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Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.2 São Paulo mayo/ago. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i2p220-232 

10.11606/issn.1981-1624.v25i2 p220-232

DOSSIÊ

 

Intervenções psicanalíticas com famílias de crianças diagnosticadas com autismo: revisão de literatura

 

Intervenciones psicoanalíticas con familias de niños diagnosticados con autismo

 

Psychoanalytic interventions with families of children with autism

 

 

Maíra Lopes AlmeidaI; Anamaria Silva NevesII

IPsicóloga clínica. Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: maira.lpalmeida@gmail.com
IIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: anamaria@umuarama.ufu.br

 

 


RESUMO

Este trabalho discute a clínica com famílias de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A palavra "estranho", recorrentemente usada para adjetivar essas crianças, propulsiona a discussão sobre o acolhimento do grupo familiar. Confrontados com esse "estranho" diariamente, o atendimento a famílias impõe questões à psicanálise. Neste trabalho, percorrem-se autores psicanalistas e apresentam-se evidências atuais sobre atendimentos psicanalíticos para crianças diagnosticadas com TEA e suas famílias. A psicanálise constitui dispositivo de escuta primordial para acolher o "estranho" e propicia novos significados e possibilidades de encontro entre os sujeitos enredados nesse dilema.

Palavras chave: autismo; infância; relações familiares; família; psicanálise.


RESUMEN

Este trabajo discute la clínica con familias de niños diagnosticados con Trastorno del Espectro Autista (TEA). El adjetivo "extraño", recurrentemente citado para calificar a estos niños, propulsa la discusión que se refiere a la acogida del grupo familiar. Confrontados con este extraño diario, la atención a las familias impone cuestiones al psicoanálisis. Son recorridos autores psicoanalistas y se presentan pruebas actuales sobre la atención psicoanalítica para niños diagnosticados con TEA y sus familias Se considera que el psicoanálisis constituye un dispositivo de escucha primordial para acoger al extraño y propiciar nuevos significados y posibilidades de encuentro entre los sujetos enredados en ese dilema.

Palabras clave: autismo; infancia; relaciones familiares; familia; psicoanálisis.


ABSTRACT

This study aims to discuss clinical care with families of children diagnosed with Autism Spectrum Disorder (ASD). The adjective "strange" recurrently quoted to adjectivate these children is the starting point for the necessary discussion that refers to the reception of the family group. Faced with this stranger daily, the care of these families imposes a series of questions on psychoanalysis. Classical psychoanalytic authors are traversed to explore the possibility of listening to this group and current evidence on psychoanalytic care for children diagnosed with ASD and their families is presented. It is considered that psychoanalysis constitutes a primordial space to welcome the stranger and to provide new meanings and possibilities of encounter between the subjects.

Keywords: autism; childhood; family relationships; family; psychoanalysis.


 

 

A palavra "estranho" é constante na fala de mães de crianças diagnosticadas com autismo. Esse fato remete a Freud (1919/2010), que aponta a íntima relação entre o "estranho" e o familiar. Às voltas com o Unheimlich, o autor compreende que Heimlich é também da ordem do oculto, sendo o prefixo un o representante daquilo que foi recalcado. O "estranho", assim, germina necessariamente disso que está oculto e é familiar: "O "estranho" é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido e há muito familiar". (Freud, 1919/2010, p.180). As crianças diagnosticadas com autismo parecem provocar os mesmos sentimentos descritos por Freud (1919/2010) em relação ao "estranho": aflição e angústia. As idiossincrasias dessas crianças ressoam no entorno, como ocorre na observação de crianças com fortes estereotipias, ou com dificuldades na fala, e que parecem nos colocar diretamente diante desse "estranho", nas fronteiras do que a palavra é capaz de suportar.

