Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Revista da SBPH
versión impresa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2004
ARTIGOS
Câncer na adolescência: um estudo com instrumento projetivo
Cancer in the adolescence: an estudy with projective instrument
Cláudio Garcia CapitãoI, 1; Maria Amélia G. Zampronha2
I Universidade São Francisco
RESUMO
O presente estudo investigou a dinâmica psíquica de oito adolescentes portadores de câncer, quatro meninos e quatro meninas, com idades entre doze e dezesseis anos, em uma instituição que hospeda jovens e acompanhantes ao longo do tratamento. O instrumento utilizado foi o Questionário Desiderativo. Constatou-se exacerbação do narcisismo e indicadores de indefinição sexual na maioria dos protocolos, assim como referências à morte representada como algo temido. O adoecimento foi invariavelmente representado como aspecto rejeitado e desvalorizado. Há em todos os protocolos indicadores de desvalorização do eu, conseqüência de aspectos negativos internalizados referentes à doença. No esquema corporal, encontraram-se condensados aspectos do eu vulneráveis e frágeis frente a possíveis situações sentidas como ameaças. Dentre os mecanismos de defesa observados, predominam a projeção, cisão e, em menor intensidade, a negação. Constatou-se na maioria dos participantes um superego pouco estruturado, com maior rigidez e exigência. Algumas características no desenvolvimento do processo de adolescência estão sofrendo complicações nos adolescentes pesquisados.
Palavras-chave: Adolescência, Câncer, Questionário desiderativo.
ABSTRACT
The present study has investigated the psychic dynamics of eight youngsters-four boys and four girls, aged 12 to 16 cancer pacients, hosted with their tutors in an institution for treatment of adolescents.The instrument used for investigation was the Desiderative Questionnaire. There was presence of narcisism exacerbation as well as signs of sexual indefinition on most of the protocols, along with references to death as something to fear. The process of disease acquisition was fully presented as a rejected and devaluated aspect. There were in all protocols signs of self-devaluation, as consequence of internalized negative aspects related to the illness. As for the body scheme, it has been found condensed aspects of the self, vulnerable and fragile when facing possible situations felt as a threat. Among the observed defense mechanisms, there was a prevail on projection, split and, although in lesser intensity, negation as well. It was noticed too in the majority of the participants the presence of an under-structured superego, with more rigidity and requirement level. Some characteristics in the development of adolescence process were found to suffer complication in the youngsters of this group.
Keywords: Adolescence, Cancer, Desiderative questionnaire.
Introdução
A adolescência é uma fase de transformações intensa e profunda e envolve diferentes processos que integrados promovem avanço na maturação emocional. O processo da adolescência envolve tanto a dimensão física maturação quanto a psicológica. A maturação sexual que ocorre nesta fase relaciona-se diretamente com a mudança da personalidade, fazendo com que estas duas dimensões estejam interligadas. As mudanças físicas, principalmente o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, marcam o início da adolescência (Aberastury, 1983; Blos, 1985; Levisky, 1998; Souza, Costa & Lopes, 2002).
A passagem pela adolescência não se dá em ritmo constante, ocorrem progressões e retrocessos, e sua duração não é determinada pela passagem do tempo ou pela idade. Porém, há uma seqüência ordenada de desenvolvimento psicológico postulada Blos (1985, 1996): pré-adolescência, adolescência inicial, adolescência propriamente dita e adolescência final e pós-adolescência.
As características psicológicas, as manifestações comportamentais e a adaptação social do adolescente dependem da cultura e da sociedade em que o processo do adolescer acontece, porém alguns aspectos são universais. Ao mesmo tempo, estas características variam dentro de uma mesma sociedade quando são considerandos aspectos socioeconômicos (Levisky, 1998).
Ao adolescer, o jovem passa também por um rompimento interior com o passado, que abala profundamente sua vida psíquica, ao mesmo tempo em que lhe oferece novos horizontes, esperanças e medos. Conflitos interiores chegam ao auge e os resultados são determinados apenas ao final da adolescência. A evolução posterior determinará se se trataram de fenômenos patológicos ou de um aumento das dificuldades pertinentes a esta fase. Ressalta-se que esta é uma fase do desenvolvimento em que comumente mostram-se aspectos que parecem patológicos. É a chamada síndrome da adolescência normal (Aberastury,1983; Blos, 1985; Knobel, 1985; Levisky, 1998).
