente. E além dela, eu sempre tive a minha mãe também... como um espelho, né? E eu optei pela educação por conta disso, por conta de minhas boas referências de infância. Contribuir com a formação do outro.

Winnicott ([1971] 1975, p. 176) pontua que, quando o bebê olha para o rosto da mãe, vê a si mesmo: “em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali.” Tudo indica que a professora, de algum modo, refere-se a algo que poderíamos chamar de vestígios ou, talvez, de desdobramentos dessa fase.

A boa experiência na infância e o bom ambiente são vistos como elementos determinantes para sua escolha profissional. Assim, determinam que ela permaneça em constante contato com a infância e que a inclinação ao cuidado com o outro fique ativada.

Já uma outra educadora menciona:

Desde criança, eu queria ser professora. A minha mãe é professora também, é uma coisa que eu gosto, acho muito legal. Então, desde pequena...

Em relação a este aspecto, chama a atenção o quanto as relações interpessoais (familiares e extrafamiliares, incluindo-se professores, por exemplo) foram significativas e determinantes para a escolha profissional dessas educadoras. Logo, o laço afetivo tem, com efeito, grande peso. Em minha experiência pessoal, saber que meu avô paterno era professor – e que isto era muito valorizado pela minha mãe – exerceu grande impacto em minha escolha pelo Magistério, e, a partir dele, as aulas da professora de psicologia influenciaram fortemente minha opção pela graduação em psicologia.

A seguir, uma das professoras menciona dificuldades em relação à busca de auxílio fora do CEI, apontando a falta de suporte/apoio. Mas, mesmo desmotivada, ela procura se envolver e auxiliar a mãe do aluno a fim de solucionar uma adversidade, desdobrando-se para ajudar, mesmo quando se depara com limites objetivos. Em suas palavras:

[...] a gente senta aqui, a gente discute, a gente fala de um problema de uma sala... por exemplo: eu tenho um aluno que não tem laudo, e a gente acha que ele tem alguma questão, de algum nível, de autismo, e é muito complicado você lidar com isso também na sala, né? Eu fui buscar na Unip a clínica, a mãe foi no médico, acho que foi no ano passado, em outubro, até agora... [...] em fevereiro que a gente conversou com ela, nada. Tem 150 pessoas na frente do menino para ser encaminhado para o psicólogo. Aí eu fui buscar pela Unip, que tem a clínica. Consegui, agora dia 19 vai ela e o marido passar por uma entrevista para depois o menino passar.

A referida professora expressa a disponibilidade e tentativa de ofertar um atendimento extraescolar, mesmo diante dos entraves encontrados. Na transcrição a seguir, a educadora externaliza obstáculos relativos à falta de profissionais na unidade escolar, deflagrando que o número disponível nem sempre corresponde à necessidade do momento.

[...] eu acabo levando eles ao banheiro, até para evitar essa coisa de ficar saindo muito da sala, porque nem sempre você tem alguém para olhá-los no banheiro.

A professora aponta a dificuldade de trabalhar só, sem uma auxiliar, o que garantiria que seria dado o suporte diário adequado às crianças. Sendo assim, ela precisa estabelecer algumas estratégias para lidar com as adversidades surgidas, que culmina em direcionar as ações priorizando o coletivo em detrimento da singularidade. Caso haja uma criança que não se manifeste por qualquer razão, esta deixará de ter sua necessidade atendida. Observamos aqui que há uma dificuldade relativa ao modo como se estrutura a instituição escolar.

Pudemos concluir que nesta unidade escolar há predominância de mães adolescentes e as de primeira viagem. Por meio dos relatos das professoras, foi possível inferir que a família que opta pela instituição escolar como local para deixar o filho, muitas vezes, apresenta expectativas e demandas que vão além do atendimento à criança na unidade escolar, já que solicitam a intervenção direta e indireta para atendimento da criança no sistema público de saúde (tal como mencionado em exemplos anteriores). Diríamos que esta família também está em constituição – e não apenas o bebê ou a criança.

A psicanálise, o professor de Educação Infantil e a Constituição Psíquica da Criança

Os primeiros anos de existência de um indivíduo são referidos por alguns estudiosos citados como um período fundamental no que concerne à constituição subjetiva. Constituição esta que se dá de modo contínuo, na medida em que as necessidades dos bebês vão sendo atendidas de forma suficiente.

A relevância da participação do educador na vida psíquica da criança é mencionada por Voltolini (2011, p. 27) ao ressaltar Freud, asseverando que: “Não se pode ser educador se não se é capaz de participar da vida psíquica da criança, e se não as compreendemos, nós, os adultos, é porque não compreendemos mais nossa própria infância”. O autor aponta ainda que Freud considerava essa participação como a saída para contornar a ignorância sobre a criança, de modo que se trataria mais de estar com ela do que saber sobre ela.

