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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versión impresa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.38 no.94 São Paulo ene./jun. 2018
TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS
Reflexões teóricas sobre a psicologia analítica
Theoretical reflections about analytical psychology
Reflexiones teóricas sobre la psicología analítica
Elisângela Sousa Pimenta de Padua1; Carlos Augusto Serbena2
Universidade Federal do Paraná - Curitiba - Paraná - Brasil
RESUMO
Este artigo visa esboçar o contexto teórico que fundamenta a abordagem da Psicologia Analítica, considerando sua relevante contribuição para uma prática humanizada da psiquiatria e da psicologia profunda. Mais especificamente, busca demonstrar sua influência no campo das psicopatologias e da psiquiatria moderna e seus desdobramentos contemporâneos, apresentar o possível diálogo entre uma perspectiva mito-poética da alma humana com as ciências naturais. Para tal, a metodologia utilizada foi o levantamento bibliográfico das principais autoridades da história da psiquiatria moderna e da Psicologia Analítica. Foi possível identificar que a Psicologia Analítica possui uma perspectiva simbólica e hermenêutica das psicopatologias e que as pesquisas subsequentes de junguianos e pós-junguianos favoreceram a formação de Escolas teóricas, sendo elas: Escola Clássica, Escola Desenvolvimentista e Escola Arquetípica. Estas refletem criticamente a teoria clássica de Jung e avançam em estudos contemporâneos. Conclui-se que a pluralidade de perspectivas que a Psicologia Analítica possui atualmente reafirma o pensamento principal de Jung: a psique é complexa, sendo assim é necessário o dialogo e a assimilação de diversas áreas do conhecimento para melhor compreendê-la.
Palavras-Chave: Psicologia Analítica, Abordagem Simbólica, Escolas Teóricas, Carl G. Jung.
SUMMARY
This article aims to outline the theoretical context that underlies the approach of Analytical Psychology, considering its relevant contribution to a humanized practice of psychiatry and deep psychology. More specifically, it seeks to demonstrate its influence in the field of psychopathology and modern psychiatry and its contemporary developments, to present the possible dialogue between a myth-poetic perspective of the human soul with the natural sciences. For this, the methodology used was the bibliographical survey of the main authorities in the history of modern psychiatry and Analytical Psychology. It was possible to identify that Analytical Psychology has a symbolic and hermeneutic perspective of psychopathologies and that subsequent surveys of Jungians and post-Jungians favored the formation of theoretical schools, such as: Classical School, Developmental School and Archetypal School. These schools critically reflect the classical theory of Jung and advance in contemporary studies. It is concluded that the plurality of perspectives that Analytical Psychology currently possesses reaffirms Jung's main thought: the psyche is complex, so it is necessary to dialogue and assimilate several areas of knowledge in order to better understand it.
Keywords: Analytical Psychology, Symbolic Approach, Theoretical Schools, Carl G. Jung.
RESUMEN
Este artículo pretende esbozar el contexto teórico que fundamenta el abordaje de la Psicología Analítica, considerando su relevante contribución a una práctica humanizada de la psiquiatría y de la psicología profunda. Más específicamente, busca demostrar su influencia en el campo de las psicopatologías y de la psiquiatría moderna y sus alcances contemporáneos, presentar el posible diálogo entre una perspectiva mito-poética del alma humana con las ciencias naturales. Para ello, la metodología utilizada fue el levantamiento bibliográfico de las principales autores de la historia de la psiquiatría moderna y de la Psicología Analítica. Es posible identificar que la Psicología Analítica posee una perspectiva simbólica y hermenéutica de las psicopatologías y que las investigaciones subsiguientes de junguianos y post-junguianos favorecieron en la formación de Escuelas teóricas, siendo ellas: Escuela Clásica, Escuela Desarrollista y Escuela Arquetípica. Estas reflejan críticamente la teoría clásica de Jung y avanzan en estudios contemporáneos. Se concluye que la pluralidad de estas perspectivas que la Psicología Analítica posee actualmente reafirma el pensamiento principal de Jung: la psique es compleja, siendo así necesario el diálogo y la asimilación de diversas áreas del conocimiento para comprenderla mejor.
Palabras Clave: Psicología Analítica, Enfoque Simbólico, Escuelas Teóricas, Carl G. Jung.
