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Revista da SBPH
versión impresa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.21 no.2 Rio de Janeiro juldic. 2018
ARTIGOS
Palhaços-doutores e seus recursos defensivos: um estudo a partir do Questionário Desiderativo
Doctor-clowns and their defensive resources: a review from the Desiderative Questionnaire
Miguel Matos de Moura Júnior1; Bárbara Spina Donadio de Godoy2; Danuta Medeiros3
Universidade São Judas Tadeu - São Paulo/SP
RESUMO
O presente estudo propôs analisar e avaliar os recursos defensivos de palhaços-doutores atuando em hospitais e como reagem diante da morte e do luto daqueles institucionalizados. Colaboraram com a pesquisa 20 palhaços que realizam trabalhos voluntários em hospitais da região metropolitana de São Paulo. Dados foram coletados por meio de questionário para caracterização da amostra e aplicação do Questionário Desiderativo (QD), entre os meses de maio e junho de 2016. O Questionário Desiderativo mostrou ser uma ferramenta inteligente para acessar recursos defensivos, bem como a dinâmica, funções, impulsos e sanções egóicas dos sujeitos, diante da natureza dessa ferramenta que coloca o sujeito para negar vida humana e identificar-se com outro ser, e, assim, como ele lida diante da pulsão de morte. Os resultados apontam que a natureza do conteúdo presente, tanto no discurso, como nas catexias do QD, indica que os doutores-palhaços enfrentam desafios que vão além do fazer rir e do brincar. Os recursos egóicos usados para lidar com a ansiedade e a angústia aparentam maior resistência em grande parte da amostra. Considera-se importante que os voluntários realizem acompanhamento terapêutico para que o trabalho continue em um ambiente que lida com características pouco permissivas para a atividade lúdica.
Palavras-chave: questionário desiderativo; hospital; avaliação psicológica; psicologia da saúde; psicanálise.
ABSTRACT
This present study proposed to analyze and evaluate defensive resources of doctor-clowns working in hospitals and reactions to death and mourning of those institutionalized. Twenty volunteer clowns, that work in hospitals in the metropolitan region of São Paulo, collaborated with the research. Data was collected through a questionnaire for characterization of the sample and application of the Desiderative Questionnaire (QD), between May and June 2016. Desiderative Questionnaire proved to be a smart tool to access the defensive resources, as well as dynamics, functions, impulses and egoic sanctions of the subjects, considering the nature of this tool that places the subject to deny human life and identify with another being, and thus, how he deals with the death drive. The content present, both in discourse and in QD cathexis, point out that clown doctors have to face, in the voluntary work, challenges that go beyond laughing and playing, and that the egoic resources used to deal with anxiety and anguish appear more resistant in much of the sample. It was considered the important that the volunteers participate in therapeutic accompaniment so that the work can continue in an environment that deals with characteristics that are not very permissive to recreational activity.
Keywords: desiderative questionnaire; hospital; psychological evaluation; health psychology; psychoanalysis.
Introdução
Desde o seu surgimento, o hospital esteve voltado para aqueles que buscavam abrigo e cuidado, portanto, era considerado um local de hospedagem tanto para os enfermos quanto para os viajantes (Campos, 2003). De acordo com Foucault (1979), antes do século XVIII, essa instituição tinha como objetivo dar auxílio aos pobres e molestados, configurando-se também em um lugar de separação e exclusão desses sujeitos. Neste período, os indivíduos que trabalhavam no hospital estavam vinculados à religião, tendo como propósito a caridade. Logo, ao realizar tal função, o sujeito podia garantir a salvação divina (Foucault, 1979).
Para Foucault (1979), o hospital teve sua característica de unidade de tratamento de doenças com o surgimento da tecnologia e da disciplina, pois, com o passar do tempo, o ambiente hospitalar passou de religioso-leigo para médico-técnico. Assim, abriu espaço para novas formas de atuação, retirou da igreja a responsabilidade pelos doentes e modificou o ambiente hospitalar para um saber médico e científico. Sendo assim, o hospital, com o decorrer do tempo, ganhou outros contornos, já que passou a se organizar e formar uma cadeia de princípios e seguimentos mais detalhados, desenvolvendo tratamentos que vão além da cura, tornando-se preventivo, e preocupando-se não apenas com o as disfunções, mas também com os indivíduos e possibilitando a atuação de outros profissionais (Campos, 2003).
Conforme apontam Moniz e Araújo (2008), o voluntariado presta um serviço de assistência em um ambiente hospitalar, sendo visto como uma entidade positiva ao atuar nessa instituição, que sofre carências efetivas, principalmente na rede pública, mas que existem críticas e limitações nessa função no olhar do profissional de saúde que compartilha desse lugar. Destaca-se a realização do trabalho voluntário realizado pelos palhaços-doutores, considerado um trabalho humanizado, voltado para o sujeito e não somente para sua enfermidade, pois consegue entender as particularidades e subjetividade de cada indivíduo que se encontra na enfermaria médica. Através do brincar, o palhaço então desenvolve a confiança e fortalece as relações humanas no hospital, onde se encontram os profissionais, pacientes e familiares (Backes, Lunardi & Lunardi, 2005; Masetti, 2001/2005; Sena, 2011; Sato, Ramos, Silva, Gameiro & Scatena, 2016).
