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Estilos da Clinica
versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.25 no.2 São Paulo mayo/ago. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i2p210-219
10.11606/issn.1981-1624.v25i2 p210-219
DOSSIÊ
Algumas questões sobre a adoção na vida e obra de Marie Bonaparte
Algunas cuestiones sobre la adopción en la vida y obra de Marie Bonaparte
Some questions about adoption in the life and work of Marie Bonaparte
Sarug Dagir RibeiroI
IPsicóloga clínica. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: sdagir@gmail.com
RESUMO
Nosso objetivo é demonstrar como a ossatura do conceito mãe morta na obra bonaparteana serve de fundamento teórico para se pensar a clínica da adoção. Essa inferência só é possível porque, a posteriori, a autora reconhece na moribunda Mimau, sua babá, uma mãe adotiva. Este trabalho analisa a maneira através da qual é decifrado o enigma intelectual do morrer (orfandade) e descoberto o segredo da mensagem (sexual) do outro (substituto materno). Em suma, nossos resultados apontam que a autora faz equivaler amor e morte entre os mecanismos do inconsciente na clínica da adoção, pois a "mãe morta" é o que se dá a pensar, e, da parte da mãe adotiva, é o que se deixa a desejar via enigma do sexual.
Palavras-chave: adoção; mãe; morte; criança órfã.
RESUMEN
Nuestro objetivo es demostrar cómo el concepto de madre muerta en el trabajo bonaparteano sirve como base teórica para pensar en la clínica de adopción. Esa inferencia solo es posible porque, a posteriori, el autor reconoce en el moribundo Mimau, su niñera, una madre adoptiva. Este trabajo analiza la forma en que se descifra el enigma intelectual de morir (orfandad) y se descubre el secreto del mensaje (sexual) del otro (sustituto materno). En resumen, nuestros resultados indican que el autor hace que el amor y la muerte igualen los mecanismos del inconsciente en la clínica de adopción, porque la "madre muerta" es lo que uno piensa, y, por parte de la madre adoptiva, es lo que es deja algo que desear a través del enigma de lo sexual.
Palabras clave: adopción; madre; muerte; huérfano.
ABSTRACT
Our objective is to demonstrate how the framework of the concept of dead mother in Bonapartean work serves as a theoretical foundation for thinking about the clinic of adoption. This inference is only possible because, a posteriori, the author recognizes in the dying Mimau, her nanny, an adoptive mother. This work analyzes the way in which the intellectual enigma of dying (orphanhood) is deciphered and the secret of the (sexual) message of the other (maternal substitute) is discovered. In summary, our results indicate that the author makes love and death equate between the mechanisms of the unconscious in the adoption clinic, because the "dead mother" is what one thinks, and, on the part of the adoptive mother, is what is leaves to be desired via enigma of the sexual.
Keywords: adoption; mother; death; orphan.
Marie Bonaparte (1882/1962) foi órfã de mãe desde seu nascimento (Fréjaville, 2008; Bertin, 1989). Entretanto, coube à babá Mimau a atribuição de mãe substituta. Foi nos braços de Mimau que a princesa encontrou todo o carinho que lhe faltava com a orfandade materna. A atribuição de que Mimau fora uma espécie de mãe adotiva foi elucidada pela própria princesa Marie em um testemunho emocionado diante do leito de morte de Mimau, o que veremos logo adiante.
A morte da mãe biológica pouco depois do seu nascimento deixou traços indeléveis no seu psiquismo, cuja análise realizada com Freud resultou na publicação de suas lembranças de infância registradas no famoso manuscrito intitulado Cinco cadernos (Bonaparte, 1948;1951a; 1951b).
Então, em que medida a identificação com a mãe morta pode ser teorizada psicanaliticamente? E como uma teoria surgida da orfandade pode trazer ganhos para se pensar clinicamente um processo adotivo?