Introdução
O presente trabalho busca apresentar os fundamentos teóricos da Psicologia Analítica e seu desenvolvimento contemporâneo em Escolas Teóricas. Considerando que o eixo norteador das pesquisas de Carl Gustav Jung, fundador desta abordagem psicológica, é a compreensão dos processos psíquicos e seus fenômenos, e seu ponto de origem é o campo das psicopatologias da psiquiatria moderna. Sendo assim, mais especificamente, este trabalho busca demonstrar como a Psicologia Analítica influencia o campo das psicopatologias e da psiquiatria moderna e como possibilita uma perspectiva teórica mito -poética da alma humana em diálogo com as ciências naturais. Para tal, realiza-se uma pesquisa de levantamento bibliográfico de autoridades sobre o desenvolvimento histórico e dos fundamentos teóricos da Psiquiatria Moderna e da Psicologia Analítica, dentre os principais: H. Ellemberger (1976), E. Penna (2013), J. Clarke (1993), S. Shandasami (2011), N. da Silveira (1997), R. Brooke (1991), A. Samuels (2002), dentre outros citados ao longo do texto.
Breve histórico da Psicopatologia e da Psiquiatria
O campo de conhecimento da psicopatologia possui um conjunto de saberes que visam compreender os adoecimentos da alma humana, a experiência do sofrimento, os estados mentais alterados da consciência, os padrões comportamentais inadequados que refletem no bem estar do humano e a sua adaptação ao meio. Por psicopatologia entende-se o logos (discurso, lógica, narrativa) sobre o pathos (sofrimentos, paixão, passividade) da psique (alma), ou seja, o discurso sobre o sofrimento e/ou paixões da alma. Trata-se de eventos que acontecem à alma, passivamente, e dela produz-se sentidos e significados a respeito de tal padecimento. (Serbena, Zanoni, 2011).
Sob a perspectiva psiquiátrica, a psicopatologia é compreendida como um campo de conhecimento que se utiliza do rigor da ciência sensu strictu para adquirir uma possível sistematização, elucidação, desmistificando crenças, atendo-se apenas na descrição, compreensão e identificação dos elementos que compõem o fenômeno do adoecimento mental. Por meio da descrição é possível elaborar uma sistematização da psicopatologia com a finalidade de facilitar a comunicação especialmente entre profissionais. (Delgalarrondo, 2008, p.28).
A veracidade de uma teoria corresponde ao preenchimento de critérios científicos e lógicos, tais como: se o valor atribuído às suas teses e proposições é coerente, se há resultados positivos na prática, se há correlação do pensamento e suas pressuposições com a realidade factual e se é aceitável do ponto de vista ético. A história da psicopatologia é composta por uma tradição múltipla de teorias e epistemologias que tratam do mesmo fenômeno, mas de maneiras diferenciadas, complementares e contraditórias. É sua característica principal a multiplicidade de abordagens e referenciais teóricos que se incorporam desde os últimos 200 anos (Delgalarrondo, 2008, p.35).
A psiquiatria nasce em meados do século XVIII, por meio de práticas de descrição e observação dos pacientes adoecidos mentalmente, sendo Phillipe Pinel o primeiro representante da psiquiatria Clássica. Certamente, a maior contribuição da psiquiatria Clássica foi desmistificar a loucura, que até então era concebida com causas religiosas, místicas e sobrenaturais. A etiologia das doenças mentais passa a ser compreendida pelo viés neuro-fisiológico. O adoecimento mental torna-se objeto de estudo cientifico e positivista, de maneira que foram agrupados e classificados de acordo com as descrições sintomáticas. Emil Kraepelin (1856-1926) fez grandes contribuições para a psiquiatria, aprofundou-se nos estudos de neurologia e anatomia cerebral, psicologia experimental, desenvolveu métodos de investigação e apontou sobre a necessidade do médico interessarse pela história de vida dos pacientes. Ofereceu um dos melhores tratamentos mentais de sua época, e foi o precursor dos manuais de nosologia e classificação das doenças mentais (Ellemberger, 1976, p.286; Martinez, 2006, p.29).
A pluralidade teórica produzida no campo da psicopatologia e psicologia do inicio do século XX encontrou a necessidade de uma sistematização do conhecimento para haver uma espécie de consenso de linguagem entre os profissionais. Foi feito, em 1952, o primeiro Manual Estatístico e Diagnóstico da Associação de Psiquiatria Americana (DSM-I) para descrição e categorias, teve diversas modificações no seu planejamento (DSM-II, DSM-III, DSM-III-R,DSM -IV, DSM-V). Sua sistematização é influenciada pela tradição psiquiátrica de Emil Kraepelin (1856-1926), pela nosologia e classificação dos sintomas, com definições e diretrizes diagnósticas em detrimento das causas e etiologias das doenças mentais (ateóricas). Ele apresenta descrições dos aspectos estatísticos associados com a distribuição familiar, prevalência em população geral, diagnóstico diferencial, complicações psicossociais decorrentes, etc. (Kluger, 2013).
