SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número19Do amigo qualificado à política da amizadeA mulher que não existe no laço social: um caso de paranóia índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dic. 2005

 

DOSSIÊ

 

Da errância à transumância: acompanhamento educativo de adolescentes delinqüentes

 

From wandering to transhumance

 

 

Georgette RibotI* M. Stella Machado (Trad.)

* Foyer d'Action Educative

 

 


RESUMO

Acompanhar uma pessoa é intervir estando ao lado dela, fazer um trecho de caminho com ela e apoiá-la em sua evolução. Como agir com adolescentes em estado de errância, recalcitrantes a tudo o que é instituído, tendo total desconfiança dos adultos e exprimindo seu mal-estar com delituosas e repetidas passagens ao ato ? A ação pedagógica aqui apresentada inscreve-se no quadro de medidas penais para menores delinqüentes que vivem em seu meio familiar. Alguns têm um percurso institucional, até mesmo carcerário; a maioria acumula dificuldades demais para ser acolhida em instituição. Esta « mise en scène » se nutre dos trabalhos de Didier Anzieu (1985). Ela é construída para surpreender o adolescente e « levá-lo a caminhar apesar dele mesmo » num espaço em que ele não poderia, nem escapar do grupo, nem de si mesmo. Passo a passo, dia após dia, duna após duna, num espaço sem limite, banhado de luz, carregado de silêncio, onde nada há senão ele próprio e seus semelhantes, o jovem caminha apoiando-se no grupo, em rituais, valores e adultos significativos.

Palavras-chave: Ação, Contexto, Deslocamento, Delinqüente, Encenação, Organização, Responsabilização.


ABSTRACT

Accompanying a person is interceding with that person, going part of the way with him/her and supporting and helping him/her in his /her progress. How could we proceed when it comes to wandering teenagers who refuse everything that is instituted, who totally mistrust adults and who express their uneasiness with repetitive punishable living out fantasies? The educational method which is described here is in keeping with the penal measures against delinquents under 18 who are living in their usual environment. Some of them met an institution or even prison on their way; most of them are facing too many difficulties to be tolerated in an institution. This "staging" is inspired from Didier Anzieu`s (1985) work. It is built in order to surprise the teenager, to "turn him on in spite of himself" in a place where he can't escape the group nor himself. Step by step, day after day, sand dune after sand dune , in a no limit space, full of light, full of silence, where's there's nothing else but him and people like him, the teenager goes on relying on the group, on rituals, on significant values and adults.

Keywords: Action, Framework, Delinquent, Travelling, Role playing, Organization, Sense of responsability.


 

 

O projeto

A palavra transumânciavem do latim trans (além de) e de humus (a terra). A transumância é o deslocamento sazonal de um rebanho para chegar a uma zona onde ele poderá se alimentar antes de voltar ao aprisco.

Trata-se de propor que o adolescente se mova, que se desloque num terreno de aventura valorizador e, ao mesmo tempo, com valor iniciático ; que se manifeste explosivamente num corpo a corpo com uma natureza virgem e despojada, enfrentando a morte de maneira metafórica, tornando sua ameaça virtualmente acessível e dela se esquivando, para voltar ao aprisco, amadurecido pela prova, espantado por ter conseguido atravessar o deserto, feliz por ter sobrevivido, surpreso de se ver de volta ao seu próprio terreno de aventura, em seu bairro, de um jeito um pouco diferente, não vendo mais as coisas e as pessoas do mesmo modo, morando em sua própria terra, seu húmus, com mais estabilidade e referências.

Este por em movimento, verdadeiro por em cena, é possível porque entra no jogo dos adolescentes que querem « se mexer, ´estourar´, sair, abandonar-se à exaltação dos sentidos, fazer as coisas diferentemente dos mais velhos… ». Utilizando essa força dinâmica, trata-se de ir mais longe, de permitir que eles caminhem para se alimentar intelectual, afetiva, cultural e até espiritualmente, permitir que eles voltem a seu ponto de ancoragem para se dar conta do caminho percorrido, com uma topografia enriquecida de sentido de referências.

 

Características desses adolescentes

Para maior clareza do projeto, é necessário ressaltar o que caracteriza os adolescentes sob os cuidados da Proteção Judiciária dos Jovens (departamento ministerial da Justiça francesa).

Uma certa dependência de pessoas e de produtos; eles precisam apoiar-se em alguém ou em alguma coisa. Vivem no momento presente, incapazes de se projetarem num futuro e freqüentemente privados de seu passado, pois sua história é plena de rupturas. Têm uma notável sensibilidade aos acontecimentos exteriores, sensibilidade que traduz a importância do olhar do outro e a necessidade intensa de usar o outro como apoio.