Veremos de que maneira em seu texto sobre o tema da mãe morta (Bonaparte, 1952) a autora examina suas fantasias infantis, como a fantasia de morrer de tuberculose tal como sua mãe, as fobias (de Anúbis e da múmia) e o sentimento de culpa (responsabilizando por vezes a si mesma, por vezes a seu pai pela morte de sua mãe), e como tudo isso pode ser expresso em termos da dinâmica do seu psiquismo, cuja identificação com a mãe morta permanece operante em seu pré-consciente. Nossa hipótese é que a noção de mãe morta nos será útil para pensar uma teoria e uma clínica da adoção na obra bonaparteana.
Desse modo, dividiremos este texto em quatro seções.
Na primeira seção, abordaremos a orfandade da princesa Marie e o impacto que isso trouxe ao seu psiquismo, verificado nos elementos (fobias) presentes na sua infância e retratados nos Cinco cadernos (Bonaparte, 1948; 1951a; 1951b). Além disso, a autora elabora teoricamente o que aprendeu na análise: a constatação da sua identificação com a mãe morta.
Na segunda seção, veremos como a autora reconhece em Mimau uma espécie de mãe adotiva (Bonaparte, 1951c). Em termos laplancheanos, veremos como Mimau foi um ente querido que protagonizou e povoou o cenário da sedução originária na situação antropológica fundamental, situação em que o adulto implanta na criança mensagens (pré-conscientes e conscientes) que estão comprometidas com o sexual1.
Na terceira seção, demonstraremos a contribuição da autora para o tema da adoção em psicanálise ao fazer equivaler os termos amor e morte entre os mecanismos do inconsciente na clínica da adoção, pois a mãe morta é como um enigma que nos faz pensar, uma vez que tanto a morte quanto a origem da vida (como a chegada de um irmãozinho) são temas recorrentes da curiosidade e das teorias sexuais infantis; por sua vez, da parte da mãe adotiva é o que se deixa a desejar via enigma do sexual implantado pelo adulto (Laplanche, 1987/1992a; 2014/2015), pois quem adota acaba se imbuindo dos cuidados com o bebê na situação antropológica fundamental.
Por fim, na quarta seção, ratificamos que a maior contribuição da obra bonaparteana para o tema da adoção em psicanálise se apresenta via enigma da morte e do sexual. E nas considerações finais, reconhecemos que as ideias da autora nas aplicações da teoria psicanalítica aos fatos da sociedade dão ao tema da orfandade e da adoção um aspecto original, o que as coloca no seio dos debates de hoje.
Identificação com a mãe morta: percurso de uma análise e formação de um conceito
Os Cinco cadernos (Bonaparte, 1948; 1951a; 1951b) alimentaram sua análise com Freud. O fruto da apreciação desse material veio a inspirá-la na escrita do corajoso texto intitulado L'identification d'une fillle a sa mère morte (Bonaparte, 1952), texto em que mistura biografismo, análise pessoal e teoria psicanalítica.
Com a ajuda de Freud, a autora explora o conteúdo pré-consciente e inconsciente das suas principais fobias de infância, como a fobia de Anúbis, a fobia da múmia e o sonho com a cegonha, chegando à constatação da sua identificação com a mãe morta entre seus mecanismos psíquicos (De Bissy, 1990).
Podemos afirmar que a orfandade influenciou sua vida de pesquisadora e os temas que desenvolveu na sua carreira de psicanalista (Amouroux, 2012; Bourgeron, 1997). A análise pessoal da princesa Marie fez progressos rápidos, ajudada pelos Cinco cadernos (Bonaparte, 1948;1951a;1951b). Os conteúdos que os compunham ilustram perfeitamente as teorias freudianas e confirmam a opinião de Freud: Marie Bonaparte havia assistido muito jovem à cena primitiva, cujos protagonistas só podiam ser Nounou e Pascal, uma de suas babás e o picador de cavalos. A visão do coito dos adultos foi vivida pela pequena Mimi2Â ao mesmo tempo como uma experiência desejável e como uma agressão contra a mulher.