As críticas a respeito da perspectiva psiquiátrica clássica sobre os adoecimentos psicológicos se dão pela prática cristalizada de rotular, descrever e restringir a experiência psicopatológica em diagnósticos. Sendo assim, o estudo do adoecimento humano deixa de ser psicológico, pois enfatiza a descrição fenomenológica, nosológica e diagnóstica segundo os jargões científicos que só serve aos cientistas e profissionais, e não se aproxima da realidade do paciente, da sua subjetividade e de suas experiências. O movimento denominado Psicopatologia Fenomenológica se apropriou desta crítica e desenvolveu uma metodologia de pesquisa e reflexão sobre a prática psiquiátrica. O marco histórico inicial foi a publicação da obra "Psicopatologia Geral" (1913/1973) de Karl Jaspers, que se desdobrou na psicopatologia fenomenológica-descritiva, psicopatologia genético-estrutural e psicopatologia fenomenológico-existencial. (Rodrigues, 2005, p.757). Paralelamente, outro movimento crítico a Psiquiatria Clássica inicia-se em meados do século XIX e início do século XX. Este movimento denominado Psiquiatria Moderna ou Psicodinâmica adota uma concepção psicogênica das doenças mentais, diferenciando-se das concepções organicistas da Psiquiatria Clássica. O paradigma psicodinâmico compreende as psicopatologias pela afetividade na regulação, direção e perturbação da vida psíquica. Valorizam-se mais os aspectos psíquicos, interpessoais, ambientais buscando a integração e inter-relação entre a doença, o tratamento e a pessoa adoecida. Tem como hipótese fundamental o conceito de "inconsciente", que possibilita a compreensão dos adoecimentos pelos sentidos e significados subjetivos. (Ellemberger, 1976, p.137; Martinez, 2006, p.90).
Segundo Ellemberger (1976, p.837), o início da Psiquiatria Dinâmica tem como ponto de partida os trabalhos de Pierre Charcot e a escola de Salpêtriàre sobre hipnose e histeria, em 1882. Os estudos se voltam para os fenômenos de sonambulismo, múltiplas personalidades, criptominésias, possessões, catalepsias, letargias, e especialmente a histeria.
Carl Gustav Jung (1875-1961) pertence a este contexto histórico que compreende as doenças mentais como psicogênicas. Como médico psiquiatra suíço, trabalhou no Hospital Psiquiátrico de Burgholzli (Suíça) na primeira década do século XX. Inicialmente, suas pesquisas eram de caráter experimental fundamentadas nas concepções psicanalíticas. Entretanto, devido às influências acadêmicas, culturais, filosóficas de Jung, somando com o vasto material de psicóticos e de sua experiência pessoal, este psiquiatra vislumbra outras possibilidades de compreensão da psique e sua dinâmica, diferenciando-se da Escola Psicanalítica de Sigmund Freud. (Ellemberger, 1976; Martinez, 2006).
A Perspectiva Psicogênica das Psicopatologias
O posicionamento de Jung, com base nas teorias da psicologia profunda e da psiquiatria dinâmica de sua época, contesta as abordagens organicistas inerentes da Psiquiatria Clássica. Para ele, o materialismo científico não permite a apreciação da importância decisiva dos fatores psicológicos, relacionais, ambientais para o adoecimento psicológico. Jung critica a formação dos médicos de sua época, pois estão enclausurados e especializados apenas em estudos anátomo-fisiológicos. (Jung, 1971, §297).
A psique não é uma coisa dada, imutável, mas um produto de sua história em marcha. Assim, não só secreções glandulares alteradas ou relações pessoais difíceis são as causas de conflitos neuróticos; entram em jogo também, em igual proporção, tendências e conteúdos decorrentes da história do espírito. Conhecimentos bio-médicos previamente são insuficientes para compreender a natureza da alma. O entendimento psiquiátrico do processo patológico de modo algum possibilita o seu enquadramento no âmbito geral da psique. Da mesma forma, a simples racionalização é um instrumento insuficiente. A história sempre de novo nos ensina que, ao contrário da expectativa racional, fatores assim chamados irracionais exercem o papel principal, e mesmo decisivo, em todos os processos de transformação da alma. (Jung, 2013, p.17).