Perturbações narcísicas importantes : desvalorização, falta de confiança em si mesmo, falta de auto-estima, auto-imagem ruim, angústia profunda... os levam a buscar um prazer imediato e ilimitado «  tudo, imediatamente » e « tudo ou nada ». Para se sentirem existindo, esses adolescentes vão investir o meio ambiente perceptivo-motor na busca de um banho de sensações para compensar, conter a realidade interna patogênica (Le Breton, 2000b). Para tais adolescentes, é quase sempre pondo o corpo à prova que se garante o acesso ao sentido. Pois ali onde o sentido falta, os sentidos se revezam e permitem experimentar fisicamente um mundo que se nega simbolicamente.

Passagens repetidas ao ato, devidas a um déficit de verbalização. A ação é seu único meio de troca; o que não pode ser dito em palavras é traduzido em atos. Eles têm uma tendência permanente de resolver todo conflito intrapsíquico com uma passagem ao ato hétero ou auto-agressiva em detrimento de qualquer elaboração mental. Essa formação de caráter resulta da modificação produzida em um funcionamento psíquico de onde se acha excluído o imaginário. Esse adormecimento do imaginário repousa «num recalcamento bem sucedido da função do imaginário ». Esse mecanismo leva à evicção do sonho e de seus equivalentes no pensamento de vigília, o fantasma, a ilusão, o jogo..., e chega à erradicação de toda subjetividade e de toda dimensão emocional. O imaginário e sua "remobilização" podem então tornar-se uma via de tratamento desse tipo de dificuldade. O que é patogênico nesses jovens não é única e propriamente o traumatismo como tal. É o exagero de excitação que o traumatismo engendra num psiquismo que não consegue absorvê-lo. Este aumento de excitação torna-se então uma espécie de corpo estranho interno não ligado a uma representação mental. A ação não é portanto simplesmente um fim em si mesmo cuja essência residiria na fuga, mas ela assina, em negativo, um pensamento que não chega a tomar forma e a se revelar em palavras. Esse excesso de excitações e de violência levaria então ao arcaico, ao instintivo assim como ao inconsciente primário no plano dos « conteúdos », ao mesmo tempo em que levantaria a questão dos continentes psíquicos, capazes de fornecer um quadro para poder pensar. A dimensão regressiva do ato e do agir (Vidit, 1995) enquanto eles colocam o corpo em cena reatualizaria esse tempo arcaico em que o corpo _ o da criança pequenininha _ constitui o vetor e a memória primeira sobre os quais se imprimem as primeiras experiências, assim como as primeiras formas de comunicação. Eles reconduziriam portanto a esse tempo inicial em que os primeiros contatos e os primeiros olhares servem, por intermédio e revezamento do psiquismo da mãe, para constituir as premissas do aparelho psíquico.

Adolescentes que se embriagam de sensações. Quanto menos uma criança tem a possibilidade de investir um laço, uma figura privilegiada, mais ela vai super-estimular seu corpo e procurar o domínio perceptivo de seu meio ambiente. A criança preenche seu vazio interior com sensações: as emoções (sempre ligadas a pessoas) parecem bloqueadas e para conter sua realidade interna patogênica, não é raro ver um adolescente banhar-se de sensações, inebriar-se com seus sentidos, « estourar » como ele diz. O termo explicita uma vontade de ampliação, exigindo num primeiro tempo a supressão de uma identidade pessoal a ser ultrapassada numa espécie de efração que leva o adolescente a sentir-se transtornado de modo integral e intenso. Estourar é explodir, voar em estilhaços, rasgar seu envelope: « Eu dilacero rasgo a minha a cabeça ». Quer-se sentir a existência bater em si próprio, mas isto só é possível no excesso, no sofrimento. É pondo à prova o corpo que se assegura o acesso ao sentido. Ali onde o sentido falta, os sentidos fazem o revezamento e permitem experimentar fisicamente um mundo que se furta simbolicamente . Quando a sociedade fracassa em sua função antropológica de apoio (holding) e de orientação da existência, falta interrogar o significante último: a morte, para saber se viver tem ainda algum sentido. Não é de se admirar se o extremo, o risco e o ordálio são três solicitações muito fortes dos adolescentes.

Adolescentes que recorrem ao ordálio. O ordálio moderno não é mais um rito social, mas um rito individual de passagem, uma figura inconsciente através da qual um ator pergunta à morte, por intermédio da anuência de risco, se sua existência ainda tem preço. Joga-se a vida para melhor salvá-la, sendo que o risco de morte se torna o último meio de sua busca de reconhecimento (Le Breton, 2000a). O adolescente, escapando da morte, através das sensações experimentadas ao contato do perigo, descobre em si mesmo recursos inesperados que lhe permitem renascer ou pelo menos retomar o controle de sua existência. Impor um limite ali onde os limites simbólicos não existem.

