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Revista da SBPH

versión impresa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.2 São Paulo jul./dic. 2019

 

ARTIGOS

 

Panorama sobre a obesidade: do viés cultural aos aspectos psíquicos

 

Overview of obesity: from cultural bias to psychic aspects

 

 

Juliana Medeiros Silva1; Gustavo Henrique Dionisio2

Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquisa Filho, FCL-Unesp Assis/SP

 

 


RESUMO

A prevalência de sobrepeso e de obesidade vem se apresentando como um dos principais desafios enfrentados pela saúde no âmbito mundial. Considerada pela medicina uma doença crônica, multifatorial e de complexo tratamento, a obesidade afeta todas as faixas etárias da população e é um importante fator de risco para outras doenças, sendo responsável pela morte de mais de 2,8 milhões de pessoas por ano. Seu impacto reflete e interfere de forma significativa na qualidade de vida, na realização das atividades diárias e na busca pelos serviços de saúde, além de ter implicações diretas na aceitação social, nas relações interpessoais e na própria relação do sujeito consigo e com seu corpo, trazendo assim uma série de prejuízos àquele que a desenvolve. Inúmeros tratamentos buscam minimizar os efeitos da obesidade e até mesmo encontrar sua cura, no entanto, as respostas dadas pelos sujeitos nem sempre acompanham os esforços da ciência no combate ao excesso de peso, resultando muitas vezes no insucesso das terapêuticas e destacando algo que diz da ordem psíquica. A dificuldade de controle da obesidade, seus índices expressivos e progressivos e as questões psíquicas que envolvem essa manifestação chamam a atenção e convocam também o psicanalista à reflexão.

Palavras-chave: obesidade – aspectos psicológicos; psicanálise; corpo humano; manifestações psicológicas de doenças.


ABSTRACT

The prevalence of overweight and obesity is occurring as one of the main challenges faced by worldwide healthcare. Considered by medicine as a chronic disease, heaving multifactorial and complex treatment, obesity affects all age groups of the population and is an important risk factor for other diseases, being responsible for the death of more than 2.8 million people per year. Its impact reflects and significantly interferes in life quality, daily activities and in the search for health services; and also has impacts in social acceptance, interpersonal relationships and the subject's own relation with himself and his body, bringing a series of prejudices to the one who develops it. Numerous treatments seek to minimize the effects of obesity and even find its cure; however, the responses given by the subjects do not always accompany the efforts of science in the fight against overweight, often resulting in the failure of therapies and highlighting something about the psychic issue. The difficulty of controlling obesity, its expressive and progressive raise, and the psychic problems involved in this manifestation attract attention and also invite the psychoanalyst to reflect.

Keywords: obesity - psychological aspects; psychoanalysis; human body; psychological manifestations of diseases.


 

 

A obesidade é um tema de imprescindível discussão na atualidade. Considerada uma epidemia complexa e de grandes proporções mundialmente, a obesidade afeta todas as faixas etárias e grupos socioeconômicos, e sua incidência, responsável por inúmeros prejuízos à saúde e significativas taxas de mortalidade, vem suscitando a preocupação tanto dos profissionais de saúde quanto dos governantes (WHO, 2000; WHO, 2016).

Segundo dados da OMS, a ocorrência de obesidade no mundo mais do que dobrou desde 1980, apresentando um crescimento desenfreado principalmente nos últimos anos (WHO, 2016). Em 2002, por exemplo, estimava-se aproximadamente 1 bilhão de pessoas com sobrepeso, sendo 300 milhões consideradas obesas (WHO, 2002b); enquanto em 2014 esses índices foram ainda mais surpreendentes: mais de 1,9 bilhões de adultos com sobrepeso e 600 milhões de obesos (WHO, 2016), ou seja, praticamente um aumento de 100% nos casos de sobrepeso e de obesidade em apenas 12 anos. No Brasil, quinto país de grande porte com mais obesos no mundo, segundo pesquisa publicada na revista The Lancet, em 2014, e 77º país com mais obesos segundo o ranking da OMS, a incidência da obesidade segue o panorama mundial e o quadro também é visto como epidêmico.

O fato de o sobrepeso e a obesidade se apresentarem cada vez mais frequentes desde a primeira infância, atingindo crianças e adolescentes, é outro aspecto que vem preocupando os órgãos responsáveis pela saúde pública, principalmente pela maior probabilidade destas crianças e jovens se tornarem adultos obesos, de modo a ter que arcar não somente com as vastas repercussões físicas, mas também psíquicas e sociais da doença – repercussões essas que já parecem arcar desde muito cedo, ainda que de forma silenciosa e/ou inconsciente (Rodrigues, 1998; Onis, Blosiner & Borghi, 2010; WHO, 2016). No Brasil, as estatísticas apontam que a obesidade infantil é a que mais cresce. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada entre 2008 e 2009, pelo IBGE, apontou a presença de sobrepeso em aproximadamente 30% das crianças entre 5 e 9 anos de idade, ou seja, 1 a cada 3 crianças acima do peso indicado para sua altura e idade, sendo 15% dessas consideradas obesas. Além dos números já preocupantes, as previsões para o futuro não são as melhores. Dados do IBGE também sugerem que em 20 anos os casos de obesidade mais do que quadruplicarão na população de 5 e 9 anos de idade (IBGE, 2010).

Segundo o relatório de "Estatísticas Mundiais de Saúde 2012", publicado pela OMS, a obesidade e o sobrepeso já eram a causa de morte de pelo menos 2,8 milhões de pessoas por ano (WHO, 2012a), configurando-se uma das principais causas de morte evitáveis em todo o mundo. Somente no Brasil, a obesidade já é responsável por mais de 2,6 milhões de mortes ao ano. Além disso, estimava-se que cerca de 35,8 milhões (2,3%) dos Disability Adjusted Life Years (DALYs) globais seriam causados pelo excesso de peso ou obesidade (WHO, 2012b). Disability Adjusted Life Years significam anos de vida perdidos ajustados por incapacidade. Trata-se de um indicador que mede simultaneamente o efeito da mortalidade e da morbidade.

Outras consequências dessa incidência também podem ser observadas pelas inúmeras repercussões que o excesso de peso e a obesidade trazem tanto para o indivíduo quanto para a sociedade nos mais diversos âmbitos: altas taxas de comorbidades advindas do excesso de peso; busca crescente e frequente pelos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, sobrecarregando a sistema de saúde; prejuízos na rotina de vida, como: absenteísmo escolar e no trabalho, limitação na realização de atividades diárias, dificuldades de mobilidade e alterações no sono; implicações diretas na aceitação social e na própria relação do sujeito consigo, além de um impacto significativo na economia.