Para ele, a perspectiva organicista e racionalista não é suficiente para a compreensão do pathos da alma. Não se trata de negar a existência organogênica, certamente muitos adoecimento como intoxicação, má formação, traumas, entre outros levam a manifestações psicopatológicas. Mas, de modo geral, o problema da alma vai além do viés fisiológico, pois é ela um território em si, com leis próprias, diferente das leis fisiológicas. Assim, o empreendimento de Jung como pesquisador da alma humana é identificar as leis inerentes de tais processos, a natureza particular da psique.
A psicogênese das doenças mentais implica em reconhecer que há uma condicionalidade para a gênese das doenças mentais, que "(...)é de natureza psíquica. Pode ser um choque psíquico, um conflito desgastante, uma adaptação psíquica errônea ou uma ilusão fatal" (Jung, 1990, §496). Em outras palavras, o paradigma psicodinâmico consiste em enfatizar a afetividade como causa do desequilíbrio "na regulação, direção e perturbação da vida psíquica". (Martinez, 2006, p.94).
Psicologia Analítica: uma Abordagem simbólica da Psicopatologia
Os trabalhos iniciais de Jung tinham fundamentavam-se na compreensão causalista dos fenômenos psicopatológicos pautando-se no uso de métodos quantitativos, experimentais e a investigação redutiva psicanalítica. Este momento perdura até aproximadamente 1913, com a publicação do livro "Transformações e Símbolos da Libido". Segundo Penna (2013, p.83), trata-se de um marco inicial que se deu pelo rompimento de Jung com Freud e a Psicanálise e sua apresentação de um novo método de investigação dos fenômenos psíquicos: o método associativo-comparativo. Este método se fundamenta na filogênese (coletiva, arquetípica) dos elementos psicológicos, em detrimento da perspectiva ontogenética (individual, biográfica) de Freud. Isto significa dizer que é neste momento que Jung aponta para a hipótese de um inconsciente mitológico: o material individual possui um correlato com o material mitológico e coletivo (humanidade em geral). O método comparativo seria a raiz da amplificação simbólica, que mais tarde seria desenvolvido.
O conceito de inconsciente mitológico ou coletivo lança bases para o desenvolvimento de uma abordagem simbólica dos fenômenos psicológicos por meio do método hermenêutico sintético-construtivo. Esta abordagem da experiência psicopatológica e dos sintomas desenvolvida por Jung implica em compreendê-los não apenas pela lógica racional e causalista, mas por meio de analogias de imagens com sentidos e significados (hermenêutica). Para abordar o humano é preciso considerar seus aspectos irracionais, imaginativos, intuitivos. Suas contribuições para o campo da psicopatologia se distinguem das concepções médicas clássicas, pois avança em termos metodológicos, insere conhecimentos além do campo da medicina, tais como filosofia, mitologia, história, ciências da religião, etologia, etc. sem perder o caráter clínico e empírico das investigações e intervenções (Whitmont, 1969, p.24).
Para Jung, a psiquiatria clássica é racionalista e mecanicista, pois avalia os conteúdos psicológicos em nível de normalidade, de conceito/diagnóstico em detrimento de sentido e de experiência/imagem. A abordagem sintomática da psiquiatria compreende os adoecimentos em termos de causalidade e disfunção, como se algo errado estivesse ocorrendo naquele indivíduo. (Whitmont, 1969, p.19).
A abordagem simbólica de Jung apresenta uma perspectiva dialética ao invés de lógica e linear. Para ele, a psique se expressa por meio de símbolos que possuem uma finalidade de desenvolvimento psicológico (individuação) e não apenas expressão do material inconsciente reprimido. O símbolo é uma totalidade que une polaridades consciente e inconsciente ou fatores heterogêneos que podem estar em conflito na psique visando uma superação transcendente (síntese da relação dialética dos opostos) de modo que se alcance uma nova consciência, uma nova perspectiva. O símbolo é "(...) uma imagem de um conteúdo em sua maior parte transcendental ao consciente. É necessário descobrir que tais conteúdos são reais, são agentes com os quais um entendimento não só é possível, mas necessário". (Jung, 2013, §114).
