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Revista da SBPH
versión impresa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.8 n.2 Rio de Janeiro dic. 2005
ARTIGOS
Obesidade infantil e prevenção de cardiopatia isquêmica: contribuições da intervenção psicológica em um ambulatório de referência no sul do Brasil1
Childhood obesity and ischemic heart disease prevention: contributions of psychological intervention
Renata Lisbôa Machado2; Lucia Campos Pellanda3; Evelyn R. S. Vigueras4; Patricia Pereira Ruschel5
Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Fundação Universitária de Cardiologia
RESUMO
A Cardiopatia Isquêmica é tradicionalmente considerada uma doença de adultos, resultado de uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Porém, este processo começa muito cedo, o que foi demonstrado inicialmente em estudos nos quais se observou o início da formação de lesões ateroscleróticas em autópsias de crianças e adultos jovens. O objetivo do presente estudo consiste em descrever as contribuições da intervenção psicológica no tratamento e prevenção dos fatores de risco da cardiopatia isquêmica na infância, destacando-se a obesidade infantil como um desses fatores. Os atendimentos psicológicos acontecem individualmente e os pacientes são acompanhados por suas mães na primeira consulta. Os resultados mais importantes podem ser visualizados na melhor capacidade de expressão do pensamento autônomo dos pacientes, de nomeação de percepções, crenças e valores e da produção criativa de novas experiências e da busca pelo fortalecimento da auto-estima. Conclui-se que para prevenir e tratar os fatores de risco é fundamental tratar as famílias e criar estratégias que as incluam.
Palavras-chave: Prevenção, Cardiopatia isquêmica, Intervenção psicológica, Obesidade infantil.
ABSTRACT
Ischemic Heart Disease is usually considered an adults illness which results from a combination of genetic and environmental factors. However, this process has an early beginning which has been seen in studies, where it could be noticed the formation of atherosclerotic lesions in the autopsy of some children and young adults. This study aims to report the contribution of psychological intervention in prevention and treatment of high risk factors in Ischemic Heart Disease in childhood, mainly the childhood obesity factor. The patients have individual surgery and are accompanied by their mothers at the first one. This meeting evaluates issues regarding family configuration and its natural/internal bonds. The most important outcomes can be noticed in patients abilities to express better their autonomous thinking, label perceptions, beliefs and values, and overall, the ability to speak, make new experiences creatively, and the capacity for searching enhancing self-esteem. This way, it is fundamental to put the families through some therapy and create inclusive strategies in order to avoid and deal with risk factors.
Keywords: Prevention, Ischemic heart disease, Psychological intervention, Childhood obesity.
1. INTRODUÇÃO
A Cardiopatia Isquêmica é tradicionalmente considerada uma doença de adultos, resultado de uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Estes fatores ambientais incluiriam o estilo de vida durante a fase adulta, compreendendo as práticas alimentares inadequadas, a ausência de atividade física e o tabagismo.
No entanto, este processo começa muito cedo, o que foi demonstrado inicialmente em estudos nos quais se observou o início da formação de lesões ateroscleróticas em autópsias de crianças e adultos jovens. Até mesmo as condições de vida intra-uterina podem estar associadas a este processo (Pellanda, 2002).
Além disso, observa-se uma mudança do perfil epidemiológico no Brasil, em que há uma diminuição das doenças infecto-contagiosas. Em contrapartida, há um aumento de doenças crônicas, as quais são caras e difíceis de tratar, como é o caso das doenças cardiovasculares. Todos estes aspectos, então, sinalizam para a importância de prevenir as doenças do adulto a fim de que não se instale no futuro uma epidemia (Data sus, 2005).
Desta forma, surge uma nova necessidade de intervenção na faixa etária pediátrica: a prevenção de doenças crônicas do adulto, incluindo a doença arterial coronariana. Esta afirmativa baseia-se no fato de que a prevalência dos fatores de risco tradicionais para cardiopatia isquêmica, como a obesidade, as dislipidemias e o sedentarismo, vem aumentando entre as crianças, ao mesmo tempo em que esta é a fase da vida na qual os hábitos de saúde estão em formação, em que intervenções preventivas teriam, potencialmente, um maior impacto.
Face ao exposto, o presente trabalho tem por objetivo descrever as contribuições da intervenção psicológica no tratamento e prevenção dos fatores de risco da cardiopatia isquêmica na infância, destacando-se a obesidade infantil como um desses fatores.
Além disso, pretende-se refletir sobre a participação da área da psicologia no ambulatório de cardiologia pediátrica preventiva, considerando os aspectos que sinalizam para a relevância do trabalho de uma equipe multiprofissional.
2. MÉTODO
O presente estudo foi realizado no ambulatório de referência em Cardiologia Pediátrica Preventiva do Instituto de Cardiologia do RS. Neste ambulatório, atendem-se os pacientes da comunidade com fatores de risco para doença aterosclerótica. As famílias dos pacientes apresentam baixos recursos financeiros. As crianças e os adolescentes atendidos estão incluídos no sistema de educação da cidade ou do estado e comprovam assiduidade no que diz respeito à freqüência escolar, pré-requisito essencial para participarem do Grupo.
No que se refere aos encaminhamentos, estes são feitos pelos postos de saúde da cidade de Porto Alegre, de acordo com as regras de funcionamento da rede básica de saúde do município, ao Instituto de Cardiologia. Acontecem também casos de pacientes que são encaminhados por profissionais da área da saúde que conhecem a ação desenvolvida neste ambulatório. A faixa etária dos pacientes varia entre 3 e 16 anos e eles residem, na sua maioria, em Porto Alegre e na região metropolitana, embora existam alguns que moram distantes da capital do RS.
Em se tratando dos critérios de inclusão, os mesmos contemplam preditores dos fatores de risco para cardiopatia isquêmica no estágio do desenvolvimento infantil como a obesidade na infância, a dislipidemia (alteração nos níveis de colesterol no sangue), o sedentarismo, Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), Diabetes Mellitus, bem como história familiar de doença aterosclerótica precoce.
A freqüência dos atendimentos é determinada pela equipe multiprofissional que avalia a adesão dos pacientes ao tratamento. Verificam-se os critérios de redução de peso, ou manutenção do mesmo, pela prática de exercícios físicos, ou manutenção do sedentarismo, pela aquisição de novas atitudes em relação à mudança de estilo de vida e pelas características do funcionamento familiar e comprometimento dos pais em relação aos seus filhos. De acordo com esses critérios, os pacientes são atendidos, variando a periodicidade das consultas e retornos.
Na primeira consulta os pacientes vêm acompanhados por seus familiares, sendo mais característico a presença da mãe. Eles são atendidos pela equipe médica, pela equipe de nutrição e pela equipe de educadores físicos e sempre que esses profissionais identificam algum aspecto relevante do ponto de vista psíquico - o que acontece com bastante freqüência - encaminham para a equipe da psicologia. As ações acontecem sempre de forma conjunta, preconizando a integração das intervenções, a fim de que os pacientes possam se beneficiar e adotar mudanças no que se refere a hábitos saudáveis de vida.
De acordo com os riscos e as necessidades, cada paciente recebe indicação para novos atendimentos com a equipe médica, com a equipe de nutricionistas e de educadores físicos. Conforme a evolução, as consultas são agendadas para um período mais longo, visto que alguns deles já estão aderindo ao tratamento e apresentando respostas positivas no que diz respeito às mudanças de estilo de vida.
No que concerne à equipe multiprofissional, participam deste ambulatório uma médica cardiologista pediátrica, uma médica do esporte, acadêmicos e doutorandos de medicina, uma educadora física, duas nutricionistas, uma psicóloga e uma psicóloga residente. Os profissionais encontram-se uma vez por semana, onde são discutidos os casos e discutidas as intervenções.
Descrição do Atendimento Psicológico
Os atendimentos psicológicos são realizados individualmente com o paciente, que vem acompanhado por seu responsável na primeira consulta. Este é um critério também adotado pelas psicólogas para que as informações referentes à história de vida dos pacientes possa ser o mais fidedigna possível. Faz-se uma anamnese colhendo dados que estão estruturados num questionário elaborado pela equipe da psicologia e que traz questões referentes à identificação do paciente, à configuração familiar, aos fatos significativos da primeira infância, bem como aos estágios do ciclo vital em que acontecem eventos importantes. As perguntas feitas relacionam-se aos eventos mais significativos de fases do desenvolvimento infantil como a amamentação, o controle esfincteriano, o início do desenvolvimento da marcha e da linguagem, o ingresso na escola e a convivência com os amigos e com a família.
Embora no presente estudo se esteja abordando a obesidade infantil, faz-se necessário estabelecer algumas diferenças marcantes entre essas duas fases do desenvolvimento, como aparece nas respostas dadas pelas crianças e pelos adolescentes. Portanto, é interessante tecer neste momento uma consideração relevante.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), regido sob a Lei Federal nº 8069/1990, do ponto de vista jurídico, conforme Art. 2º, Título I, Das Disposições Preliminares, define-se criança como a pessoa com 12 anos de idade incompletos e adolescente como a pessoa com idade entre 12 e 18 anos. A necessidade de referir esta lei e de trazer tal definição se justifica, pois na medicina como área de conhecimento e de pesquisa, a obesidade infantil é classificada considerando tanto crianças como adolescentes, uma vez que este grupo de pacientes é público da especialidade pediátrica. Portanto, no presente estudo, estamos seguindo tal critério determinado pela pediatria e incluímos a obesidade infantil como uma patologia que também afeta a adolescência.
Feitas estas considerações, é relevante dizer que existem algumas particularidades que merecem ser destacadas, em se tratando das respostas dadas no momento da aplicação dos questionários da entrevista clínica inicial. Uma delas consiste no fato de que os pacientes com idade entre 3 e 7 anos apresentam maior dificuldade de pensarem de modo simbólico, pois se encontram numa fase do desenvolvimento que se caracteriza por um pensar mais concreto, no que diz respeito à forma como constroem seu raciocínio. Por esta razão, precisam da ajuda de suas mães, especificamente no que tange às respostas sobre os dados da anamnese.
Todavia, com relação aos adolescentes, há diferenças marcantes, pois eles conseguem responder questões importantes relacionadas com a auto-estima, com o juízo crítico, com seu projeto de vida e com o nível de relacionamento interpessoal, já tendo um registro de memória mais consistente e uma noção do curso do desenvolvimento de suas vidas e de sua história. Por essa razão, percebe-se nas questões respondidas uma maior riqueza de conteúdos psíquicos e um pensar mais simbólico.
Desta forma, pelo fato de terem uma maior autonomia do pensamento, a participação de suas mães mostra-se num outro plano (diferente da participação das mães das crianças), qual seja a de tentar estabelecer um vínculo de controle, onde fica clara uma dificuldade de reconhecer em seus filhos que os mesmos estão crescendo e que precisam se desenvolver.
Após esta etapa, é possível fazer um delineamento da intervenção que será proposta em conjunto com o paciente e com seu responsável. Inclui-se também um aspecto decisivo na intervenção psicológica, que se caracteriza por uma avaliação, a partir do relato da história de vida e das verbalizações dos pacientes, sobre os laços de afeto configurados entre os pacientes e suas mães e, por conseguinte, sobre o vínculo familiar. Com base nessas percepções, é iniciado um levantamento do funcionamento familiar, dos valores que constituem a estrutura da família e a forma como esta interage com a criança e com o adolescente.
É interessante salientar que existem casos vivenciados no ambulatório onde pacientes são acompanhados mesmo já estando em processo terapêutico em outras instituições, embora estes sejam eventos menos freqüentes. Nestas situações, a abordagem utilizada pela psicologia se mantém no foco de trabalho, qual seja a prevenção dos fatores de risco para a cardiopatia isquêmica, em que se destaca a obesidade infantil, e a conseqüente necessidade e busca pela redução do peso. As questões vinculares, portanto, não são tão priorizadas como nas situações em que os pacientes não se encontram em psicoterapia.
Por sua vez, depois da primeira consulta, o paciente, então, é atendido individualmente, sem a presença de sua mãe ou do cuidador responsável. Esta intervenção tem por objetivo favorecer o pensamento autônomo, a espontaneidade e a expressão de conteúdos psíquicos sem a presença da figura materna e/ou paterna. Quando necessário, solicita-se a presença da mãe, do pai, ou do cuidador responsável e em muitas situações, de ambos, com o intuito de dar um retorno sobre como estão evoluindo os atendimentos e os benefícios para o paciente, ou as dificuldades quanto à redução de peso, à prática de exercícios físicos ou à adesão ao tratamento.
Considerando as técnicas psicoterápicas utilizadas, é válido dizer que as mesmas se sustentam no método psicanalítico (Winnicott, 1975). Elas variam de acordo com a demanda dos pacientes, onde eles elegem o que desejam fazer a partir dos recursos ofertados, optando pelos jogos, pelos desenhos e/ou pelo diálogo propriamente dito. É possível dizer que há uma maior prevalência pela escolha da interação verbal no grupo de adolescentes, que se encontram na faixa etária dos 12 aos 17 anos, e que já demonstram uma capacidade de pensar mais autônoma e simbólica.
Em se tratando das crianças, entretanto, o brincar acontece com mais freqüência e se expressa através do desejo de jogar e do desejo de desenhar. Estas duas técnicas aparecem como meio de acesso aos conteúdos psíquicos inconscientes, ou seja, ao mundo interno das crianças que só podem ser acessados por meio destes dispositivos neste estágio do desenvolvimento em que se encontram (Winnicott, 1975).
Visto que a ação proposta tem como foco a prevenção da instalação dos fatores de risco para cardiopatia isquêmica e do tratamento, quando alguns deles já se fazem presentes, faz-se sempre um trabalho educativo e, portanto, psicoprofilático. O objetivo visa a conscientizar os pacientes e reforçar a importância da adesão ao tratamento e da realização de atividades prescritas pela equipe multiprofissional. Os casos são discutidos pela equipe da psicologia e logo em seguida discutidos com a equipe multiprofissional.
3. RESULTADOS
Até o momento, as intervenções psicológicas têm sido direcionadas no sentido de implicar as crianças e adolescentes com a adesão ao tratamento e, principalmente, com o seu desejo. Conforme propõe Kehl (2002), é nisto que consiste a ética da psicanálise, ou seja, implicar o sujeito com o seu desejo. Isto significa que é tarefa da psicologia despertar nos pacientes a capacidade de pensarem e perceberem - considerando o contexto do período do desenvolvimento no qual se encontram - que estão aptos a se responsabilizarem pelas suas vidas, a cuidarem-na e a valorizarem-na. Este aspecto é essencial, pois se refere a uma premissa indispensável, qual seja a de possibilitar que as pessoas se dêem conta de que é importante terem uma postura autônoma diante da vida e dos acontecimentos que dela decorrem. Tal questão favorece que as crianças e os adolescentes possam ir construindo no seu psiquismo a noção de saúde mental e a consciência da importância das relações humanas serem estabelecidas de modo saudável em nossas vidas (Winnicott, 1977).
De acordo com a seguinte proposta, o trabalho psicoprofilático sinaliza para algumas mudanças importantes. Podemos citar alguns exemplos, como o fato de uma paciente que dormia com sua mãe na cama de casal já estar conseguindo dormir em sua cama sozinha, embora ainda precise dormir com a luz acesa para se sentir segura. Outro caso é o de um menino que conseguiu emagrecer, começou a brincar mais e a interagir com os amigos, não se queixando mais de situações de desrespeito na escola devido ao sobrepeso.
Com efeito, pode-se notar, de forma evidente, tanto nos atendimentos realizados pela equipe da psicologia, como pela equipe multiprofissional alguns elementos comuns percebidos. Um exemplo é a dificuldade com limites físicos e emocionais manifestados pelas crianças e adolescentes do ambulatório, que se expressam na sua incapacidade de tolerarem frustrações.
Certamente, isso aparece tendo em vista o fato de que suas mães trazem algumas falhas no que diz respeito aos primeiros cuidados, aparecendo nos questionários respondidos um período curto na amamentação. Há também o oposto disso, quando mães superamamentam seus bebês por um longo tempo, justamente excedendo os limites de um estágio normal do desenvolvimento e que se refletem nos maus hábitos de alimentação de seus filhos, na ausência de atividades físicas, nos altos níveis dislipidêmicos (presença excessiva de placas de gordura no interior dos vasos sangüíneos), na hipertensão arterial sistêmica e na baixa auto-estima apresentada pela população descrita neste estudo.
Somado a estes dados, merece destaque o fato de que as intervenções incluem, necessariamente, o atendimento às mães e, conseqüentemente, às famílias. Entendemos que para prevenir e tratar os fatores de risco, podendo ser destacado o aspecto da obesidade infantil, é fundamental tratar as famílias e criar estratégias que as incluam.
No ambulatório da psicologia, as mães são atendidas individualmente e trazem muitas dúvidas e dificuldades quanto à educação de seus filhos. Desta forma, a intervenção psicológica com as cuidadoras consiste em permitir que tragam suas inquietações e insatisfações, a fim de que possam experimentar outras formas de cuidado e maternagem que contemplem a sua segurança interna e a de seus filhos.
Até este momento, podemos dizer que as mães parecem mais seguras, sentindo-se melhor orientadas para conduzir a educação de seus filhos de maneira menos tensa e ansiosa. Por conseguinte, tendem a autorizá-los mais a experimentar a autonomia e a usar as capacidades intelectuais e afetivas, como é o caso de um adolescente com capacidade de vir às consultas sozinho. Contudo, não o fazia pelo medo que sua avó tinha de que algo lhe acontecesse, indicando, na verdade, uma grande ansiedade de separação.
Outro exemplo interessante é o caso de um adolescente que a mãe não deixava andar nas ruas próximas a sua casa, por medo da violência, apesar de ser um bairro seguro e de pouca periculosidade. Atualmente, ambos já experimentam andar sozinhos. Um deles conseguiu vir sem a presença da avó ao atendimento e o outro já circula pelo seu bairro sem a presença de sua mãe. Estes dados confirmam a importância do trabalho multiprofissional e da continuidade da intervenção educativa segundo as IV Diretrizes Clínicas Brasileiras de Hipertensão Arterial Sistêmica(2002).
4. DISCUSSÃO
Como a Cardiopatia Isquêmica é uma doença que envolve múltiplos fatores, requer também orientações direcionadas para vários objetivos, assim como é o caso da hipertensão arterial sistêmica. Segundo as IV Diretrizes Clínicas da Sociedade Brasileira de Cardiologia (2002) desenvolvida em parceria com a Sociedade Brasileira de Nefrologia e com a Sociedade Brasileira de Hipertensão, a abordagem multiprofissional contempla objetivos múltiplos, os quais exigem diferentes abordagens. Conseqüentemente, torna-se imprescindível a formação de uma equipe multiprofissional, que irá proporcionar essa ação diferenciada.
Assim, o trabalho de uma equipe multiprofissional poderá dar aos pacientes e à comunidade motivação suficiente para vencer o desafio de adotar atitudes que tornem as ações preventivas no combate à instalação dos fatores de risco da cardiopatia isquêmica efetivas e permanentes.
Logo, o que determina a existência dessa equipe é a filosofia de trabalho e a implicação ética de cada profissional, visando ao bem-estar dos pacientes e familiares. Somado a isso, destaca-se o reconhecimento da ação individual de cada profissional, favorecendo a uniformidade das ações e intervenções.
Como um dado empírico relevante, cabe salientar que o grupo de profissionais deste ambulatório tem reunido habilidades e competências pessoais e técnicas que vêm contribuindo para a qualidade do trabalho. Somado a isso, merece destaque a maturidade e coesão da equipe que por evidenciar objetivos em comum tem conseguido demonstrar pelas atividades desenvolvidas consistência e validade nos primeiros resultados obtidos.
Além disso, os resultados mais importantes podem ser visualizados na capacidade de expressão do pensamento autônomo dos pacientes, de autonomeação de percepções, crenças e valores e sobretudo da circulação da fala. Acrescentam-se a esses elementos experiências relacionadas à produção criativa de novas situações em que as crianças e os adolescentes parecem tomar o caminho do impulso criativo. Como propõe este pensador:
O impulso criativo, portanto, é algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa bebê, criança, adolescente, adulto ou velho se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical (WINNICOTT, D.W., 1975, p. 100).
Pensando a partir do que foi exposto, o impulso criativo permite a conquista do desenvolvimento da autonomia em todo o ciclo vital, além do fortalecimento da auto-estima e do despertar para o reconhecimento da importância de se valorizar a saúde física e mental. Por essa razão, esse conceito tem sido uma bússola que direciona e orienta o trabalho psicológico, a fim de que seja possível auxiliar os pacientes e suas famílias a aprenderem sobre como valorizar sua saúde física e mental. O impulso criativo, portanto, torna-se um indicador da práxis psicológica e traz como primeiros resultados a habilidade para mudança e a aderência ao tratamento.
Situações Clínicas
Tendo em vista o contexto deste estudo e a importância de orientar as famílias quanto à prevenção dos fatores de risco para as doenças cardiovasculares na infância e na adolescência, é pertinente dizer que a boa relação entre mãe e filho é aquela em que há possibilidade de trocas afetivas. Para que esta relação se desenvolva, então, é necessário que a mãe possa exercer bem seu papel materno, o qual é influenciado por vários fatores. Estes se referem à sua história de vida e aos cuidados e afeto recebidos de seus pais, à qualidade da relação conjugal e à dinâmica familiar. Tais idéias reportam-se ao estudo desenvolvido por Nascimento e cols.(2003) e nos ajudam a pensar sobre as características do vínculo estabelecido entre os pacientes e seus pais.
A partir disso, pode-se refletir sobre as situações enfrentadas em alguns atendimentos psicológicos. Trata-se de crianças e adolescentes que apresentam obesidade infantil, dislipidemia e sedentarismo. Este conjunto de fatores, que contribuem para um comportamento de risco em relação ao desenvolvimento saudável dos participantes do ambulatório se verifica em um hábito bastante freqüente adotado por eles, qual seja o de ficar uma média de 5 horas por dia na frente da televisão e do videogame. Esta situação parece estar, a partir dos dados levantados, diretamente vinculada com um estilo de vida que se caracteriza por maus hábitos, como alimentação não-balanceada, ausência de certas rotinas saudáveis como o brincar, por exemplo, além de uma superproteção materna. As mães, por conseguinte, tendem a "sufocar" os seus filhos, impedindo-os de terem um convívio saudável na escola e na vizinhança com a justificativa do fenômeno da violência, mesmo quando os locais de residência não são considerados de alta periculosidade. Acrescentam-se também dados que apontam para uma configuração familiar disfuncional, a partir de relatos de um distanciamento conjugal trazidos pelas mães.
Neste sentido, segundo pesquisa realizada por Nascimento e cols.(2003), quando a mãe está bem assistida, tanto em relação à sua saúde quanto emocionalmente por seu companheiro, parentes e amigos, ela se prepara para a experiência materna, na qual sabe, intuitivamente, das necessidades do bebê, que vão muito além do suprimento da fome e ultrapassam as fronteiras da inteligência.
Todos estes aspectos falam de uma condição adequada de maternagem e de um desenvolvimento saudável, do ponto de vista orgânico e emocional, considerando a importância de um paradigma psicossomático, em que estão em cena aspectos psíquicos e somáticos. Entretanto, esta não é a realidade dos atendimentos ambulatoriais realizados pela psicologia. Muito pelo contrário, percebem-se dados significativos de mães com traços de comprometimento emocional na educação de seus filhos e com falhas importantes e significativas que apontam para uma dificuldade de exercerem seus papéis como mães suficientemente boas. Como postula o psicanalista:
A mãe suficientemente boa (não necessariamente a própria mãe do bebê) é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. Naturalmente, a própria mãe do bebê tem mais probabilidade de ser suficientemente boa do que alguma outra pessoa, já que essa adaptação ativa exige uma preocupação fácil e sem ressentimentos com determinado bebê; na verdade, o êxito no cuidado infantil depende da devoção, e não do jeito ou esclarecimento intelectual (Winnicott, 1975, p.25)
Com efeito, aparecem situações freqüentes das pessoas que desempenham a função materna, as quais não conseguem se separar dos filhos, superprotegendo-os e utilizando o alimento como representação máxima de carinho, porém de forma abusiva e inadequada. Surgem também relatos de pacientes que se alimentam de modo excessivo para se aliviarem das pressões familiares e sociais. Como exemplo, podemos citar as queixas trazidas pelos pacientes sobre a cobrança dos pais em relação às notas escolares. Outro caso é o próprio fenômeno da obesidade infantil que desperta no convívio com os colegas da escola e com os amigos situações comuns de deboche e preconceito.
De outro lado, incluem-se queixas de algumas mães que traduzem um sofrimento psíquico importante, o qual traz em seu cerne traços de depressão, de solidão e de ausência de parceria no que se refere à vida conjugal e ao exercício de papéis entre elas e seus parceiros como cuidadores. Essas mulheres trazem em suas falas insatisfações por terem de cuidar dos filhos sozinhas, ao mesmo tempo em que sinalizam para um comportamento submisso, regressivo e dependente, ao manifestarem adotar condutas que são determinadas por seus maridos. Como exemplo, tem-se a exigência em relação aos afazeres domésticos e à responsabilidade de cobrar e conferir o bom desempenho nas notas escolares, além do excesso de proteção dos filhos que muitas vezes seus esposos transferem a elas. Isso faz com que essas mães não consigam ter momentos tranqüilos na tarefa de educar, adotando, assim, uma postura de megeras da história.
Ademais, também se fazem presentes elementos que confirmam essa ambivalência em relação à clareza de papéis entre pais e mães, bem como a ausência de limites emocionais e, por decorrência, físicos. Um exemplo a ser ilustrado é o caso de uma paciente adolescente que dormia na cama de casal com sua mãe, e o seu pai dormia em seu quarto na cama de solteiro, queixando-se de dor nas costas por causa do colchão. Outra situação que chama a atenção é o caso de uma paciente que desfruta do mesmo ambiente que os pais, pelo fato de a casa não possuir cômodos, nem divisórias, não havendo limite físico nem tampouco separação do espaço do casal e do espaço da filha.
Há outros dados que merecem destaque como a verbalização de um paciente que diz que ao comer tem a sensação de que está usando a própria arma para se matar. Aparecem, também, situações de pacientes adolescentes com dificuldades significativas de aprendizagem. Estas estão articuladas com experiências traumáticas na 1a. infância, com vivências complicadas de separação materna e de ingresso difícil na escola. Somam-se a isso, o exagerado controle e as expectativas dos pais em relação a uma série de fatores do cotidiano dos pacientes.
Além disso, percebem-se no comportamento dos adolescentes condutas inadequadas, em que os pais demandam uma maturidade que ainda não lhes é própria e, portanto, não condiz com a faixa etária e com o estágio do desenvolvimento no qual se encontram. Um exemplo disso é o caso de um adolescente que abdica da sua vida e de seus momentos de lazer e de convivência social para acompanhar a sua responsável em todos os seus compromissos, muitos dos quais incluem visitas a médicos e a hospitais, muito embora ela tenha ótimas condições físicas e emocionais de se deslocar sozinha.
Portanto, é válido considerar, com base no que foi exposto, que a instabilidade emocional e a doença mental e/ou física da mãe podem incapacitá-la para cuidar de seu filho, tendo como conseqüência prejuízos no desenvolvimento físico e mental deste, principalmente se a condição econômica for precária (Nascimento e cols., 2003).
Por sua vez, o desempenho insatisfatório da função materna aumenta o risco de doenças, acidentes e atraso no desenvolvimento, de acordo com as idéias apresentadas por Nascimento e cols. (2003) em seu estudo sobre a relação psicológica do vínculo mãe-filho com os distúrbios de nutrição.
Devido a isso, é importante ressaltar a pertinência e necessidade de se manter as mães em acompanhamento psicológico para que possam ter um suporte emocional e uma orientação em relação à prevenção tanto dos riscos cardiovasculares como dos riscos relacionados às patologias psíquicas. Ademais, a psicoprofilaxia contribui para que as cuidadoras desempenhem de modo mais saudável e equilibrado a difícil e desafiante tarefa de educar seus filhos.
Cabe introduzir neste sentido as idéias de Winnicott (1977). Para ele, a única base autêntica para as relações de uma criança com a mãe e o pai, com as outras crianças e, finalmente, com a sociedade, consiste na primeira relação bem-sucedida entre a mãe e o bebê, que envolvem a amamentação, sem que mesmo uma regra de alimentação regular se interponha entre elas. Segundo este autor, as mães são naturalmente boas mães se não estiverem tensas e angustiadas no momento de amamentar. Assim, o estômago pode ser visto como uma miniatura interna de boa mãe.
Pensando assim, esta metáfora é interessante porque coloca em cena uma reflexão importante no que diz respeito à obesidade infantil como um fator de risco para a cardiopatia isquêmica em adultos. Tal questão parece ter vinculação com aspectos psicossomáticos significativos que interferem no dia-a-dia dos pacientes, trazendo sérios prejuízos do ponto de vista orgânico e psíquico. Estes aspectos, sustentados nas idéias winnicottianas dizem respeito ao paradigma da psicossomática como um mapa de realidade que preconiza a inter-relação entre idéia e afeto. Contudo, quando há uma quebra ou uma falha nesta ligação entre psiquê e soma, dá-se a instauração de patologias de ordem psicossomática. Por conseguinte, as patologias psicossomáticas referem-se a eventos traumáticos vivenciados pelas pessoas em seu curso de vida que impedem que as mesmas possam estabelecer tal conexão. Pelo fato de não conseguirem representar psiquicamente estes traumas, transferem-nos para uma representação no próprio corpo, a exemplo da obesidade infantil.
Abordando, então, tal patologia da infância, como um fator de risco prevalente para o desenvolvimento da cardiopatia isquêmica em adultos, é valido tecer algumas considerações. A primeira delas consiste na experiência da psicologia em perceber empiricamente alguns indicadores que sinalizam para uma relação de não-conexão entre idéia e afeto. A segunda consideração diz respeito ao fato de que nos atendimentos psicológicos é possível se verificar através dos relatos dos pacientes a identificação com o comer compulsivo enquanto fonte de prazer e como busca de preenchimento de uma falta que se caracteriza por ser do âmbito do afeto.
Em se tratando das idéias apresentadas, parece interessante trazer ao texto a discussão sobre a obesidade infantil como uma patologia que não é apenas somática, nem exclusivamente psíquica, mas sim psicossomática. Neste sentido, é interessante acrescentar, como propõe em suas idéias, Mello Filho (1992), que na década de 30 era usual atribuir à obesidade a denominação de distúrbios das glândulas endócrinas. Todavia, foi só a partir dos anos 40 e 50 que uma aproximação de natureza psicológica passou a receber maior ênfase graças aos trabalhos de Bruch (1943), Fenichel (1966), Rascovsky (1950) e outros.
Com bases no que foi exposto, é pertinente dizer, conforme apresentado por Nascimento e cols. (2003), que a criança ao procurar o seio da mãe não está buscando apenas uma satisfação alimentar, porém demandando uma significativa troca de experiências que podem ser frustradoras e também amorosas; que vão ser vividas como prazerosas e desprazerosas. Elas formam a base psicológica da aceitação e da rejeição, que em nível psicanalítico podem ser identificadas com uma série de processos mentais complexos.
De acordo com Mello Filho (1992), a pensadora Hilde Bruch (1961, 1940) ao lidar com crianças obesas verificou que nessa troca de experiências de interação mãe-bebê haveria uma aprendizagem que, em algumas situações, por ser defeituosa, poderia gerar a uniformidade da resposta da criança no vivenciar as ansiedades primitivas do 1º ano de vida. Como exemplo, pode-se citar os diferentes tipos de choro, as comunicações extraverbais da criança dirigida à mãe que teriam somente como resposta o alimento. Essas vivências primitivas vão servir ao psiquismo infantil, no contato e nas trocas familiares.
Assim sendo, é interessante pensar de que forma essas vivências primitivas que estão diretamente relacionadas com o estabelecimento e aprendizagem de um vínculo se dão na constituição da obesidade infantil, fator de risco que vem sido trabalhado de forma mais intensificada pelas intervenções da psicologia.
Ademais, pode-se pensar quais são as razões que impedem os pacientes de perderem peso e qual a causa dos possíveis benefícios secundários buscados por eles no ato de manter o peso, reconhecendo os aspectos inconscientes.
Para Kahtalian (1992), conforme nos apresenta Mello Filho (1992), o ato de comer se liga à sexualidade, e o paciente, ao procurar o médico (equipe), se encontra com a contradição de que conscientemente deseja emagrecer, porém forças inconscientes fazem-no rejeitar qualquer proibição ou limitação ao comer, porque a natureza sexual que envolve o ato o faz rejeitar qualquer proibição que signifique amputação do seu desejo oral de incorporação da pessoa (objeto) amada. Lida-se, portanto, com ansiedades que por serem de ordem dos arcaísmos psíquicos, dificultam a discriminação tanto para o médico como para o paciente no que tange a saber se a proibição ou a limitação do alimento refere-se à comida, ou ao objeto amoroso.
Portanto, as questões ambivalentes se fazem presentes nos atendimentos, reforçando a importância do estabelecimento de um bom vínculo, o qual precisa ser construído de forma contínua e consistente, para que as mudanças possam ocorrer de forma satisfatória.
Merece destaque, ainda, o fato de que a maioria dos pacientes apresenta restrições na capacidade de exercitar o pensamento e a expressão da linguagem através da fala e dos afetos. É como se houvesse uma proibição interna do impulso criativo e de gestos espontâneos, tendo em vista os modelos familiares que trazem na sua essência, rigidez, severidade e supercontrole.
Por conseguinte, percebe-se no comportamento das mães uma interrupção contínua à fala de seus filhos, limitando o encontro com as habilidades de pensar e sentir, próprias de todo ser humano. Instalam-se, então, aspectos simbióticos que caracterizam o vínculo mãe-bebê e que se estendem até os dias atuais, considerando o tempo cronológico.
Considerando as idéias de Golberg e Rinaldi (1972), autores referidos no estudo desenvolvido por Daudt (1994), a manutenção da relação simbiótica leva a um empobrecimento psico-físico crescente da criança, onde o atraso na maturação psicológica se faz evidente. Deste modo, Daudt (1994) incrementa nosso pensar ao trazer as contribuições de Mahler (1982), psicanalista que dizia que a falta de preparação biológica do bebê humano para manter separadamente sua vida dá origem àquela prolongada e absoluta dependência específica da espécie, ou seja, a relação de simbiose entre a mãe e o bebê. Segundo ela, é a partir desse estado simbiótico da unidade dual mãe-bebê que se derivam aqueles precursores experimentais dos começos do indivíduo, os quais, junto com fatores constitucionais, determinam as exclusivas características somáticas e psicológicas de todo o indivíduo da espécie humana.
Para esta autora, o aspecto fundamental da simbiose constitui-se pela fusão onipotente, psicossomática ou ilusória com a representação da mãe e, particularmente, a ilusão de limites comuns de dois indivíduos real e fisicamente separados. Nota-se, a partir disso, que os pacientes demonstram de forma evidente um comportamento regressivo.
Conforme postula Winnicott (1988), a regressão acontece quando deixa-se implícita a existência de uma organização pela qual o indivíduo armazena memórias, idéias e potencialidades. Em complementação a estas idéias, Laplanche (1992) define sob a ótica da psicanálise que a regressão, no seu sentido formal, designa a passagem a modos de expressão de comportamento de nível inferior do ponto de vista da complexidade, da estruturação e da diferenciação, ou seja, a idéia de dependência absoluta que remete às vivências primitivas que o bebê tem em relação à sua mãe.
Levando em conta tais conceitos, podemos visualizar como a regressão se manifesta nos pacientes deste ambulatório. Por exemplo, no comportamento infantilizado, que lembra o de crianças muito dependentes de suas mães, como se fossem bebês. O sintoma regressivo pode ser percebido também por expressões faciais e corporais que não condizem com a idade de alguns deles, pela linguagem inadequada e incorreta e, muitas vezes, pelas roupas utilizadas que lembram a de crianças muito pequenas.
Faz-se necessário mencionar que a regressão, enquanto um mecanismo de defesa inconsciente se manifesta quando as crianças e os adolescentes procuram no alimento um refúgio para se proteger de sensações primitivas de desamparo, do ponto de vista do psiquismo. Este grupo, ao adotar tal conduta, denota em seu comportamento e em sua forma de encarar o mundo um funcionamento primitivo, no que concerne ao plano dos afetos. Podemos pensar, com isso, que a obesidade infantil pode ser o representante de uma falha dos cuidados maternos nas primeiras experiências do desenvolvimento emocional primitivo vivido pelos sujeitos deste estudo. Conseqüentemente, o impulso criativo e criatividade como um todo ficaram muito reprimidos.
Deste modo, é viável compreender os enlaces entre teoria e prática, a partir da verbalização de uma menina que está prestes a fazer aniversário. Eu não quero fazer 8 anos. Eu não quero crescer.
Tal relato indica uma impossibilidade de crescimento. Ao mesmo tempo, marca a manutenção de um vínculo simbiótico; logo, patológico. Esta situação parece estar relacionada com um traço típico da subjetividade desta população que é de uma insegurança no seu mundo interno e de um medo do crescimento. Portanto, há uma busca por um refugiar-se na infância como um lugar possivelmente seguro.
Todavia, paradoxalmente, essa infância é determinada por dificuldades que impedem o desenvolvimento psíquico saudável e que traz como sintoma maior a obesidade infantil e a dependência patológica dos filhos em relação aos pais. O trabalho da psicologia, por conseguinte, consiste em contribuir para que haja um rompimento desse vínculo simbiótico, autorizando as crianças e os adolescentes a se autonomearem e a desenvolverem uma capacidade segura em relação à auto-estima, através da valorização dos gestos espontâneos e da criatividade do pensar.
Com base nesta intervenção, é possível dizer que a mesma acaba por favorecer que as mães possam se dar conta de que a postura e a conduta que estão tendo, mesmo que de modo inconsciente, está facilitando a aquisição de um excesso o peso , além de impedirem que seus filhos se desenvolvam dentro de parâmetros saudáveis do ponto de vista psicológico e orgânico.
É interessante ponderar que há, antes de tudo, uma impossibilidade que a palavra circule, e por causa disso, os pacientes partem para a ação, com intuito de suprir um vazio (o vazio primitivo da ausência da mãe) através do compulsivo e descontrolado acesso ao alimento.
Em suma, nota-se uma insuportabilidade dos pacientes à falta, no caso à falta das mães que foram abandonantes, do ponto de vista do psiquismo, e não conseguiram sustentar (holding) e manejar (handling) as angústias iniciais de seus bebês, conforme propõe Winnicott (1995). Essas mulheres não puderam dar contorno e nome para tais angústias, substituindo-as com o alimento, que passa a ser a referência do alívio das ansiedades primitivas e desprazeres, bem como da busca pela satisfação e pela saciedade e dos prazeres.
Deste modo, concluímos dizendo que felizmente já é possível verificar algumas mudanças iniciais e significativas no comportamento dos pacientes e de seus pais. Estas parecem estar relacionadas às contribuições da intervenção psicológica e tais intervenções indicam uma funcionalidade e uma validade articuladas com o comprometimento do grupo de pessoas que é atendido no ambulatório. Isso pode ser visto no que diz respeito à prevenção dos fatores de risco, e à adesão ao tratamento daqueles fatores que já estão instalados, ao vínculo saudável estabelecido com a equipe e ao exercício de um novo modo de pensar que integra afeto e idéia, favorecendo a saúde física e mental e prevenindo a instauração da patologia cardíaca.
Nossa meta para a continuidade do trabalho desenvolvido consiste em proporcionar que as mães possam olhar e entender que suas crianças agora estão crescendo e se desenvolvendo, tornando-se capazes e sendo lançadas, como propôs Winnicott (1977), na imensa tarefa de se tornarem elas próprias. Acrescenta-se, também, o fato de que os pais estão sendo progressivamente implicados e chamados aos atendimentos da psicologia, com intuito de contribuir para que haja um consenso e uma conquista por parte das famílias de adotarem novos hábitos que preconizem o estilo de vida saudável, o desenvolvimento do diálogo e da saúde mental através do fortalecimento da auto-imagem e da auto-estima familiar.
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1 Agradecemos ao Dr. Marcio Maldonado, médico residente do segundo ano, pela leitura cuidadosa e crítica que contribuiu muito para a redação final do texto.
2 Psicóloga Residente do segundo ano do Programa de Residência Integrada em Saúde: Cardiologia, do Instituto de Cardiologia do RS/FUC.
3 Cardiologista Pediátrica do IC-FUC. Responsável pelo Grupo de Cardiologia Pediátrica Preventiva. Doutora em Cardiologia. Professora da FFFCMPA.
4 Psicóloga do Serviço de Psicologia Clínica do IC/FUC. Mestre em Ciências da Saúde pela PUCRS. Responsável pela área da psicologia no Grupo de Cardiologia Pediátrica Preventiva.
5 Chefe do Serviço de Psicologia Clínica do IC/FUC. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Coordenadora da área de Psicologia na Residência Integrada em Saúde: Cardiologia do IC/FUC. Endereço para correspondência: Av. Princesa Isabel, nº 395. CEP 90620001. Telefone: 3230-3913.E-mail: psicologia.clinica@cardiologia.org.br