Flavell (1988) afirma que o adolescente começa a assumir papéis adultos na medida em que começa a refletir sobre suas possibilidades futuras. É vivenciando e solucionando conflitos, bem como pelo desenvolvimento físico e cognitivo, o jovem avança na busca e constituição de sua identidade e se aproxima cada vez mais do adulto.
Como ficam essas questões pertinentes ao desenvolvimento para um adolescente que adoece? A maneira como a enfermidade é vivenciada, depende de inúmeros fatores, inclusive se a doença é crônica.
Uma doença crônica pode deixar de sê-la quando são descobertos meios para um tratamento eficaz. Devido aos avanços da medicina, aos progressos diagnósticos e terapêuticos e às imunizações, tem-se, atualmente, aumento no número de idosos e de portadores de tumores e doenças crônicas (Barbosa, Aguillar & Boemer,1999; Kübler-Ross, 2000; Rey, 1999; Tetelbom & cols., 1993).
Outro fator que influencia no modo como a enfermidade é vivenciada é a própria subjetividade daquele que adoece. A doença faz parte da história de vida do sujeito, logo é preciso compreender o seu significado nessa história. A doença tem seu ciclo, que é influenciado pelos sentimentos e significados da enfermidade para o enfermo. Representa uma ruptura na continuidade existencial e faz com que a atenção e preocupações mais imediatas do enfermo voltem-se para seu estado corporal, exacerbando o narcisismo. (Freud, 1996; Romano, 1994).
Com a enfermidade, a imagem corporal é afetada também, o sujeito não se vê mais como antes, é possível até que se veja como sendo a própria doença, como se a doença o possuísse, portanto, há uma perda na auto-estima. Tetelbom e cols. (1993) afirmam que adolescentes entre dez e quinze anos se preocupam com o quanto a doença os ameaça e os afeta fisicamente tornando-os menos atraentes e o quanto isso afeta, por sua vez, seus relacionamentos interpessoais. A doença é ainda uma ruptura na sua história de vida e é preciso passar por várias mudanças e adaptações, algumas restrições são feitas e sua vontade é tolhida pelas determinações do tratamento.
Em seu trabalho com pacientes terminais, Kübler-Ross (2000) constatou que diversos pacientes reagem diferentemente à noticia e ao fato de terem uma doença fatal, dependendo de sua personalidade e estilo de vida pregressos. A autora definiu cinco estágios, negação, revolta, barganha, depressão e aceitação que correspondem a maneira como os pacientes percebem e lidam com sua doença e possibilidade de morte. Estes estágios não são necessariamente sucessivos e nem todos os enfermos passam por todos eles.
As manifestações somática e psíquica da doença mudam para cada pessoa e mudam na mesma pessoa em diferentes momentos. Cada pessoa vivencia e enfrenta a sua doença de maneira diferente, de acordo com a personalidade, história de vida, a capacidade de tolerância à frustração, as vantagens e desvantagens do estar doente, o relacionamento com os outros. Para a formação de uma opinião a cerca da própria enfermidade, fazem parte os seguintes elementos: a noção de doença que o paciente possui, sua idéia de cura ou melhora e o papel do médico em seu imaginário. Alguns pacientes crônicos lidam melhor com a doença, procuram se informar a respeito, sentem-se motivados para o tratamento, fazem mudanças na vida para se adaptar. Por outro lado, existem pacientes com dificuldades em aderir ao tratamento (Botega, 2002; Pereira, 1995; Tetelbom e cols., 1993).
A dificuldade de adesão ao tratamento é mais comum entre pacientes crônicos. Botega (2002), por exemplo, enumera alguns fatores relacionados a esta dificuldade, tais como: compreensão errônea da enfermidade, tratamento ou instruções; falta de recursos para seguir o tratamento; o tratamento tem efeitos colaterais indesejáveis, resultados em longo prazo, custo elevado; a doença é assintomática e não causa muito incômodo, o médico é distante, inacessível, não informa.
Kovács (1992) afirma que cognitivamente o adolescente pode compreender a morte e suas características essenciais de universalidade e irreversibilidade, pode construir hipóteses e discutir a respeito. Já emocionalmente, a morte não está tão próxima assim. A adolescência é um período em que o indivíduo está no auge da vida, voltado para a construção do mundo e empreendimentos para o futuro, portanto, há pouco espaço para pensar na morte.