Todos os fantasmas que disso resultam o provam e, para a criança (Marie), papai matou mamãezinha fazendo-lhe o que Pascal fazia a Nounou (Bertin, 1982/1989). O espírito inquietante da princesa Marie foi buscar a confirmação da interpretação de Freud para os elementos presentes nos Cinco cadernos (Bonaparte, 1948;1951a;1951b), na confissão de Pascal, já com 82 anos de idade, de que "no começo, embora o bebê ficasse frequentemente de olhos semiabertos em seu berço, eles não se incomodavam e faziam amor em pleno dia" (Bertin, 1982/1989, p. 257-258).
Sendo assim, a maior turbulência de sua infância, que a acompanhará durante toda a vida, será a morte prematura de sua mãe, Marie-Félix Blanc, ocorrida quando ela tinha apenas um mês de vida, devido às complicações da tuberculose.
Veremos a seguir o quanto ela própria se culpou por essa morte e como elaborou diversas fantasias sobre o ocorrido, ora culpando a si mesma, ora culpando seu próprio pai, o príncipe Roland Bonaparte, ora os empregados da casa. É daí que surgiu seu outro grande medo, que a acompanhará da adolescência até o início da sua vida adulta: o medo de também morrer de tuberculose, nos termos da autora: "minha fantasia da tuberculose" (Bonaparte, 1952, p. 101 [tradução nossa]).
Essa fantasia contribui para uma intrigante amarração teórica em que a autora afirma que: "uma ideia nasceu e se instalou pouco a pouco em mim: é que, como minha mãe, eu era tuberculosa, e em mim tal doença se escondia. Logo eu descobri todos os tipos de sintomas confirmativos" (Bonaparte, 1952, p. 101 [tradução nossa]).
Podemos considerar a fantasia de tuberculose como um dos elementos de sua identificação com a "mãe morta" (p. 101) e, se remetermos à teoria da sedução generalizada (Laplanche, 1987/1992a), perceberemos com base na sua biografia que os adultos mais próximos, aqueles que se encarregaram de seus cuidados na primeira infância (o socius), a entulharam de mensagens comprometidas, por um lado, com a sexualidade inconsciente (Laplanche, 2008) e, por outro lado, com a história da morte da sua mãe que, por sua vez, fazia ruído nessas mensagens. E a criança, por sua vez, se põe a traduzir o enigma da mensagem do outro.
Sabemos que a tradução que a criança faz das mensagens a ela endereçadas fracassa (Laplanche, 1999), e somente a posteriori, através das vias facilitadas pelos códigos tradutivos compartilhados pela cultura, é que ela será capaz de metabolizar parte dessas mensagens. Outras partes, os restos dos fracassos da tradução (Laplanche, 1999), permanecerão como cicatrizes, restos comprometidos com o enigma (sexual) que veio do adulto, os chamados enclaves (Laplanche, 2014/2015).
Então, vejamos com mais detalhe o processo de identificação da princesa Marie com sua mãe morta naquilo que ela chama de alucinação com a cegonha e a fobia de Anúbis. Por volta dos quatros anos de idade, em meio a uma grave congestão pulmonar, a pequena princesa Marie recebe dos outros que estavam cuidando dela a seguinte mensagem: que ela pode ter a mesma doença de sua mãe.
Assim, em meio aos episódios febris, ela narra o que diz ser uma alucinação: em uma manhã, quando ainda estava sonolenta, ela vê sair por entre as cortinas de seu quarto um pássaro grande e radiante que pousa sobre seu ventre e aparentava ter todas as cores que compõem um arco- íris. Ela fica em dúvida se é um flamengo ou uma cegonha (De Bissy, 1990).