Não obstante, a palavra "estranho", que aparece como denominador comum na escuta de mães de crianças com diagnóstico de autismo ao fazerem referência a seus filhos, denuncia as sutilezas das relações estabelecidas entre o casal parental e a criança. Naturalmente, nessas relações, o adulto é remetido ao que pode reconhecer de si mesmo naquele bebê (Freud, 1914/2006). Para tanto, pode-se conjecturar que aquilo que não é possível de ser reconhecido pelo adulto, talvez por ser suficientemente familiar, seja qualificado como "estranho".

Podem-se encontrar rastros dessa compreensão do "estranho" presente no autismo a partir da aproximação que Freud (1919/2010) faz da epilepsia e da loucura. Para o autor, nesses dois casos, observa-se a ação nos semelhantes de forças desconhecidas; no entanto, há a vaga consciência de que essas forças remotas fazem parte do próprio ser. Martini e Júnior (2010) apontam que o "estranho" não é apenas o que está recalcado, sendo o seu retorno o responsável por produzir esse efeito: o desvelamento do que deveria estar mantido oculto e vem à tona é exatamente o que causa a indistinção entre o "estranho" e o familiar. Dessa forma, talvez seja possível considerar que o encontro com crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) suscita o contato e o desvelamento das forças desconhecidas que, insuspeitadamente, compõem o ser.

A angústia nos aproxima desse "estranho" e sustenta também o pilar da torre de Babel que se formou ao redor do autismo. As disputas apaixonadas que se travam quanto à etiologia e a melhores tratamentos parecem conduzir os profissionais a essa mesma confusão de línguas. Estabelecem-se posições enrijecidas que buscam pleitear para si a verdade sobre o fenômeno autístico, sem possibilitar a circulação da palavra.

A formação de uma síndrome única com Kanner transformou o adjetivo autístico utilizado na época em substantivo: autismo. Ao largo de ser apenas uma questão semântica, como alerta Tafuri (2003), o autismo parece atualmente se referir a todo esse "estranho" identificado pelas famílias na primeira infância. A angústia face àquilo que não é possível de ser reconhecido forja-se contemporaneamente em uma hiperdiagnose, causada, sobretudo, pelos atuais manuais de classificação de transtornos mentais. Nesses manuais, o autismo figura como transtorno próprio da primeira infância, o que traz decorrências importantes tanto para crianças, que serão diagnosticadas desde muito jovens, quanto para suas famílias, que terão que acompanhá-las em diversos tratamentos e serviços de saúde.

A partir da compreensão das decorrências que a nomeação diagnóstica pode gerar para os grupos familiares, a Psicanálise desempenha papel decisivo na medida em que, desde os seus primórdios, se dispõe a escutar as narrativas do sujeito que conta de seu sofrimento. Assim, possibilita acolher o "estranho", e não simplesmente eliminá-lo, prática corriqueira atualmente. Sem eliminá-lo, abre-se a possibilidade de que ele seja reconhecido em seus aspectos familiares e, então, possa produzir novos significados sobre isso que se apresenta tão estranhamente.

No entanto, algumas iniciativas atuais têm demonstrado posições contrárias à presença da Psicanálise para o tratamento de crianças diagnosticadas com TEA. Pode-se citar, como exemplo, uma recomendação francesa que visava a suprimir a Psicanálise como método de tratamento nesses casos e um edital brasileiro que buscava credenciar apenas instituições que trabalhassem com métodos cognitivos comportamentais (Araújo et al., 2013; Diário Oficial do estado de São Paulo, Nº148 – DOE de 08/08/12 – Seção 1 – p.79). É importante destacar que algumas dessas reivindicações são provenientes de associações de pais e remontam à construção histórica do autismo enquanto patologia. As metáforas que indicam a frieza afetiva materna como fator etiológico do autismo perpetuam-se ao longo do tempo e parecem relacionar-se com a atual rejeição à Psicanálise no tratamento de crianças diagnosticadas com TEA (Jerusalinsky, 2010; Tafuri, 2003).