Os aspectos auto-destruidores dessas condutas levam a uma busca de identidade que solicita ao mesmo tempo o último limite, isto é, a morte e os limites sociais, ou seja, a estanqueidade das leis a fim de adquirir suas marcas. Voltar indene da exposição ao perigo de sua existência, aureolado do perigo atravessado, parece a melhor prova do prêmio que este reveste. Freqüentemente contra sua vontade, o adolescente solicitou então o sentido do sagrado, um poder sobrenatural ilimitável ao qual ele se confia. O sentido do sagrado, cuja imputação é estritamente individual, vem tomar o lugar de uma comunidade ausente, de uma eficacidade simbólica que o social e o cultural não conseguem implementar e que as pessoas à volta não conseguem substituir.

Relações difíceis com as aprendizagens básicas. Não ter certeza, nem que seja apenas por alguns minutos, não é uma situação que possa ser vivida esse tipo de adolescente, daí portanto suas dificuldades para aprender.Logo que os conhecimentos a ser adquiridos exijam o estabelecimento de hipóteses, a procura, a integração da dimensão temporal, o encadeamento de etapas, a consideração de regras, nada mais funciona.

Enfrentar a dúvida e a solidão que caminham ao lado de qualquer busca é insuportável para aquele que não tem uma segurança interna suficiente: ele se sente ameaçado, provocado, interrogado... E os exercícios escolares por exemplo, reativam nele idéias de falta e de abandono; as regras e a autoridade provocam idéias de aprisionamento, de injustiça, de perseguição, até mesmo de ataque à sua integridade. Esse adolescente não suporta entrar no tempo de suspensão que se situa entre o momento em que ele não sabe e o momento em que vai talvez saber, nesse entre-duas imagens e representações que o pensamento libera. Ele só deixa a porta aberta para os conhecimentos que se produzem na instantaneidade. O músculo, a força, a violência, o sexo e o dinheiro são carapaças que os livram do tormento de seu mundo interior. São todas saídas para evitar o desmoronamento. Os sentimentos de depressão nunca estão longe. Manifestam-se pela auto-desvalorização, por idéias de insuficiência antes de despertar inquietações de identidade, até mesmo, angústias arcaicas ou sentimentos corporais primários que se transformam em ataque do enquadre, em perturbação psicossomática ou em sideração intelectual, conforme as personalidades.

 

Rastros de teoria

E. Bonnot De Condillac (1984) nos ensinou que nada há no espírito que não tenha sido pensado (tratado) pelos sentidos. O Eu se apóia nas sensações táteis…Uma pessoa com identidade não confirmada terá tendência a multiplicar as situações que solicitam extremamente seus sentidos, para se sentir vivo.

Demos alguns passos para trás para nos lembrarmos que é colocando palavras naquilo que vive e sente seu bebê que a mãe realiza um trabalho complexo e indispensável de preparação da experiência emocional de seu rebento. A criança pode então interiorizar esse modelo continente, transformar progressivamente a organização de seu mundo interno, construir seu aparelho psíquico e constituir uma identidade para ela. A função psíquica se desenvolve por interiorização do holding materno. Quando a criança não encontra na relação com as figuras primeiras um suporte imaginário que lhe permita transformar suas experiências intoleráveis em experiências assimiláveis, estas a ultrapassam e ficam no lados e bombas de retardo. A criança precisa sentir que cria seu meio maternante ou pelo menos que é mestre de seu meio.

O adolescente delinqüente é incapaz de gerir sua experiência interna, como se não tivesse podido integrar e colocar em seu interior um bom objeto interno, calcado sobre o modelo de um meio benévolo, de uma « boa mãe » (Kammerer, 2000), que lhe permita enfrentar uma crise. Esse bom objeto interno que falta o leva a lançar para o exterior, sob a forma de atos de caráter impulsivo, o excesso de excitações que a situação patogênica suscita e que ele não pode metabolizar. Ele explode, e se abandona à embriaguez dos sentidos. Por o corpo à prova, pelo recurso do ato, nesse momento de efração, é de certa forma uma maneira de desafiar, metaforicamente, a morte, de procurar um limite físico ali onde os limites simbólicos faltam. Explodir para sentir a existência bater nele, traçar para si próprio um continente, testando os limites para conseguir uma identidade fragmentada, para se sentir existindo.