Ao longo da sua história, o palhaço, que na Europa do século XVIII situava-se em um contexto de circo e picadeiro, representando sátiras e brincando com a plateia, tem o encontro com o paciente hospitalizado na década de 80 nos Estados Unidos (Sato, et al., 2016; Masetti, 2001/2005; Sena, 2011; Rodrigues & Nunes, 2013). Dentro dos hospitais, o personagem cômico traz consigo novas formas de ver e sentir, uma vez que esse apresenta um olhar menos censurador e mais acolhedor; brinca com a condição atual do indivíduo internado, assim rompe com o real e permite àquele que está acamado, adoecido e triste uma oportunidade de rir e fantasiar diante de uma situação pouco provável para isso.
Verifica-se que não há como negar que por trás de cada personagem existe um indivíduo, com suas características, história de vida, sentimentos, valores, percepções, medos e angústias. Portanto, a alegria diante de alguém, nem sempre apresenta sua real condição, pode ser comum que esse sujeito sinta tristeza ou sofra, por algo que está passando em sua vida, dessa forma o personagem, por vezes, pode não conseguir manter uma distância "saudável" entre o indivíduo e o doente. De acordo com Santos (2003) ao lidar com indivíduos acometidos por doenças, os quais necessitam de cuidados e monitoração 24 horas por dia, pode ser frequente que os profissionais sintam-se pressionados sobre a sua atuação, "ora se sentem poderosos, competentes e efetivos, em outros momentos sentem-se impotentes e incapazes" (Santos, 2003, p. 45), não sendo diferente com o palhaço-doutor. Assim, todos os que atuam nos hospitais, incluindo aqui os palhaços, se veem muitas das vezes diante da morte e buscam distância dessa possibilidade.
Existe então uma negação quase que total do morrer, reagindo assim de maneira distinta, ora podemos sentir o medo iminente, ora culpa, ou ainda acreditar que não acontecerá conosco, o que permite enxergar o quanto a natureza humana ainda tem medo da morte e tenta evitar a todo custo (Kovács, 1992; Pitta, 1999; Medeiros & Pinto Júnior, 2006). Diante disso, muitos evitam o contato com a possibilidade de morte dos pacientes, seja ele voluntário ou aquele que tem vínculos contratuais, uma vez que esse contato pode remeter o profissional ao medo de sua própria finitude (Kovács, 1992; Pitta, 1999).
Assim, ao se considerar a atuação dos palhaços-doutores em um ambiente que participa diferentes tipos de saberes, torna-se necessário considerar os sentimentos despertos no contato com enfermo. O que surge de tal relação pode ser a alegria diante da cura ou o luto diante da perda de um paciente. O voluntário enfrenta essas situações estando por trás do nariz vermelho ou da caracterização de algum personagem, o que nem sempre apresenta sua real condição de alegre e brincalhão, mas, às vezes, pode mascarar a tristeza e o sofrimento, seja por algo que está passando em sua vida particular ou por presenciar as mazelas dos pacientes. Dessa forma, o personagem, por vezes, pode não conseguir manter uma distância "saudável" entre o ele e aquele que assiste.
Logo, parte-se do pressuposto de que o palhaço-doutor, ao atuar em uma instituição como o hospital, poderá ter interpretações e vivências nesse local e, consequentemente, ser afetado por elas.
Objetivos
Em termos gerais, o presente trabalho objetivou avaliar a estruturação egóica de palhaços-doutores que atuam em hospitais. Procurou-se descrever os mecanismos de defesa utilizados pelos participantes, o impacto da experiência dessa atividade na vida cotidiana e sua representação numa tentativa de compreender aspectos da personalidade desses sujeitos.
Método
Participantes
A pesquisa foi composta de 20 (vinte) palhaços voluntários, sendo 11 (onze) do sexo feminino e 9 (nove) do sexo masculino, atuantes em Hospitais Gerais da região metropolitana de São Paulo/SP. Os sujeitos foram selecionados através de contato e indicação com Organizações Não Governamentais (ONGs) ou por meio de redes sociais. Todos os processos foram realizados diretamente com os participantes sem a necessidade de relacionamento com instituições.
Material
Para realização da pesquisa, foram utilizados os seguintes materiais: (1) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): documento que informa e esclarece ao participante quanto aos objetivos da pesquisa de modo que ele possa tomar sua decisão de maneira justa e sem quaisquer constrangimentos sobre a sua participação em um dado projeto de pesquisa, sendo, assim, uma forma de proteção tanto do participante quanto do pesquisador; (2) Questionário para caracterização da amostra: objetivando obter e levantar informações básicas como a idade, sexo, escolaridade e também a respeito do estilo de vida dos participantes, bem como informações sobre o contexto de atuação de cada participante; e (3) o Questionário Desiderativo (QD): instrumento projetivo ainda não padronizado para a população brasileira, capaz de verificar questões apresentadas anteriormente.
Em relação ao QD, originalmente exposto em 1946, em Barcelona, o instrumento consistia basicamente em duas questões: "o que gostaria de ser se tivesse de voltar ao mundo não sendo uma pessoa? Por que você fez essa escolha?". A resposta escolhida correspondia ao símbolo desiderativo e o porquê da resposta representa a expressão desiderativa. Em 1948, foi reelaborado e ampliado, a nova versão solicitava três escolhas e três rejeições com as respectivas explicações. As escolhas e as rejeições são enquadradas em três categorias: animal, vegetal e reino inanimado. Desta forma, ao responder à questão: "Se não fosse uma pessoa, o que mais gostaria de ser? Por quê?", o examinador elimina a categoria escolhida e formula uma nova questão, e, assim, chega a uma nova resposta e procede (Cunha, 1993; Arzeno, 1995; Nijamkin & Braude, 2000; Ocampo, Arzeno & Grassano, 2001; Sneiderman, 2012). De acordo com Nijamkin e Braude (2000), a consigna do QD coloca o sujeito frente à pulsão da morte e a impossibilidade de ser. O sujeito deve-se imaginar "morto" para se pensar como outro ser não humano.