Na análise com Freud, ele chega a duas associações e interpretações. Primeiro, o pássaro tinha grandes pernas, o que, durante a sessão de análise, a leva a entrar em associação livre e se lembrar da história de uma de suas professoras particulares, no caso, uma irlandesa, com quem ela começou a aprender as línguas inglesa e alemã. Numa certa aula, mostrando-lhe livros de imagens, conta-lhe, então, a história das cegonhas, que têm como missão extraordinária trazer os bebês para os casais.
O segundo ponto apontado por Freud é o fato de que o grande pássaro tinha todas as cores presentes no arco-íris: esse ponto fora designado como sendo mais enigmático, mas descobriu- se que aquela irradiação maravilhosa do pássaro representava o ideal de charme e doçura que sua mãe portava em vida. E a irradiação de cores da ave estava ligada à sua mãe pela semelhança às cores que a pedra preciosa opala é capaz de irradiar, pois era conhecida por todos da casa a história do anel de noivado de seus pais3. Dessa maneira, os mecanismos pré-conscientes de seu psiquismo criaram o respectivo fantasma alucinatório. Daí ela conclui por meio da análise pessoal com Freud que:
a cegonha me traz, como ela fez a minha mãe, enfim uma criança do meu pai, eu sou sua mulher, sua amada, e para ele mãe. E a cegonha é toda "opalizada" [grifo do autor] como foi minha mãe e o casamento e a maternidade, é dito que ela traz, com a criança, fruto do amor, também o infortúnio, a morte. (Bonaparte, 1952, p. 94 [tradução nossa])
É importante salientar que a descoberta desse elemento de identificação com a mãe morta traz para nossa investigação a equivalência de amor e morte entre os mecanismos tradutivos das mensagens do outro, que vão compor os elementos daquilo que chamamos de teoria bonaparteana da adoção, o que ficará mais claro logo adiante.
Sobre a fobia de Anúbis, sabe-se que, com aproximadamente oito anos de idade, um belo dia a princesa Marie em meio a seus estudos folheia um velho livro de mitologia egípcia da enorme biblioteca de seu pai4Â e descobre a gravura de Anúbis, deus da sombra, que tem a cabeça de chacal, e é considerado guardião dos mortos. Isso perturbou tanto sua imaginação que, a partir de então, todas as noites ela passou a se aterrorizar com tal imagem, pois a posição deitada, posição para o sono, era semelhante à posição de uma múmia (Bonaparte, 1952).
Na análise com Freud, ela desvenda a relação entre a múmia da imaginação e a imagem que os adultos lhe contaram (mensagens a ela direcionada) da sua mãe morta sobre a mesa da sala, que seria como uma múmia. É sobre essa dupla, a fobia de Anúbis e a múmia, que a princesa Marie afirma: "a mãe morta, aquela com a qual eu me identifiquei, permanece inconsciente e como um conceito e uma imagem, ela constitui uma representação inconsciente integral" (Bonaparte, 1952, p. 98 [tradução nossa]).
Em termos laplancheanos, dizemos que a imagem da mãe morta está no pré-consciente da princesa Marie e não no seu inconsciente, justamente porque do lado do inconsciente só há o caos, nenhuma ordem (Laplanche, 1981/1992b). Então, somente com o recalcamento secundário e a instalação do pré-consciente é que podemos falar de imagem, representação, conceito, ou seja, traduções.
Com a ajuda de Freud, Marie Bonaparte interpreta o Anúbis como representação de seu pai, vigia e devorador dos mortos ou das falecidas. Pois, num certo momento, entre suas fantasias infantis, principalmente a fantasia sádica do coito, ela chegou a cogitar que sua mãe morrera em decorrência do ato sexual com seu pai5. Quase na conclusão desse texto, a autora chega a uma bela afirmação: "os espectros se esvaem à luz do dia. Mas é necessário primeiro ter a coragem de evocá-los em plena luz" (Bonaparte, 1952, p. 107 [tradução nossa]).