Se eu quiser tocar alguém em seu funcionamento psíquico, devo lhe propor uma situação de prova, de roteiro dramático no sentido etimológico da palavra drama (encenação, despertar da emoção, acionar o movimento corporal), sendo o corpo o vetor emocional por excelência para que ele possa revisitar suas primeiras experiências táteis, daí a idéia de um início de marcha, de caminhada. Em referência aos trabalhos de Didier Anzieu (1985), se nós utilizarmos a metáfora do envelope, (figurada sob a forma de uma pele comum à mãe e ao filho): teremos uma pele comum formada pelo meio educativo e pelo jovem, cada um possuindo seu próprio corpo, com uma interface comum. Esse envelope só é possível porque há uma decisão de justiça e um acompanhamento solicitado pela autoridade judiciária. O educador e o adolescente, unidos em provas comuns, são submetidos às mesmas regras, às mesmas imposições, à mesma lei, a que é imposta por uma caravana saariana. É em nome desta instância terceira que a experiência vivida pode adquirir sentido, que uma palavra é possível, que os males poderão ser postos em palavras.

O adolescente vai forçosamente tocar de novo sua partitura com os adultos da caravana (educadores, guia e cameleiros). Ele ficará surpreso, espantado, estupefato com as respostas do adulto e as interações em feed back, e passo a passo, duna após duna, dia após dia, alimentado por novas trocas, presenteado por novas imagens, saciado por novas emoções... ele questionará seu funcionamento. Quanto mais o adolescente puder se apoiar no corpo educativo, mais ele poderá adquirir solidez, equilíbrio e confiança em si mesmo e conseqüentemente nos outros. Para participar da reorganização interna desses adolescentes em ruptura e permitir-lhes restaurar suas bases narcísicas, parece-me importante colocá-los em situação de admiração numa área transicional que seja uma área de jogo e de lugar para o eu, uma área de iniciação e de realização em que noções fundamentais como a vida e a morte são interrogadas. Uma área continente com o jeito de um território sem limite, um espaço acolhedor em que o perigo só pode vir de elementos naturais, mas nunca, do gênero humano, daí a idéia de deserto.

 

A ação educativa

1 - O tempo da admiração

Primeiro enganchar o adolescente fazendo-o sonhar… a fim de lhe abrir portas, permitir-lhe ocupar um espaço imaginário - espaço transicional - e de encaminhá-lo para possíveis. O adolescente fica espantado de ver que alguém pôde pensar nele para uma aventura tão extraordinária. Estupefato, medusado, aturdido , ele aceita a idéia de « fazer uma travessia do deserto », sem acreditar demais nisso, com um nadinha de sonho na cabeça... Então, pegá-lo na palavra, agarrar neste « sim » desse adolescente inacessível e ajudá-lo a levar o projeto até o fim. Colocar tudo em jogo para impedi-lo de deixar o projeto fracassar e para levá-lo, às vezes um pouco contra sua vontade, a ter sucesso para que ele se reconheça diferente e com capacidades.

Surpreender esses adolescentes que vivem na instantaneidade e no tudo ou nada. O tempo da preparação lhes permite testar a fiabilidade e a autenticidade do meio educativo e empregar sua confiança num verdadeiro reencontro, o que supõe que cada adulto:

- Faz o que ele diz e diz o que ele faz.

- Trabalha sobre o sentimento de segurança do adolescente, tendo a preocupação da clareza, isto é, de nomear as coisas, de dizer como ele as sente, confiando no adolescente e lhe dizendo isto, respeitando sempre e por toda parte seus compromissos e pedindo-lhe para fazer o mesmo, delimitando seu quadro de intervenção e os limites de sua ação, destacando o que é de sua responsabilidade e o que é da responsabilidade do adolescente.

- Fica realmente à escuta do adolescente para que ele se sinta « reconhecido » e que ele tenha um lugar. Escutar é ouvir os dizeres do corpo, ouvir as emoções para ajudar o jovem a se recolocar em ligação consigo próprio, em sinergia com o cosmos, a captar sua interioridade e talvez até reencontrar esta interioridade.

A esses adolescentes que se exprimem pela ação, na falta de poder verbalizar, propomos uma verbalização de seus sentimentos experimentados, pelo viés de um "pôr-se na estrada" corporal.

 

2 - O tempo da preparação

2.1 - Relatório da situação

Num primeiro tempo, entrevistas individuais formais visam a inscrever o adolescente em uma dinâmica de trabalho. Fazer a descrição da situação é nomear as dificuldades e os sofrimentos, falar dos excessos, dos atos de violência, dos atos delituosos, a fim de questionar o porquê da medida penal.

Após o adolescente compreender que não poderia subtrair-se ao acompanhamento educativo que a medida penal implica, nós lhe sugerimos um trabalho de grupo, centra do sobre as artes corporais e o sociodrama. (Vidit, Balzani, Ribot-Kainz, 2002). Estas sessões grupais se desenvolvem a uma vintena de kilômetros de seu lugar de residência, numa sala de esporte bem equipada. O esforço que o adolescente tem que fazer para sair de seu bairro e respeitar sua obrigação de presença (convocação) já é um trabalho de distanciamento e de implicação no projeto e nas ações inerentes ao projeto.