Consequentemente, pode-se avaliar a estruturação egóica dos palhaços que atuam nos hospitais. De acordo com Nijamkin e Braude (2000), a estrutura do ego compõe-se pela forma como o sujeito lida com o instrumento apresentado, ou seja, qual o impacto que o ego sente ante a consigna. As autoras discutem que as catexias irão dar indício do funcionamento egóico, permitindo verificar quais os mecanismos de defesa do ego são utilizados diante da situação de ansiedade/angústia e outros fatores como sentido da realidade, regulação e domínio dos impulsos, relações de objeto, processo de pensamento, funções defensivas e funções sintetizadoras. O QD pode ser um instrumento facilitador para compreensão da estruturação egóica, por meio de expressão verbal, posto que mobiliza ansiedades e defesas. Trata-se de uma forma de interpretar a personalidade do indivíduo, a capacidade defensiva, os pontos de fixação, força do ego, nível de maturidade do superego, afetos, relações objetais, autoimagem, identidade sexual entre outros (Nijamkin & Braude, 2000).
Procedimentos
O projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Judas Tadeu em 23 de março de 2016 (CAAE: 54344716.8.0000.0089) e toda a coleta de dados se deu entre maio e junho de 2016. Inicialmente, foi feito, pessoalmente, um contato com os participantes indicados, no qual foram esclarecidos os objetivos da pesquisa e o método proposto. Após a aceitação do participante em fazer parte da pesquisa, as entrevistas individuais foram agendadas em local, hora e data estipulada por eles, de modo a garantir sua comodidade e privacidade. Os pesquisadores foram até o local estabelecido pelos participantes e a duração das entrevistas e atividade proposta teve em média uma hora, sendo lido o TCLE junto a cada participante, e os pesquisadores se disponibilizaram para qualquer esclarecimento. Aqueles que concordaram em participar voluntariamente da pesquisa responderam um questionário para caracterização da amostra antes da realização do Questionário Desiderativo – o qual seguiu as orientações e instruções propostas por Nijamkin e Braude (2000). Todas as respostas foram registradas por meio de um gravador, sendo os áudios transcritos e destruídos após análise.
Análise dos dados
Foram realizadas as Avaliações do Funcionamento Egóico conforme proposto por Nijamkin e Braude (2000). Inicialmente, os protocolos dos QDs foram analisados individualmente e, em um segundo momento, foi realizada a análise geral, considerando todos os participantes e buscando os elementos que convergem ou divergem nos cinco itens propostos pelas autoras: (1) Adequação à consigna (instrução) e Instrumentalização dos Mecanismos de Defesa instrumentais: para que o sujeito responda às demandas da consigna deve instrumentalizar determinadas defesas (repressão básica, dissociação, identificação projetiva e racionalização), que são operações mentais para resolver as vicissitudes que ela lhe coloca; (2) Sequências das vicissitudes da ansiedade: deve-se avaliar a evolução das vicissitudes da ansiedade ao longo da produção, a capacidade do sujeito de dominar ativamente ou não a ansiedade frente a um perigo constitui um dos indicadores da estrutura do Ego; (3) Tempo de reação: referente ao lapso que transcorre entre a consigna para cada reino e o aparecimento da resposta símbolo; (4) Sequência dos reinos: a sequência esperada tem relação com a expectativa de que uma personalidade saudável terá uma estrutura psíquica na qual predomine o instinto de conservação sobre os impulsos de morte e (5) Análise de cada catexia: na técnica, cada símbolo tem um significado. O conteúdo dos símbolos apresenta pontos de fixação dos sujeitos, determinadas representações psíquicas às quais a pulsão se mantém fixada e o pesquisador deverá, então, decodificar o significado pessoal que cada símbolo tem para os sujeitos.
Destaca-se ainda que a análise desses resultados foi articulada à teoria psicanalítica e à literatura existente, e apresentadas no presente artigo respeitando e preservando a identidade dos participantes.
Resultados e Discussões
A análise do perfil sócio demográfico dos voluntários (N=20), mostra que a idade variou de 22 a 60 anos, sendo 65% (N=11) do sexo feminino e 45% (N=9) do sexo masculino, 50% (N=10) deles informaram serem solteiros, 60% (N=12) não têm filhos(as), 65% (N=13) são de origem caucasiana, e 55% (N=11) residem com outras pessoas, sejam cônjuges ou familiares (mãe, pai, irmãos, irmãs entre outros), outros 20% (N=4) informaram morar sozinhos(as). No geral, todos os participantes têm formação em ensino superior e possuem uma vida profissional ativa. Em relação à prática do trabalho voluntário, o total da amostra possui uma média de 46 meses de atuação por indivíduo.