Diante do exposto, é possível indagar: como a psicanálise poderia efetivamente ajudar o educador? Como já foi dito, embora estivesse presente em suas ações, as professoras não reconhecem a presença da psicanálise na prática, porém, verbalizaram que consideram que ajudaria muito se tivessem tido contato com ela. Isso nos conecta à ideia de que a psicanálise precisa ser apresentada, “decifrada”, já que está em cena, mas talvez ainda seja vista com alguma relutância, em decorrência do caráter “desconhecido” que carrega neste universo.

Podemos afirmar que já foi anunciada uma disposição prévia, que aguarda uma nomeação. O grande desafio é saber como ressignificar a psicanálise, que parece tão distante e, ao mesmo tempo, está tão entranhada nos fazeres e discursos das educadoras. O conhecimento formal, de fato, não foi observado; apenas uma das educadoras referiu conhecimento sobre as fases do desenvolvimento e citou como referência Freud e Lacan.

Como assevera Kupfer (2001), ao demandar saber da psicanálise, o educador já supõe algo naquele corpo teórico. A autora faz uso do termo “clareagem” (cunhado por Mannoni) associado à presença da psicanálise na educação e, neste sentido, declara:

Ao pensar nessa metáfora, fazemos a luz da psicanálise incidir sobre um objeto da educação, de modo a vê-lo melhor. E então nos lembramos do princípio de indeterminação de Heisenberg: sempre que a luz de um microscópio-instrumento feito para ver melhor incide sobre uma partícula observada, ela recebe um incremento de energia trazida pelo feixe de luz e muda de lugar, o que torna impossível a observação “neutra” de sua posição. Ou seja, o observador interfere sobre o observado. Vale dizer, o observador muda o observado (KUPFER, 2001, p. 115).

Kupfer (2001) questiona se poderia um fenômeno como este ocorrer quando a psicanálise faz incidir sua luz sobre a educação. A psicanálise significa mais do que um corpo teórico, sendo que sua trajetória evidencia que sua teoria e prática mudaram o mundo da educação. Nos termos da autora:

Ao reconhecer a educação como um discurso social, a psicanálise se põe a dialogar com ela nas escolas, na mídia, na universidade. E ao falar dentro do campo social, deu-se com a psicanálise o que se dá quando um sujeito em análise se põe a falar: transforma-se pelo efeito de retroação de suas palavras. Ir ao mundo mudou também a psicanálise, que deixou de ser uma prática do divã, e hoje ganhou as instituições, os hospitais e as escolas. (KUPFER, 2001, p. 118).

Neste sentido, acreditamos que a psicanálise possa se constituir como um método que permita a professores o alcance de seus benefícios, sem ter de passar por um longo processo de análise. Ela é útil para o educador e também para a criança. Não nos moldes do tratamento-padrão, mas enquanto teoria que possibilita ao educador levar em conta o sujeito (KUPFER, 2001).

A literatura psicanalítica destaca que este é precisamente o momento em que a função dos objetos primordiais é ofertar uma presença de qualidade dos adultos que atendem à criança, seja a mãe ou quem se ocupa desta função, tal como o professor, no caso da criança que frequenta precocemente uma instituição de educação infantil, como uma creche por exemplo.

Portanto, defendemos que no contexto escolar haja interlocução entre a psicanálise e a educação, por meio de uma intervenção voltada aos professores, a fim de que estes possam reconhecer seus próprios recursos. Neste sentido, acreditamos que esta presença da psicanálise possa se efetivar por meio de diálogos promovidos por contatos com a teoria e por dinâmicas de grupos ou vivências pontuais (conduzidas por psicanalistas) em reuniões pedagógicas, por exemplo. Da mesma forma, não é esperado que professores pratiquem a psicanálise em sala de aula, e sim que possam, com efeito, ter contato com um infantil menos enigmático, de maneira que a mediação educativa possa contribuir com um desenvolvimento emocional saudável.

Considerações Finais

Este trabalho de interface promoveu um intercâmbio entre educação e psicanálise, bem como trouxe, por meio de entrevistas, informações relativas: à percepção que educadoras – professoras e coordenadora do CEI objeto de estudo têm sobre o cuidado como parte do desenvolvimento emocional infantil; em que lugar esse conhecimento opera na prática cotidiana; ao que é comum (suas ações e atitudes); e também às singularidades.

Verificou-se que a maior parte das educadoras, de fato, não apresenta referência discursiva sobre conhecimentos acerca do desenvolvimento emocional infantil, explicitamente referendado pela psicanálise. Entretanto, foi possível observar que a prática relatada e a documentação oficial, a qual determina os parâmetros da educação infantil, estão, em alguma medida, pautadas pela psicanálise. Ou seja, embora as professoras não tenham ciência disso, certos preceitos da psicanálise se encontram presentes em suas práticas cotidianas.

As propostas pedagógicas se apresentam associadas às práticas de cuidado; cuidar e educar permanecem, portanto, como atividades indissociáveis. O propósito de possibilitar integração entre os aspectos físicos, sociais e afetivos encontra-se nos parâmetros pedagógicos oficiais. Tal intenção foi expressa em muitos relatos das professoras, o que indica que elas estão apropriadas desta ideia.

Constatamos também que há circulação da criatividade, expressa por atividades realizadas na unidade escolar. As ações de cuidado também estão contempladas no modo como as professoras se organizam para receber as crianças, seja por meio do preparo do ambiente físico, seja pela observação, interlocução com a família (na entrada, saída ou via agenda) e/ou pela troca entre os pares de informações e impressões acerca da criança. Ou seja, o acolhimento surge como principal tarefa de cuidado. Tudo isso pode ser entendido como uma contribuição no intuito de que se estabeleça uma provisão ambiental suficientemente boa.

O ato de brincar apareceu com grande destaque no discurso das professoras. Tal tema, amplamente explorado, é reconhecido como propulsor do desenvolvimento e da aprendizagem infantil. Ele também possibilita um elo entre a educação e a psicanálise, podendo contribuir profundamente na constituição subjetiva da criança, tendo a escola como espaço potencial.

Diante do interesse pelo assunto, acreditamos que a psicanálise possa, de fato, oferecer aos professores um aporte no sentido de potencializar usos e efeitos das brincadeiras, como parte de uma provisão ambiental suficientemente boa. Neste sentido, entendemos que é possível que as professoras também possam ser alvo dos efeitos positivos do brincar, o que poderia se concretizar por meio de situações promovidas durante momentos coletivos, tais como as reuniões pedagógicas.

Logo, conhecer a psicanálise pode auxiliar muito, não para que o professor atue como psicanalista, e sim para que tenha clareza acerca da amplitude de sua função de cuidado, na constituição da subjetividade. Até mesmo para que possa fugir de caminhos que conduzem à medicalização e à fragmentação do sujeito como única alternativa possível. Ou seja, saber sobre psicanálise de maneira explícita, “nomeada” como tal, poderia potencializar as ações no que concerne à formação, à constituição de um ser humano, já que se uma criança se desenvolve, o sujeito se constitui. Deste modo, acreditamos que a integração entre aquilo que está em ação e o reconhecimento pode favorecer sua efetividade.

Como psicanalistas temos uma responsabilidade que advém da transferência da qual somos alvo e que vem dos educadores; existe algum nível de compreensão por parte das professoras, pois isto apareceu em seus relatos e ações.

Neste sentido, é preciso trabalhar a escuta, garantindo a significação ou mesmo ressignificação da prática, conferindo-lhe sustentação. Concordamos com Kupfer (2001, p. 119) quanto à ideia de que a transmissão da psicanálise ao educador deve ser feita de modo diferente daquela praticada no divã, já que efeitos são produzidos quando os “educadores se põem a estudar psicanálise; efeitos que podem ser de angústia, de atuação, defensivos. Não aqueles esperados por um analista – a travessia do fantasma, a passagem pelo Rubicão, que transforma radicalmente. Ainda assim, efeitos”.

Se o educador estiver ávido por eixos para o seu trabalho com a criança, que ele sabe ser mais do que um feixe de nervos que se pode condicionar, ou seja, se ele tiver fome de significantes e respaldo para isso, torna-se potente e a educação pode, com efeito, ser um ambiente favorável ao desenvolvimento.

Também acreditamos que a transmissão da psicanálise pode culminar na alteração da posição subjetiva do sujeito, podendo efetivamente contribuir como elemento de sustentação do ambiente, de forma a ressignificar a educação e a atuar na prevenção e na promoção de saúde. O agente de cuidado – família e professor – pode fazer uso da psicanálise para tal.

Consideramos que a psicanálise pode contribuir com intervenções que contemplem a educação infantil, com base em discussões que resultem na construção de políticas públicas pautadas na ampliação do contato com o conhecimento sobre o desenvolvimento emocional infantil, de modo que tal conhecimento possa ser, em maior medida, apropriado pelos educadores. Logo, podendo gerar também reflexões sobre cuidado do professor como propulsor e participante da constituição subjetiva da criança.

Esta referida intervenção poderia se dar, por exemplo, pela participação de psicanalistas em reuniões pedagógicas, também por meio de dinâmicas de grupo (de modo que os profissionais possam, além de saber sobre, “vivenciá-la”), no intuito de ofertar cuidado aos cuidadores (entendidos aqui como a totalidade de profissionais das unidades escolares), através da escuta, diálogo e reflexões. Reafirmamos que quem recebe, naturalmente, torna-se apto a ofertar e até a propagar, em alguma medida, o cuidado.

Alguma noção sobre a importância referente ao cuidado familiar dirigido à criança foi relatada pelas professoras. Questionamos acerca de quem cuidaria da família, e se isso caberia ao professor. Consideramos que a ação do professor é, de fato, limitada, mas o cuidado dele pode facilitar a circulação do diálogo, se ele estiver munido de condições e repertório para tal. Ações mais efetivas de cuidado poderiam ser contempladas por iniciativas do poder público.

Por fim, acreditamos que a semente da psicanálise poderá germinar se os CEIs puderem funcionar como um espaço potencial. Assim, se o educador puder reconhecer a psicanálise em suas ações e, em alguma medida, dela se apropriar, esse conhecimento poderá efetivamente contribuir para que o ambiente se torne suficientemente bom, preventivo e promotor de saúde emocional.

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