A partir desse contexto, considera-se fundamental abranger as possibilidades do atendimento clínico psicanalítico com famílias de crianças diagnosticadas autistas. É urgente abordar na literatura científica os alcances dessa clínica por meio de consistente base teórica e evidências empíricas atuais. Diante disso, este trabalho teve como objetivo discutir a clínica psicanalítica com famílias de crianças diagnosticadas com TEA e sistematizar conhecimentos sobre a temática.

 

Método

Para cumprir o objetivo proposto, este estudo realizou uma revisão narrativa da literatura. Esse tipo de revisão é adequado para discutir o desenvolvimento ou o atual estado da arte de certo assunto. Compõe-se por análise ampla da literatura, considerada fundamental para a aquisição e a atualização do conhecimento sobre a temática específica, evidenciando ideias que têm recebido mais ou menos atenção nas produções científicas analisadas (Rother, 2007). Inicialmente, realizou-se uma busca em livros de autores clássicos da Psicanálise sobre o lugar do grupo familiar no atendimento da criança. Em seguida, apresentaram-se evidências empíricas atuais, encontradas por meio de buscas realizadas em bases de dados sobre atendimentos psicanalíticos para a família de crianças diagnosticadas com autismo e seus efeitos.

Para essa revisão narrativa, consideraram-se artigos a) nos idiomas português, inglês e espanhol; b) sem restrição temporal; c) empíricos; d) que versassem sobre atendimentos psicanalíticos para crianças diagnosticadas com TEA e suas famílias; e) disponíveis em sua completude. Os artigos não foram avaliados em termos de qualidade metodológica por não ser esse um objetivo deste trabalho.

Nessa revisão, consultaram-se as bases de dados SciELO, IndexPSI e PePSIC, por englobarem grande parte da produção científica psicológica indexada no Brasil. Os descritores utilizados constam no Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), sendo eles: "relações familiares" AND "transtorno autístico" OR "transtorno do espectro autista" AND "Psicanálise". A busca retornou três artigos na primeira base e nenhum nas outras duas. Não se incluíram os três artigos encontrados nessa primeira busca, pois não eram voltados para atendimentos psicanalíticos de crianças diagnosticadas com TEA e suas famílias.

Diante disso, optou-se por ampliar os termos de busca para "família" AND "autismo" AND "Psicanálise". Nessa segunda busca, encontraram-se três artigos na base Scielo, quatro na base PePSIC e dois na base IndexPSI. Excluíram-se cinco trabalhos por não terem foco em atendimentos psicanalíticos e um por não estar disponível completamente. Assim, incluíram-se três artigos.

Depois da leitura dos textos completos, realizaram-se novas buscas de artigos a partir das referências bibliográficas para novas inclusões. Com a leitura dos artigos que compuseram a presente revisão, extraíram-se dados referentes à temática abordada. Materiais bibliográficos, como livros e capítulos de livros relacionados ao assunto, também compuseram este estudo. Assim, iniciou-se a exposição dos dados apresentando as concepções de autores clássicos da Psicanálise sobre as intervenções psicanalíticas para a família e, em seguida, dos resultados obtidos nas buscas em bases de dados.

 

Família e intervenção psicanalítica

A família, para Freud, ocupa um papel central na construção do psiquismo e, também, na formação de sintomas (Freud, 1917/2006). Apesar disso, as construções que permitiram considerá-la como possibilidade para as intervenções psicanalíticas foram graduais.

O primeiro relato de análise de uma criança apareceu em 1909 nos escritos freudianos. Embora não tenha sido conduzido propriamente por Freud, o autor orientou o pai e deu direções para o tratamento, que, como o título aponta, se refere à "Análise de uma fobia em uma criança de cinco anos" (1909/2015). No caso do pequeno Hans, o tratamento foi conduzido a partir do entendimento edípico. A compreensão a respeito da fobia do garoto e as intervenções feitas pelo pai caminham na direção de interpretar os conflitos intrapsíquicos do menino, originados pelo Complexo de Édipo, o qual o pequeno enfrentava no auge de seus cinco anos (Freud, 1909/2015).

Nesse caso, o responsável por guiar a análise do pequeno Hans sob os auspícios da comunicação com Freud foi o pai do garoto, que chamava o psicanalista de caro professor. Na publicação do caso, Freud (1909/2015) adverte sobre os limites da aplicação do método psicanalítico na condução de tratamento de crianças. Segundo ele, isso só foi crível graças à junção das figuras de autoridade do pai e de médico em uma só pessoa. A partir dessa união, acoplaram-se carinho afetivo e interesse científico, o que "tornou possível, nesse caso, fazer do método uma utilização para a qual ele normalmente não se prestaria" (p. 124).

A análise de crianças só se tornaria viável, então, na reunião entre a figura de pai e de médico (Freud, 1909/2015), aproximando-a de um vértice pedagógico. Com Melanie Klein, a aplicabilidade do método pode ser descrita novamente. A autora erigiu as bases da subjetividade infantil sobre as quais a análise de crianças primeiramente se estabeleceu (Calvazara, 2013).

Na teoria kleiniana, a ênfase recaía sobre o mundo interno da criança. A autora aplicou a associação livre e o método interpretativo ao brincar da criança. Para Klein, o brincar equivalia- se às fantasias em torno da sexualidade infantil e da agressividade, o que era central para estruturar uma relação transferencial entre criança e psicanalista (Klein, 1955/1991).

Sem modificar o método, a autora alterou a técnica e fundou, por meio do brincar, um novo instrumento, que permite o acesso ao psiquismo da criança (Klein, 1952/2006). Contudo, esse fio condutor da teoria kleiniana parece relativizar os fatos externos. Os pais reais e o inconsciente parental têm sua importância diminuída no tratamento da criança a partir desse subsídio teórico. Diante disso, Klein descartava qualquer intervenção junto à família (Corso, 1998).

O caso Dick é o primeiro relato que apresenta descrições similares ao autismo no contexto psicanalítico. Nele, constam observações clínicas e algum material sobre a história pregressa do menino, sem haver, porém, participações importantes dos pais, ou mesmo da babá, na descrição clínica (Klein, 1930/1996). Isso demarca, novamente, a posição da autora frente à sintomática infantil.

A releitura de Lacan (1953-54/2009) sobre esse caso de Klein aponta que as interpretações da psicanalista para os movimentos do garoto com trens de brinquedo, que eram objeto de seu grande interesse, produziram algo na criança. No entanto, isso não se deve tanto ao conteúdo do que ela falou à criança, mas mais ao fato de ter se endereçado a ele. Assim, "Klein supõe ali um sujeito, antecipando um que ainda não há, o que é condição fundamental para ali haver um" (Vorcaro & Guimarães, 2014, p. 217).

A partir da vertente lacaniana, a teoria ampara-se na concepção da constituição subjetiva que introduz o fato de que a criança nasce em um mundo simbólico. O nascimento da criança é marcado por acontecer em um mundo que preexiste a ela. Como afirma o autor, "a realidade é marcada de saída pela aniquilação simbólica" (Lacan, 1955-56/1988, p.171).

Assim, a criança, inserida na dialética presença-ausência desde os primeiros momentos de seu nascimento, se sustentará nas e pelas palavras de seu agente materno. Esse primeiro cuidador será responsável por atribuir sentido e palavras às vivências do recém-nascido. Dessas palavras direcionadas a seu bebê, inaugura-se, para o pequeno ser, a nascente de que jorra sua própria inserção no campo da linguagem (Vorcaro, 2001).

O processo constitutivo do sujeito, portanto, implica sua condição de dependência a outro humano. Não por acaso, quando os pais procurem análise para a criança, não é possível ignorar "o fato de que a criança ocupa uma posição privilegiada na demanda que cada um dos pais dirige ao analista" (Faria, 2014, p. 27).

A partir disso, o papel da família torna-se indispensável para o tratamento analítico de crianças. Tributárias da obra lacaniana, foram as psicanalistas Françoise Dolto e Maud Mannoni as responsáveis por elaborar de forma mais pormenorizada a aplicação dessas concepções na intervenção psicanalítica com crianças (Dolto, 1965/2004).

Para Dolto, o ser humano tem "filiação linguajeira, isto é, pertence a uma linhagem e inscreve-se num mundo transgeracional" (Ledoux, 1995, p. 208). Contudo, o bebê é, também, desde o início, uma fonte autônoma de desejos, demanda comunicação interpsíquica e é desejante de outro humano. No entanto, quando não há respostas para suas solicitações de trocas sensório-motoras ou de linguagem, as percepções da criança não são mediatizadas, e não se confere sentido às suas sensações. Diante dessa situação, o bebê corre o risco de mortalidade simbólica e psíquica. Na falta do encontro entre psiquismos, o bebê deserta do objeto e, consequentemente, de si mesmo, visto que vivia a díade. Quando o objeto reaparece, ele pode reconstituir o continuum de ser (Ledoux, 1995).

A criança participa e é objeto de um discurso coletivo que engloba os pais, a escola e, até mesmo, o analista (Mannoni, 1967/1999). Em torno do seu sintoma, esse discurso toma forma e se materializa: "A perturbação de que se fala é objetivável (na pessoa da criança), mas a queixa dos pais se tem por objeto a criança real, implica também a representação que o adulto se faz da infância" (p. 9).

Diante disso, observa-se que, quando inserido como dispositivos de cuidado, o tratamento analítico pode apresentar contribuições inestimáveis para as famílias, especialmente em relação a um diagnóstico psiquiátrico atribuído à criança em momento tão basilar de sua constituição. Ressalta-se, por exemplo, a importância do trabalho dos analistas junto aos pais ao abordarem os efeitos que o nome autismo implica para a construção parental diante dos filhos. Presos a esse nome e às várias negatividades que dele decorrem, no sentido das impossibilidades da criança, o espaço terapêutico é um espaço em que se introduz a dúvida, um lugar de desconstrução de certezas rígidas e imutáveis que permeiam a criança após a nomeação diagnóstica (Cavalcanti, 2000).

Assim, a Psicanálise assumiu de forma gradual o lugar importante que a família deve ocupar no atendimento da criança. Contemporaneamente, esse espaço é confrontado com a diversidade de diagnósticos por qual perpassa a infância. O autismo, geralmente diagnosticado na primeira infância, traz ainda mais à tona essa questão.

 

Intervenções psicanalíticas com famílias de crianças diagnosticadas com autismo: evidências atuais

A postura de esperança (Rocha, 2007; Martins & Silva, 2017) e de atravessamento do diagnóstico de autismo como sentença que desautoriza as mães em seu saber sobre o filho (Cavalcanti, 2000; Telles, 2011; 2012) tem subsidiado inúmeras intervenções psicanalíticas relatadas na literatura, seja no âmbito do atendimento individual seja no grupal.

Verdi (2003) relata que a existência de um grupo de pais de crianças e adolescentes autistas auxilia na vida emocional dessas famílias, podendo abordar as dificuldades familiares e a própria constituição dos papéis parentais.

A experiência vivida por Merletti na instituição Lugar de Vida, centro de educação terapêutica e instituição reconhecida pelo atendimento a crianças com diagnóstico de autismo, aponta para o fato de a participação dos pais ser crucial no tratamento psicanalítico dos filhos, a fim de acessar e incidir sobre o discurso que eles desenvolvem sobre as crianças. O atendimento com os pais permite que eles possam legitimar e resgatar o saber sobre seu filho, além de acolher o mal-estar e apoiá-los em seus papéis educativos. Por meio desse entendimento, nessa instituição também é realizado grupo de pais, pois são considerados parceiros importantes nos cuidados dos filhos (Merletti, 2016; Merletti, 2018).

Outro trabalho institucional é abordado por Martini (2019), que reflete sobre a atuação do psicólogo institucional no trabalho com famílias em uma associação de autistas. Com base no referencial teórico psicanalítico, a autora expõe sua trajetória na instituição e, mais especificamente, no grupo de pais. Inicialmente, levantaram-se as demandas da instituição e dos pais para definir o norte do trabalho, que consistiu em compreender o vínculo família- instituição, instituição-família e família-equipe. O grupo tinha frequência semanal, com encontros de 1 hora e 15 minutos e temas espontâneos, definidos a partir dos relatos dos participantes. Como resultado, a autora observou que a estruturação do grupo contribuiu para a melhora no vínculo entre família-instituição, sendo que o grupo adquiriu função de ponte entre ambos.

Campanário e Pinto (2006), em trabalho desenvolvido na Rede Municipal de Saúde de Belo Horizonte, destacam a importância do cuidado ao agente materno. Trata-se de um restabelecimento do laço com o bebê, de forma que as intervenções se voltam para a criança, para aquele que exerce a função materna e para a relação estabelecida entre ambos.

Batistelli et al. (2014) abordam o desgaste que os pais apresentam ao chegarem à clínica após consulta por diversos especialistas, depois de terem recebido o diagnóstico de TEA da criança. Posteriormente a esse longo caminho percorrido, a Psicanálise pode ofertar o necessário espaço para que esses pais pensem e possam falar.

Almeida e Neves (2017), a partir de caso clínico de uma criança de três anos e sua família, apontam para a complexidade envolvida nos enredamentos do grupo familiar. O atendimento psicanalítico permite elaborações que produzem um novo encontro para pai, mãe e criança. A "melhora" da criança, que aparece nas falas de mãe e professoras, sugere efeitos produzidos pelo trabalho analítico, que possibilitou que essa criança ocupasse outro lugar que não o do "autista", como inicialmente relatado.

O caso de Tobias, criança de três anos com sinais de autismo, e seus pais também evidencia as oportunidades psicanalíticas nos atendimentos conjuntos (Untoiglich, 2013). Com o diagnóstico de TEA, os pais chegam para a consulta esgotados e destituídos do saber sobre seu filho. Como é comumente observado (Telles, 2011; Almeida & Neves, 2017), ao perguntar sobre o filho, a analista obtém como resposta dos pais todas as características constantes do diagnóstico de autismo. A autora denuncia os riscos do diagnóstico precoce e relata, a partir de cenas clínicas, que o atendimento analítico propiciou o surgimento de movimentos constituintes e inaugurais para Tobias, que, dependendo da intervenção recebida, poderia ter sua organização subjetiva dificultada.

A atenção psicanalítica para a família e suas ressonâncias no atendimento da criança é abordada no caso de Ícaro (Almeida, 2017). O menino, de três anos, é levado pela mãe para atendimento após o receber o diagnóstico de TEA. A partir dos relatos de 21 sessões, compostas por Ícaro e os membros familiares, observa-se como o diagnóstico estabelece uma função psíquica para a família. A escuta psicanalítica permite que o grupo familiar possa acessar o sofrimento advindo de eventos traumáticos, que os paralisaram, sendo o diagnóstico o amparo possível frente às agruras do inesperado. À medida que esses enredamentos são desvelados, o ambiente torna-se mais seguro para Ícaro poder se desenvolver, descolando-se do diagnóstico.

De acordo com Fávero-Nunes e Gomes (2010), a consulta terapêutica, tal como proposta na teoria winnicotiana, consiste em modalidade importante para o atendimento aos pais de crianças com diagnóstico de autismo. Por meio da pesquisa das autoras, discute-se como as consultas terapêuticas configuraram um setting de holding aos pais, para que reflitam sobre os sentimentos oriundos da nomeação diagnóstica do filho. Por essa modalidade, percebe-se um fortalecimento da parentalidade, pelo espaço de continência e criatividade.

A perspectiva winnicotiana também está presente no caso de Vitor (Araújo, 2004). O menino, de três anos e dez meses, foi atendido em uma instituição pública pela pesquisadora e compareceu para atendimento com a mãe, que tinha queixas principalmente relacionadas ao isolamento, à agressividade e a comportamentos diversos, como não gostar de brinquedos, ficar olhando para o nada e rir, bagunçar tudo, não entender o que é certo e errado, entre outros. A construção do caso perpassa a compreensão do menino em relação à família, sendo que os pais também receberam atendimento e contaram que passaram a entender melhor o menino, que participava de mais atividades e tinha melhorado o contato com outras pessoas. Destaca-se que, para o acontecer da criança, é fundamental a sustentação emocional dos pais, que são imprescindíveis para a continuidade desse acontecer.

Leiras, Batistelli & Antunes (2014) apresentam um caso clínico que retoma a temática da sensorialidade e o fato de a simbolização constituir-se quando o outro é fonte de emoções e afetos variados. No espaço terapêutico, essas emoções e afetos são vivenciados com predominância do prazer da presença, que proporciona uma continuidade externa e interna para sustentar esses processos. Dessa forma, é necessário que o analista possibilite e sustente esse encontro prazeroso também entre os pais e sua criança.

Assim, o TEA, tal como proposto pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), trata-se de um transtorno que engloba déficits na sociabilidade e na comunicação e interesses restritos ou repetitivos (APA, 2013). No entanto, esses critérios são insuficientes para abranger as particularidades da experiência humana e suas relações com os enredamentos afetivos específicos de cada família.

Para aqueles que tendem a ver os pacientes psiquiátricos não como portadores de doença, mas como vítimas da batalha humana pelo desenvolvimento, pela adaptação e pela vida, a tarefa torna-se infinitamente mais complexa. (Winnicott, 1959/2011, p.106)

Nessa lógica, a perspectiva em que se compreende o sintoma subsidia a intervenção a ser desenvolvida. Em uma investigação etnográfica, López e Sarti (2013) acompanharam atendimentos clínicos destinados a crianças autistas em duas instituições públicas: a primeira baseada na abordagem comportamental e a segunda amparada pela psicanálise. As autoras descrevem que, na primeira instituição, o objetivo central é a funcionalidade, para que a criança possa se adequar e parecer o mais normal possível. Já na segunda instituição, a criança com diagnóstico de autismo é considerada em sua singularidade, de forma que o tratamento visa a propiciar condições para que ela possa se constituir, ao tentar fazer contato com ela e ao promover apoio psicológico aos familiares.

Sobre o observado na investigação de López e Sarti (2013), é importante retomar Alfredo Jerusalinsky (2015), que afirma que se faz necessário pensar na subjetividade. Afinal, sem considerar o sujeito, estamos inclinados a tomar os seres humanos como meros instrumentos de um projeto de produção do ideal (p. 270). Crespin (2015) também destaca que as intervenções psicanalíticas, ao abordarem o sujeito e privilegiarem o singular, afastam-se de qualquer lógica de normatização.

Diante dessas evidências, entende-se que os pais e sua implicação ocupam papel primordial no atendimento dos filhos (Delion, 2015). É por essa compreensão que se aporta a intervenção que crê que "há algo de novo, de único, de incomparável que deve ser ajudado a viver, a despertar, a apoiar" (Dolto, 1985/2005, p. 325). O atendimento ampliado à família organiza-se à medida que a psicanálise reconhece e leva em conta o sofrimento de todos os sujeitos do grupo.

 

Considerações finais

A partir da conjuntura contemporânea que se formou entre a Psicanálise e as famílias de crianças diagnosticadas com TEA, é fundamental discutir e sustentar o que essa forma de tratamento pode reverberar para as crianças e seus pais. As metáforas da frieza materna como etiologia constituem-se como um evento traumático nessa relação, mas a história da Psicanálise aponta que a consideração ao sintoma enquanto produção inconsciente do sujeito ampara intervenções que se afastam de qualquer traço generalizante, de normatização e/ou determinista, atentando-se para o sujeito e seu entorno.

Neste trabalho, recorreu-se a diversos teóricos psicanalíticos para investigar a abordagem adotada referente à atuação com famílias na clínica psicanalítica de crianças. Essas teorias explicitam a relevância que há nos vínculos iniciais estabelecidos entre o casal parental e seu bebê, assim como a consideração com os pais na ocasião de um sintoma expresso pela criança. No caso de TEA, especificamente, isso se torna ainda mais presente por tratar-se de um diagnóstico atribuído em momento muito precoce e que tem tentado contemplar todas as estranhezas relatadas na primeira infância.

A palavra "estranho", comumente utilizada por pais e mães de crianças com diagnóstico de autismo, foi propulsor para discutir a clínica psicanalítica como um espaço de acolhimento para as famílias. Entende-se que o sofrimento e a angústia gerada a partir dos estranhamentos em relação à criança, que impedem que aspectos narcísicos sejam reconhecidos, encontram nas intervenções alicerçadas na Psicanálise o acolhimento que permitirá a superação da paralisia, que é, muitas vezes, advinda dos diagnósticos de autismo. Nesse sentido, a postura psicanalítica empenha-se para a travessia do "estranho", para que seja possível novamente sonhar com a criança.

A partir de buscas em bases de dados, reuniram-se relatos de intervenções psicanalíticas com famílias de crianças diagnosticadas com TEA, tendo sido observados atendimentos grupais, institucionais, na modalidade de consulta terapêutica e casos clínicos. Destaca-se que a inclusão dos pais e mães possibilitou identificar angústias e enredamentos familiares específicos imbricados no diagnóstico e nos sintomas da criança.

Neste artigo, entende-se que a família se constitui em ponto nodal da clínica psicanalítica de crianças com diagnóstico de TEA. Denota-se que o cuidado para com a família está presente nos autores clássicos que guiam as intervenções psicanalíticas. Ainda, discutem-se diversos artigos provenientes de publicações científicas atuais que fornecem evidências dos efeitos que os atendimentos psicanalíticos produzem em crianças diagnosticadas com TEA e suas famílias. Apesar de terem sido consultadas apenas algumas bases de dados, considera-se que elas são as principais que indexam a produção psicológica brasileira.

Ressalta-se, também, que não se encontrou nenhuma revisão anterior com o escopo do presente estudo. Tendo em vista a importância de revisões para a produção científica, pode-se sublinhar que esta pesquisa avança ao compilar dados sobre o tema aqui tratado e reunir evidências dos efeitos produzidos a partir dos atendimentos psicanalíticos. Espera-se que, ao reunir esses dados, esta revisão possa colaborar para a superação da falácia de que não existem evidências sobre os atendimentos para autismo referenciados na Psicanálise, bem como demonstrar as possibilidades dessas intervenções para as famílias.

No atendimento clínico com famílias de crianças diagnosticadas com autismo, é fundamental que se faça uma travessia sobre todas as estranhezas em direção a uma região de afetos suficientemente familiares. Só após essa travessia pode-se conhecer novos continentes e fundar relações entre os pais e suas crianças em que seja possível reconhecer algo de si no infante, produzindo novas perspectivas e identificações. Dessa forma, não se cristaliza os estranhamentos da criança na colagem a uma patologia, mas se assume sua singularidade ao mesmo tempo em que se proporciona a ela um espaço próprio na família.

 

Referências

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Recebido em julho de 2019 – Aceito em julho de 2020.

 

 

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