Os sintomas devem ser compreendidos simbolicamente e isto significa que apontam para além de si, para além da compreensão acessível da consciência. Sendo a linguagem da alma subjetiva, imagética e coletiva, demonstra que para compreendê-la é preciso apropriar-se do pensamento hermenêutico e analógico para alcançar os sentidos e significados dos símbolos e sintomas, pois "mais precisamente, ela possui leis e estruturas próprias que correspondem às leis estruturais da emoção e do conhecimento intuitivo." (Whitmont, 1969, p.19).
A experiência psicopatológica quando compreendida simbolicamente apresenta, por traz de sua aparente irracionalidade, desadaptação e contradição, profundos significados, possibilidades de desenvolvimento e de renovação da postura do indivíduo perante sua realidade (Whitmont, 1969, p.23).
Sobre a teoria da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung
Segundo Clarke (1993) e Shandasami (2011), a teoria de Jung é alvo de muitas críticas, considerada contraditória, sem sistematização do pensamento e com lacunas teóricas. Ela segue uma linha não racional (analógica) e não linear (circular) de pensamento, semelhante a sua proposta metodológica de investigação dos fenômenos psíquicos: a amplificação. Trata-se de uma forma de pensamento por semelhanças, em torno de um objeto central: o símbolo. Assim, suas investigações se apropriam de caminhos diversos, com múltiplas referências de conhecimentos, como a história da humanidade, as religiões, a biologia, a filosofia, entre outras, para alcançar uma compreensão profunda dos fenômenos psicológicos.
Segundo Silveira (1997, p.16), por um lado Jung possuía uma postura científica: desenvolve seus trabalhos como médico psiquiatra e pesquisador da alma humana com base em procedimentos científicos experimentais e empíricos, além de um grande aprofundamento nos conhecimentos humanos gerais. Investigava com rigor empírico seus resultados com referência em dados da realidade, realizou experimentações, viagens para outros países e culturas, além de sua vasta experiência cotidiana como médico psiquiatra. Por outro lado, grande parte de sua obra foi constituída a partir das elaborações de suas experiências pessoais interiores, suas visões, sonhos, insights profundos, etc.
Brooke (1991, p.22) e Samuels (2002, p.9) apresentam uma concepção semelhante, a dizer que a obra junguiana é atravessada por duas perspectivas: uma científica natural e outra poética. Para Brooke, Jung utiliza a linguagem das ciências naturais que advém de sua prática médica e de pesquisador. Porém, sua perspectiva científica não se consolida totalmente nos moldes da ciência clássica cartesiana e positivista. Tende mais a perspectiva moderna de ciência, a-causal, sistêmica, reconhecendo a influência do observador, do contexto histórico nas elaborações teóricas do conhecimento, uma epistemologia relativista.
Já a perspectiva poética origina-se das suas experiências pessoais, corroborando com Silveira (1997), e a preocupação de encontrar os significados intrínsecos dos fenômenos e da existência humana. Sua sensibilidade e pensamento poético o aproximam das teorias fenomenológicas existenciais, desconstruindo a perspectiva objetivista cartesiana. A perspectiva poética é alegar a sensibilidade poética como ontologicamente válida para se alcançar o conhecimento sobre a alma humana, a psique. A imaginação e a fala por metáforas adquirem status ontológico, na medida em que, por elas, se faz um aprofundamento nas perspectivas da psique e possibilita a descrição com mais precisão sobre a realidade psicológica. Como exemplo, o uso das imagens alquímicas, os mitos e os contos de fadas para ilustrar e aproximar a compreensão significativa dos processos psicológicos profundos. (Brooke, 1991, p.32).
Ao mesmo tempo em que se aproxima da perspectiva fenomenológica, é indisciplinado e incoerente, pois não apresenta um campo epistemológico bem elaborado. A crítica que recebe da perspectiva fenomenológica é que Jung não se desvincula totalmente do pensamento cartesiano quando parece se preocupar mais em classificar estruturas, categorias, dar uma anatomia e fisionomia à experiência, como por exemplo seus conceitos de arquétipos (anima, sombra, self, etc.) e as dinâmicas psicológicas destes. Por outro lado, sua teoria se aproxima da fenomenologia quando faz uso do pensamento hermenêutico, metafórico e imaginativo. (Brooke, 1991, p.62).