Numa situação de doença, o ser tem a sua existência ameaçada. Há uma quebra em sua continuidade, seu futuro se torna incerto e a possibilidade de morte mais presente. O medo é uma reação comum do enfermo frente a essa ameaça. A intensidade do medo varia de acordo com o nível de conhecimento a respeito da ameaça e com a possibilidade de combatê-la. O contato direto com a morte pode gerar comprometimentos de ordem afetivo-emocional, na medida em que autoconsevação, auto-estima e segurança são ameaçados. (Kovács, 1987).
Para Shiller (2000), uma célula deixa de desempenhar suas funções normais, perde marcas que a identificavam com determinado órgão e torna-se capaz de se transformar em qualquer tecido. Esta célula começa a se dividir e então nasce um aglomerado de células entranhas com acelerada capacidade de multiplicação. Algumas vezes, essas células se destacam deste aglomerado e caem na corrente sangüínea ou no sistema de circulação da linfa e começam a se reproduzir em outro local. Não fosse essa possibilidade de migração da doença, a maioria dos tipos de câncer seria curável.
No Brasil, o câncer é, atualmente, a segunda causa de morte por doença. Em 2000, as neoplasias foram responsáveis por 12,73% dos 946.392 óbitos registrados, sendo 53,97% destes óbitos ocorridos entre homens e 46,01 entre as mulheres. Verifica-se que, desde 1970 as taxas de cura dos tumores da infância têm aumentado. Atualmente, crianças e jovens com leucemia linfática aguda curam-se em 70% a 80% dos casos. Paralelamente, tem-se observado um aumento das taxas de incidência de tumores da infância, principalmente da leucemia, tumores do sistema nervoso central, linfomas não de Hodgkin, tumor de Wilms e outros tumores renais. Supostamente, a criança tem mais anos a perder, ou a ganhar, uma vez que a sua expectativa de vida é maior do que a do adulto. Atualmente, as crianças com câncer só não têm um maior índice de anos de vida ganhos do que as mulheres com câncer de mama. (Instituto Nacional de Câncer, 2003).
O câncer é uma doença familiar. Paciente e família interagem em suas emoções e mecanismos em relação à doença. Tal diagnóstico é sempre vivido como uma catástrofe, mas é ainda mais arrasador quando atinge um jovem. É como se existisse um momento certo para que a doença e a morte ocorressem e esse momento, certamente, não seria a adolescência ou a infância, quando existem tantos planos e expectativas para o futuro.(Rona &Vargas, 1994; Torres, 1999).
Os sintomas mais comuns nos adolescentes que sofrem de câncer são os sintomas depressivos, enquanto em crianças menores são os sintomas de ansiedade. Isso é explicado por uma série de fatores como o desenvolvimento cognitivo do adolescente que permite que ele tenha maior consciência do significado de sua enfermidade e de seu prognóstico, bem como da possibilidade de morrer, a alteração da imagem corporal numa época em que a auto-imagem tem grande importância para o jovem em desenvolvimento, o que ocasiona rebaixamento da auto-estima, a insegurança em relação a seu futuro, que envolve o trabalho, a construção de uma família, ter filhos e a preocupação de que estes sejam saudáveis, e, finalmente, as dúvidas sobre a possibilidade de superar a doença sem seqüelas e assim dar continuidade a seu projeto de vida (Rona & Vargas, 1994).
Segundo Torres (1999), temas comuns entre adolescente com câncer são: preocupação com o self, integridade, com o relacionamento com os outros e com contato físico. Reações psicológicas freqüentes são a ansiedade, medo, tristeza, luto, depressão, raiva e grande dificuldade em se adaptar ao hospital nestes pacientes estressados por conta da doença e do tratamento e impossibilitados de realizar tarefas próprias de sua etapa de vida. Certos doentes, atingidos em sua auto-estima sentem culpa, medo e inveja das pessoas sãs. Esses sentimentos podem atingir tamanha proporção tornando-se difíceis de serem suportados e gerando insatisfação permanente, irritabilidade e hostilidade.
Partindo dos pressupostos sobre a adolescência, esta pesquisa objetivou investigar a dinâmica psíquica em adolescentes portadores de câncer.
MÉTODO
Instrumento:
O instrumento utilizado foi o Questionário Desiderativo. Este é composto por seis perguntas que fazem com que o sujeito, de forma simbólica, se depare com a possibilidade de morte.