Nesse cenário epidemiológico e de consequências devastadoras, a prevalência de sobrepeso e de obesidade se apresenta como um dos principais desafios enfrentados pela saúde no âmbito mundial e diversas estratégias vêm sendo pensadas, visando conter sua expansão. Contudo, apesar das inúmeras investidas dos órgãos de saúde e das diversas ações implantadas, é notável que o excesso de peso e a obesidade saíram do controle, exigindo mais atenção do que algumas medidas preventivas. Nesse sentido, o cenário é de inquietar: por que esses índices têm crescido tanto? O que tem tornado tão difícil o combate à obesidade? O salto imenso, observado nos últimos anos nas taxas de obesidade e sobrepeso, e a frustração no controle desta manifestação, não apenas assinalam a dimensão alarmante que o excesso de peso assumiu na atualidade, mas também levam a refletir sobre o percurso dessa manifestação e de seus índices ao longo dos anos. O que poderia conduzir tantas pessoas à mesma manifestação? Estaria a elevada incidência da obesidade apontando para algo da ordem do social? Qual o papel da psicologia nesse contexto? O cenário convoca reflexões.

Esse impasse se agrava e se torna mais intrigante quando nos deparamos com a contradição do obeso desnutrido. Se antes o retrato da desnutrição era a magreza excessiva, resultado principal da ausência de alimentos, hoje assistimos ao obeso, cujo acesso ao alimento é vasto, carecer de nutrientes. A possibilidade de coexistência das duas situações (obesidade e desnutrição) é verídica, já que não há obrigatoriamente equivalência entre ser alimento e ser nutritivo, mas é inegável a estranheza de sua concomitância. Diante de um dos maiores paradoxos da atualidade, a pergunta que fica é o que estaria subjugado por traz dessa relevante contradição. E mais: que manifestação é essa a qual nem os órgãos mundiais de saúde nem a medicina, com suas inúmeras técnicas e procedimentos, consegue conter ou apresentar uma solução definitiva? O que significa esse excesso que se apresenta no corpo?

Apesar da atual dimensão, profilaxia e mal-estar em torno dessa manifestação, nem sempre foi assim. A obesidade em si não é um problema novo, sendo relatada desde a antiguidade por meio de obras de arte e da literatura; entretanto, sua incidência e a percepção que se tem das pessoas com excesso de peso é o que tem variado ao longo dos diferentes contextos históricos, sociais e econômicos, e trazido questões de extrema relevância.

Espelho, na atualidade, de doença, estigma, preconceito e de inúmeros julgamentos, a obesidade já foi compreendida apenas como uma das muitas formas de existir do ser humano e até mesmo um aspecto positivo, não como um problema a ser combatido, como é vista nos dias de hoje. Com um longo percurso desde a antiguidade, o excesso de peso passou por diversas formas de percepção, desde a apreciação, sendo exaltado como símbolo de poder, riqueza, fertilidade, saúde e beleza, até a depreciação, sendo rejeitado como símbolo de horror, descontrole, doença, morte e feiura, culminando, assim, na estigmatização e na culpabilização do próprio sujeito pela condição de seu corpo.

Fazendo um breve resgate, observamos relatos da existência de homens corpulentos desde nossos ancestrais pré-históricos, quando a sobrevivência do mais apto ditava que os indivíduos que armazenavam uma quantidade maior de energia (sob a forma de gordura) sobreviveriam ao jejum e à fome nos períodos de escassez (Haslam, 2007). Também encontramos estudos que se referem há aproximadamente 30.000 anos atrás, quando as deusas eram admiradas e veneradas por seus corpos volumosos. A fartura das coxas, dos seios e dos quadris era cultuada como o belo e saudável, sendo tida como símbolo de fertilidade e padrão de beleza da época (Bruch, 1973; Haslam, 2007). Esculturas pré-históricas egípcias, gregas e babilônicas também demonstram a preferência escultural por esse modelo de mulher, indicando que nesse período a obesidade era algo natural e muito distante de ser considerada como um problema. Com o Império Romano iniciou-se uma mudança nos padrões estéticos, e os corpos magros, fortes e, portanto, mais ágeis, começaram a ganhar destaque. A maior mobilidade era tida como vantagem nas guerras e o excesso de peso começava assim a ser visto como algo desinteressante (Bruch, 1973; Bariatric Surgery, 2006; Cabalerro, 2007). No entanto, os difíceis momentos de crise, em que a comida era escassa e a fome assolava a população, principalmente na Idade Média, levavam a obesidade a ser vista como um sinal de fartura, pujança, saúde e bem-estar (Cassell, 1995; Haslam, 2007), ilustrando seu julgamento variável e cultural.

O reconhecimento da obesidade como sinal de morbidade e sua efetiva articulação ao status de doença se deu somente após a associação do excesso de peso à expectativa de vida e a alguns problemas de saúde, o que trouxe consigo importantes mudanças na compreensão dessa manifestação. Os gregos foram os precursores a associar o excesso de peso a um transtorno médico e a relacioná-lo a outras doenças (WHO, 2000). Hipócrates, considerado o "pai da medicina", e Cláudio Galeno, seu seguidor, ambos médicos greco-romanos, foram os primeiros a observar que o número de óbitos súbitos era maior nessa população quando comparado ao de pessoas magras e a associar a obesidade à indisciplina, aconselhando a prática de atividade física e uma alimentação balanceada e regulada para obtenção de um corpo saudável. Hipócrates ainda alertou que a corpulência não era somente uma doença, mas também o prenúncio para outras, o que agravava a condição de saúde daquele que a apresentava (Haslam & James, 2005; Bariatric Surgery, 2006; Haslam, 2007). As descobertas gregas de que excesso de peso acarretava em prejuízos para saúde, podendo levar à morte prematura e o surgimento da medicina moderna, foram sem dúvidas uma conjuntura decisiva para nortear os destinos dessa manifestação e promover uma importante mudança no olhar direcionado ao excesso de peso, principalmente considerando as amplas mudanças que se observava na sociedade.

A passagem do feudalismo para o capitalismo e o surgimento das ideias renascentistas foram o ponto de partida para que uma importante mudança na sociedade e na ciência se iniciasse. Com o enfraquecimento das estruturas medievais, a invenção de instrumentos científicos e a descoberta das leis da natureza, uma nova configuração do saber, pautada nos ideais humanistas e naturalistas da antiguidade clássica, passou a se delinear. O uso da razão individual e da análise de evidências empíricas – que se solidificou com a ascensão do racionalismo iluminista no século XVIII – fizeram com que o saber da medicina tomasse novos rumos e a doença perdesse seu caráter místico e religioso (marca da medicina medieval) e voltasse a ser um elemento natural, logo, passível de cura. Esse novo olhar sobre a doença trouxe a possibilidade de aplicação dos conhecimentos científicos, que a cada dia se apresentavam mais desenvolvidos, e as investigações da medicina passaram então a fundar-se nos conceitos da anatomia e da fisiologia, possibilitando, por meio da observação e da classificação de doenças, um conhecimento mais amplo destas (Brotton, 2006; Valverde, 2003; Rosen, 1994). Com a configuração moderna de saúde e de doença, a relação com o corpo e com a saúde ganhou outro espaço na sociedade. Diante de uma nova concepção de doença, baseada na razão, corpo e pensamento foram separados e o foco passou a ser exclusivamente o organismo/matéria, surgindo, assim, a visão mecanicista/técnica do corpo. A ideia de que microrganismos eram os causadores das enfermidades também surgiu nesse período, e a atenção destinada aos problemas médicos-sanitários ganhou destaque, abrindo espaço para as práticas sanitaristas e de controle.

A busca pelo controle das epidemias que acompanhavam o homem no processo de urbanização e industrialização acarretou na incursão de novas terapêuticas e na preocupação em se estabelecer medidas profiláticas, o que levou a uma prática de tratamento das doenças totalmente centrada no aparato da ciência e da medicina, assim como no controle dos corpos e de suas manifestações. Nesse sentido, o corpo se tornou palco dos mais diversos diagnósticos e, na mesma medida, espaço de demonstração de saúde e bem-estar, sendo atribuída à doença caráter praticamente inadmissível (Porter, 2001; Sigolo, 1996; Rosen, 1994; Giddens, 1991). Nesse cenário, a obesidade, submetida então à denominação de doença, passou a figurar o campo da medicina enquanto uma manifestação de caráter essencialmente orgânico. Desta forma, os corpos que antes eram julgados essencialmente por seu aspecto estético, passaram também a ser norteados pela ordem biológica, sendo regulamentados por um arranjo no qual o excesso de peso assumiu a equivalência de problema.

O maior progresso para compreensão dessa condição se deu, entretanto, a partir do século XX, quando a obesidade, em decorrência de suas comorbidades, foi efetivamente associada ao aumento significativo das taxas de mortalidade, ganhando maior visibilidade e demandando maiores estudos, a fim de reduzir e controlar sua incidência (WHO, 2000). Os avanços no sentido de uma compreensão mais abrangente dessa manifestação, assim como a percepção de que, para além dos prejuízos associados diretamente à saúde, a obesidade também era um importante fator de impacto em várias outras instâncias da vida do indivíduo, possibilitaram que essa manifestação fosse, posteriormente, atrelada a outros saberes, como a nutrição e a psicologia, sendo hoje, finalmente, admitida, explorada e tratada em seu âmbito multidisciplinar.

Entre os anos 1920 e 1930, por meio de estudos ainda iniciais, a obesidade começou a ser associada a um problema genético, hormonal e comportamental. Na década de 30, por exemplo, a ocorrência da obesidade era justificada por problemas endocrinológicos, sendo imputada a uma disfunção glandular. Essa visão, no entanto, não predominou por muito tempo. Entre 1940 e 1950, com a progressão nos estudos acerca dessa manifestação, constatou-se que a disfunção glandular não poderia apenas por si só ser a responsável pela obesidade, de forma que a sua ocorrência seria, então, resultado de uma desproporção energética (como já apontado por Lavoisier), causada por uma série de fatores de ordem externa que, separados ou em interação, levavam o indivíduo a ingestão demasiada. Assim, embora a influência genética continuasse a ser potencialmente explorada, outros fatores passavam a ser associados à ocorrência da obesidade. Foi nesse cenário que a obesidade passou a ser correlacionada também a fatores psíquicos, como o estresse (WHO, 2000). Evidências apontam o aumento nos casos de obesidade durante o período das duas grandes guerras, tanto pela má alimentação quanto por fatores psíquicos. Na França, por exemplo, retrata-se que, durante a Segunda Guerra Mundial, muitas mulheres jovens que haviam sido expostas aos bombardeios e outras pressões desenvolveram a obesidade. Nos campos de concentração também se observou casos de obesidade, inclusive em pessoas expostas a um longo período de inanição (Loli, 2000).

Também na década de 1950, o tratamento da obesidade, que antes preconizava a atividade física e a menor ingestão de alimentos calóricos, passou a se apoiar na comercialização de produtos de dieta. Esses produtos, no entanto, não corresponderam às expectativas de solucionar o problema do excesso de peso, possibilitando que a terapia comportamental ganhasse espaço enquanto um reforço para a mudança de hábitos. Dessa forma, ainda que em um caráter objetivo, focal e cognitivo, a psicologia adentrava o campo da medicina para ajudar no controle dessa manifestação, auxiliando nas mudanças e reforçando os comportamentos alimentares e de atividade física adequados (Frota, 2007; Kaila & Raman, 2008).

Nesse contexto, a obesidade já possuía o caráter de doença na maioria das culturas, sendo o excesso de peso visto principalmente como algo negativo e associado à gula, ao descontrole e à feiura – o que se mantém, salvo exceções, ainda no cenário atual. Guardadas as devidas ressalvas, é valido observar que essa percepção permanece variável de acordo com a cultura e com a individualidade. No continente africano, por exemplo, diante da pobreza e precariedade em que vive a maioria da população, estar acima do peso ainda confere um certo status positivo, gerando, ao contrário do preconceito, admiração (Haslam & James, 2005).

A obesidade é considerada pela medicina uma doença crônica, não transmissível e de complexo tratamento, caracterizada pelo excesso de gordura corporal ou acúmulo de tecido adiposo. Trata-se de um distúrbio metabólico de desequilíbrio energético, resultado de um descompasso positivo entre o consumo e o gasto de energia, de forma que a quantidade de calorias ingeridas é muito maior do que a quantidade que o organismo necessita, gasta ou é capaz de processar para manter seu bom funcionamento (WHO, 2000).

O diagnóstico da obesidade pode ser feito por meio de diferentes métodos – sendo inclusive constatada visualmente, o que é em parte responsável pelos estigmas que envolvem essa manifestação. Estudos epidemiológicos realizados pela OMS sugerem que o diagnóstico seja realizado a partir do critério estabelecido pelo Índice de Massa Corporal (IMC), a fim de padronizar a medição da obesidade e facilitar a comparação de sua prevalência entre os diversos países. Dentre os adultos, o IMC é calculado pela divisão entre o peso (medido em quilogramas) e a altura ao quadrado (medida em metros), sendo considerados com sobrepeso ou com pré-obesidade os indivíduos com IMC entre 25 e 29,99 e obesos aqueles que apresentam índices superiores. A obesidade ainda pode ser classificada de acordo com seus escores em Grau I (IMC entre 30 e 34,99), Grau II (IMC entre 35 e 39,99) e Grau III (IMC maior que 40), sendo este o mais grave e o mais difícil de tratar e donde se encontram os chamados obesos mórbidos (WHO, 2000). Se para a medicina esses escores refletem o nível de comprometimento e da gravidade do estado de saúde do indivíduo, para psicologia e para psicanálise esse excesso de peso pode ser entendido como o reflexo de uma série de questões psíquicas (subjetivas e pulsionais e relacionadas ao modo de gozo) que, em maior ou menor grau, levam o sujeito a encontrar no alimento aquilo de que "necessita". Outra associação entre o excesso de peso e o psiquismo pode ser verificada, por exemplo, pela variação na incidência de "transtornos" psíquicos de acordo com o índice de peso. Contudo, falaremos sobre isso adiante.

Precedente a uma série de alterações no organismo, a obesidade é um dos fatores mais significativos no aparecimento de outras doenças e pode acarretar em diversos prejuízos, tanto em relação à saúde física quanto em relação à saúde psíquica. Estudos apontam a obesidade como desencadeadora ou agravante de manifestações de cunho psíquico, como a depressão, a ansiedade, a baixa autoestima e alguns transtornos alimentares, podendo levar até mesmo ao suicídio (Martins, 2012; Luppino, De Wit, Bouvy, Stijnen, Cuijpers, Penninx & Zitman, 2010; 2004; Dixon, Dixon & O'Brien, 2003).

De etiologia multifatorial, a obesidade pode ser subdividida em dois tipos: endógena, associada ao metabolismo do indivíduo e de causa orgânica propriamente dita, como no caso do obeso com calorigênese (aquele que ingere uma quantidade normal de alimento, porém engorda devido a disfunções no próprio organismo), e exógena, também conhecida como nutricional, sendo essa relacionada a qualquer outro fator pertinente ao estilo de vida, donde se encontra, por exemplo, o obeso hiperfágico (que ingere demasiada quantidade de alimento). Assim, o peso corporal pode ser regulado por vários mecanismos, envolvendo fatores genéticos, biológicos, neurológicos, endocrinológicos, ambientais, educacionais, nutricionais, comportamentais, culturais, sociais e subjetivos (Coutinho, 1999; Brasil, 2006; Kaila & Raman, 2008; Melo, 2011).

O aspecto hereditário observado em muitos casos de obesidade é outro ponto que vem suscitando pesquisas e tem instigado a medicina a buscar a explicação para essa manifestação pela genética. Pesquisas apontam que o balanço energético responsável pela obesidade depende em cerca de 40% da herança genética, havendo uma base genética que é transmissível e que influencia na manutenção do peso corporal (Bouchard, Pérusse, Rice & Rao, 1998; Hirsch & Leibel, 1998). Nesse sentido, estudos verificaram que, ao se considerar o histórico familiar de obesidade, era comum a presença de parentes com peso excessivo, destacando uma importante correlação entre pais obesos e maior incidência de obesidade em seus filhos, quando comparados às crianças cujos pais apresentavam peso normal. Giuliano e Carneiro (2004), por exemplo, em uma pesquisa com crianças entre 6 e 10 anos, verificou uma frequência de sobrepeso e obesidade de 51,8% das crianças quando ambos os pais eram obesos, 50% quando apenas um dos pais era obeso e de 19,6% quando nenhum dos pais era obeso. Outros trabalhos ainda apontam que esses números podem chegar a 80% para filhos de pais obesos, 40% para apenas um dos pais obesos e 10% na ausência de pais obesos (ABESO, 2008). Contudo, apesar do fator genético hereditário, esse cenário também pode ser associado a fatores culturais, ambientais e sociais no qual a criança está inserida, ou seja, a rotina que permeia sua vida – o que se legitima pela presença significativa de obesidade em filhos de pais não obesos. Assim, embora os fatores genéticos e o próprio metabolismo do organismo atuem no aumento da susceptibilidade para a ocorrência do excesso de peso, é estimado que somente uma pequena parcela dos casos de obesidade possa ser atribuída à hereditariedade, destacando-se os fatores ambientais e comportamentais.

O que se constata, em suma, é que a despeito dos avanços e esforços da medicina para encontrar uma causa genética/biológica para a obesidade e ainda que essa seja uma manifestação de grande importância considerando aspectos orgânicos, na maioria dos casos não há uma anormalidade ou disfunção originalmente orgânica que justifique, por si só, sua ocorrência – tampouco que justifique sua incidência epidêmica constatada na atualidade –, apontando para a importância de outros aspectos envolvidos. Segundo os resultados obtidos pela OMS (2000; 2012; 2016), são as mudanças na sociedade e nos hábitos alimentares em todo o mundo que estão levando a esse cenário de obesidade. A revolução industrial associada à globalização do mercado alimentício, o acesso e aquisição facilitados e a crescente economia são apenas alguns dos fatores que contribuem para esse crescimento epidemiológico. A proliferação da cultura das fast-foods, resultado desse processo e do crescimento da produção capitalista, é outro ponto importante para se entender a obesidade na atualidade, principalmente se consideramos sua oferta e a praticidade/velocidade que oferece àqueles que procuram uma refeição fora de casa. Nesse sentido, a oferta ilimitada de alimentos baratos, palatáveis, práticos e de alta concentração energética, fruto desse cenário e das demandas associadas ao modo de vida da sociedade atual, favorecem os maus hábitos alimentares.

É comprovado que os hábitos de vida sedentários e a alimentação inadequada (principalmente a ingestão de grandes quantidades de alimentos – ingeridos muitas vezes de forma compulsiva – ou alimentos muito calóricos) desempenham um papel preponderante na ocorrência dessa enfermidade, uma vez que os genes podem se expressar de forma diferencial em resposta a dietas ricas em gordura, assim propiciando o aumento da adiposidade (Brasil, 2006; Melo, 2011; WHO, 2016).

O caráter complexo, irracional e não pedagógico da doença, haja vista que o discurso médico/da saúde e o conhecimento das repercussões da obesidade se mostram ineficazes para contê-la, demanda atenção para outros aspectos que favorecem que o sujeito entre nessa lógica de consumo e de hábitos prejudiciais à saúde. Nesse sentido, é preciso considerar que a ocorrência da obesidade está associada a fatores que são permeados por condições ambientais, culturais, sociais e psíquicas, ou seja, há algo do coletivo e do subjetivo que parece incidir e influenciar no comportamento das pessoas e em seu adoecimento, dificultando que o sujeito venha a mudar as condições que levam a sua obesidade. Em outras palavras, podemos dizer que a obesidade não é apenas responsabilidade individual do sujeito, mas sim um problema relacionado à saúde pública, uma vez que os fatores que podem gerar o adoecimento são também, e, essencialmente, sociais.

Diversos estudos têm demonstrado circunstâncias, situações e fases do curso de vida que podem tornar o sujeito mais vulnerável à obesidade, classificando esta como de longa duração (ocorre em indivíduos obesos desde a infância e está normalmente associada aos hábitos alimentares do meio no qual a criança está inserida); da puberdade (associada, na sua maioria, a fatores psicossomáticos) ou resultante de diversas outras circunstâncias e fases da vida adulta, como o ganho de peso gestacional, o número de filhos e as alterações hormonais durante a menopausa. Outros fatores associados ao ganho de peso são mudanças que ocorrem em certos momentos da vida, tais como: casamento; separação; luto; ganho de peso secundário a tratamentos medicamentosos; redução ou interrupção da atividade física; traumas físicos ou psíquicos; suspensão de hábitos tabágicos e o consumo excessivo de álcool. Não se exclui daqui, evidentemente, a incidência de fatores psicológicos, como estresse, distorção da imagem corporal, ansiedade, depressão e compulsão alimentar – destacando-se principalmente os últimos três (Coutinho, 1999; Almeida, Loureiro & Santos, 2001; Matos & Zabella, 2002). Esses elementos reforçam a importância dos aspectos psíquicos nas manifestações corporais e convidam a pensar na relação entre o psiquismo e o consumo do alimento, interrogando que tipo de relação é esta que o sujeito pode estabelecer com o alimento.

Estudos têm demonstrado que o sofrimento psíquico está presente tanto como consequência quanto como causa da obesidade, e o que se constata é uma profunda e estreita relação entre estas duas vertentes, sendo difícil separá-las. A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO), por exemplo, refere que a obesidade pode aumentar em 55% o risco de depressão; ao mesmo tempo em que a depressão pode aumentar em 58% o risco das pessoas se tornarem obesas. Estudos como o Behavioral Risk Factor Surveillance System demonstram que, em pacientes com depressão considerada moderada ou grave, a prevalência de obesidade é maior que o dobro. Isso pode relacionar-se ao fato de que os sintomas que envolvem a depressão, como tristeza, desanimo, perda de interesse e prazer, distorções do apetite e baixa autoestima podem levar a um prejuízo do autocuidado do sujeito e ao ganho de peso. Já Ball e Atlantis (2008) sinalizam que apenas a percepção de estar acima do peso por si já pode ser um fator de risco relevante para o surgimento de sintomas depressivos, principalmente se considerarmos o estigma social que isso pode significar. Há um importante estudo (Bodenlos, Lemon, Schneider, August & Pagoto, 2011) que aponta que pessoas diagnosticadas com ansiedade apresentam maior probabilidade de se tornarem obesas – o que pode estar associado a comportamentos alimentares, como o ato de "beliscar" –, ao mesmo tempo em que outros estudos sinalizam que a ansiedade pode decorrer do ganho de peso (Verdolin, Borner, Guedes Jr, Silva & Belmonte, 2012). Em suma, o que não se pode negar é a existência de importantes aspectos psíquicos permeando o excesso de peso.

O levantamento epidemiológico do The National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Condictions (2007) verificou a relação entre IMC e transtornos psiquiátricos em mais de 40 mil indivíduos, sendo que o IMC foi significativamente associado a alterações de humor, ansiedade e transtornos de personalidade. O estudo apresentou uma razão de chances para transtorno psiquiátrico de 1,21 entre os obesos com índice menor do que 40kg/m² e 2,08 entre os obesos com índice maior ou igual a 40kg/m² e uma razão de chances para transtorno depressivo de 1,53 entre os obesos com índice menor do que 40kg/m² e 2,02 entre os obesos com IMC maior ou igual a 40kg/m², ou seja, quanto maior o IMC, maiores as chances do obeso apresentar algum "transtorno psiquiátrico". Um estudo realizado por Matos, Aranha, Faria, Ferreira, Bacaltchuck e Zanella (2002) verificou ainda uma alta frequência de sintomas depressivos graves, ansiedade, preocupação com a imagem corporal e de episódios de compulsão alimentar periódica em obesos classificados com obesidade grau III. Segundo os dados obtidos, 100% dos sujeitos que participaram do estudo apresentavam sintomas depressivos, sendo 84% destes com sintomatologia grave, e a preocupação com a imagem corporal foi observada em 76% dos casos. A frequência de ansiedade ficou entre 70% e 54% e foi associada a maior frequência de transtorno de compulsão alimentar periódica (TCAP), ou seja, os pacientes com alto grau de ansiedade apresentavam, ainda, uma frequência de TCAP maior do que aqueles com menores índices de ansiedade. O estudo também constatou que 36% dos pacientes participantes apresentavam o transtorno de compulsão alimentar periódica, embora 54% apresentassem episódios de compulsão alimentar – o que sinaliza que a presença desses episódios não necessariamente caracteriza a existência de um transtorno.

O transtorno de compulsão alimentar periódico (TCAP) é um aspecto psíquico importante e que pode influenciar significativamente na incidência da obesidade, embora não seja regra (Petribu, Ribeiro, Oliveira, Braz, Gomes, Araújo, Almeida, Albuquerque & Ferreira, 2006). Essa pesquisa realizada por Petribu et al (2006), por exemplo, observou que 56,7% dos candidatos à realização da cirurgia bariátrica apresentavam transtorno de compulsão alimentar periódica. Além disso, o estudo apontou que, dos pacientes que apresentavam TCAP, 42,1% apresentavam ainda depressão, enquanto na amostra de pacientes sem TCAP esses índices eram de apenas 13,8% – o que reforça a concomitância de múltiplos fatores psíquicos em torno do excesso de peso e mostra o quanto estes estão imbricados na obesidade.

Os dados ratificam a constatação de que, quanto maior o peso, maior a chance da presença de importantes aspectos psíquicos, assim como, quanto mais grave o grau de ansiedade, depressão e/ou compulsão alimentar, maiores as chances de obesidade. Contudo, é importante sinalizar que, apesar das evidências da participação de fatores psicológicos nos casos de obesidade, e das associações robustas entre obesidade e uma série de ‘transtornos’ mentais (p. ex., transtorno de compulsão alimentar, transtornos depressivo e bipolar, esquizofrenia), a obesidade não é considerada um transtorno psiquiátrico nem condição para o diagnóstico de transtorno alimentar. Ainda que não se enquadre necessariamente entre os transtornos mentais, a obesidade é permeada e muitas vezes fundada em aspectos psíquicos, demarcando inúmeras outras variáveis emocionais que decorrem e permeiam essa manifestação. A ausência de marcadores biológicos e genéticos capazes de justificar a obesidade e seu "boom" na atualidade e a presença de inúmeros aspectos psíquicos em sua ocorrência vem abrindo espaço para aquilo que é mais singular no ser humano: sua subjetividade, e, assim, tem convocado a psicanálise a intervir no tratamento desses sujeitos.

Diante da crescente demanda frente ao problema da obesidade e da multiplicidade de fatores que envolvem essa manifestação, a estratégia de combate tem sido multisetorial, envolvendo diversos saberes e tratamentos, além de inúmeras medidas preventivas e de controle adotadas pelos órgãos de saúde, e tem como objetivos principais reduzir a incidência de obesidade, controlar as comorbidades e diminuir o risco de desenvolvimento de outras doenças, contendo assim os índices de mortalidade (WHO, 2000).

Os tratamentos, multidisciplinares em sua maioria, variam de acordo com a gravidade da doença e de seu comprometimento, e podem envolver medicações, acompanhamento nutricional, reeducação alimentar, acompanhamento psicológico, inserção de atividade física, fisioterapia e, nos casos mais críticos – como de obesidade mórbida –, intervenções cirúrgicas (Coutinho, 1999; WHO, 2000; Brasil, 2006). Embora diversos saberes, dos quais destacamos a medicina e o saber psi, ofereçam tratamentos aos pacientes obesos, com a obtenção de relativo sucesso, principalmente nos casos leves e moderados, quando se trata da obesidade mórbida, as questões apresentadas costumam ser mais complexas e ambos os saberes podem ser surpreendidos por complicações, fracassos, desistências e recaídas, principalmente se tratando dos pacientes submetidos à cirurgia de redução de estômago.

A eficácia do tratamento cirúrgico é relativa e não uma consequência exclusiva do procedimento em si, de modo que a realização da cirurgia por si só não garante a obtenção dos resultados desejados. O sucesso no emagrecimento requer uma adesão comprometida às recomendações da equipe, demandando cuidados essenciais, como o seguimento, à risca, da dieta restritiva do pós-operatório imediato, efetiva reeducação alimentar, prática de exercícios físicos, suplementação vitamínica, dentre outros, além da continuidade do acompanhamento médico, nutricional e psíquico durante todo o processo de emagrecimento, de forma que tanto a possibilidade de realização quanto as consequências de cirurgia dependem quase que exclusivamente da implicação e da disciplina do sujeito. Assim, para que se possa aproveitar o potencial da cirurgia, é necessário que ocorram tanto mudanças internas quanto externas, possibilitando que o sujeito se adapte a sua nova condição.

A cirurgia bariátrica indicada por muitas equipes diante das comorbidades apresentadas pelo paciente, e também o tratamento de escolha de um número significativo de pessoas obesas, pode significar uma via de risco ou uma solução possível para a obesidade, a depender do que o excesso de peso signifique psiquicamente para o sujeito, ou seja, a depender da função psíquica que a obesidade pode assumir de acordo com a estrutura subjetiva. Nesse sentido, e considerando o caráter majoritariamente irreversível do procedimento, é imprescindível uma reflexão crítica sobre a obesidade e as questões de saúde física e psíquica que a envolvem, considerando inclusive as fantasias e expectativas que o sujeito deposita no procedimento cirúrgico. Inúmeros estudos retratam os resultados e possíveis desdobramentos desse procedimento, assim como a necessidade de efetiva implicação do sujeito em seu cuidado, apresentando tanto benefícios quanto consequências devastadoras.

As repercussões da cirurgia bariátrica se dão no campo orgânico e no campo psíquico e podem ser tanto positivas quanto negativas, de forma que seu impacto tem sido alvo de diversas investigações, principalmente no que se refere ao aspecto subjetivo, já que a cirurgia pode acarretar tanto na melhora quanto no agravo de um mesmo sintoma e o não seguimento das orientações parece estar associados a fatores de ordem psíquica. Dados da literatura científica comprovam os resultados assertivos da cirurgia bariátrica, apontando os sucessos e benefícios, tanto clínicos quanto psicológicos, que essas cirurgias podem trazer para o obeso, na medida em que este perde peso, como redução significativa dos índices de mortalidade por diabetes e cânceres, melhora no quadro geral de saúde, maior qualidade de vida, melhora da autoestima, maior aceitação social e diminuição dos níveis de depressão e ansiedade (Garrido, 2003; Benedetti, 2003; Almeida, Zanatta & Rezende, 2012).

Entre as possíveis repercussões psicológicas negativas, se destacam as desorganizações psíquicas graves, o desencadeamento da psicose, alterações comportamentais, alterações de humor, surgimento ou agravo de sintomas depressivos, insatisfação com o próprio corpo (agora flácido e com pele excedente), distorção da imagem corporal, isolamento e dificuldades no âmbito social, substituições e compulsões diversas (como por álcool, drogas, compras, sexo, entre outros, incluindo-se a própria compulsão alimentar, já observada anteriormente em uma parcela dos obesos), processos maníacos, desenvolvimento de outros transtornos alimentares, como anorexia e bulimia, e aumento da ansiedade (Garrido, 2003; Benedetti, 2003; Marcelino & Patrício, 2011; Machado, 2011) – repercussões que contribuem, inclusive, para que muitos voltem a engordar e que demarcam a cirurgia bariátrica como delatora dos enlaces e desenlaces de um corpo que não cala.

Marcelino e Patrício (2011), por exemplo, verificaram em um estudo qualitativo que alguns sujeitos, após emagrecerem com a cirurgia bariátrica, desenvolveram depressão, bulimia, anorexia, dependência de álcool e outras drogas, compulsões por jogos, compras ou sexo. Os autores acreditam que um dos motivos estaria relacionado ao fato da redução do estômago não permitir que eles continuassem a descontar nos alimentos as carências afetivas, entre outras razões inconscientes que os levaram a engordar, recorrendo assim a novas válvulas de escape.

As dificuldades pós-operatórias enfrentadas pela maioria dos pacientes chamam atenção e convidam à reflexão, cabendo questionar até que ponto a cirurgia bariátrica é válida para o obeso, considerado em seu caráter individual. Em outras palavras, apesar dos muitos ganhos que se obtém com a cirurgia, será que todos aqueles que cumprem seus "pré-requisitos" estão preparados para lidar com as repercussões do procedimento? Será que a anuência do médico e do psicólogo, enquanto condição obrigatória, seria suficiente para garantir a realização desse procedimento e seu sucesso? O que alguns casos nos mostram é que não.

Apesar do procedimento se dar no plano do corpo físico e o objetivo central da cirurgia bariátrica ser a melhora do quadro clínico e físico de saúde e não necessariamente a saúde emocional, os sujeitos que a procuram o fazem por distintas demandas, incluindo-se as de caráter psíquico, visando, portanto, mudanças intrapsíquicas – o que pode levar a uma certa frustração, além de outras consequências ainda mais graves. Cavalcante (2009) retrata um pouco essa diversidade de demandas ao relatar em sua pesquisa que dentre os motivos que levaram os participantes a escolherem a cirurgia estavam a preocupação com a saúde e a prevenção de doenças; a preocupação com a estética e a imagem corporal; a discriminação e o estigma social; e as questões emocionais, como baixa auto-estima, dificuldade de se ver no espelho por se achar feia, dificuldade no relacionamento amoroso e/ou familiar). O autor ainda constatou que a autoimagem foi um fator majoritariamente valorizado pelas mulheres na opção pela cirurgia, o que foi corroborado por Silva e Faro (2015), que ainda apontaram que as imposições da sociedade por um corpo ideal e transformado era o que mais levava as mulheres à tomada de decisão – constatações que exigem reflexão.

A percepção corporal está associada tanto aos aspectos socioculturais quanto aos aspectos psíquicos e às demandas internas do sujeito, sendo a imagem corporal fundamental para estruturação desse. Entretanto, se observa na atualidade que os padrões estéticos divulgados incansavelmente pela mídia parecem ter um efeito assolador e fundamental para o sujeito, destacando-se frente a outros aspectos. O corpo que expõe sua magreza assume a correspondência de símbolo de felicidade, atratividade e sucesso profissional e pessoal, ao passo que ao corpo obeso restou os estigmas da feiura, lentidão, depreciação, entre outros. Essa "verdade" midiática e social afeta diretamente na imagem corporal frente à obesidade, a ponto dos próprios sujeitos repugnarem seu corpo obeso, e implica diretamente nas relações interpessoais, no retraimento social e no surgimento ou agravo da depressão. Como diz Recalcati (2002), "a evidência horrorosa da obesidade se configura, antes, como uma verdadeira devastação da própria imagem, como um triunfo obsceno sobre o ideal" (p. 51).

O descompasso entre a realidade do corpo rotundo e o que se "deveria ser", faz com que muitas pessoas desconsiderem outros fatores, como os fatores psíquicos (donde inclui-se a relação com o gozo), envolvidos em sua obesidade e, mediante a insatisfação com a imagem corporal e cobranças advindas em todos os sentidos (físicos, psíquicos, pessoais, interpessoais, sociais, entre outros), busquem na cirurgia bariátrica a urgência da resolução de seus problemas.

Na medida em que o sujeito passa a buscar a cirurgia não por uma demanda originariamente sua, mas sim de um outro, e desconsidera os aspectos psíquicos envolvidos em seu excesso de peso, os desdobramentos podem ser catastróficos. A situação se agrava quando, além de desconsiderar esses aspectos, o sujeito, alienado de seu desejo e de sua relação com a comida e tomado pela demanda do social, ignora seu despreparo para enfrentar o real significado da cirurgia, o que leva a repercussões extremamente sérias. Isto sem falar nos casos em que o sujeito coloca na cirurgia uma expectativa que vai além das concretas possibilidades do procedimento – eis a causa de muita frustração.

Pesquisas apontam uma discrepância entre as expectativas diversas frente à cirurgia bariátrica e os resultados efetivos decorrentes desta (Loli, 2000; Silva & Costa, 2003; Leal & Baldin, 2007). Normalmente é no pós-operatório que o paciente se confronta com a realidade da cirurgia, muitas vezes apresentando grandes dificuldades (principalmente nutricionais e psíquicas) e até mesmo arrependimento/insatisfação frente ao procedimento (Silva & Costa, 2003). Marchiolli, Marchiolli e Silva (2005) sugerem, em seu estudo, a possibilidade das expectativas com a cirurgia não serem concretizadas pelo fato de que o impulso que leva a ingestão demasiada persistir, podendo gerar um mal-estar intenso (inclusive físico, com os chamados dumpings) no pós-operatório. Os autores também relatam observar que muitos obesos submetidos à cirurgia nutrem um certo sofrimento associado ao fim do prazer de comer, o que pode incidir em novos comportamentos, tão prejudiciais quanto os anteriores. Quanto a isso, Garrido (2000; 2003) relata que nos primeiros meses após a cirurgia bariátrica é comum que o paciente apresente dificuldades associadas à aceitação de suas novas condições alimentares e físicas, com alterações emocionais, como ansiedade, irritabilidade e, muitas vezes, depressão – sintomas aos quais relaciona à supressão do prazer de comer.

Nesse sentido, Marcelino e Patricio (2011) referem, após uma análise minuciosa e reflexiva dos depoimentos e da linguagem não verbal dos sujeitos entrevistados em sua pesquisa, que mesmo meses após a cirurgia, o sujeito continua vivendo a situação de ser obeso, sendo o tratamento da obesidade uma "batalha" cotidiana – uma luta que, dependendo em grau do suporte socioeconômico que a pessoa possui, pode repercutir em sua saúde integral, especialmente nas dimensões psicossociais.

Silva e Costa (2003) referem que muitos desses sintomas se dão devido ao confronto do sujeito com a dura realidade de que a cirurgia não é capaz de resolver todos os seus problemas (principalmente os de cunho psíquico) e que suas questões e sofrimento não eram decorrentes do excesso de peso, de forma que o sujeito pode reconduzir o problema que antes era depositado na obesidade para outro objeto – processo que ocorre inconscientemente. É nesse sentido que as substituições, o surgimento de outros sintomas (e/ou o agravamento daqueles já existentes), a ideação suicida e até mesmo a manutenção da obesidade podem surgir após a cirurgia bariátrica (Garrido, 2003; Marchiolli, Marchiolli & Silva, 2005; Omalu, Ives, Buhari, Lindner, Schauer, Wecht & Kuller, 2007; Leal & Baldin, 2007; Conason, Teixeira, Hsu & Puma, 2013).

Diante de tantas repercussões, fica evidente que é preciso atentar-se às condições da obesidade e a relação que o sujeito mantém com o alimento. Vale ainda ressaltar que há casos em que a obesidade serve como um ponto de estruturação/enlace psíquico para o sujeito que, após sofrer a intervenção no real do corpo, vem a desencadear outras manifestações, como as mais diversas formas de psicose (Recalcati, 2002; Antunes, Danemberg, Caldas & Oliveira, 2012). Nesse sentido, a cirurgia viria a representar uma ruptura daquilo que mantinha o sujeito em equilíbrio, ainda que esta forma de equilíbrio carregue em si uma enorme contradição.

Um estudo realizado por Conason et al (2013), por exemplo, verificou que, logo após a cirurgia bariátrica, os pacientes apresentaram uma diminuição no uso de álcool, tabaco e outras drogas, mas que, passado um tempo, havia um aumento significativo no uso destas substâncias, quando comparado ao uso anterior ao procedimento. Considerando ainda a gravidade que as repercussões da cirurgia podem atingir, Omalu et al (2007), em um estudo longitudinal, buscaram caracterizar as principais causas de óbitos após a gastroplastia e constataram que, dentre os 440 óbitos, 16 haviam sido por suicídio e 14 por overdose de drogas, o que pode relacionar-se a um quadro depressivo e à substituição da comida por outras substâncias.

É diante desses casos e de tantos outros que o corpo surpreende, revela-se, persiste e insiste em se mostrar "a mais" do orgânico, do midiático, do exposto no social, do corpo público assediado pelas promessas estéticas e cirúrgicas. Na medida em que o sujeito não está "preparado" também psiquicamente para lidar com as mudanças provenientes da cirurgia, o processo de emagrecimento fica comprometido e inúmeras podem ser as consequências, revelando que, para além do organismo, há um sujeito, que sofre, que deseja, que goza. É nesse sentido também que as repercussões psicológicas, muitas vezes, acabam por se tornar as responsáveis pelos óbitos. Isso acontece porque, para além das possibilidades orgânicas, não é possível mudar a forma de existir/ser de um sujeito apenas com um procedimento cirúrgico, o que se deflagra com o índice significativo de pessoas que voltam a engordar após a gastroplastia, desenvolvem bulimia ou algum tipo de compulsão substitutiva, sendo o alcoolismo a principal delas (Silva, 2005; Marchiolli, Marchiolli & Silva, 2005; Shiraga, 2006).

Desse modo, fica evidente que, ao falar da cirurgia bariátrica, não estamos falando apenas de um corpo-organismo que busca a melhora de suas funções; para além, diante desse corpo que transborda, denunciando das mais diversas formas sua condição psíquica, há um sujeito que apresenta demandas muito particulares, podendo estas serem ou não atendidas pela cirurgia e pelos desdobramentos desta (Benedetti, 2003; Nascimento, Bezerra & Angelim, 2013). Desse modo, a cirurgia não cura os sintomas/males psíquicos que envolvem a obesidade, embora possa contribuir para amenizá-los, em certa medida.

Nesse sentido, vale destacar que, ao se submeter à cirurgia, o sujeito está recorrendo a uma intervenção real no corpo, ou seja, a um mecanismo externo de intervenção) – a redução do estômago - que delimitará fisicamente a quantidade que ele vai comer, e não a uma mudança interna, psíquica. Assim, o que barra a ingestão demasiada de alimento não é a vontade ou o controle próprio do sujeito para não cometer o exagero, mas sim uma alteração em seu organismo – condição que repercute diretamente nas consequências da cirurgia. Em outras palavras, podemos dizer que a cirurgia visa libertar o corpo orgânico do sujeito (nessa circunstância transformado em objeto/coisa) do mal que o acomete e, assim, tentando livrar o sujeito de sua vontade de comer – o que, por não se tratar de algo da ordem física, não é capaz de fazer. Desta forma, "retira-se o corpo do obeso mas não o obeso do corpo", desconsiderando, de certa forma, a relação intrínseca entre corpo e psiquismo.

O cenário de importantes reverberações psíquicas, observadas no pós-operatório, que comprovam que a obesidade envolve fatores que vão muito além do físico, demanda atenção e pode ser justificado também se considerarmos que, apesar da obrigatoriedade e indiscutível necessidade de avaliação e de acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico durante todo o processo da cirurgia, nem sempre os fatores psíquicos são considerados em sua magnitude na seleção dos candidatos a esse procedimento.

 

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Agência de Fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

 

 

1 Psicóloga no Hospital da Luz, mestre em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquisa Filho, FCL-Unesp Assis/SP. Contato: medeiros.psi@hotmail.com.
2 Professor nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia e supervisor do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPPA) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquisa Filho, FCL-Unesp Assis/SP. Contato: gustavo.h.dionisio@unesp.br.

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