Percebemos que na análise Marie Bonaparte retoma suas experiências de infância e analisa as maneiras pelas quais ela estava identificada com a mãe morta, deixando florir outra fantasia: o desejo (inconsciente) de se unir ao pai. Tal fantasia causava-lhe um forte sentimento de culpa, pois ela é a assassina e a beneficiada pela morte da mãe:
Ela tinha medo do retorno dessa mãe que ela teria matado ao nascer e que estaria de volta, feito um ogro edipiano, para vingar-se. Pois, de acordo com o seu fantasma, é evidente que ela é cúmplice, por seu nascimento, que ela participou do assassinato cometido pelo pai. (Bertin, 1982/1989, pp. 260-261)
Podemos pensar que uma criança órfã também pode culpar a si mesma ou a outrem por sua orfandade. Em outros termos, verificamos um esforço tradutivo (Laplanche, 2014/2015) dos elementos do seu fantasma, cujos resíduos não metabolizados permaneceram no seu inconsciente.
Sobre a vida e a morte, Laplanche (1970/1985) nos esclarece:
ausente em todo inconsciente como em todo perfume a rosa, a morte aí aparece talvez como sua lógica mais radical, mas também a mais estéril. Mas é a vida que cristaliza os primeiros objetos em que o desejo se apega. (p. 130)
Desse modo, em busca da vida, iremos, na seção seguinte, delimitar o papel de Mimau como mãe adotiva da princesa Marie e como essa função, atribuída pela própria autora, poderá nos levar a fechar provisoriamente nosso esboço da teoria psicanalítica da adoção na obra bonaparteana.
Sob o reino maternal de Mimau: a princesa órfã de mãe e sua babá
O reconhecimento do amor maternal de Mimau foi expresso no próprio leito de morte desta última e registrado num livro marcadamente cheio de emoção, cuja leitura desperta fortes comoções mesmo no leitor mais desatento (Bonaparte, 1951). Diante do leito de morte da velha, fraca e esquelética Mimau é que vamos constatar declarações que atribuem a ela o papel de mãe adotiva da princesa Marie. Essa hipótese de que babás podem substituir a função parental está em total concordância com a explanação feita por Freud (1914/1980):
Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás . . . Essas figuras substitutas podem classificar-se, do ponto de vista da criança, segundo provenham do que chamamos as imagos do pai, da mãe [...]. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional. (p. 287)
Freud (1914/1980) continua sua explanação afirmando que para o menino, entre todas as imagens (imagos) de sua infância, nenhuma é mais importante que a do pai. Por outro lado, podemos pensar que para a menina a imago mais importante é a mãe. Mimau cristaliza na primeira infância da princesa Marie a imago materna.
Logo é preciso dar relevo ao cenário da sedução generalizada (Laplanche, 1987/1992a), da dissimetria entre o mundo do adulto e o mundo da criança na qual são implantadas mensagens comprometidas com a sexualidade inconsciente desse adulto (Laplanche, 2008).
Sabemos que um profundo afeto aproximou a pequena princesa Marie de sua babá: "Mimau será a confidente, a consoladora, a fonte de alegria e conhecimento, o refúgio durante a infância [...] seus corações permanecerão unidos" (Bertin, 1982/1989, p. 62).
A princesa transferiu para Mimau o respeito e as expectativas que tão costumeiramente ligam uma criança à sua mãe: "elas vivem ambas numa grande intimidade que nem se sonha em discutir. Seus quartos se comunicam. À noite, Mimau fica perto de Mimi. Ela canta, conta- lhe histórias [...]pela manhã [...] quando a criança abre os olhos, ela já está lá, pronta para abraçá-la" (Bertin, 1982/1989, p. 62).
Será também Mimau que lhe lava o rosto e o corpo com água morna, veste-a e lhe serve as refeições. Em um trecho, Marie Bonaparte descreve:
ela me contava histórias cada vez que eu a pedia. Mimau me tomava em sua cama à noite; seus braços eram meu único refúgio quando eu tinha medo, quando eu tinha frio, quando eu estava doente. Mimau me acariciava; as mãos e os lábios de Mimau eram os únicos que se posavam sobre mim com ternura. (Bonaparte, 1951c, p. 30 [tradução nossa])
Sobre essa ternura de Mimau com a princesa Marie podemos pensar com Laplanche (1970/1985) que "do ponto de vista pulsional, o que é colocado em primeiro plano não é a relação erótica, mas a relação de ternura" (p. 104). No entanto, implica esclarecer que "a posição passiva da criança em relação ao adulto não é somente passividade na relação real com a atividade do adulto, mas passividade com relação à fantasia do adulto que faz intrusão nela" (Laplanche, 1970/1985, p. 105). E a criança, com os recursos simbólicos que possui (oferecidos pelo socius, seu meio social mais próximo como tios, tias, avós, primos, vizinhos, entre outros), tenta traduzir essas mensagens a ela endereçada. Entretanto, algo sempre escapa e permanece como restos não metabolizados no seu psiquismo (Laplanche, 2014/2015).
Nessa relação entre o adulto e a criança, funciona o apoio [étayage], que faz a passagem do plano autoconservativo para o plano pulsional. Pois, "toda relação intersubjetiva primitiva, mãe-criança é portadora dessas significações do mundo adulto que é veiculada pelos gestos" (Laplanche, 1970/1985, p. 50-51), situação em que ocorre a implantação da sexualidade (inconsciente) adulta na criança.
Bonaparte (1951c) também atesta: "ela foi outrora um ser de braços mornos, olhos ternos, que me ninava, me adormecia, me encantava, quando eu era pequena. Ela foi aquela que veio quando minha mãe tinha ido" (p. 34 [tradução nossa]). Ou seja, o carinho de Mimau estabeleceu a "constituição e confirmação da forma total, do limite, do invólucro fechado que constitui o revestimento cutâneo" (Laplanche, 1970/1985, p. 73).
A princesa Marie é muito clara ao afirmar: "Mimau, que foi toda a ternura de minha infância" (Bonaparte, 1951c, p. 32 [tradução nossa]). E ela, ao ver Mimau lentamente morrer, sente que "a vida reclama de mim outra coisa além de uma mão estendida à Mimau" (Bonaparte, 1951c, p. 32, [tradução nossa]).
Voltando ao tema do elo entre amor e morte, entre os mecanismos do pré-consciente que podem contribuir para uma clínica da adoção de inspiração bonaparteana, podemos afirmar que, em meio ao cheiro de morte e ao desaparecimento de Mimau, surge o reconhecimento do amor de uma filha que naquele momento perde sua mãe (adotiva).
Nas palavras da autora: "pequeno esqueleto em pele e osso todo deformado de lado, sobre o travesseiro, a cabeça tombada muito baixa, até que eu toco a pobre mulher, Mimau portanto ainda me ama". (Bonaparte, 1951c, p. 35 [tradução nossa]). Ou seja, onde há a morte da mãe, há também o amor: "ela me ama, e é tudo" (Bonaparte, 1951c, p. 31 [tradução nossa]).
As palavras da princesa Marie no leito de morte de Mimau são palavras de inesquecível impacto pela sua enorme generosidade e humildade. Eis que declara: "eu me envergonho de portar joias diante de uma pessoa pobre, de comer diante de quem tem fome, de viver diante de quem morre" (Bonaparte, 1951c, p. 36 [tradução nossa]).
Rastros de sua distinção podem ser encontrados ao longo de vários de seus textos. Sua nobreza se deve sobretudo ao fato de que para ela
é para os pobres que é preciso deixar as coroas, para os pobres de coração e de sentimento .... Sou rainha do mundo, pelo meu olhar e meu pensamento, que por todas as coroas, externas a mim, que possa vir a portar. (Bonaparte citada por Bertin, 1982/1989, p. 210)
Feitas essas digressões, passemos para a seção seguinte, na qual daremos maior sustentação à nossa hipótese de que podemos tirar do pensamento bonaparteano pressupostos para uma clínica psicanalítica da adoção.