Ao mesmo tempo, os pais são informados do andamento do trabalho proposto ao filho. Ao associar os pais ao projeto, tentamos envolvê-los em diferentes níveis, apoiando-os em seu papel de firmeza, em sua função de responsáveis e numa atitude de compreensão. Nós lhes sugerimos então inscrever-se num grupo de palavras coordenado pela escola de pais, para que eles também sejam apoiados e ouvidos em suas dificuldades.

2.2 - De uma prova iniciática a outra

Após vários meses de preparação, oferecemos ao adolescente a possibilidade de se descentralizar de seu meio cotidiano propondo-lhe partir « para fazer a análise » na floresta dos Vosges, a fim de enfraquecer, de afirmar, de confirmar, até mesmo de elaborar o trabalho começado na ocasião das entrevistas individuais e das sessões grupais ou a fim de iniciar esse trabalho de localização a partir de um outro meio e outras referências. O lugar de acolhida dos Vosges que leva o adolescente a transumar na floresta é um parceiro direto do projeto :o educador faz parte da equipe educativa Saariana.

O adolescente é recebido durante uma semana num vasto terreno de aventura, no coração dos Vosges. Trata-se de sua preparação psicológica e física para a marcha na natureza, ajudá-lo a se impregnar do espírito da transumância, familiarizá-lo com os instrumentos que ele usará no deserto: reencontrar os elementos naturais, aprender a viver com eles, conquistar o habitat nômade, aqui o tipi (no deserto, a abóboda estrelada), fabricar seu pão e preparar suas refeições, instalar seu bivaque, dominar o fogo, escrever suas sensações e sua vivência cotidiana em seu diário de notas pessoais (à maneira dos grandes exploradores), caminhar com os animais de carga, aprender a escutar os ruídos do silêncio, ficar atento a seu rádio interior e a se deixar cair nas confidências, participando da dança das chamas…

Esta passagemé uma etapa decisiva. Alguns não estão prontos para visitar sua casa interior e não farão parte da caravana, pelo menos não desta vez. Outros viverão uma segunda transumância para se sentirem prontos a caminhar consigo mesmos.É a partir dessa semana inaugural nos Vosges que o adolescente se sente « iniciado », portanto engajado ou não na aventura. O envelope grupal é constituído logo que os adolescentes são iniciados, pois inscritos numa ação grupal em torno de um ideal comum: ter sucesso em sua travessia do deserto.

A preparação administrativa e médica permite reinterrogar as relações pais-filhos, questionar o lugar do jovem em sua família, afirmar sua existência social e ocupar-se com seu próprio corpo através de muitos cuidados. A enfermeira ligada à DDPJJ apóia esse trabalho para que as carências familiares não sejam muito estigmatizadas e portanto, vividas como uma ferida suplementar.

Algumas semanas antes da partida, uma reunião com os pais permite reexplicar o andamento da viagem, de modo mais oficial. Uma lista de material é distribuída a cada uma das famílias. Alguns dias antes da partida, nós nos reencontramos _ a equipe educativa e os adolescentes _ para um dia de convivência, primeiro em torno de uma refeição no terreno de aventura dos Vosges, depois sob o tipi1 para uma reunião mais formal em que cada um « dos transumantes », adultos e adolescentes, vai tomar a palavra diante do grupo, explicar por que ele se engajou nesta aventura coletiva e o que esta representa para ele. Este momento de encontro, a alguns dias da partida, é um espaço para falar de suas angústias e para ouvir palavras que tranqüilizam, sossegam, animam os que se perguntam como vão conseguir manter seu compromisso e respeitar sua palavra. Este espaço protegido do tipi permite projetar-se para a frente e imaginar a caravana. Trabalhamos com uma carta de boa conduta, carta lida em voz alta, comentada, discutida e votada artigo por artigo. Do mesmo modo as diferentes tarefas aferentes à vida de grupo são objeto de um parágrafo para que cada participante possa melhor apreender a vida cotidiana da caravana, para que uma representação mais precisa do que o espera o ajude a preparar-se para a partida.

Após haver tornado a falar de nosso diário de notas pessoais, cada um compreendeu bem que a escrita é um elemento importante em nossa travessia. Não hesitamos a forçar ainda mais longe o sonho, sugerindo a realização de um livro ou de um fascículo com nossas fotos e nossos textos, verdadeiro testemunho de nossa extraordinária aventura. Que retorno promete uma tão louca perspectiva ! Os rostos se desanuviam. Se a educadora tem um pouquinho de loucura, falar do que lhe parece louco ao adolescente será mais fácil. A reunião é pontuada pela distribuição de um poster a cada um dos membros da futura caravana, poster do deserto, oferecido pela agência com a qual nós partimos.