Os elementos sequenciais serão apresentados de acordo e estão relacionados ao que Nijamkin e Braude (2000) chamam de indicadores do funcionamento do Ego, avaliados a partir do Questionário Desiderativo, são eles: defesas instrumentais (Repressão, Dissociação, Identificação Projetiva e Racionalização), vicissitudes da ansiedade, tempo de reação e sequência dos reinos. Estes itens dão uma indicativa da estrutura egóica do sujeito, assim como sua forma de lidar com a angústia e ansiedade que a técnica propõe. No resultado a respeito das defesas instrumentais, pode-se observar que 45% dos indivíduos (N=9) fracassaram na Racionalização, visto que eles aparecem, na sua grande maioria, parciais, como, por exemplo, a ausência da explicação ou uma explicação muito superficial, ou seja, o indivíduo não consegue justificar a escolha do símbolo, indicando uma incapacidade de reflexão das próprias atitudes. Conforme os participantes:
P11: 2+ "Alface (?)Eu gosto, é um alimento saudável",
P14: 2- "Uma arma (?) Porque tira a vida".
Ainda aparecem falhas na sustentação lógico formal, notada quando se destaca justificativas que se tornam alheias ou não essenciais, e ainda outros fracassos surgem por superdimensionamento da racionalização, não enriquecendo os motivos das escolhas, ainda podem surgir ambos os fracassos, como exemplificados a seguir:
P10: 1+ "Leão (?) Olha, eu acho que até me analisando psicologicamente, eu era o menor da turma, sempre o mais magro da escola, condição muito pobre e estudava em escola de boyzinho, então, tipo assim, eu me sentia, até meus primos, me sentia muito abaixo de todo mundo, então acho que eu sempre me afeiçoei ao animal mais forte...".
Em relação à Identificação Projetiva 45% (N=9), os fracassos estão associados à distância entre o símbolo e os aspectos representados, visto que a escolha deixa de ser um símbolo, sendo considerado aspecto de si mesmo, desejados ou rejeitados. Por falhas na repressão, o objeto/símbolo escolhido tem afetos originais. Isso significa que algo despertou afetos que até o momento do teste estavam inconscientes.
O caso do P10 (citado anteriormente) ilustra também o fracasso na identificação projetiva, uma vez que a realização da equação simbólica está bem presente, pois há uma perda da distância do símbolo e dos aspectos representados (Grassano, 1996). Outra falha comum na amostra foi a escolha de símbolos desagregados, ou símbolos que são estruturados em que há um claro limite demarcatório entre o objeto e o seu exterior, mas frágil na consistência. Outro fracasso muito comum é a preservação do reino, tal reação indica que há a rigidez da utilização da identificação projetiva do mecanismo, posto que, uma vez escolhido o reino, existe dificuldade para desindentificar e escolher um reino novo. Segue o exemplo:
P18: 1+ "Um cachorro" 2+ "Albatroz" respondendo um animal na primeira e na segunda catexias, reaparecendo nas consignas negativas 3- "Bandeira do brasil, Um sapato".
Sobre as falhas no mecanismo da Repressão Básica e da Primeira Dissociação, 30% obtiveram falhas parciais, mas o que foi encontrado é que 20% (N=4) realizaram falhas mais graves como, por exemplo, respostas antropomórficas, personagens fantásticos ou quase humanos, que se caracterizam pelo não desprendimento dos aspectos humanos, esse tipo de fracasso demonstra que a consigna foi sentida como um ataque à integridade do Ego, o que indica maior fragilidade desta instância psíquica (Nijamkin & Braude, 2000; Frazão, Gil & Tardivo, 2011; Ocampo et al., 2001) conforme o participante:
P12: 2+ "Alienígena (?) fica lá no espaço escondido...".
P10: 2+ "Batman (?). Olha o super-herói que eu seria é o Batman, não é nenhum alienígena, que chato (risos).
Somente um participante obteve fracasso total na repressão básica, posto que este apresentou um bloqueio diante da consigna, não podendo responder e/ou não escolhendo um símbolo, impossibilitando a realização do procedimento, mesmo depois da intervenção do aplicador sugerindo algum dos reinos. Em relação à segunda Dissociação, 30% (N=6) dos fracassos ocorreram ao escolher características negativas na explicação desiderativa de símbolos positivos ou o contrário, isso pode ser tanto baixo nível intelectual ou importante quantidade de confusão. Situações como essa fazem relação da dificuldade para resolver a ambivalência conforme a participante P13. Outro tipo de fracasso presente foi a distância entre os símbolos valorizados e os rejeitados, nos achados de Frazão et al., (2011) isso se deu através de falhas para separar aspectos positivos dos negativos, ou seja, demonstra uma proximidade com resultados do presente estudo. No Questionário Desiderativo existe uma quantidade importante de idealização e desvalorização, e com isso dá indicativo, e é através desses símbolos que o sujeito pode compensar o sentimento de impotência ou menos valia (Nijamkin & Braude, 2000). Conforme resposta (P17).
P13: 1+ "Lesma (?) Porque ela é devagar sabe?! [Risos]".
P17: 2+ "Piano (?) É um instrumento que encanta, quem olha fala 'nossa!' Eu queria tanto saber tocar, bonito o som...então é uma coisa meio preciosa...".
Sobre as vicissitudes da ansiedade, no início da tarefa e durante a aplicação tanto das consignas positivas quantos negativas e do procedimento é esperada uma quantidade de ansiedade, mas é importante também que esse sentimento não interfira produção do material, pois ele é que vai produzir fracassos totais ou parciais na resolução da técnica, (Nijamkin & Braude, 2000). Com isso, nota-se que, no geral, os participantes do estudo, 75% (N=15) apresentaram ansiedade depressiva, sendo que essa permite a resolução do teste e maior flexibilidade nas escolhas do símbolo sem deixar que o sujeito seja invadido pela ansiedade. Dessa forma, o sujeito consegue resolver o problema proposto pelo QD sem apelar tanto para as defesas.
Os outros 40% (N=8) indicaram ansiedade paranóide em algum momento do procedimento, principalmente quando respondiam as consignas negativas, ou seja, aquilo que mais rejeitam em si mesmos. Portanto, diante do impacto das próprias angústias advindas da morte, reagiram tecendo comentários contra o teste ou contra os entrevistadores, mas evoluíram para uma ansiedade depressiva; 25% apresentaram uma ansiedade confusional indicando que o teste impactou sentimentos de desintegração, indicando uma fraca estruturação egóica e uma dificuldade de manutenção dos impulsos. Os dados encontrados por Medeiros e Pinto Júnior (2006) constatam que houve uma ansiedade crescente durante a realização da técnica em sua amostra, o que sinaliza que mesmo que a pessoa tenha compreendido a consigna após a realização da positivas, os aspectos rejeitados demonstram ter maior dificuldade. O mesmo ocorreu com os voluntários, já que esse aspecto está presente em 60% dos participantes.
Em referência ao tempo de reação e sequências dos reinos, 55% apresentaram suas respostas em um tempo considerado "Breve/Curto", caracterizando uma forma imediata de evitar ou entrar em contato com as angústias; apenas 20% se mantiveram estáveis para resolver a técnica. Nota-se que no estudo de Medeiros e Pinto Júnior (2006) com profissionais da saúde que trabalham no contexto hospitalar, os participantes tiveram tempos mais breves/curtos, indicando maior grau de ansiedade e baixa capacidade de frustração. Sobre as sequências dos reinos, 60% realizaram conforme esperado (animal, vegetal e inanimado), dando expectativa de uma personalidade mais saudável e uma estrutura psíquica com predomínio do instinto de vida, e outros 40% obtiveram leve desvio, pois manifestaram uma estrutura menos saudável (Nijamkin & Braude, 2000).
Após a avaliação do funcionamento egóico, realizou-se a avaliação dinâmica, estrutural e genética (Nijamkin & Braude, 2000). Para tal, serão apresentadas brevemente e separadamente os principais dados encontrados na amostra pesquisada das três instâncias psíquicas: Id, Ego e Superego. Deve-se considerar o Id como o depositário da energia psíquica (libido) e das pulsões, regido pelo princípio do prazer, que atua principalmente de forma inconsciente (Freud, 1923/1996; Laplanche &Pontalis, 1991). Os seguintes resultados sobre os impulsos de vida foram obtidos: 95% (N=19) tiveram capacidade para responder símbolos que integram aspectos vitais, destes 75% (N=15) realizaram projeções de símbolos de aspectos libidinais e agressivos sintetizados e discriminados em seus conteúdos, afetos mais integrados pertinentes quanto à intensidade e ao objeto na qual são dirigidos sem polarização, produto de mais repressão, sublimação e mais elaboração. Destaca-se a resposta dos participantes:
P9: 1+ "Uma pantera (?) Eu acho que a pantera é admirável, ela é um bicho incrível..."
P13: 2+ "Um Macaco (?) É primeiro eu acho ele inteligente, gosto da inteligência dele...".
P16: 1+ "Gato (?)?) Ah! O gato é massa, gato dorme para caramba. Gato tem... Gato respeita o seu próprio tempo, tem essa coisa olha não é porque você está me chamando que eu vou agora, eu tenho coisas a fazer, tipo deitar no sofá depois eu vou".
Sobre os afetos adequados na quantidade de conservação do objeto e de si mesmo presente na explicação desiderativa, 75% (N=15) apresentaram adaptação. Entretanto, 40% destes apresentaram distanciamento entre símbolos ativos-passivos, bondosos-agressivos, construtivos-destrutivos. Projeções maciças com grande quantidade de impulsos indicaram nas suas respostas demasiada necessidade de si mesmos (libido narcisista), como é possível identificar nas respostas seguintes:
P2: 1+ "Um cavalo (?) eu seria um cavalo, lindo, cheio de cabelinhos, poderoso".
P16: "Um livro com desenhos bonitos e com algumas palavras, não precisa ter muita palavra não com algumas palavras só (?) Por quê? Corre um sério risco de eu ter contato com as pessoas porque elas podem me pegar, ou seja, elas podem me carregar com elas, ou seja, eu participar da vida delas. De novo tentando não ser pretensioso, mas, às vezes, a imagem que ela vai ver em mim eu sendo um livro pode despertar alguma coisa interferir na vida da pessoa".
Sobre a direção da libido narcisista, 75% responderam símbolos consistentes, no entanto, em algum momento do protocolo, 30% dos participantes se referiram a objetos indestrutíveis/onipotentes (P20) e 35% a objetos desagregados/frágeis (P4) conforme:
P20: 3+ "Campo eletromagnético (?) porque ele é forte ele é independente, porque ele não está vinculado a nenhuma outra força ele não está vinculado a atmosfera ele funciona sozinho…"
P4: 2- "Bactéria (?) eu não vejo alguma coisa significativa na bactéria".
Sobre o Ego, sendo ele responsável por manter as reivindicações do Id, os imperativos do Superego e as exigências da realidade, quando necessário, utiliza mecanismos de defesa para lidar com angústias, além de ter o ponto de ligação das pulsões e direcionar a energia psíquica (Freud, 1923/1996; Laplanche & Pontalis, 1991). A partir dos resultados, observou-se que 95% (N=19) obtiveram compreensão da consigna e subconsigna e apenas 5% (N=1) não conseguiram responder; 75% (N=15) resolvem a técnica sem gerar grandes problemas e 50% (N=10) obtiveram falhas parciais como espanto/surpresa, comentários ou questionamentos; 30% apresentaram falhas na simbolização e na lógica, sendo que 20% dos participantes responderam figuras antropomórficas, indicando falta/fracassos na estrutura egóica frente às situações de grande ansiedade ou pressão. Exemplificando;
P8: 1+ "Alma (?) eu não sei, acho que o ser humano é muita das vezes, quando você fala sobre isso é um assunto mais leve, é uma pessoa que fica reclusa em um lugar eu não gosto".
P10: 2+ "Batman (?) Não é nenhum alienígena, que chato (risos)".
Sobre as funções egóicas da amostra, em referência a interpretação da realidade, 75% (N=15) apresentaram adequação nesse quesito, ou seja, reconhecimento do "Como se", uma vez que conseguiram formular racionalizações adequadas sobre suas escolhas. Entretanto, 25% (N=5) falharam nas racionalizações, posto que sentiram o teste como ataque à integridade do ego e deram respostas antropomórficas, como já mencionado. Referente ao sentido da realidade, símbolos estruturados e limites precisos, corporeidade com as racionalizações com boas delimitações entre o sujeito e o objeto, 85% (N=17) apresentaram adequação. Ainda assim, em relação à regulação e controle dos impulsos, 30% apresentaram verbalizações desqualificando a tarefa ou o entrevistador, ou ainda atitude de surpresa/confusão, o que revela que o estímulo da técnica foi sentido como um ataque. Quanto à tolerância da ansiedade 60% (N=12) mostraram-se adequados, e apenas 15% (N=3) apresentou símbolos sem vida (P16 e P5). Sobre a intolerância à incerteza, 80% (N=16) conseguiram aguardar as sucessivas perguntas e responder aos três símbolos. Em relação às funções autônomas, tais como percepção, intuição, inteligência, pensamento e linguagem, 85% (N=17) estão de acordo com a etapa evolutiva, no entanto 15% (N=3) apresentam desajustes (P12). Sobre as funções sintetizadoras (unir, organizar, ligar, sublimação, homeostase somática), 60% (N=12) indicaram adequação (P18). Tais aspectos podem ser visualizados nas repostas dos participantes:
P5: "O saco de lixo (?) Traz doença né, sujeira, resto de comida, mal cheiro, doenças."
P16: "Semente estéril (?)porque pensar-me como um ser estéril da árvore futura, também me entristece assim e uma existência inócuo".
P18: 1+ "Cachorro (?) porque o cachorro doa amor incondicionalmente, ele é fiel, ele é parceiro".
P12: 1- "Girafa (?) Está sempre por cima de tudo e eu acho que nesse mundo aqui você tem, sabe a importância e a sabedoria de saber que ninguém é melhor que ninguém, nesse mundo aqui ninguém chega a nenhum lugar sozinho, ninguém é superior a ninguém...eu enxergo a girafa como um animal superior, que fica lá em cima...".
Com relação ao Superego, a instância psíquica responsável pela construção da interiorização das exigências e das interdições parentais (Freud, 1923/1996; Laplanche & Pontalis, 1991), encontra-se os seguintes dados destacados: a maior parte dos participantes, 75% (N=15), apresentou distância adequada entre metas, possibilidades de avaliação das habilidades e realidades, além de autoconhecimento, apenas 25% (N=5) mostraram um funcionamento mais primitivos; 80% (N=16) apresentaram sanções menos severas e explicações ricas de acordo com o símbolo escolhido; os outros 20% (N=4) sanções mais severas e distância entre a riqueza do símbolo e pobreza na racionalização, ou apenas este último; 85% (N=17) internalizaram bem as pautas e apresentaram correspondência entre a realidade e a idade cronológica; 65% (N=13) obtiveram símbolos dotados de integração e consistência sem superdimensionamento das qualidades e uma distância aceitável entre objetos valorizados e rejeitados que não implica idealização-desvalorização, sendo que em 35% (N=7) os objetos eram dotados de qualidade onipotentes (nas positivas) ou denegridos (nas negativas), além de marcada distância entre respostas positivas e negativas. Exemplificando:
P3: 1+ "Livro (?) Porque o livro tem muito informação, o livro ajuda as pessoas conhecerem coisas novas, o livro é conhecimento é transmissão de conhecimento é busca de conhecimento...".
P20: 3+ "Equação Antivida (?) é uma força, uma energia, mas ela também se torna uma pessoa, ela é como se fosse o próprio universo em si, só que é uma fantasia né... vira uma pessoa menor para entrar dentro do universo e colocar as coisas em ordem, quando entra no caos".