A adoção e os destinos das mensagens
A fim de traçarmos uma clínica da adoção na perspectiva da psicanálise bonaparteana, cabe- nos um esforço para tomar suas formulações sobre a mãe morta no esteio do modelo tradutivo do recalcamento (Laplanche, 2014/2015). Assim, a mãe morta vai além de um mero biografismo da autora, mas constitui um conceito que nos parece útil para compreender a clínica da orfandade e da adoção.
De maneira geral, para alguns órfãos, a ausência dos pais biológicos é traduzida como uma morte, mesmo que isso não implique necessariamente o desaparecimento físico deles. Essa ausência dos pais traduzida em termos de morte aponta para a ausência cruel dos adultos responsáveis pela criança.
Sabemos que os adultos são os responsáveis por satisfazer as necessidades emocionais e materiais mínimas da criança, seja os pais biológicos, seja quem venha a desempenhar o papel de pai ou mãe substituta ou adotiva para a criança. Então, a categoria conceitual 'mãe morta' deve ser usada quando fracassa a qualidade da relação cuidador versus crianças.
Por outro lado, o reino maternal ou paternal de pais substitutos só é possível na abundância de amor, alegria e prazer que essas relações comportam. Dessa maneira, os pais adotivos serão responsáveis por colonizar o corpo da criança com o pulsional (Laplanche, 1987/1992b; 2014/2015).
Nossa hipótese é que toda adoção ou processo adotivo repousa sobre o mesmo terreno: o da representação psíquica da 'mãe morta', ou seja, dos pais mortos, mortos no sentido de que eles estão ausentes ou são negligentes para a criança. E a adoção pode ocorrer não necessariamente pela via formal e institucionalizada, mas sobretudo pelas vias informais ou mesmo pelo juízo de atribuição da própria criança, cuja ação garante sua sobrevivência contra os golpes da sorte (ausências dos pais).
Por "boa sorte" entendemos aqueles prazeres do colo, dos abraços e dos beijos, os quais Mimau tão bem ofereceu à pequena Mimi. E não podemos nos esquecer de que a ausência ou a morte dos pais é contada pelos outros adultos que virão na sua substituição e entulham a criança com mensagens comprometidas com a história de sua origem ou mesmo a origem dos seus pais quem eram, de onde vieram e como se foram. A criança órfã terá que traduzir todas essas histórias.
Com efeito, na clínica bonaparteana da adoção, devemos considerar todas as dores e os sofrimentos que existem na orfandade, além da presença amorosa dos substitutos (outros adultos adotivos) nos quais a criança coloca todas as suas forças na afirmação da vida.
Queremos agora reconduzir a ideia de 'mãe morta' à sua significação própria de conceito no texto bonaparteano (Bonaparte, 1952). Assim, chamamos a atenção para as propriedades de tal conceito numa clínica da adoção: ele pode lançar luz sobre o obscuro que advém das mensagens não metabolizadas pela criança sobre sua situação de orfandade ou sua origem. Segundo Laplanche (1987/1992a; 2008), os enclaves correspondem às impressões não traduzidas de mensagens advindas do outro cujo ingresso no psiquismo se deu via intromissão, ou seja, mensagens mais violentas.
Esses enclaves se mantêm como marcas traumáticas e tendem a reaparecer na vida psíquica de maneira quase imutável, como no caso da princesa Marie e seu medo de morrer de tuberculose tal como sua mãe (De Bissy, 1990).
Com efeito, uma clínica da adoção bonaparteana considera não só a morte, mas sobretudo o amor. Os outros servem de substitutos maternos ou parentais, como a autora experimentou sob o reino maternal de Mimau. Em outros termos, a situação de adoção sinaliza para a vida, para o contentamento consigo mesmo no aconchego do colo do outro.