 

3 - A duração da caravana

3.1 - O ritmo de um dia

Imersos num oceano de dunas durante vinte dias em extrema solidão, os adolescentes só terão como pontos de diversão três poços, o rochedo de Tumbaïn, o lago de Lahkwazat et os rastros de alguns coleópteros, gerbos, chacais e outras gazelas.

Um dia ritmado que permite a cada um saber que ele deve se levantar ao raiar da aurora, vir tomar seu café da manhã após ter enrolado seu colchão, arrumado suas coisas e fechado seu saco de dormir. Ele se dirige ao abarracamento dos camelos… depois vem o momento da caminhada... Cada um em seu ritmo, sozinho ou em um pequeno grupo, atrás, na frente ou longe da caravana, sendo que a ordem é de nunca se perder ou perder de vista a caravana. Ele pode seguir suas pegadas, mas não pode se deixar surpreender pelo vento que apaga qualquer pegada em poucos movimentos.

Uma pausa no meio da manhã permite recuperar forças. O almoço é seguido por uma sesta. Lá pelas 16hs, é preparada a sala da PJJ para a entrevista individual. Os que não têm entrevista são conclamados a visitar sua morada interior, com o suporte de seu diário de notas pessoais... E se este encontro traz angústia diante de uma página em branco, sempre é possível dar uma escapada digna para começar a apanhar lenha, antes da hora. Esta tarefa é coletiva, pois é preciso às vezes muito tempo, em função do meio ambiente _ dunas sem vegetação ou covas numa estepe _ para juntar madeira suficiente para o jantar e o serão.

As refeições podem ser um momento de grande cordialidade, quando não existe tensão no ar …. O que é muito raro. Cada um limpa sua tigela, sua xícara de inox e seu talher na areia. Em seguida discussão em torno do fogo, danças e cantos, antes de ir para seu saco de dormir, muitas vezes já cintilante de gelo. Os dias passam, mas cada passo para cada um é mais um avanço em suas tomadas de consciência, uma elucidação de suas dificuldades, um facho de luz projetado sobre seu relacionamento com os outros, um farol impiedoso sobre seu funcionamento e suas relações com o mundo, à luz das palavras, dos atos ponderados e de seus procedimentos. Os cantos e as danças pontuam cada dia, pois cada dia é vivido como um momento de felicidade para os nômades!

3.2 - A vida grupal face às tarefas cotidianas

- O ajudante de cozinheiro: deve-se estar disponível para ajudar o guia (especializado em cozinha) a preparar os legumes.

- O encarregado da água: Sendo a água um elemento vital, o encarregado tem a pesada incumbência de cuidar para que cada um parta de manhã com seu cantil cheio de água, desinfetada por uma pastilha de « micropur ».

- O animador do bate-papo: cabe-lhe fazer circular o caderno-companheiro de caravana no qual todos são convidados a escrever suas queixas ou seus ressentimentos do grupo- O catar lenha é a tarefa cotidiana de todos os transumantes (exceto daqueles que devem ir à sua sessão individual).

 

4 - A fase das pegadas

Esta fase se desenvolve nos meses que se seguem à viagem. Ela é tão longa quanto a preparação, isto é, dura aproximadamente nove meses. Cada adolescente tem seu ritmo e deve ocupar seu tempo, sem pressa, para « tratar » desta experiência. A elaboração é individual, ela pode gerar uma obra coletiva, Les voies du désert (2002)2. Ou outras manifestações...

 

5 - Espaços de expressão num quadro formalizado

O que funciona, é que os adolescentes evoluem num quadro estruturado tendo à sua disposição instrumentos de referência para colocar palavras em sua experiência de vida, em seu questionamento, em seus sentimentos.

5.1 - A entrevista individual

Faz parte de um ritual : instalação da sala da PJJ no deserto, para ficar à sombra, se possível, poder escrever , matar a sede e se energizar com alguns docinhos. As entrevistas duram uma hora. São obrigatórias, previstas segundo um calendário definido na ocasião dos primeiros bate-papos. São sempre conduzidas a dois. A tomada de notas permite dar valor, crédito e peso à palavra do adolescente. As notas podem ser retomadas de uma entrevista à outra. Alguns adolescentes pediram uma entrevista suplementar: mâhfich mouchkil (sem problema), nós os atendemos sem pressa!

5.2 - A escrita no diário de notas pessoais

É aberto durante a transumância vosgiana. Trata-se para o jovem de exprimir uma reflexão, um sentimento experimentado, de contar um momento do dia, de lembrar de momentos de sua história, de se deixar transportar pela beleza do local ... enfim, de nele escrever tudo que ele deseja, como marcas de sua caminhada. Um educador ajuda na escrita para evitar a angústia da página em branco ou do diário.