O que se faz relevante aqui é destacar o caráter contraditório e não sistematizado da elaboração teórica de Jung. Esta ambivalência teórica implica numa concepção de psicopatologia que, segundo Samuels (2002, p.9), pode ser compreendida metaforicamente como um espectro que oscila: de um lado denominado "profissional", do outro denominado "poético". A dimensão profissional se remete ao jargão médico psiquiátrico com diagnósticos, termos classificatórios que pode ser encontrado tanto na psicopatologia geral como na Psicologia Analítica. Termos como "depressão", "complexo paterno", "tendências regressivas", "constelação do arquétipo", entre outros, são jargões científicos que definem e delimitam uma experiência psicológica. Por outro lado, a dimensão poética remete a leitura mitopoética, fenomenológica, como uma análise artística dos fenômenos encontrados, inclusive uma releitura do próprio jargão médico.
Não se deve abandonar nem um, nem outro, posto ser ambos fundamentais no processo psicoterapêutico. O termo profissional orienta o procedimento terapêutico, mas tende a ser insuficiente para a compreensão do processo subjetivo do paciente, sendo assim fundamental a compreensão poética. (Samuels, 2002, p.10).
Aspectos contemporâneos: Psicologia Analítica e a formação de escolas
Jung reconhecia a validade das contribuições teóricas de diversas áreas do conhecimento e intencionava a construção de uma psicologia geral, a qual desejou batizar como "Psicologia Complexa". Esta seria em detrimento da Psicologia Analítica, sendo esta idealizada como o aparato teórico para a prática clínica. A Psicologia Complexa consistiria na integração de vários campos de conhecimentos, como uma roda de aprendizado sobre conhecimentos gerados pelo e sobre o homem, pois tudo que é humano deve ser de interesse da psicologia e possibilita maior compreensão da alma humana. Porém, este título não vingou, permanecendo ainda mais conhecida como Psicologia Analítica (Shandasani, 2011, p.32).
Jung era declaradamente contra sistematizações de pensamento e escolas ditas "junguianas", institutos que se propunham a uma "linha de produção de analistas para uso imediato" (Jung, apud Shandasani, 2011, p. 359). Desejava que suas contribuições teóricas possibilitassem uma visão mais psicologizada do mundo, mas que cada um desenvolvesse sua própria forma de ver e abordar a realidade. O intuito de Jung era conceber sua psicologia como uma "função cultural", contrabalanceando a fragmentação das ciências e possibilitar uma compreensão sintética de todo o conhecimento (Shandasani, 2011, p. 35).
Entretanto, não foi o que de fato aconteceu, a começar pelo fracasso do próprio nome batizado por Jung de "Psicologia Complexa". Sua teoria foi e é usada mundo afora de forma indevida, fora de contexto, sem compreensão dos verdadeiros fundamentos. Além do mais, os próprios Institutos Junguianos acabam por sistematizar e reproduzir o conhecimento, voltando-se principalmente para a prática clínica e a dita (e tão criticada por ele) "constrição dos compartimentos" da alma humana. (Shandasani, 2011, p. 28).
De modo geral, o que se observa é que há uma delimitação teórica fundamental que define a abordagem da Psicologia Analítica. Para Samuels (1989, p.32), ela pode ser resumidamente definida em três aspectos no campo teórico e três aspectos na prática clínica. No que tange ao aspecto teórico, temos o conceito de arquétipo, de Si-Mesmo/Self e de desenvolvimento da personalidade. No que tange ao aspecto da prática clínica, temos a análise da transferência e contratransferência, a ênfase na experiência simbólica do self e o exame de imagens muito diferenciadas.
O aprofundamento dos estudos da Psicologia Analítica pelos seguidores ampliou este campo de conhecimento, de modo que é possível identificar um desenvolvimento e diferenciação das propostas iniciais de Jung. Samuels propõe, em sua famosa obra de revisão da literatura contemporânea da Psicologia Analítica "Jung e os Pós Junguianos" (1985/1989, p.32), uma clara distinção na produção de conhecimento contemporâneo da Psicologia Analítica. Isto possibilitou a delimitação teórica de três escolas junguianas, embora não instituídas: a Escola Clássica, a Escola Desenvolvimentista e a Escola Arquetípica. Cada uma, devido a suas peculiaridades conceituais, implicam em variações teóricas e práticas. A escola Clássica é a originária, com referencia maior Carl Gustav Jung (1875-1961), que enfatiza o Si Mesmo e a individuação. A escola Desenvolvimentista, cuja maior referência é Michel Fordham (1905-1995), parece complementar a partir dos estudos pioneiros da psicologia infantil, recebendo influencias da psicanálise, enfatizando mais o desenvolvimento da personalidade e a relação terapêutica (transferencial/contratransferencial). E a Escola Arquetípica, cuja maior referência é James Hillman (1926-2011), enfatiza mais os aspectos imagéticos e mitológicos da alma, enfocando-se no conceito de arquétipo.
Esta sistematização foi superada por Samuels em 2008, quando publica um artigo "Novos desenvolvimentos no campo pós-junguiano", onde reformula sua classificação das escolas em Psicologia Analítica, atualmente são: Escola Fundamentalista, Escola Clássica, Escola Desenvolvimentista e Escola Psicanalítica. Esta nova sistematização propõem provocações críticas ao enrijecimento teórico na concepção tradicional de Jung (referindo-se a Escola Fundamentalista) e das contribuições da psicanálise (Escola Psicanalítica). Também articula uma integração da Escola Arquetípica como desdobramento teórico da Escola Clássica.
Como entendo agora, existem quatro escolas de psicologia analítica pós junguianas. As escolas clássicas e desenvolvimentistas têm permanecido praticamente como eram. (...) mas há duas novas escolas a se considerar, cada qual uma versão extrema de uma das duas escolas até aqui existentes, a clássica e a desenvolvimentista. Chamo essas duas versões extremas de fundamentalismo junguiano e de fusão junguiana com a psicanálise. (Samuels, 2008, p.5).
Assim, atualmente o que se observa são discernimentos entre a Escola Clássica e a Escola Desenvolvimentista e seus respectivos desdobramentos e também cristalizações. Segundo Samuels (2008, p.9), as escolas teóricas são correções epistemológicas e críticas do trabalho de Jung, mas permanecem relacionadas à tradição do pensamento, pela concordância de muitas ideias, mesmo que distantes e diferenciadas. Assim, elas complementam-se e se compensam de certa forma, transformando-se em instrumentos possíveis que o terapeuta da Psicologia Analítica possui a disposição de seu trabalho.
As escolas e suas Perspectivas dos fenômenos Psicológicos
Segundo Samuels (2002), as diferenciações escolares se remetem a ambiguidade da teoria de Jung descritas no tópico 4, que favoreceram dois eixos de pesquisa: etiopatogênica e fenomenológica. A primeira preocupa-se em compreender as causas e delimitar uma visão científica dos fenômenos psicológicos. A segunda busca uma perspectiva mito-poética e metafórica dos fenômenos psicológicos.
Para este autor, a Escola Desenvolvimentista enfatiza mais a pesquisa etiopatogênica. Visa os estudos dos estágios iniciais do desenvolvimento do ego proposto pela teoria psicanalítica para responder o "Por quê?" e "Como?" dos fenômenos psicopatológicos. Nestas investigações buscam compreender as causas dos conflitos e sintomas não somente por meio da investigação clínica das bases arquetípicas da personalidade, como também as fases infantis do desenvolvimento do ego segundo Freud. Sendo assim, valorizam os dados biográficos e a qualidade das relações transferenciais-contratransferenciais para identificar os conteúdos pessoais latentes a serem conscientizados. (Cardoso, 1993, p.98; Samuels, 1989, p.82; Solomon, 2002, p. 128). A perspectiva clássica de Jung, por sua vez, não se propõe a investigar sobre o "por quê?" e "como?" se deu a fragilidade egóica nas psicopatologias. Para ele, o método redutivo-causal (psicanalítico, de investigar as causas do adoecimento psíquico) limita a perspectiva simbólica, pois reduz os sintomas a um material infantil reprimido ou disfarçado. A abordagem de Jung se volta para a investigação do desenvolvimento das bases arcaicas e coletivas da personalidade (arquétipos) expressas nos simbolismos da psique. Utiliza-se do método hermenêutico sintético ou construtivo que encontra sentidos, significados e finalidades nos fenômenos psicopatológicos.
A perspectiva finalista-sintética leva ao entendimento de que as doenças são desequilíbrios psíquicos regidos por processos compensatórios. Estes visam a integração de aspectos inconscientes do Si-Mesmo, dissociados da consciência, por meio da experiência simbólica. Busca, então, responder o "para quê?" dos adoecimentos psíquicos e utiliza-se de uma lógica "analógica", por semelhanças, encontrando em temas mitológicos e coletivos em geral semelhanças de sentidos para os conteúdos psicológicos individuais. (Cardoso, 1993, p.24; Solomon, 2002, p.129).
A perspectiva simbólica desenvolvida por Jung encontra nos mitos e conteúdos coletivos (a arte, ideologias, religião, política, entre outros) as expressões simbólicas da psique coletiva. São revelações do desenvolvimento dramático significativo da alma que refletem condições essencialmente humanas e universais, fazendo com que o drama particular do indivíduo contemporâneo possa ser compreendido e incorporado a um tema típico humano. A manifestação de padrões de comportamentos, emoções, ideias estereotipadas das psicopatologias são descritas como uma "inflação psíquica", onde há um estado de "semelhança a Deus". (Jung, 2007, §224). Em outro momento, sendo aprofundando-se mais na relação entre as psicopatologias e a função religiosa da alma, atesta que "os deuses tornaram-se doenças". (Jung, 2002, §54).
Mas, se cada psicopatologia manifesta uma fenomenologia específica, cabe compreender qual Deus está sendo manifesto. Segundo Hillman (1997, p.24; 2010, p.141) a pergunta de "O que?" ou "Quem?" é o sujeito arquetípico do adoecimento psicológico foi a deixa de Jung e aprofundada por autores que buscam pela investigação fenomenológica permanecer na imagem-fantasia e descrevê-la de modo a constituir uma perspectiva dos fenômenos psicológicos. Sendo assim, o eixo de pesquisa fenomenológico se estende ao trabalho hermenêutico finalista da Escola Clássica e se consolida mais na Escola arquetípica. Atualmente a Escola Arquetípica encontra-se integrada como campo teórico da Escola Clássica, segundo Samuels (2008). As escolas possuem metodologias diferenciadas, criam campos epistemológicos e teóricos divergentes, possibilitando a explanação em diferentes áreas do conhecimento. A Psicologia Analítica encontra-se, tal como o campo da Psicopatologia, diante da diversidade teórica. Samuels (1992) identifica isto e propõem a perspectiva metafórica do pluralismo psíquico como uma abordagem de reconciliação dos conflitos teóricos, mas sem impor uma síntese e sem perder de vista as razões e a coerência lógica nos diversos pontos de vistas teóricos e práticos da psique (tanto dentro da Psicologia Analítica como em outras perspectivas da psicologia profunda). O pluralismo é dado como instrumento para certificar a diversidade sem a necessidade de uma separação. Isto garante a unidade da abordagem da Psicologia Analítica e sua diversidade teórica.
Considerações finais
A pluralidade de teorias da psicologia profunda e da Psicologia Analítica reflete a inerente característica plural da psique: é como um mosaico, composta de diversas vozes internas, imagens, complexos, deintegrados, subpersonalidades, objetos internos, etc. O paradigma do pluralismo esclarece as questões de unidade e multiplicidade da psicologia profunda, da dinâmica psicológica, da fragmentação das teorias e dos aspectos psíquicos como inerentes da própria psique. Desta forma, não há razão para cisão, a multiplicidade é característica ontológica da psique. Samuels (1992, p.6) alerta que os debates e conflitos revelam necessidades profundas de contato e diálogo.
Sendo assim, apesar das diferentes escolas teóricas, é possível conceber que de modo geral, a contribuição da perspectiva psicogênica e simbólica da Psicologia Analítica eleva o entendimento dos fenômenos psicológicos para além da materialidade fisiológica do humano, e visa direcionar para o pre sente e futuro. Apresenta diferentes perspectivas metodológicas de investigação, fornecendo ao estudioso do campo uma ampla possibilidade de técnicas e teorias. Neste campo teórico plural coexistem pos sibilidades diversas de compreensão dos fenômenos psicológicos, seja pela visão redutiva ou prospectiva, pela ênfase nos conteúdos simbólicos arquetípicos ou pela compreensão biográfica e genética da psique individual. A perspectiva simbólica possibilita o aprofundamento na compreensão de sentidos e significados dos fenômenos psicopatológicos dife renciando-se da prática convencional da psiquiatria.
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Recebido: 30/09/2017 / Corrigido: 19/11/2017 / Aprovado: 21/11/2017
1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica (UFPR), especialista em Psicologia Analítica (Unisão Paulo), especialista em Psicologia Clínica e da saúde (UNIFIL). Avenida Marechal Deodoro, 1269, bloco 6 , apto.4, Curitiba/PR, CEP: 80060-010. Fone: 41 - 995423174. e-mail: elis.padua@yahoo.com.br.
2 Psicólogo, Mestre em Psicologia e Sociedade (UFSC), Doutor em Ciências Humanas (UFSC). Docente da Universidade Federal do Paraná - Praça Santos Andrade | 2º andar | Curitiba - PR, CEP: 80060-010. Fone: 41 - 99191-6886. e-mail: caserbena@gmail.com.