Considerações finais
Após as considerações precedentes expostas, é possível concluir que o extraordinário contributo ao tema da adoção em psicanálise que tiramos da obra bonaparteana está calcado na sua formulação da "mãe morta", que, sob o reino maternal de Mimau, faz equivaler amor e morte entre os mecanismos do pré-consciente/inconsciente.
A mãe morta é o que se dá a pensar, já que o mistério da morte soa para o mundo infantil como uma incógnita. Por sua vez, da parte da mãe adotiva, é o que se deixa a desejar via enigma do sexual (Laplanche, 2014/2015). Fazendo trabalhar a teoria da sedução generalizada nas elaborações bonaparteanas, pudemos avançar no que nos interessa: o enigma (da mensagem do outro) no jogo do processo tradutivo tanto na orfandade quanto no processo adotivo.
Dessa maneira, entendemos que com o desenvolvimento do bebê ocorre a formação das representações mentais, as quais darão sentido a algumas das mensagens a ele endereçadas (implantações e intromissões), cujo processo tradutivo tem como base as informações recebidas do ambiente, do seu meio social mais próximo (tios, tias, avós, primos, vizinhos, entre outros). Esses valores e essas crenças, por exemplo, fornecerão a ele o sentido do que é ser uma criança órfã.
Em suma, essa investigação demonstra que tanto a vida quanto a obra de Marie Bonaparte foram consagradas à pesquisa científica e à terapia psicanalítica. Suas qualificações são não só de ordem intelectual, mas sobretudo de uma sensibilidade analítica excepcional.
Certamente seu sentido clínico e sua compreensão penetrante dos seus próprios conflitos nos possibilitaram extrair os princípios norteadores de uma clínica da adoção em psicanálise bonaparteana, em que a dor de ser órfão está indissoluvelmente unida ao processo de adoção, e ambos se misturam muitas vezes nos termos morte e amor. Assim, haurimos ideias, por um lado, sobre a orfandade e, por outro lado, sobre a adoção.
No entanto, a concepção da adoção, muitas vezes entendida somente como uma ação institucionalizada mediante uma decisão judicial, passa a ser considerada como um processo muito mais complexo. As ideias bonaparteanas sobre a aplicação da teoria psicanalítica aos fatos da sociedade e as suas preocupações pessoais concernem à orfandade e à adoção um aspecto original, o que a diferencia dos seus confrades psicanalistas. Esperamos que este estudo contribua para colocar a obra bonaparteana no seio dos debates dos psicanalistas de hoje.
Referências
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Recebido em agosto de 2019 Aceito em junho de 2020.
1 É oportuno esclarecer ao leitor que Laplanche (2014/2015) define o sexual da seguinte maneira: "é múltiplo, polimorfo. Descoberta fundamental de Freud, ele fundamenta-se no recalque, no inconsciente, na fantasia. É o objeto da psicanálise" (p. 155).
2 Nome pelo qual Marie Bonaparte era chamada na infância pelos familiares, parentes e criados mais próximos.
3 Consta na biografia de Marie (Bertin, 1982/1989) que seu pai dera à sua mãe um anel de noivado composto por uma grande gema de opala rodeada de belos diamantes.
4 A biblioteca do príncipe Roland Bonaparte compreendia aproximadamente "cem mil volumes e mais de duzentas revistas e jornais" (Bertin, 1982/1989, p. 233).
5 Cabe lembrar que seu pai e sua avó paterna temiam sua morte (seja por tuberculose, seja outra doença) antes de Marie atingir a maioridade absoluta com 21 anos, pois isso tiraria a fortuna de seu pai, à qual Marie tinha direito. Outro fato também importante é que sua babá a obrigava a tomar xaropes mesmo de dia, para fazê-la dormir e, com isso, ter relações sexuais ao lado do berço com Pascal (Bertin, 1982/1989).
Revisão gramatical: Dila Bragança de Mendonça
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