5.3 - O bate-papo

Ele se realiza sempre à volta do fogo, em presença do guia que se ocupa com a preparação da comida, enquanto escuta o que se diz. O bate-papo é conduzido por um jovem, o animador do dia que fez circular o caderno-companheiro da caravana. Ele toma a forma de trocas, de explicação das reações de uns e outros, a fim de conservar ou de procurar modos relacionais que preservam a vida de grupo, o convívio e o auto-respeito. Ela pode tomar a forma de uma explicação de si mesma: é um tempo de pausa para colocar palavras na experiência vivida do dia; é um momento privilegiado para ser ouvido, para colocar sua palavra para o grupo, ousar exprimir-se diante do grupo, encontrar seu lugar no grupo. Algumas discussões são verdadeiras explicações, até mesmo exploração de noções fundamentais, como o respeito e a tolerância, por exemplo.

5.4 - Sentados em torno do fogo

Ficar sentado é uma postura psicológica… é ficar à vontade.O fogo nos transporta… Nós deixamos nosso espaço para nos deixar fascinar pela dança do fogo. Como o caminhar, o fogo nos ajuda a penetrar em nosso espaço interior, a visitar nossos pensamentos, nossas imagens, nossas feridas, a consultar nossas memórias, nossas velhas histórias …todos os recônditos de um espaço invadido.

5.5 - O canto

O canto é um gesto social quando se dirige a outros homens ou à paisagem; ele celebra a aliança, o pra zer de estar ali. Guia e cameleiros cantam puxando os baldes do poço. Cada poço é uma festa. O canto é um companheiro de marcha que dissipa a tristeza da ausência. O canto é às vezes utilizado pelos cameleiros como meio de desviar os adolescentes de algumas discussões conflituosas… para envolvê-los em ternas melodias, para cativar sua atenção e distraí-los de algumas atenções malevolentes, por exemplo as noites de lua cheia.

5.6 - A dança, o corpo concordância

O corpo fala. O corpo é o portador do passado, é o suporte das raízes, é a origem da memória que às vezes recorda ; esse corpo falante e sofredor que se ata, se desata, se crispa, se estende, explode. Esse corpo que às vezes uiva, esse corpo que se dilacera, que se prostra, se ausenta do mundo, adormece.

 

6 - Um envelope bondoso

6.1 - Um meio acolhedor que contém e que tranqüiliza

Os adultos cercavam os adolescentes. Os Nômades saarianos, de um modo quase natural, intuitivo, ao passo que essa atitude, para nosso grupo, era mais buscada, refletida, porque ela devia revezar « o meio-maternante » (Winnicott, 1971), "o ambiente-mãe" (Kammerer, 2000), e permitir aos adolescentes regressar e reparar os fracassos do « handling » (Winnicott, 1971) para que eles encontrem uma certa segurança interior. Lembremos que, para investir o mundo interior, é preciso um mundo de dentro sossegado, tranqüilo, em segurança….

6.2 - Quando o vínculo se tece

Possuindo os meios de partir, de decolar de seu bairro, não somente os adolescentes manifestavam sua confiança nos adultos que os embarcavam nessa aventura extraordinária, mas principalmente escolhiam honrar o encontro com eles próprios. Eles começaram a se criar um laço de intimidade com eles próprios e puderam sentir quanto este laço era fonte de liberdade. Por que teriam vontade de se distanciar da alegria e da pena, do amor e do ódio, da felicidade e do sofrimento que é a vida, para se fechar de novo atrás de muros de defesa e de sombras, tanto mais que essa fonte de criação era alimentada com confiança e autenticidade. A preparação foi suficientemente longa para que eles tivessem tempo de pôr esta confiança à prova.

6.3 - Adultos autênticos e presentes a quem o deserto fala

Quer dizer, capazes de estar em ressonância com as forças vivas do deserto (Popp, 2000): a luz, o silêncio, o espaço, as poeiras de areia e de estrela, o sopro do vento, o religioso no sentido « de estar ligado a ». A finalidade não é sermos nós mesmos serenos, mas sermos capazes de nos habitar verdadeiramente para podermos estar disponíveis ao adolescente, ajudá-lo a receber o que ele sente, o que o agita, o que o toca como sendo sua verdade interior. O adulto está ali para apoiar o adolescente na compreensão de suas necessidades sem condená-lo, sem acompanhá-lo na admissão de suas falhas, de seus limites, de suas fraquezas, de seus sofrimentos, para que ele se reconheça como um ser único, diferente (e não perdido no outro). O adulto está ali para apoiar o adolescente em sua afirmação de si (colocar seus limites, fazer escolhas, tomar decisões, manter sua palavra…).