Procedimento:
Os adolescentes convidados a participar do estudo foram indicados pela psicóloga da instituição, que autorizou a pesquisa e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A aplicação foi realizada mediante autorização do responsável e concordância do jovem em participar da pesquisa, e após os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido terem sido assinados pelos pais. As aplicações foram individuais e durou cerca de vinte minutos, cada uma delas.
As aplicações foram gravadas, transcritas e analisadas a partir do referencial psicanalítico, de acordo com o proposto por Cabrera (2000) e Nijamkin e Braude (2000).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Todos os participantes responderam adequadamente ao questionário, porém apresentaram dificuldades, sendo necessário o uso de indução em algumas respostas. A minoria respondeu com símbolos positivos nas catexias negativas, outros apresentaram confusão no raciocínio e outros demonstraram maior insegurança para responder.
Todos apresentaram falhas nas defesas instrumentais, isto é, nas operações mentais necessárias para responder ao questionário, que são a dissociação, identificação projetiva e racionalização. Não se observou, nas respostas, diferenças significativas entre os gêneros.
Tais falhas representam dificuldade para distinguir entre fantasia e realidade e a sensação de que as perguntas eram um ataque à sua integridade; ego não diferenciado, que pode não reconhecer situações geradoras de ansiedade e não saber que recursos utilizar para se defender; dificuldades na capacidade de representação, ou seja, perda de distância entre símbolo e simbolizado; e dificuldades em relação à sustentação lógico-formal, o que é um indicador de fraqueza de ego. Dentre os mecanismos, houve menos falhas na racionalização.
Em apenas um dos participantes, do gênero masculino, ocorreu uma falha indicadora de uma situação mais patológica, onde o participante escolheu símbolos desagregados nos quais não há delimitação clara entre eu e não-eu, si próprio e o meio exterior, indicando um ego mais frágil. Um provável causador de falhas nas respostas é a angústia, elemento presente em todos os protocolos, predominantemente paranóide.( Nijamkin & Braude, 2000).
Rona e Vargas (1994) apontam a negação como principal mecanismo de defesa de adolescentes com câncer, além deste, os principais são a raiva, compensação e intelectualização. Os adolescentes tendem à regressão, de acordo com Blos (1996), para a reestruturação psíquica, fazendo uso de mecanismos mais primitivos; além disso, o aumento da tensão pulsional na adolescência coloca mecanismos de defesa e adaptação em ação. Entre os protocolos, os principais mecanismos são a projeção, a cisão e a negação. Outro mecanismo também presente em menor freqüência é a compensação.
A seqüência da escolha de reinos nas catexias positivas indica, em três participantes, ego capaz de resgatar aspectos vitais para preservar sua integridade. No restante dos participantes, verifica-se que a estratégia do ego diante de perigos é desvitalizar-se e apelar para atitudes mais passivas e com menor carga afetiva. As catexias negativas indicam os principais conflitos, que estão relacionados à morte, o adoecimento, desejo de cura, sentir-se vulnerável e frágil, ameaça, aspectos internos percebidos como negativos e rejeitados, auto-imagem, sofrimento.( Kovácks, 1987,1992; Kübler-Ross, 2000; Rona & Vargas, 1994).
A partir da análise dos símbolos pode-se observar uma variedade de conteúdos, tais como angústia persecutória, tristeza, dor, sofrimento, temor à morte repentina, desejo de contato com o outro, de ser importante. Os conteúdos mais freqüentes são referências à morte; à doença; fragilidade, vulnerabilidade e sensação de impotência frente a situações sentidas como ameaças; aspectos negativos internalizados; baixa auto-estima; desejo de conter aspectos positivos; símbolos fálicos e desejo de cura.
Durante o processo da adolescência conflitos edípicos são reavivados, há o desinvestimento das figuras parentais e uma volta da libido para o próprio ego, caracterizando a fase narcísica transitória até que novos objetos sejam alvo do investimento libidinal. Dentre os participantes deste estudo, a maioria apresenta impulsos libidinais desagregados. A libido é predominantemente narcisista, indicando desequilíbrio na distribuição libidinal entre o eu e os objetos. (Blos, 1985, Freud, 1996, Knobel, 1985, Levisky, 1998).
Os participantes não apresentam identidade sexual definida, evidenciando uma posição bissexual predominante. Dois participantes apresentam indicadores de abandono da bissexualidade e maior aceitação da identidade heterossexual. A bissexualidade é uma das características da adolescência, principalmente do início desta fase, e é conseqüência da percepção um pouco vaga do corpo (Blos, 1985; Knobel, 1985; Levisky, 1998).
De acordo com Blos (1995), por abranger também representações objetais e seus equivalentes morais internos, que residem no superego, o desinvestimento libidinal acaba por interferir na eficiência do superego. Os participantes representam no ideal de ego desejos de um corpo saudável e atraente. Apresentam, em sua maioria, superego pouco estruturado, exigente e crítico. As fantasias de morte estão presentes em todos os protocolos. A morte é representada como aspecto rejeitado e temido. Os mecanismos de defesa mais utilizados frente a isso são a projeção e a cisão.
Há indicadores de preocupação com a preservação do eu e ausência de objetos de vínculo na maioria dos protocolos. Quando há objetos de vínculo, há a preocupação com a preservação do objeto bem como do eu. É comum que adolescentes portadores de câncer tenham sentimentos dolorosos e de isolamento. Torres (1999) afirma ser comum o desejo de contato com o outro, porém há, ao mesmo tempo, o temor de testar suas amizades com a informação do diagnóstico, temor este que pode ser entendido pela freqüência com que amigos se afastam ao tomarem conhecimento do diagnóstico e, principalmente com o agravamento da doença e aproximação da morte.
Os aspectos dos quais os participantes se defendem, se referem principalmente à auto-imagem negativa e a possibilidade de morte. Os que rejeitam estão relacionados à doença, a sensação de vulnerabilidade e fragilidade, ao sofrimento e à percepção de características negativas internalizadas. A maioria dos adolescentes se preocupa, em algum momento do desenvolvimento, com a normalidade de sua condição física, as mudanças corporais causam sensação de estranhamento (Aberastury, 1983; Knobel, 1985; Levisky, 1998). Esta preocupação é acentuada quando, de fato, o jovem possui alguma doença. Numa situação de doença, a imagem corporal é afetada e é comum entre os adolescentes a preocupação com o quanto a enfermidade os ameaça e os afeta fisicamente tornando-os menos atraentes e o quanto isso afeta, seus relacionamentos interpessoais. Com isso, surgem sentimentos de insegurança em relação a auto-imagem (Rona & Vargas, 1994; Tetelbom e cols., 1993; Torres, 1999).
Considera-se que todos os participantes apresentam conflitos. Conflitos evolutivos por atravessarem uma fase do desenvolvimento com tarefas vitais a serem cumpridas; conflitos acidentais por vivenciarem o adoecimento e conflitos intrapsíquicos relacionados aos dois anteriores. O diagnóstico e o tratamento interferem nas principais tarefas da adolescência, tais como: ajustamento a maturação física e sexual, aprendizagem para manipular relações heterossexuais, obter a independência econômica e psicológica em relação aos pais, planejar o seu futuro educacional e profissional (Rona & Vargas, 1994; Torres, 1999).
Considerações Finais
O objetivo da pesquisa foi o de investigar a dinâmica psíquica de adolescentes portadores de câncer. Além dos aspectos referentes ao próprio processo adolescente, o instrumento utilizado, o Questionário Desiderativo, mostrou-se bastante sensível em fornecer informação sobre o funcionamento do ego e das suas relações com as outras estruturas psíquicas.
A adolescência pode ser considerada como uma fase evolutiva durante a qual a pessoa estabelece a sua identidade adulta, um momento importante que encerra todo um processo de maturidade. Assim, na adolescência é que vai ocorrer o afastamento definitivo dos objetos de amor infantis e, para isso, os desejos edípicos e seus conflitos concomitantes voltam a surgir. Esse rompimento interior com o passado abala a vida emocional do adolescente até seu âmago, abrindo horizontes novos, fazendo surgir esperanças, mas também, angústia e medo.