A respeito das explicações das consignas nas catexias positivas, logo no início do protocolo surgiram respostas com característica de: Liberdade= livre, não ficar preso, independência e de respeito ao próprio tempo e própria vontade (P2); Perfeição = aspectos ligados à beleza, encanto, qualidades relacionadas ao belo (P4); Proteção = força, vigor e objetividade, (P5); Onipotência= poderoso, ser admirado e incrível (P14); Altruísmo = amor ao próximo, carinho e/ou ajudar as pessoas (P9). Este, presente em poucos participantes, ainda que a amostra tenha sido composta por profissionais voluntários. Ademais, respostas referentes à: Intelectualização= conhecimento, criação e formação (P3) e Isolamento= estar distante, sozinho, tranquilo, sensação de paz e calma (P12). Segundo Arzeno (1995), a primeira resposta sugere aquilo que o indivíduo teme perder, aquilo que ele mais valoriza em si mesmo. Ainda pode indicar aspectos desejados inconscientemente, ligando-se ao que o sujeito mais almeja, como busca para seu Ideal do Ego, ou seja, aquilo que está vinculado à idealização, além de dar uma indicativa sobre as defesas que usa diante da fantasia de morte (angústia, ansiedade e/ou medo), segue abaixo os exemplos:
P2: "Carro, (?) Porque corre, porque vai para tudo que é lugar, não fica preso a nada, essas coisas".
P4: 1+ "Pantera (?) acho bonito".
P5: 1+ "Onça. (?) Ah, mãezona né, protetora, brava, eu sou assim".
P9: 2+ "Árvore (?) Para dar frutos, para alimentar aqueles que não pode comprar de uma forma ou de outra, no mercado né! pode ir até a árvore e Pegar ter esse fruto.
P14: 1+ "Leão (?) Por questão de força realmente".
P3: 1+ "Livro. (?) Porque o livro tem muito informação, o livro ajuda pessoas conhecerem coisas novas ...".
P12: 2+ "Quadro, por exemplo (Por quê?) Um quadro representando um coração... dentro de um ambiente fechado, entre quatro paredes".
Nos resultados das catexias negativas foram encontrados aspectos relacionados à Desvalorização (sujeira, nojo, destruição, maus-tratos, abandono, sofrimento, mau cheiro, carniça, coisas ruins, nada de bom), Impotência (não fazer nada, ficar parado, sem contato, ficar recluso, não tem vida, não criar nada), e Atitude de inveja (falsidade, traição e veneno=língua venenosa, ou falar mal). Surpreendentemente, as respostas apresentadas foram referentes à Falta de vontade (não gosto, atrapalha, distância e ser usado), como pode ser visto na resposta do participante:
P5: 2- "Alface (?) Ah! Fica murcho, jogadinho ali, não é todo mundo que gosta de lavar, cuidar, não tem cuidado..."
Conforme Arzeno (1995) explica, aquilo que surge nas explicações das consignas negativas é algo que o indivíduo mais rejeita, mais teme em si mesmo, aquilo que está carregado de natureza a qual deve lutar e ainda o preço que se paga ao usar suas defesas. Observa-se que muitas respostas na amostra pesquisada parecem estar relacionadas com as vivências nos hospitais como doutores palhaços, e, ainda que incorporem o personagem como forma de distanciamento para realização do trabalho, muitas explicações desiderativas assemelham-se aos sentimentos que os doentes despertam nos participantes, principalmente a categoria desvalorização, repletas de simbologias com conteúdos negativos, destrutivos e melancólicos. Dessa forma, aqueles que estão continuamente com os pacientes internados tendem a sentir-se nervosos, preocupados, tristes, tensos e/ou assustados, tais sentimentos indicam que pode existir algum tipo de sofrimento psíquico em quem atua no hospital, devido às identificações (Santos, 2003; Medeiros e Pinto Júnior, 2006).
A técnica escolhida traz ao presente a natureza projetiva, uma perspectiva do sujeito e, assim, uma parte da sua constituição psíquica, pois ao identificar-se com um ser vivo, ou objeto, que tanto valoriza como desvaloriza, apresenta suas nuances, singularidades ou conteúdo da sua personalidade, que até aquele momento esteve reprimido, como foi possível verificar em outros trabalhos feito como o QD que mostrou ser eficiente para a avaliação dos conteúdos inconscientes (Medeiros e Pinto Júnior, 2006; Frazão, Gil & Tardivo, 2011). A técnica trouxe também, diante da narrativa dos sujeitos, a sua escolha por ser voluntário, que envolve muita demanda, e não há como negar que tal prática compreende ter como característica a habilidade de curar uma dor interna ao cuidar do outro.
O trabalho voluntário ou o profissional voluntário (palhaço-doutor, médico, contador de histórias, entre outros) é um facilitador, em razão de dar o auxílio emocional, sendo uma espécie de companheiro para o profissional da saúde, já que abre espaço para o lúdico, o brincar. Porém, muitas vezes, percebe-se impotente, sendo apenas um guardião mascarado, que faz seu trabalho e abre caminho para novas formas de sentir e experimentar. Consoante ao que expõe Moniz e Araújo (2008), as autoras questionam a respeito do suporte emocional que os voluntários dispõem, ou seja, se existe uma segurança psíquica diante de tal trabalho e constataram que os sujeitos precisam estar sempre em busca de aperfeiçoamento e que há limitações sobre seu espaço de atuação, não diferenciando muito do trabalho de qualquer profissional que atua nos hospitais e que deve estar em busca sempre da atualização e do auto-cuidado. Cuidar do doente é um desafio, mas fazê-lo sem qualquer ganho/reconhecimento é maior ainda.
Considerações Finais
No que confere ao instrumento utilizado no presente estudo, o fato do QD não ter uma padronização para a população brasileira, corrobora para que estudos como esse possam auxiliar a verificação da necessidade de tal técnica ser efetivamente usada como forma de compreender os aspectos da personalidade da população e também, via de regra, é possível compartilhar os resultados de forma que proporcione uma melhoria na qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade em geral.