6.4 - Uma vigilância de todos os instantes para combater os « cavaleiros de Thanatos »

Tudo é pretexto para a desordem, para a ruptura, para o fracasso nos adolescentes. Eles desenvolvem muito talento para resistir ao sucesso de seu caminhar, ao encontro com os adultos e conseqüentemente consigo mesmos. Assim, alguns constróem muralhas de insultos e de obscenidades « para ser rejeitados… e ter, pensam eles, a paz ». Ilusão! Thanatos (Chartier, 1986) se levanta com o sol… O dia está sempre quente!

 

7 - Uma terra virgem para encontrar seu húmus

Os adolescentes de origem magrebina diziam chegar «ao bled»,3 portando cada um suas representações familiares culturais. Tentaram habitar o deserto carregando sua cultura regional - que modela sua maneira de ser no mundo -, pondo na frente sua cultura magrebina, de modo freqüentemente paradoxal, o que produziu muitos choques com o guia e os cameleiros, esses habitantes do Magreb que não estão capturados prela modernidade e pelas produções violentas da urbanidade.

Os adolescentes toparam com um verdadeiro arcabouço, provavelmente aquele que mantinha seu pai em pé no momento de seu exílio. Pela transumância, os adolescentes de origem magrebina se aproximaram da realidade migratória de sua família, fazendo uma parte do caminho: revisitar elementos de sua cultura de origem que sua família tentou lhes transmitir de dentro, pela filiação e cruzá-los com os elementos da cultura do país de acolhida e principalmente do bairro em que eles cresceram (elementos exteriores do mundo social adquiridos por adoção). Eles caminharam numa areia movediça, falando muitas vezes de seu lugar de filho de… , outras vezes de garoto de bairro.

De passagem ao Sahara, eles eram passantes, de retorno às fontes de sua história para se encontrarem, se reencontrarem, num mundo em que eles não são mais os Estrangeiros como seu pai, mas bem integrados num tecido social em que eles têm um lugar a ocupar. A palavra dos adolescentesse soltou num vasto terreno, num grupo composto de elementos que lhes lembram sua história de origem e de elementos de sua vida atual. Caóticas, confusas suas palavras partiam em todos os sentidos para serem retomadas num lugar de mestiçagem : como nós o dissemos, nosso grupo de adultos era uma área transicional que ajudou os adolescentes a colocar palavras e sentido em seu processo identitário.

 

Conclusão

Percorrendo o caminho realizado a partir deste projeto, constatamos que há cavidades de dunas onde estranhamente falta visibilidade… E ali, do alto de uma crista, os olhos se perdem no oceano de dunas: continuemos a caminhar, continuemos a questionar este instrumento pedagógico, detenhamo-nos numa verdadeira reflexão. Não é o fim que interessa, mas o caminho percorrido juntos. A estrada ainda é longa, pois nunca acabamos de transumar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Anzieu D. (1985).Le Moi Peau.Paris, Dunod, coll. « Psychismes ».        [ Links ]

Chartier J-.P. (1986). Délinquants et psychanalystes. Les chevaliers de Thanatos. Paris: Hommes et groupes.        [ Links ]

Condillac, E.B. (1984), Traité des sensations - Traité des animaux. Fayard, Corpus das obras de filosofia em língua francesa, [1754], 438 p.        [ Links ]

Kammerer, P. (2000).Adolescents dans la violence. Paris: Gallimard, coll. « Sur le champ ».        [ Links ]

Le Breton, D. (2000a). Passion du risque. Paris: Métailié.        [ Links ]

__________ (2000b).Eloge de la marche. Paris: Métailié.        [ Links ]

Popp, D. (2000).Le désert nu. Paris: Chêne, Hachette.        [ Links ]

Vidit, J.-P. (1995). La souffrance de l'agir. Cahiers de psychologie clinique, no 5.        [ Links ]

Vidit J.-P., Balzani B.; Ribot-Kainz, G. (2002). Du jeu et des délinquants. Jouer pour pouvoir penser. Bruxelles, De Boeck-Université, Coll. « Oxalis ».        [ Links ]

Winnicott, D.W. (1971). Jeu et réalité. L'espace potentiel. Paris: Gallimard.        [ Links ]

Recebido em agosto/2005
Aceito em novembro/2005

 

 

Notas

1 (N.T.) Habitação tradicional dos Índios das planícies da América do Norte.
2 (N.T.) Os caminhos do deserto.
3 (N.T.) Região agreste do Marrocos.
I Pedagoga, diretora do Foyer d'Action Educative (Ministério da Justiça) na cidade de Issoudun - França.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons