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Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dic. 2005

 

DOSSIÊ

 

Acompanhamento terapêutico: contexto legal, coordenadas éticas e responsabilidade profissional

 

Therapeutic accompaniment: legal insertion, ethic coordinates and professional responsability

 

 

Gabriel Omar PuliceI*; Federico MansonII**; Daniela Teperman (Trad.)

* Universidade de Buenos Aires
** Associação de Acompanhantes Terapêuticos da República Argentina

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo abordar as dificuldades decorrentes da falta de uma adequada inscrição formal da figura do Acompanhante Terapêutico no sistema de Saúde Mental, junto com um estudo pormenorizado das instâncias nas quais a Lei de Saúde Mental da cidade de Buenos Aires, no entanto, abre uma forte perspectiva para sua inclusão, em cuja regulamentação atualmente estamos trabalhando. Em conexão com essa problemática, também é oportuno renovar a interrogação sobre as coordenadas éticas e a responsabilidade profissional que são postas em jogo no exercício dessa especialidade.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Lei de saúde mental, Ética, Responsabilidade profissional.


ABSTRACT

The present work has for objet to examine these difficulties derived to the fault of one adequate formal inscription of the Therapeutic Accompaniment in the Mental Health System, with an exhaustive study of these points in that the Mental Health Law of Buenos Aires City, since 2000,open a strong perspective to his inclusion. We are just working in it with a City's Legislature member. In connection with this problematical, it's opportune to renovate the interrogation about ethic coordinates and the professional responsibility implicated in the execution of this specialty.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Legal insertion, Ethic, Professional responsibility.


 

 

Sobre as origens e fundamentos desta atividade

Desde seu surgimento na Argentina, em meados da década de 60, o Acompanhamento Terapêutico (AT) nasce como uma ferramenta clínica que se inscreve em uma busca - partilhada por uma boa parte dos profissionais do campo da Saú de Mental1 - cujo propósito não era outro que tentar subverter as diretrizes naquele momento imperativas, ainda fortemente arraigadas, do modelo manicomial. Momentos de intensa convulsão política e social tanto na Argentina como em diversos países do mundo ocidental, foram o terreno propício para o início de toda uma série de experiências que, a partir do forte impulso da Psiquiatria Dinâmica, da Anti-psiquiatria e, fundamentalmente, da Psicanálise, começaram a dar consistência à idéia de que era possível avançar no tratamento de muitos pacientes afetados, de diversos modos, por sofrimentos psíquicos severos, para além do mero "controle social" em que se converteram, indesejavelmente, os objetivos "terapêuticos" da internação médica. Este movimento de abertura e transformação foi amadurecendo desde o início do último século e se acentua a partir de sua segunda metade, quando se soma o importante desenvolvimento que começou a ter a Psicofarmacologia. Foi gerando as condições para a introdução de novos dispositivos de atenção ambulatoriais, os quais, por sua vez, levaram ao desenvolvimento de novas e diversas disciplinas como resposta às renovadas necessidades clínicas que, a partir disso, começaram a surgir. Entre esses dispositivos não podemos deixar de mencionar a criação do Hospital-Dia2, que começará a ter um lugar cada vez mais importante ao término da 2ª Guerra Mundial, e que é correlativo a uma nova significação da loucura e às revigoradas expectativas sobre seu tratamento.

Essa "mudança de paradigma" que observamos no campo das psicoses, sem dúvida pode estender-se ao que começa a ocorrer na abordagem de outros pacientes habitualmente "enquadrados" em outras áreas clínicas que paulatinamente foram se especificando e também apresentavam com freqüência seus próprios desafios, urgências e complicações. Podemos mencionar, entre elas, o trabalho com crianças e adolescentes com transtornos severos como o autismo, o retardo mental e a psicose infantil; os transtornos da alimentação, as adicções, o alcoolismo e outras patologias de consumo; o tratamento de pacientes oncológicos, terminais, da terceira idade, e com transtornos neurológicos graves como epilepsias, demências, Alzheimer; às quais poderíamos acrescentar muitas outras afecções. O saber das disciplinas tradicionais deixa de ser, então, a ferramenta exclusiva para o tratamento das doenças mentais - e, inclusive de outras, não necessariamente de origem psíquica passando a partilhar esse terreno com outros saberes que começavam a demonstrar ter algum compromisso com o desenvolvimento das novas estratégias clínicas que essa mesma busca levava a instituir.

A aparição em cena do A.T. está fortemente atravessada por esse contexto: ligada a uma práxis que se situa, no início, mais como uma investigação do que como uma ciência estabelecida, foi necessário um prolongado período de amadurecimento para que, além do atravessamento de saberes que lhe dá origem, pudessem ser delimitados com precisão os contornos de sua figura, possibilitando o estabelecimento de uma diretriz teórica consistente3 e estabelecendo a necessidade de instituir o indispensável enquadre regulamentar da atividade.

 

Problemas na clínica

Do trabalho de todos esses anos- tanto hospitalar, como nas instituições semi-públicas e no âmbito estritamente privado- podemos extrair, como forma de ilustração, uma pequena amostra de episódios paradigmáticos que destacam alguns dos problemas, dos paradoxos e dos obstáculos que com muita freqüência se impõem na inserção clínica do A.T. no Sistema de Saúde Mental, como resultado dessa semi-marginalidade. Vejamos, por exemplo, o caso de Verônica. Trata-se de uma paciente que procura o Serviço de Hospital-Dia em uma instituição pública da cidade de Buenos Aires, lugar em que ela tinha sido internada em mais de uma ocasião. Pouco tempo depois de começar a freqüentar o Hospital-Dia, fica grávida, e é preciso mencionar aqui que ela já tinha dois filhos pequenos de cujos cuidados foi privada, precisamente, pelos problemas "psiquiátricos" e pelas descompensações que acompanharam os referidos nascimentos. Ao tomarem conhecimento da nova gravidez, começam a investir em seu tratamento na possibilidade de que estabeleça com esta um vínculo diferente do observado nas anteriores, quando acabou sendo internada em meio a episódios escandalosos. Apostava-se em que Verônica pudesse sustentar desta vez- mesmo que parcialmente- seu lugar como mãe, contando com vários meses por diante para poder, ao menos, tentá-lo. Além disso, contava-se também com o fato de que, depois de ter atravessado as crises anteriores nesse mesmo hospital, a paciente foi estabelecendo um vínculo muito forte com a instituição, depositando na equipe de tratamento uma importante quota de confiança. Não obstante, para sustentar esse trabalho- que se supunha que seria intenso e complexo-, a terapeuta sugeriu a inclusão de Acompanhantes Terapêuticos (at). Tratava-se de cobrir alguns horários-chave, complementares de suas atividades no Hospital-Dia. Mas sua estratégia, apesar de estar avalizada pelo resto da equipe terapêutica, ficou obstruída por questões regulamentares: concretamente, porque o chefe do serviço "não se animava" a incluir um recurso que não estava legitimado no quadro de funcionários hospitalares, argumentando que "caso houvesse algum problema, a responsabilidade recairia sobre ele". Assim, passaram-se meses sem que isso se resolvesse e, quando a paciente estava para dar à luz, foi internada na maternidade Sardá, intervindo- como compete em um caso como esse- o Juizado de plantão. Nesse contexto, a sugestão de A.T. foi novamente formulada pelos membros da equipe de tratamento, desta vez diante do Juiz, de quem passou a depender, a partir de então, que essa "sugestão" fosse desconsiderada ou tomasse o caráter de "indicação terapêutica". O Juiz, sem muita hesitação, autorizou que se implementasse o acompanhamento de forma imediata. Não obstante, mesmo que tenha ocorrido, neste caso, uma resolução favorável isso não atenua o fato de que a esta altura já tinha sido perdido um tempo talvez irrecuperável, na possibilidade de realizar esse trabalho prévio que tinha ficado obstruído. É claro que mesmo que este tivesse sido efetuado, isso não garantia que fossem alcançados os objetivos traçados, mas sem dúvida, aumentariam consideravelmente as chances de consegui-lo. É preciso dizer que a eficácia do acompanhamento tem, muitas vezes uma estreita relação com a precisão temporal de sua implementação, com chegar a tempo, aonde os tempos deveriam estar em relação à temporalidade subjetiva de cada paciente, coisa que nem sempre é concomitante aos tempos das prestações de serviços institucionais ou das Obras Sociais4. Há pouco tempo me contava um de meus pacientes- que chegou ao consultório com uma fobia muito grave- como terminou sua frustrada tentativa de tratamento em um hospital público quando, em determinado momento, a terapeuta que o atendia comunicou-lhe: << Já passaram seis meses- o tempo máximo de psicoterapia ali previsto- e você não se curou... Aqui não podemos continuar atendendo. Mas... Você precisa de um tratamento urgente!>>. Esse paciente, que tinha uma família muito presente, pôde resistir a esse "contratempo" e, diante do fracasso dessa experiência no âmbito público, decidiram tentar melhor sorte no serviço privado, fazendo um grande esforço para poder sustentar economicamente essa alternativa. Não obstante, o mais freqüente- por exemplo, em casos de esquizofrenia- é que verifiquemos aquela descrição tão precisa como sinistra que fazia Juan Carlos Stagnaro (1997) sobre o destino do tratamento dos pacientes psicóticos em um contexto como o que descrevemos: "O psicótico é um trapezista sem rede que vai de recurso em recurso terapêutico se é que encontra algum e, quando lhe falha o salto ao trapézio seguinte, vem abaixo e volta a recair. Isto leva a cronificações e deteriorações que poderiam ser evitados. Todos esses momentos são de alto risco, constituem exigências muito fortes sobre o sujeito que, de repente, pode se descompensar novamente, já que está em um momento de precariedade absoluta. Se o acompanhamento está previsto gociações, aceitou restituir-lhe uma parte do custo do acompanhamento, entre outras coisas porque essa indicação tinha sido subscrita pelo Juizado; e, por outro lado, porque o custo da internação em uma instituição psiquiátrica subsidiária certamente teria sido superior. No entanto, esse argumento não é sempre levado em conta e a verdade é que a maioria doss planos de saúde- como no caso da IOMA ou Osecac, para citar alguns exemplos- só aceitam cobrir o custo do acompanhamento quando este é instituído no contexto de um dispositivo institucional que lhe dê um enquadre. O problema é que isso força uma desnecessária triangulação entre os planos de saúde, as instituições e os acompanhantes que não apenas obstaculiza burocraticamente a introdução desse recurso, mas também, produz o duplo efeito de encarecer seu custo, ao mesmo tempo que empobrece os honorários dos acompanhantes. Por quê? Porque a instituição, na maioria dos casos- e na medida em que isto implica, no mínimo, um trabalho administrativo de sua parte-, passa a requerer alguma retribuição por essa terceirização. E isso tem como conseqüência que, a partir de então, os honorários que os acompanhantes cobram já não serão os mesmos pagos pelos planos de saúde. Algo se perde pelo caminho. A que se deve essa forma de funcionar as coisas? Deparamos novamente com o mesmo argumento: os planos de saúde não podem contratar de forma direta algo inexistente na sua lista de recursos disponíveis. Como remediar essa dificuldade? desde o princípio, seja dentro de uma mesma equipe ou em sucessivas instituições, estes hiatos podem ser preenchidos (1997, p. 83) ...", reduzindo-se consideravelmente o risco de que todo o esforço, até então realizado, fique perdido.

Em contraposição ao ocorrido com Verônica, podemos citar o caso de Emanuel, um jovem de 19 anos, que depois de uma "tentativa de suicídio" ocorrida em um lugar público- tentou cortar os pulsos no banheiro de uma discoteca após uma decepção amorosa- e, a partir da intervenção do Juizado Nacional de Menores de plantão, foi indicado que devia ser internado preventivamente em uma instituição psiquiátrica. Não obstante, e dado que o jovem estava já há algum tempo em uma psicoterapia privada, seu terapeuta optou pela alternativa de instituir uma internação domiciliar com acompanhantes terapêuticos. A proposta foi aceita tanto pelos pais como pelo Juizado e se iniciou imediatamente. Esse dispositivo- que, transcorrido um par de semanas, foi desmontado gradualmente- possibilitou que se contasse com tempo suficiente para que o jovem pudesse elaborar em seu espaço de análise o ocorrido, sem necessidade de transitar por nenhum dispositivo institucional. É preciso destacar, no entanto, que neste caso nos deparamos com um outro problema- que nessa ocasião foi resolvido favoravelmente, ainda que não ocorra sempre assim-, que é o tema da cobertura desta prestação de serviços por parte dos planos de saúde. No caso de Emanuel, o plano de saúde de seu pai, depois de longas ne gociações, aceitou restituir-lhe uma parte do custo do acompanhamento, entre outras coisas porque essa indicação tinha sido subscrita pelo Juizado; e, por outro lado, porque o custo da internação em uma instituição psiquiátrica subsidiária certamente teria sido superior. No entanto, esse argumento não é sempre levado em conta e a verdade é que a maioria doss planos de saúde – como no caso da IOMA ou Osecac, para citar alguns exemplos – só aceitam cobrir o custo do acompanhamento quando este é instituído no contexto de um dispositivo institucional que lhe dê um enquadre. O problema é que isso força uma desnecessária triangulação entre os planos de saúde, as instituições e os acompanhantes que não apenas obstaculiza burocraticamente a introdução desse recurso, mas também, produz o duplo efeito de encarecer seu custo, ao mesmo tempo que empobrece os honorários dos acompanhantes. Por quê? Porque a instituição, na maioria dos casos – e na medida em que isto implica, no mínimo, um trabalho administrativo de sua parte –, passa a requerer alguma retribuição por essa terceirização. E isso tem como conseqüência que, a partir de então, os honorários que os acompanhantes cobram já não serão os mesmos pagos pelos planos de saúde. Algo se perde pelo caminho. A que se deve essa forma de funcionar as coisas? Deparamos novamente com o mesmo argumento: os planos de saúde não podem contratar de forma direta algo inexistente na sua lista de recursos disponíveis. Como remediar essa dificuldade?

Sabia, além disso, que tinha ocupado um importante cargo hierárquico em dois grandes meios massivos de comunicação.

Portanto, desde o primeiro momento procurei estabelecer um diálogo que me permitisse conhecer a pessoa que estava diante de mim. Pude saber no primeiro encontro, que nesse momento se encontrava `submetido' a dois grandes problemas: a intervenção cirúrgica pela qual iria passar sua ex-esposa- mãe de seus filhos- e a decisão de enviar seu próprio pai a um asilo de idosos. Para que o paciente pudesse começar a falar comigo, passou-se aproximadamente uma hora. A princípio, só respondia com monossílabos, afirmando ou negando, sem tocar nenhum tema em particular. Só se ocupava de servir-se de água, enchendo o copo até a borda, ou de fumar- chegava a fumar dez cigarros no intervalo de uma hora. Sentado, fazia tudo economizando qualquer movimento, ou melhor, controlando-o, dando uma impressão geral de artificialidade: era uma pessoa que bebia ou fumava com uma regularidade mecânica.

O que permitiu quebrar o gelo entre acompanhante e paciente foi um fato quase insignificante, mas que para ele adquiriu uma importância fundamental. Ao chegar, indicou que eu sentasse em uma poltrona que estava em frente à que ele ocupava, com uma mesa de vidro no meio. Depois de um tempo em silêncio, uma gata siamesa apareceu e começou a cheirar-me. O paciente chamou-a e lhe disse que não me incomodasse. Eu respondi que gostava de animais e deixei que a gata subisse no meu colo e se acomodasse para dormir. Então o paciente olhou o animal e, surpreso, disse: <<Que estranho; essa gata costuma ser arisca. Não deixa que ninguém a toque. Deve ter gostado de você>>. E, como se quisesse fazer um teste, levantou-se, abriu uma porta e deixou entrar uma cachorra enorme. Em seguida, sentou-se, esperando qual seria a reação dela. Se me permitem, direi: afortunadamente para o acompanhamento, a cachorra me cheirou e depois de dar umas voltas a meu redor, deitou-se ao meu lado e dormiu.

Estes dados podem parecer indiferentes e talvez até sejam desnecessário relatá-los, contudo, tiveram importância crucial, já que o paciente deu um significado ao que os animais fizeram com uma frase simples: <<Dizem que os animais não confiam em qualquer um>>. A partir de então, pôde desenrolar-se entre nós um diálogo que se estendeu por cinco horas. É interessante sublinhar como alguém que não tinha se dado ao trabalho de conhecer um estranho que havia deixado entrar em sua casa, permanecendo uma hora diante dele, pode confiar em mim só depois que o fizeram suas mascotes. Em um encontro posterior, disse-me que eu era seu preferido - entre os acompanhantes - porque não insistia em perguntar coisas sobre ele, imediatamente depois de dizer-me que, com meus dois companheiros, os animais não se davam tão bem como comigo.

Nessas cinco horas de diálogo, falamos de sua ex-esposa, de seu pai, de como havia sido despedido de seu antigo emprego e sobre mim. Quando ele avaliou que tínhamos falado o suficiente de sua pessoa, começou a perguntar-me sobre a psicologia, sobre minha carreira e sobre outros pacientes meus. Optei por não conduzir a conversa, já que fazê-lo de outra forma teria sido sentido como uma insistência de minha parte. Quando terminou a hora, me despedi e ele perguntou-me se podia telefonar-me caso ocorresse qualquer coisa. Disse-lhe que poderia telefonar ao coordenador ou que eu poderia ficar um pouco mais, ao que respondeu que se necessitasse iria me telefonar.

Uma eventualidade fez com que eu não pudesse escutar uma mensagem telefônica que meu coordenador me deixou nessa mesma noite. O paciente tinha lhe pedido que me enviasse novamente à sua casa, pois estava angustiado e queria falar. Outro acompanhante me cobriu naquela noite. Esse é um dado que nos permite pensar no tipo de transferência que estabelecia este paciente em particular: era uma transferência maciça, que tinha passado de uma total indiferença em relação à minha pessoa, a uma necessidade de ter-me novamente a seu lado para acompanhá-lo. Esclareço que não estou pensando em nenhum diagnóstico diferencial a partir do que disse sobre o tipo de transferência que se estabeleceu. É apenas um dado que adquirirá importância depois, já que o paciente mudará de acompanhante `preferido' no decorrer do trabalho, passando os três acompanhantes, sucessivamente, a ocupar esse lugar preferencial.

Já no segundo encontro, começou a falar dos dois temas que parecem encontrar-se na origem da depressão. Contou-me sobre sua ex-esposa, sobre a excelente relação que tiveram durante o casamento e mesmo depois da separação. Como já disse, ela iria passar por uma intervenção cirúrgica no estômago que implicava algum risco. Escuto no paciente uma demanda, não de informação, pois já havia se informado muito sobre os aspectos médicos da operação em si, mas uma demanda de que lhe dissesse algo que o tranqüilizasse. Entro no jogo e comento sobre um parente meu que foi submetido a uma operação similar há muitos anos, depois da qual manteve uma vida normal e sem complicações posteriores. Não importava se o que lhe estava contando era verdade ou não; segui um jogo que o paciente tinha formulado: te conto algo horrível e vamos ver o que você me diz. E foi uma boa aposta, já que dias depois me disse `Como aconteceu com aquele parente seu, agora minha esposa...'. Esse pequeno jogo permitiu-lhe procurar uma saída para a angustia de não saber o que ocorreria, uma saída simbólica, na qual o que estava acontecendo com sua esposa era algo de rotina na prática médica e que tinha um prognóstico favorável. De fato, ela passou pela intervenção, pelo pós-operatório e pela recuperação sem nenhum problema. Mais que isso, o paciente pôde visitá-la na clínica e depois em sua casa, deixando para trás sua angústia e fazendo companhia à sua esposa.

Com respeito ao pai, o conflito central era de não saber como convencê-lo e à sua mãe de que a decisão era a melhor para todos. O pai, um idoso de quase 90 anos, sofria de uma enfermidade óssea e costumava perder o equilíbrio, o que provocou diversos tipos de fraturas devido às suas reiteradas quedas. O que mais preocupava o paciente, era seu pai negar-se a ser internado em uma clínica geriátrica, pois durante toda sua vida havia sido um homem muito ativo e empreendedor. Ele racionalizava a decisão, dizendo ser o mais lógico e o mais conveniente tanto para seu pai quanto para sua mãe, que cuidava dele. Por indicação do psiquiatra, começou a visitar seu pai quando este foi internado.

Cabe fazer um esclarecimento. Tudo isto que o paciente relatava sobre sua esposa, sua família e seu pai em particular, o fazia em um tom monocórdico, sem afetos, como se estivesse relatando uma história qualquer, não a sua. Inclusive, quando dizia sentir-se angustiado, dizia não ter vontade de fazer nada, mas não demonstrava nenhum sentimento: nem positivo, nem negativo. Cada vez que procurei ir um pouco além, perguntando sobre como conheceu sua mulher, como eram seus filhos- tem três filhos já adultos- ou como era a relação com seu pai, acrescentava alguns dados formais, respondendo estritamente o perguntado e voltava a um mutismo apenas interrompido por monossílabos.

Apenas uma vez, comentando de sua infância, pôde falar de seu pai e conseguiu emocionar-se, demonstrando uma certa irritação. Ao comentar sobre os negócios que seu pai tinha empreendido durante sua vida, deixou entrever que, se ele havia se saído mal, era porque não tinha seguido seus conselhos (o paciente). Mas foi só uma faísca que, lamentavelmente, não voltou a repetir-se. Do que pôde falar mais apaixonadamente foi do trabalho realizado durante 40 anos. Devido a uma reestruturação da empresa para a qual trabalhava, foi despedido. Mesmo indenizado, tinha sentido a separação de seu cargo como uma injustiça, pois sentia que tinha dado tudo pela corporação e, com seu trabalho havia lhe dado o renome que possui atualmente. Da maneira como ele a apresentava, era mais uma história, com a eventualidade de ser ele o protagonista. Nesse ponto, optei por levá-lo a historiar sua entrada na empresa e todos os anos que passou nela. Lamentavelmente, esse trabalho de historização que estava começando a render frutos, depois de seu início, foi interrompido por um acontecimento que deu um giro inesperado ao acompanhamento e à sua depressão.

Com parte do dinheiro da indenização, tinha montado uma transportadora junto com um sócio. O paciente contribuia com o capital e o sócio se encarregava da administração. Por insistência do psiquiatra, o paciente começou a interessar-se pelas finanças do negócio e descobriu que seu sócio quase levou a transportadora à falência. O importante deste fato é que a necessidade de ocupar-se em recuperar o dinheiro e manter em funcionamento o negócio tirou-o da paralisação em que estava. Voltou a dirigir seu carro, a interessar-se pela organização do trabalho e a passar várias horas no escritório. Os outros acontecimentos sobre os quais havia se baseado o trabalho passam para segundo plano. De alguma maneira, ficou absorvido pela tarefa de recuperar sua empresa e de enfrentar seu sócio. Em diferentes ocasiões enfrenta esse ladrão, acusa-o de ter atuado de má-fé e exige que lhe preste contas do dinheiro que desapareceu do caixa. O importante a destacar é que, em seus enfrentamentos com esse sujeito, usa os acompanhantes como sustentação imaginária: pergunta-nos o que deve fazer, como deve enfrentar o outro. A linha da equipe foi manter-se como um apoio, como um auxiliar, mas não ceder diante da demanda de uma resposta salvadora.

Excelente organizador, o paciente pôde resolver o problema em apenas duas semanas. Pôs em ordem a empresa e se impôs firmemente frente a seu sócio. No entanto, não deixou de demonstrar um comportamento mecânico, alguma rigidez em suas condutas e uma relativa falta de sentimentos em relação ao que lhe estava acontecendo. E esse foi o final do acompanhamento. Tão abrupto como tinha começado, terminou. Foi decisão do paciente acabar com o trabalho, decisão tomada sem consultar o psiquiatra que nos havia convocado.

Nas reuniões de coordenação surgiu uma divergência entre os acompanhantes. O ponto central da discussão foi o diagnóstico diferencial. Uma perspectiva era considerar que o paciente apresentava uma estrutura psicótica, que se tratava nesse momento de um período de perplexidade. Isso podia ser demonstrado pela alexitimia, pela transferência maciça que manifestava e pela alternância de depressão- mania na qual tinha entrado. A partir dessa perspectiva, o trabalho podia ser visto como um sintoma, como algo que mantinha a estrutura estável, ou em todo caso, algo que permitia sustentar um `como se'. No entanto, durante o tratamento, não houve nada conclusivo que permitisse à equipe decidir um diagnóstico, pois houve frentes de trabalho sobre as quais não foi possível avançar, como por exemplo, a relação que teve esse paciente com seu pai e na qual era possível ler algum conflito edípico relacionado à competição e à irritação diante dele. Mas essas são hipóteses que não puderam ser corroboradas devido à curta duração do trabalho de acompanhamento."

Previamente a qualquer comentário do caso, é preciso assinalar que, devido às "particularidades" da demanda com a qual se inicia o acompanhamento e ao modo como chega ao fim, torna-se difícil avançar em uma análise mais profunda no que diz respeito à sua interpretação, ou seja, a uma leitura que nos permita vislumbrar as coordenadas subjetivas inconscientes colocadas ali em jogo. Da mesma maneira, o estabelecimento de qualquer diagnóstico diferencial resultaria em algo forçado, para além das hipóteses diagnósticas que no momento estiveram no centro da discussão, em algumas das reuniões da equipe. Não obstante, a partir de certo ponto de vista, podemos dizer que, apesar disso, esta foi uma intervenção absolutamente exitosa, sendo avaliada dessa forma tanto pelo paciente e por sua família, como pelo médico responsável. Sua finalização, contudo, tão abrupta como o início, pôs em jogo toda uma série de questões problemáticas que vale a pena considerar em detalhe, dado que nos permitirão refletir sobre um dos pontos mais delicados no que diz respeito às coordenadas jurídicas que atravessam a intervenção do A.T.: o fantasma da má-praxis e a responsabilidade profissional. Basta recordar- para dimensionar de algum modo o problema- aquilo que se assinalava em um dos trabalhos apresentados no Congresso de Córdoba, em 2001: "O progresso em complexidade dos eixos gerais da assistência em Saúde Mental não está separado do contexto de considerações jurídicas e de seu correspondente mercado. Atualmente os indicadores mais sérios com os quais se conta no desenvolvimento do estudo dos erros na prática são fornecidos não pelo campo das disciplinas terapêuticas mas pelas investigações das agências de risco de trabalho ou Risk Management. As administradoras de riscos destacam que na atualidade a psiquiatria ocupa o segundo lugar, depois da cirurgia, no crescimento das demandas por má-praxis (...) No futuro próximo pode-se esperar que, ao lado desse crescimento, cresçam também os resguardos e as exigências da competência dos auxiliares assim como também uma redistribuição de responsabilidades técnicas"5. Em sintonia com essa predição, torna-se interessante acrescentar alguns dados referidos ao contexto social em que, por desventura, desenvolveu-se o trabalho dos acompanhantes naquele momento: de maneira inédita, e durante várias semanas, o A.T. tinha ganhado os primeiros planos dos meios massivos de comunicação, a partir de dois acontecimentos trágicos: a "acidental" morte de um conhecido apresentador de televisão em nosso país, Juan Castro; e, alguns dias depois, a morte por overdose de cocaína de um dos sócios de outro famoso apresentador e produtor televisivo, Mario Pergolini. Em ambos os casos, tornaram-se públicas as vicissitudes de seus respectivos tratamentos, fortemente questionados, e a figura e "atuação" dos acompanhantes terapêuticos passaram a estar no centro do debate nacional, e não da melhor maneira, pois desde os programas de entretenimento aos noticiários policiais dos jornais, rádio e televisão, ninguém se privou de fazer algum comentário sobre o tema: entre outras coisas, eram mostradas algumas fotos, à primeira vista muito comprometedoras, do apresentador com sua acompanhante terapêutica e seu psiquiatra todos abraçados, fantasiados etc.

Recebemos várias chamadas telefônicas convidando-nos a participar de alguns desses programas televisivos como representante da AATRA6, mas desistimos de expor-nos a formar parte do imenso circo midiático que tinha sido montado. Como contrapeso, devemos dizer que, também em outros meios mais "sérios", gerou-se um genuíno interesse cultural e científico, ao qual respondemos: foram publicados como um dos temas centrais de algumas revistas e de outros meios impressos vários artigos e entrevistas, nos quais foi possível transmitir, a partir de outra posição, diversas questões concernentes ao lugar do acompanhamento, a seus fundamentos e à crescente valorização de sua eficácia clínica. Para além do anedótico dessa inusitada situação, o fato é que ficou ali revelado da maneira mais crua, o vazio jurídico que, há muito tempo, vínhamos identificando em torno de nossa atividade.

Vejamos como se deram os últimos acontecimentos, prévios à finalização de nossa intervenção nesse caso: na segunda-feira, o paciente entra em contato com o coordenador da equipe, dizendo-lhe que "no dia seguinte teria uma reunião com seu advogado justamente no mesmo horário do acompanhamento, à qual preferia ir sozinho". Respondemos que, de nossa parte, não haveria inconvenientes, mas que era necessário colocar seu terapeuta a par dessa mudança, dado que não podíamos modificar o dispositivo sem seu consentimento. Deixamos uma mensagem ao terapeuta que, só na quarta-feira, se comunica com o coordenador da equipe, anunciando que naquele mesmo dia estaria viajando ao interior do país e que regressaria após o fim de semana. A indicação do terapeuta, nesse momento, foi que se mantivesse o acompanhamento, tal como havia sido estabelecido até então, e que, na segunda-feira seguinte, dia em que ele voltaria a ver o paciente, avaliariam juntos quais seriam as modificações a introduzir no dispositivo. Ainda assim, deixa-nos a indicação de que diante de qualquer problema que pudesse aparecer, poderíamos deixar-lhe uma mensagem em sua secretária telefônica, dado que ele recolhia suas mensagens diariamente. No dia seguinte, o paciente telefona novamente para suspender o acompanhamento da tarde, pouco antes do horário de início. Transmitimos-lhe as indicações de seu terapeuta e, depois de uma breve conversação, aceita que se modifique o horário, de acordo com as atividades que ele tinha programado para aquele dia, sem suspendê-lo. Na sexta-feira, volta a entrar em contato com o coordenador, mas desta vez para informá-lo de sua decisão de "dar por finalizado o acompanhamento". Falamos com ele sobre a necessidade de falar primeiro com seu terapeuta, à qual responde ter deixado uma mensagem ainda sem resposta. Aceita voltar a falar mais tarde, na tentativa de ganharmos tempo para poder entrar em contato com o médico, mas transcorrem várias horas sem que este responda às mensagens que lhe deixamos. Frente a isto, voltamos a ligar para o paciente, que se mantém firme em sua negativa de continuar. Dizemos então que, dado que sua decisão estava em direção contrária às indicações de seu terapeuta e, tendo ficado o coordenador da equipe como responsável por seu tratamento, teria que assinar uma declaração, tanto ele como sua ex-mulher que desde o início tinha participado de todas as decisões relativas ao tratamento, sendo ela inclusive quem se ocupava de pagar os honorários da equipe que nos descomprometesse de toda responsabilidade posterior pelo que lhe pudesse ocorrer na ausência do médico. A mulher se negou a assinar essa declaração, o que ele somente aceitou a contragosto.

 

Buenos Aires, 29 de maio de 2004

Declaramos, através da presente, que por nossa decisão pessoal, e contra a opinião médica, damos por finalizada a prestação de Acompanhamento Terapêutico de ..............................., R.G. .................................., oportunamente indicado pelo

Dr. .............................., e coordenado pelo Lic. Gabriel O. Pulice.

 

assinatura .......................................

bservação .......................................

assinatura .......................................

observação .......................................

 

É evidente que o valor jurídico dessa declaração, que o paciente finalmente aceitou assinar, apenas remedia a carência de uma legislação adequada que regule as diversas questões que se colocam em jogo em torno de nossa atividade. Não obstante, para além das possíveis implicações jurídicas, consideramos que era indispensável sancionar de algum modo a periculosidade implicada nessa transgressão, tratando-se de um sujeito que tinha o hábito de dirigir em altíssima velocidade- os acompanhantes que participaram no caso puderam testemunhá-lo-, em um momento no qual o risco de reincidência em seu alcoolismo estava claramente à espreita.

Era uma vez uma lei...

Foi dado um passo muito importante na Cidade de Buenos Aires com a promulgação, durante o ano 2000, da Lei de Saúde Mental7. Ao menos em nossa cidade, já não se discute a legitimidade do direito do cidadão à Saúde Mental: há uma Lei que assim o estabelece. Podemos ler em seu Artigo 1°, que ela tem por objetivo "garantir o direito à saúde mental de todas as pessoas no âmbito da Cidade Autônoma de Buenos Aires". Sabemos que o "Estado de Direito" não é garantido apenas com a promulgação de uma lei; é preciso ver que utilização se faz depois dela. Não obstante, sua presença faz com que, a partir da inscrição simbólica que implica tal regulamentação das coisas, cada ação realizada sob seu domínio passe a ter uma significação que, de forma inevitável, se remeterá a ela. Vamos nos limitar aqui a ajustar nosso olhar para aquilo que nos concerne especificamente, ou seja, vamos nos deter em alguns de seus fragmentos mais importantes no que diz respeito ao lugar do A.T. Verão que a partir disso poderemos extrair algumas conclusões mais que interessantes.

Começaremos pelo Título I: A Saúde Mental na Cidade de Buenos Aires, cujo Capítulo I corresponde às Disposições Gerais. No Artigo 3º desse primeiro capítulo, referido aos "Direitos", podemos ler que "são direitos de todas as pessoas em sua relação com o Sistema de Saúde Mental: os estabelecidos pela Constituição Nacional, pela Convenção dos Direitos da Criança e demais tratados internacionais, pela Constituição da Cidade de Buenos Aires, e pela Lei nº. 153 em seu artigo 4º; (a) à informação adequada e compreensível, inerente à sua saúde e ao tratamento, incluindo as alternativas para sua atenção;(b) à aplicação da alternativa terapêutica mais conveniente e que menos limite sua liberdade".

Passamos ao Capítulo III, que se refere a tudo que diz respeito ao funcionamento do Sistema de Saúde Mental. No Artigo 8º, trata de sua "Integração", assinalando que "está constituído pelos recursos do Sistema de Saúde Mental dos sub-setores estatal, de segurança social e privada que são realizadas no território da Cidade, nos termos do Art. 11 da Lei 153". Sobre as "Diretrizes e ações", no Artigo 10º se assinala que "a autoridade de aplicação deve contemplar as seguintes diretrizes e ações na condução, regulação e organização do Sistema de Saúde Mental: (...) a assistência deve garantir a melhor qualidade e efetividade por meio de um sistema de redes; a potencialização dos recursos orientados à assistência ambulatorial, sistemas de internação parcial e atenção domiciliar, procurando a conservação dos vínculos sociais, familiares e a reinserção social e no trabalho; a recuperação do bem-estar psíquico e a reabilitação das pessoas assistidas em casos de patologias graves, devendo tender a recuperar sua autonomia, qualidade de vida e a plena vigência de seus direitos; a reinserção social mediante ações desenvolvidas em conjunto com as áreas de Trabalho, Educação, Promoção Social e as que sejam necessárias para efetivar a recuperação e reabilitação do assistido; (...) os responsáveis pelos estabelecimentos assistenciais devem ter conhecimento dos recursos terapêuticos disponíveis, das práticas assistenciais, dos requerimentos de capacitação do pessoal a seu cargo, instituindo os recursos necessários para adequar a formação profissional às necessidades dos assistidos". Fica consignado também que a assistência, em todos os casos, "será realizada por profissionais da saúde mental certificados por autoridade competente", não se especificando nada mais a respeito.

O Artigo 12º desse mesmo capítulo detalha as "Diretrizes do sub-setor estatal" e estabelece: "Para efeitos do disposto no artigo precedente são critérios na configuração do sub-setor estatal: a implementação de um modelo de atenção que, em consonância com o disposto pela Lei Básica de Saúde, garanta a participação por meio de práticas comunitárias; a adequação dos recursos existentes ao momento da sanção da presente Lei, para efeito de transformar o modelo `hospitalcêntrico', para o desenvolvimento de um novo modelo de saúde mental; os integrantes das equipes interdisciplinares delimitam suas intervenções a suas respectivas incumbências, assumindo as responsabilidades que decorrem das mesmas; as intervenções das disciplinas não específicas do campo da Saúde Mental, serão autorizadas pelos profissionais cuja função lhes designa a responsabilidade de conduzir as estratégias terapêuticas, efetuar os encaminhamentos necessários e indicar a oportunidade e o modo de levar a cabo ações complementares que não são de ordem clínica; a implementação de ações para apoio do entorno familiar e comunitário".

Continuamos com o Artigo 13: "Os dispositivos do sub-setor estatal funcionam integrando a Rede de Atenção do Sistema de Saúde Mental, devendo executar ações em relação às seguintes características específicas: prioridade nas ações e serviços de caráter ambulatorial, destinados à promoção, prevenção, assistência, reabilitação e reinserção social em Saúde Mental, garantindo a proximidade geográfica dos efetores à população; (...) projeção da equipe interdisciplinar de saúde mental na comunidade". No final deste artigo se estabelecem onde devem ser realizadas as internações de curto prazo e- de forma bastante confusa- as de tempo prolongado.

O Artigo 14 trata dos "efetores", poderíamos dizer dos "atores" que participam do Sistema. Vale a pena que nos detenhamos no que se estabelece aqui: "Para efeitos da configuração da Rede, devem ser respeitados as ações e os serviços estabelecidos nos artigos precedentes, determinando-se uma reforma dos efetores atuais, e incorporando os recursos necessários para a implementação das novas modalidades...". Entre os "efetores" que são estabelecidos encontramos, entre outros: "Centros de Saúde Mental; (...) Dispositivos de atenção e intervenção domiciliar respeitando a especificidade em Saúde Mental; (...) Um sistema de intervenção em crise e de urgências com equipes móveis devidamente equipadas para seus fins específicos; um sistema de atenção de emergências domiciliares em saúde mental infanto-juvenil, o qual atenderá na modalidade de guarda passiva (...)".

Vimos aqui, o que mais chama a atenção do Título I. Podemos observar, a esta altura, que há certa ausência que chama a atenção. Continuaremos, não obstante, com o Título II, que está dedicado integralmente ao Regime de Internações. Neste, o Capítulo I corresponde aos Princípios gerais, e inclui vários artigos que merecem nossa atenção. Por exemplo, o Artigo 19, que estabelece que a internação "é uma instância do tratamento que é avaliada e decidida pela equipe interdisciplinar quando não forem possíveis as abordagens ambulatoriais. Quando esta deva ser efetuada é prioritária a recuperação e a reintegração social da pessoa. Busca-se a criação e funcionamento de dispositivos para o tratamento anterior e posterior à internação que favoreçam a manutenção dos vínculos, contatos e comunicação da pessoa internada com seus familiares e parentes, com o entorno laboral e social, garantindo sua atenção integral". Em sintonia com isso, no Artigo 20 se assinala que a internação de pessoas com sofrimentos mentais em estabelecimentos destinados para tal "...deve ajustar-se a princípios éticos, sociais, científicos e legais, assim como a critérios contemplados na presente Lei e na Lei Nº 153. Para isso deve ser estabelecida a coordenação entre as autoridades sanitárias, judiciais e administrativas. Só é possível recorrer à internação de um paciente, quando o tratamento não puder ser efetuado em forma ambulatorial ou domiciliar, e diante da prévia opinião dos profissionais da equipe de saúde mental ou ordem de autoridade judicial para os casos previstos". Por último, no Artigo 21 se especifica que as internações às quais se referem os artigos precedentes se classificam em: (a) Voluntária, "...se a pessoa consente com a indicação profissional ou a solicita à instância própria ou por seu representante legal"; (b) Involuntária, "conforme o artigo 30 da presente Lei"; (c) Por ordem judicial.

O Capítulo II- no qual vamos nos deter- trata dos Procedimentos comuns a todas as internações. Passamos, então, ao Capítulo III: Internação Involuntária. Interessa-nos aqui algo que é detalhado no Artigo 34: "Para que se proceda à internação involuntária, além dos requisitos comuns a todas as internações é preciso constar- entre outras coisas- a ausência de outra alternativa eficaz para seu tratamento".

O Capítulo IV detalha os mecanismos estabelecidos para a Internação judicial, mas não nos deteremos aqui. Passamos ao Capítulo V: Externação, altas e saídas. Diz o Artigo 40: "A alta da pessoa afetada por um sofrimento mental configura um ato terapêutico, motivo pelo qual deve ser considerada como parte do tratamento e não como a desaparição do mal-estar psíquico". São detalhadas, a seguir, questões relativas às altas "transitórias" e "definitivas", contemplando-se também os encaminhamentos intra e inter-institucionais. Por último, não podemos deixar de mencionar o Artigo 47, que toca outro ponto de nossa responsabilidade: "Durante as internações promove-se, quando possível, as permissões de saída como parte do tratamento e reabilitação do paciente, favorecendo a continuidade de sua relação com o meio familiar e comunitário". Chegaremos até aqui com o texto dessa lei. Logicamente, é muito mais fácil postulá-lo, que torná-lo efetivo.

 

O problema de permanecer nas sombras

No que diz respeito especificamente ao A.T., observamos que, no texto dessa Lei, sua figura ficou estabelecida em uma posição paradoxal: se, por um lado este é invocado recorrentemente- de forma "impessoal", poderíamos dizer- cada vez que se fala genericamente das "alternativas de atenção" por outro, este não é nomeado de forma explícita nem uma só vez! É verdade que tampouco se nomeiam muitos outros recursos clínicos a não ser de forma geral. E, também, é verdade que esse texto básico requer a realização das correspondentes regulamentações, podendo ser essa a ocasião em que possa ser remediada tal omissão. Mas até que isso ocorra, o problema é que o fato de que sua presença aqui só possa ser lida nas entrelinhas não é sem conseqüências e, portanto, é necessário dar os passos que tornem possível que essa inscrição possa ser produzida em termos explícitos.

Acreditamos que, como dissemos reiteradamente, em boa medida esse problema se originava no fato de que, ao não haver, até pouco tempo atrás, um reconhecimento acadêmico formal, não havia a possibilidade de que o acompanhamento fosse incluído em nenhuma nomenclatura. O que tem como conseqüência direta que só se obtivesse a cobertura desse tipo de prestação de serviço por complicadas manobras de triangulação com as clínicas e demais dispositivos do sistema semi-público ou privado, que não fazem mais que encarecer o serviço e dificultar sua tramitação. Isso sem falar do que ocorre nos hospitais, nos quais a possibilidade de que os acompanhantes obtivessem alguma compensação econômica por seu trabalho estava total e completamente excluída.

Há vários anos insistimos em situar quais seriam os passos que deveriam ser dados para continuar avançando em direção à regulamentação do trabalho dos acompanhantes terapêuticos e à otimização de sua eficácia clínica, com a necessidade de que essa prestação de serviço deixasse de ser um artigo de luxo para uns poucos pacientes- ficando a maioria deles privados dessa prestação diante da falta de reconhecimento por parte de seus respectivos planos de saúde ou sistemas pré-pagos de saúde-, para passar a ser um recurso disponível para todos os tratamentos que assim o requeiram. Tornar-se-ia indispensável, em primeiro lugar, o desenvolvimento das instâncias de formação adequadas e devidamente regulamentadas, que pudessem ser instituídas no contexto que tornasse possível que essa especialidade aspirasse a ter o lugar que lhe corresponde no sistema de saúde mental.

Esse passo foi dado: há alguns anos foi homologado o Título Terciário de Acompanhamento Terapêutico pela Secretaria de Educação da cidade de Buenos Aires; também foi inaugurada- entre outras- a formação de técnico nessa especialidade na Universidade Católica de Cuyo, na Universidade Autônoma de Entre Ríos (UADER) e, desde 2002, foi incluída no currículo de graduação do Curso de Psicologia (Faculdade de Psicologia, UBA) a prática profissional e de investigação denominada Fundamentos Clínicos do A.T. Cabe assinalar que esse desenvolvimento de diversas instâncias de capacitação específica é correlativo à crescente elaboração de um corpo teórico cada vez mais vasto, o que permitiu circunscrever com maior precisão a especificidade dessa prática, permitindo, por sua vez, sua expansão a áreas de inserção ainda mais diversas.

Nesse contexto, fomos convidados a trabalhar- no âmbito da Legislatura da cidade de Buenos Aires-, no projeto de inclusão da figura do Acompanhante Terapêutico na regulamentação da Lei de Saúde Mental. Esperamos contar, em breve, com sua aprovação.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Stagnaro, J.C. (1997). Entrevistas. In G. Pulice (Org.), Acompañamento Terapêutico (pp 83-90). Buenos Aires: Editorial Polemos.        [ Links ]Recebido em julho/2005
Aceito em setembro/2005

 

 

NOTAS

1 O conceito de "campo da Saúde Mental" surge justamente nessa época, como aglutinador dessa nova corrente- integrada conjuntamente por psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e demais profissionais relacionados ao trabalho clínico com pacientes psicóticos- que pretendia superar o manicômio como forma de assistência. É possível encontrar um amplo desenvolvimento do tema em Las huellas da memória. Psicoanálisis y Salud Mental en la Argentina de los 60 y 70. Primeira parte (1957-1969), por Enrique Carpintero e Alejandro Vainer, na revista Topía, www.topia.com.ar.
2 O desenvolvimento dos Hospitais-Dia para enfermidades psiquiátricas, especificamente, ocorre depois da finalização da Segunda Guerra Mundial, quando começam a ter uma progressiva divulgação e expansão no Ocidente. Rodolfo Iuorno, relata que foram determinantes para sua criação e para a delimitação de suas particularidades o que foi realizado em Moscou por M. A. Zahagarov em 1935, no qual aparece seu "fundamento de início" na retirada de camas do Hospital Psiquiátrico, recebendo o nome de Hospital sem Camas. E, por outro lado, em 1947, será Even Cameron, no Canadá, quem lhe dará a denominação atual. Em 1967, se constitui o primeiro Hospital-Dia no Hospital Borda, por iniciativa de J. García Badaracco.
3 Nos últimos anos, foram inauguradas em nosso país- assim como em outros da América Latina, como Brasil, Peru, México e Uruguai- diversas instâncias de capacitação de nível terciário e universitário nessa especialidade. Em Buenos Aires, o título terciário de Acompanhante Terapêutico conta com o reconhecimento da Secretaria de Educação do governo da cidade, sendo ministrado há vários anos em diferentes estabelecimentos privados. Na Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires foi incluída, desde 2002, a disciplina Prática Profissional e de Investigação: Fundamentos Clínicos do Acompanhamento Terapêutico como disciplina optativa da graduação do Curso de Psicologia. Cabe também registrar que há anos vêm sendo desenvolvidas de forma articulada a essas instâncias de capacitação numerosas práticas e estágios profissionais sobre essa especialidade, em diversas instituições públicas tanto do âmbito de Saúde Mental- entre elas em vários Serviços do Hospital Psicoassistencial e Interdisciplinar José T. Borda, o Serviço de Hospital-Dia do Hospital T. Álvarez, o Hospital Municipal de Oncologia Maria Curie, o Hospital Infanto-juvenil C. Tobar García, etc.-, como do âmbito Judicial- entre elas a Curadoria do Menor e da Família da Defensoria do Menor, dependente do Poder Judicial da Nação- e do âmbito da Secretaria de Promoção Social do governo da cidade- por meio do Departamento de Crianças de rua-, etc.
4 Sob a designação "Obras Sociais, na Argentina", é possível encontrar instituições de medicina privada (planos de saúde, medicina pré-paga), medicina do trabalho ou cobertura médica dos empregados de algumas instituições (como comércio). (N. do T.)
5 Mesa redonda: "Contexto legal para a prática do Acompanhamento Terapêutico", em AAVV; Eficácia clínica do Acompanhante Terapêutico, Buenos Aires, Polemos, 2002.
6 Associação de Acompanhantes Terapêuticos da República Argentina.
7 Legislatura de La Ciudad de Buenos Aires (2000, 27 de julio). Ley de Salud Mental de la Ciudad de Buenos Aires - Ley n. 448. Republica Argentina.
I Psicanalista. Professor titular (adjunto) da Faculdade de Psicologia, Universidade de Buenos Aires. Membro fundador e atual integrante da Comissão Dirigente da Associação de Acompanhantes Terapêuticos da República Argentina.
II Psicanalista. Membro fundador e atual presidente da Associação de Acompanhantes Terapêuticos da República Argentina.

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