Na maior parte dos casos, os participantes responderam adequadamente ao Questionário Desiderativo, o que demonstra compreensão do instrumento e aceitação à desidentificação com a condição humana, podendo, assim, instrumentalizar suas defesas para realizar a tarefa que o teste exige. Entretanto, alguns não conseguiram usar desses mesmos mecanismos defensivos, pois cometeram fracassos totais ou parciais a depender do tipo de defesa, ou seja, uma fraca estruturação egóica para lidar com a situação que o Questionário Desiderativo exige. Apenas uma parte ínfima não pôde instrumentalizar adaptativamente a racionalização, identificação projetiva, dissociação entre realidade e fantasia e a repressão básica, conforme mencionado por Nijamkin e Braude (2000), e então não conseguiu concluir a técnica.
O procedimento mostrou ser uma técnica projetiva muito eficiente para investigar a natureza da personalidade na amostra de voluntários da pesquisa. É importante frisar que o estudo se faz necessário diante das particularidades que esses indivíduos lidam no dia-a-dia do seu ofício, e que há de se reconhecer sua preparação, seu estudo, sua dedicação para atuarem como palhaços voluntários nos hospitais. No entanto, é importante ressaltar que esses sujeitos não estão ali para curar, mas sim para auxiliar e fortalecer o paciente que, muitas vezes, encontram-se no final da sua existência, ou até mesmo, através do riso e do lúdico, diminuir a dor física, psíquica ou espiritual do enfermo.
Diante disso, percebe-se que esses voluntários, ao cuidar ou dar o seu tempo para um outro ser humano, tornam-se parte desse cenário, sendo impelidos por ele, e diante das histórias de vida e de morte, e ao presenciar o indivíduo em um nível de grande sofrimento, sentem-se identificados com tal situação e são tomados por sentimentos que constituem partes do processo ou do contexto próprio do ambiente. Confirmando a hipótese de que o contato com os pacientes pode produzir impacto e gerar sofrimento a esses voluntários.
Particularidades ainda mostram que se torna importante cuidar de quem cuida, ainda mais nessas circunstâncias, como mencionado. É importante ressaltar que existe também um aspecto da negação desses sujeitos voluntários em suas falas, nos gestos, no conteúdo dos seus discursos. Existe um fator que não admite que tais sentimentos possam surgir devido à natureza do seu trabalho, já que estão ali para ajudar e com isso sabem a responsabilidade de tal função e que são poucos os que se dedicam a isso.
Nesse contexto, pode-se notar que o QD apresentou também um grande panorama do aspecto egóico, seja ele consciente ou inconscientemente. Nota-se que os participantes do estudo podem ser uma parte ou uma representação da sociedade em geral, pois existe uma total negação da morte, da doença, do medo e da fraqueza em detrimento de supervalorizar a vida, a felicidade, a beleza ou que é belo. De modo geral, percebe-se que ser acompanhado profissionalmente por um terapeuta, psicólogo ou psiquiatra pode ajudar a saúde egóica dos sujeitos que trabalham no ambiente hospitalar, seja ele voluntário ou não, assim como ter maior rede de laços afetivos, reconhecimento, estar mais feliz com a escolha profissional e valorizar a autoestima pode tornar ou fazer com que o indivíduo sinta menos o impacto da angústia, ansiedade e da ambivalência presente nesses trabalhos que são permeados de alegrias e tristezas, de vida e morte.
Assim sendo, conclui-se que o conteúdo dos resultados, tanto das entrevistas quanto das respostas do QD, demonstra que o trabalho voluntário no hospital envolve muito engajamento e dedicação, como qualquer outro, pois percebe-se que esses sujeitos escolhem estar neste ambiente por opção de vida, e não apenas porque trabalham e ganham sua remuneração, não há troca por meio de honorários ou folgas, não existe lucro de qualquer natureza, mas existe sim a Doação. Doa-se com o tempo, com a presença, com a brincadeira, com o abraço, com o choro, com o desabafo, com um passeio pelos corredores, com uma música, com o animal feito de bexiga, com um desenho e, principalmente, com o sorriso extraído do outro em uma situação em que só é esperada a lágrima. No entanto, enfrentam o pesar e a dor da morte, cotidianamente, como o médico, o enfermeiro, o psicólogo, o fisioterapeuta, o segurança, o farmacêutico e ele também está ali, e sente. No que tange à hipótese há a admissão de que o contato com os pacientes pode produzir impacto e gerar sofrimento para os palhaços, o que ao que tudo indica, se confirma nos achados clínicos.
Referências
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1 Universidade São Judas Tadeu - São Paulo/SP- Psicólogo graduado na Universidade São Judas Tadeu. Atua como psicólogo clínico em consultório particular. Contato: mattos.miguel@hotmail.com.
2 Universidade São Judas Tadeu - São Paulo/SP. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu, cursando Pós-Graduação em Psicoterapia Breve Psicodinâmica pela Faculdade Unyleya. Atua como psicóloga clínica em consultório particular. Contato: b.spina.donadio@hotmail.com.
3 Universidade São Judas Tadeu – São Paulo/SP – Psicóloga, Doutora e Mestre em Ciências/Saúde Pública (FSP/USP), especialista em Psicologia Hospitalar (Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo) e cursando Pós-Graduação em Psicoterapia Psicanalítica (CEPSI). Atua como docente em Psicologia na Universidade São Judas Tadeu e psicóloga clínica em consultório particular. Contato: danutamedeiros@gmail.com.