Esse afastamento dos pais como objeto de amor, ou seja, a retirada da catexia objetal leva a uma supervalorização do eu, a um aumento da autopercepção às custas da prova de realidade, a uma extrema sensibilidade e auto-absorção e, geralmente à centralização em si mesmo e ao auto-engrandecimento, isso que chamamos de supervalorização narcísica, que leva o adolescente a ver seus pais de uma outra perspectiva, agora não mais tão valorizada quanto na primeira infância. O adolescente sofre uma perda real na renúncia a seus pais edípicos e experimenta um vazio interior, sofrimento, tristeza, que são partes de seu luto. O trabalho de luto pelos pais da infância, pelo corpo infantil e pela identidade infantil, é uma das tarefas psicológicas mais importantes nesse período, pois a solução do processo de luto é essencial para a liberação dos objetos perdidos, já que o declínio do complexo de Édipo é um processo lento e que chega até o final da fase adolescente. Parece-nos, então, que tais tarefas do desenvolvimento normal da adolescência estão sofrendo algumas complicações nos adolescentes pesquisados.
Mesmo tendo um número reduzido de participantes, o estudo possibilitou vislumbrar um pouco da dinâmica do adolescente no seu adoecimento, e de como esse processo influencia nessa importante etapa do desenvolvimento psicológico.
REFERÊNCIAS
Aberastury, A. (1983). Adolescência. Em A. Aberastury & Cols.(Orgs.). Adolescência. (pp. 15-32). Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Barbosa, J. C., Aguillar, O. M.& Boemer, M. R. (1999). O significado de conviver com a insuficiência renal crônica. Revista Brasileira de Enfermagem. 52 (2): 293-302. [ Links ]
Blos, P. (1985). Adolescência: uma interpretação psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Blos, P. (1996). Transição Adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Botega, N. J. (Org.). (2002). Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed Editora. [ Links ]
Cabrera, A. M. (2000).Questionário Desiderativo.São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Flavell, J. H. (1988). A psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. [ Links ]
Freud, S. (1996). Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. Obras Completas, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1914). [ Links ]
INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER www.inca.gov.br acessado em novembro de 2003. [ Links ]
Knobel, M. (1985) A Síndrome da adolescência normal. Em: Aberastury, A. & Knobel, M. 1985.(Orgs.). Adolescência Normal. (pp. 24-62).Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Kovács, M. J .(1987). O medo da morte: uma abordagem multidimensional. Boletim de Piscologia. [S.I.] v. 37, n º 87, p. 58-62. [ Links ]
Kovács, M. J. (1992). Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Kübler-Ross, E. (2000). Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Levisky, D. L. (1998). Adolescência reflexões psicanalíticas. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Nijamkin, G. C.& Braude, M. G. (2000). O Questionário Desiderativo. São Paulo: Vetor. [ Links ]
Pereira, A. A. M. (1995). Cardiopata Crônico: Alguns Aspectos Psicológicos Relacionados às Miocardiopatias. Em: Oliveira, M. de F. P.& Ismael, S. M. C. (Orgs.). Rumos da Psicologia Hospitalar em Cardiologia. (pp. 215 223).São Paulo: Papirus. [ Links ]
Rey, L.(1999) Dicionário de termos técnicos de medicina e saúde. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. [ Links ]
Romano, B.W. (1994). A Prática da Psicologia nos Hospitais. São Paulo: Pioneira. [ Links ]
Rona, E. & Vargas, L.(1994). El impacto psicológico del cáncer en el niño y adolescente. Revista Chilena de Pediatria. v. 65, n º 1, p. 48-55. [ Links ]
Shiller, P.(2000). A vertigem da imortalidade segredos, doenças. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Souza, R.P. de., Costa, M.C.O. & Lopes, C.P.A.(2002). Comportamento Sexual. Em: Costa, M.C.O. & Souza, R.P. de.(Orgs.). Adolescência: Aspectos Clínicos e Psicossociais.(pp. 202 210). Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Tetelbom, M. e cols.. (1993). A criança com doença crônica e sua família: importância da avaliação psicossocial. Jornal de pediatria, 69, p. 5-11. [ Links ]
Torres, W.C. (1999). A criança diante da morte - desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Endereço para correspondência
Cláudio Garcia Capitão
Rua Cajaíba, 123, cj. 33 - Perdizes
05025-000 São Paulo-SP
Tel.: +55-11 3672-1912 / Cel.: +55-11 9943-4527
E-mail: cgcapitao@uol.com.br
Maria Amélia Güllnitz Zampronha
Rua Viaza, 834 Jardim Aeroporto
04633-051 São Paulo-SP
Tel.: +55-11 5565-4183 / Cel.: +55-11 9115-0550
E-mail: amelia_zampronha@yahoo.com.br
1 Professor do curso de Mestrado Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco, Psicólogo clínico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
2 Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie