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Revista da SBPH

versión impresa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.25 no.1 São Paulo ene./jun. 2022

https://doi.org/10.57167/Rev-SBPH.v25.028 

PARTE III - LUTO E MORTE

 

Entre a saudade e o aconchego: Memory Box como apoio no processo de luto

 

Between missing and cosiness: Memory Box as a support in the grief process

 

 

Thaís Caroline Guedes LuciniI; Carmen Esther RiethII

IUniversidade Feevale, Novo Hamburgo/RS - thaisglucinipsi@gmail.com
IIUniversidade Feevale, Novo Hamburgo/RS - carmener@feevale.br

 

 


RESUMO

O luto de pais que perderam filhos recém-nascidos é um processo de muita dor e sofrimento, especialmente pelo curto tempo de vida que tiveram juntos. O objetivo deste trabalho é analisar se o Memory Box influenciou o processo de luto do casal que perdeu seu filho na Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTIN). Para isso, foi realizado um estudo de caso único, na modalidade situacional com um casal, com o qual foi realizada uma entrevista em profundidade. A entrevista foi gravada e transcrita na íntegra, sendo analisada com base nos pressupostos de Minayo (2014). A partir da análise, emergiram três categorias: À espera de Pedrinho, sua chegada prematura e o ser pai e mãe na UTIN; A partida de Pedrinho; e O aconchego de lembrá-lo a partir do Memory Box. Com base nos resultados, foi possível perceber que o Memory Box tem influenciado positivamente o processo de luto dos entrevistados de diferentes formas, ficando evidente o quanto a possibilidade de recorrer aos objetos reais usados pelo filho auxilia na narrativa e na comprovação da existência real deste filho para as pessoas que não puderam conhecê-lo, provando a concretude de sua vida.

Palavras-chave: luto; humanização; memory box; psicologia; unidade de terapia intensiva neonatal.


ABSTRACT

The grief of parents who have lost newborn children is a process of great pain and suffering, especially due to the short life span they had together. The aim of this study is to analyze whether the Memory Box influenced the grieving process of the couple who lost their child in the Neonatal Intensive Care Unit (NICU). For this, a single case study was carried out, in situational mode with a couple, with whom an in-depth interview was conducted. The interview was recorded and transcribed in full, being analyzed based on the assumptions of Minayo (2014). From the analysis, three categories emerged, which are: Waiting for Pedrinho, his premature arrival and being a father and mother at the NICU; The departure of Pedrinho; and the warmth of reminding him from the Memory Box. From the results it was possible to perceive that a box of memories has positively influenced the mourning process of the interviewees in different ways, making it evident how much the possibility of resorting to the real objects used by the son help in narrating and proving the real existence of this son to people who could not know him, proving the concreteness of his life.

Keywords: mourning; humanization; memory box; neonatal intensive care unit; psychology.


 

 

Introdução

Desde o descobrimento da gestação, o casal já começa a criar seu filho imaginário: perfeito e saudável, atribuindo características próprias (Marchetti & Moreira, 2015; Martins & Silva, 2020; Lebovici, 1983/1987 citado em Cabral & Levandowski, 2011). O momento do nascimento é um marco importante, pois os pais se deparam com o bebê real, que é diferente do imaginado (Berlinck, 2014; Fleck, 2011; Marciano, Evangelista & Amaral, 2019). Quando a chegada é prematura ou diferente do planejado, esse momento pode ser traumático, tanto para os pais, quanto para a criança (Gomes, 2004) e intensificar o confronte entre o bebê imaginário e o bebê real.

Quando o bebê necessita de maiores cuidados como auxílio respiratório, sonda, monitoração contínua de batimentos cardíacos, saturação e temperatura, entre outros, é encaminhado a uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. Trata-se de um espaço destinado a atendimentos intensivos, que é carregado de contradições quando se relaciona ao início da vida e o risco de morte. O desenvolvimento que deveria se dar de forma intrauterina, agora já está fora dele. A vida e o desenvolvimento passam a depender de máquinas, medicamentos e profissionais que exercem assistência ao prematuro (Iungano, 2009). Diante da necessidade de hospitalização, a equipe médica pode amenizar esse impacto ao acessar os pais de forma sensível e acolhedora (de Souza, Araújo, Costa, de Carvalho, da Silva, 2009). Assim, o bebê que, por sua condição clínica, não conseguir evoluir ou, pior, regredir durante o período de internação e ir a óbito, deixa um vazio e um caminho de dor em sua família. Mesmo quando demais familiares não conhecem o recém-nascido antes da sua morte, para os pais, ele tem a sua história (Braga & Morsch, 2003).

Considerando esse momento tão doloroso em que os pais saem do hospital sem o bebê e com poucas lembranças concretas, enfermeiras norte-americanas pensaram em uma estratégia de cuidado e humanização desse momento. O objetivo central é possibilitar que a vida do bebê, que não ocupou o espaço real no cotidiano dos pais fora do hospital, possa se apresentar concretamente para a família e, simbolicamente, representar a vida e a história que existiram até ali, através da caixa de memórias ou Memory Box (Davis, Trotta, Roland & Rocha, 2012). Ter essas lembranças físicas, representa a vida de quem foi e traz amparo aos enlutados (Alexander, 2021).

O Memory Box é uma estratégia recente e pouco estudada, por isso, não se tem muitas publicações no assunto, ressaltando a importância de investigar seu uso. Durante a pandemia de COVID-19, a caixa de memórias foi utilizada em alguns hospitais como recurso simbólico que era entregue as famílias, considerando as peculiaridades dessas perdas, como não ver o familiar falecido, a morte inesperada e a falta de contato para a despedida (Luiz, da Silva Filho, Ventura & Dresch, 2020).

O processo de implementação do Memory Box no Hospital Sapiranga, instituição parceira para realização desta pesquisa, aconteceu entre outubro e novembro de 2019. O hospital é uma entidade privada, de caráter filantrópico, sendo referência para convênios e privados para toda a região e para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Para que a implementação ocorresse de maneira igual em todos os turnos, foi desenvolvido um Procedimento Operacional Padrão (POP) institucional. Após ser aprovado pela direção da instituição, a enfermeira responsável pela introdução do Memory Box na UTIN realizou um treinamento com a equipe de todos os turnos de trabalho, sobre como desenvolver e apresentar a proposta.

No POP, estavam descritos quais objetos poderiam ser incluídos no Memory Box: fotos, recados da equipe e da família, balões dos aniversários mensais, carimbos dos pés e mãos do bebê, equipamentos usados na criança, coto umbilical e mecha de cabelo do bebê (nos casos de óbito). Também havia informações sobre como os objetos deveriam ser armazenados, onde a caixa ficaria durante a hospitalização do bebê e como deveria ser feita a entrega nos casos de alta ou óbito. Além disso, previu-se que, em casos de falecimento, os pais poderiam não querer recebê-la em um primeiro momento. Por isso, deveriam ser avisados de que o Memory Box ficaria disponível para retirada por um período de tempo, caso mudassem de ideia.

Considerando que o Memory Box é uma estratégia de humanização muito recente e pouco estudada, sendo que o primeiro estudo no Brasil, voltado para a UTIN é de 2013 e segue sendo a principal referência no assunto. o objetivo principal deste trabalho é identificar se o uso do Memory Box influenciou o processo de elaboração do luto de pais que perderam filhos na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. Como objetivos secundários, buscou-se analisar a introdução do Memory Box na vida da família durante a hospitalização; conhecer a percepção dos pais sobre a utilização do Memory Box; compreender como os pais utilizam o Memory Box em suas vidas após a perda do filho; identificar quais foram os objetos mais significativos na percepção dos pais e analisar o papel do Memory Box na narrativa dos pais sobre a criança.

 

Método

Trata-se de um estudo de caso único. O estudo de caso visa examinar em detalhes no seu contexto natural, reconhecendo sua complexidade e utilizando métodos específicos. Para isso, optou-se pelo estudo em modalidade situacional pois, através de entrevista em profundidade, um acontecimento é analisado na perspectiva de quem dele participou (Gomez, Flores & Jimenez, 1996). O estudo foi realizado com um casal que perdeu seu filho em uma UTIN de um hospital do Vale do Sinos, Rio Grande do Sul, e que recebeu o Memory Box. O contato com os pais foi realizado pelo referido hospital, em razão da proteção dos dados. Além disso, esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Feevale, recebendo o parecer n° 4.478.203. A entrevista foi realizada após a assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e durou 1h 30 min.

O instrumento foi construído a partir dos objetivos da pesquisa, quando se entendeu que o roteiro deveria abrir possibilidades para o entrevistado e pesquisador aprofundarem a delicadeza do tema (Cardano, 2017). A conversa foi realizada de forma presencial, gravada e transcrita na íntegra. Após a realização da entrevista, esta foi submetida à análise temática (Minayo, 2014). Essa modalidade de análise, proposta pela Minayo (2004) busca agrupar a partir dos discursos, os argumentos com maior sentido respondendo ao objetivo proposto. A presença em maior ou menor quantidade de determinados temas demonstram a presença de pensamentos ou comportamentos acerca de uma fala. Este método é baseado na análise de conteúdo tradicional, porém, busca dar significado ao invés de resultados estatísticos. Desta forma, são reunidos na interpretação os temas como representantes das falas expostas.

 

Análise do caso

Julia (mãe) tem 34 anos de idade e Luís (pai) tem 37 anos. O filho do casal é identificado como Pedrinho. Os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes. O casal é morador do município de Sapiranga, cidade onde o hospital parceiro está localizado. Estão em uma relação estável e de longa data. Planejaram com cuidado a gestação, para que tudo ocorresse bem e pudessem ter tempo para se dedicar ao filho. Pedrinho foi o primeiro filho do casal, que não tem histórico de outras gestações.

Pedrinho nasceu pré-termo na 35° semana da gestação, pesando 2.930kg, em uma cesárea de emergência, pois na última ecografia realizada foi constatada água em seus pulmões. O bebê nasceu e foi direto para UTIN, onde foi entubado. Além disso, o menino também passaria por procedimentos para drenar o líquido identificado nos exames pré-natais. Nos primeiros dias de internação, após exames iniciais, o bebê foi diagnosticado com quilotórax e síndrome de Down. O quilotórax é um tipo de derrame pleural, que é uma condição congênita rara em neonatos, sendo predominante no sexo masculino e frequentemente ligado a alterações cromossômicas (Pego Fernandes, Neto & Janete, 2004). Diante do diagnóstico, Pedrinho esteve intubado desde seu nascimento o que não permitia a amamentação nem que ele fosse para o colo dos pais.

Após seu nascimento, Pedrinho permaneceu sob cuidados da equipe multidisciplinar na UTIN por 29 dias, quando foi a óbito em decorrência do derrame pleural. Durante seus dias de vida, Pedrinho pode conviver com a presença dos pais, durante os horários de visita. Julia e Luís eram assíduos, tocavam e conversavam com Pedrinho dentro das possibilidades. Como estava intubado, ele não pode ir para o colo. A angústia maior, nesse período, era em torno das investigações, exames e procedimentos necessários até a chegada do diagnóstico.

No decorrer de todo o período da hospitalização, os pais foram acompanhados pela equipe de psicologia. Todos os pais que passam pela UTIN têm esse acompanhamento que busca aproximar os pais do bebê real, atrair o olhar para o filho, trabalhar o vínculo pais-bebê e fornecer suporte e acolhimento ao longo desse processo.

No dia do falecimento, os pais receberam o Memory Box do hospital, com alguns objetos e pertences utilizados pelo bebê durante a internação. Dentre os objetos recebidos, estavam meias e toucas utilizadas por Pedrinho durante o período no hospital, bem como o seu umbiguinho, o carimbo de seus pés e cartas escritas pela equipe da UTIN.

Alguns desses objetos foram especialmente marcantes para os pais. O carimbo dos pés e meias, por exemplo, carregam uma lembrança vinculada a primeira ecografia onde viram o pezinho do filho e que depois, pessoalmente, confirmaram, que era grande assim como o da maioria da família, de "pé grande" e que inclusive foi motivo de brincadeira entre os pais e a equipe de assistência. As toquinhas guardam o cheiro dos momentos em que estiveram juntos. E o umbigo, um marco importante e natural do seu desenvolvimento, em vida.

A entrevista foi realizada por uma estagiária da equipe de Psicologia mas não a mesma que acompanhou o casal durante a internação. A coleta de dados aconteceu alguns dias antes de completar um ano do nascimento de Pedrinho. Na ocasião, o casal mantinha os itens incluídos no Memory box. Além disso, pai e mãe seguiam morando sozinhos e planejavam uma gestação futura. A partir da análise da entrevista realizada, foram desveladas três principais temáticas: À espera de Pedrinho, sua chegada prematura e o ser pai e mãe na UTIN; A partida de Pedrinho; e O aconchego de lembrá-lo a partir do Memory Box.

À espera de Pedrinho, sua chegada prematura e o ser pai e mãe na UTIN

Quando um casal planeja ter um filho, esse processo se inicia na imaginação, atravessada pelas palavras contadas pelos pais, ainda antes de seu nascimento (Szejer & Stewart, 1997). O casal planejou e esperou pelo filho, Pedrinho, como demonstra a fala da mãe, Julia: "A gente planejou bastante ele, porque a gente queria ter uma vida estável para o nosso filho, para ter tempo pra ele". O momento do nascimento marca um momento importante na vida dos pais e o início de uma nova etapa, o ser mãe e pai.

Tornar-se pai ou mãe é um processo que como a gestação vai evoluindo, pois os pais vão se tornando seguros dessa figura materna e paterna a medida que o bebê também vai se desenvolvendo (Marchetti & Moreira 2015). Essa questão da prematuridade materna fica evidenciada quando a mãe demonstra, simbolicamente, toda sua angústia em não estar pronta para a chegada de Pedrinho: a mala do bebê ainda não estava preparada. Em suas palavras: "Eu fui fazer uma ecografia de 34 semanas e a Dra. disse que a gente teria que fazer a minha cesárea agora, 'mas eu estou, estou sem roupa', sem aquela coisa da gente estar preparado." (Julia)

Apesar da internação, os pais conseguiram ver, em meio a tantos aparelhos e barulhos desconhecidos, o filho que tanto esperavam, conforme relato do pai: "Eu olhava pra ele e não via nada, via um bebê perfeito [...] É uma mistura de emoção, né?! Tu vê aquela criança e tem cinquenta por cento meu [ele sorri]. É meu sangue, né!" (Luís). Pedrinho foi um bebê muito esperado pelos pais, idealizado. Assim como no processo de luto pela perda, a negação pelo filho real também pode estar representada nessa fala, onde o pai refere "um bebê perfeito".

Para os pais, a UTIN é um ambiente completamente diferente do que esperavam estar após o nascimento de seu filho. Dentro do hospital, as coisas acontecem em um ritmo muito acelerado, principalmente em uma unidade de terapia intensiva, como ilustra Julia: "[...] Eu não tive tempo. Eu nem sabia que eu tinha uma cesárea. Eu não senti a dor de uma cesárea. Eu não senti nada". Numa situação como a de um nascimento prematuro, a puérpera pode ficar em segundo plano, dedicando todas as suas forças e energias ao recém-nascido. Para as mulheres, há outros fatores envolvidos, pois se trata de uma mãe que recém passou por um momento importante em sua vida, o parto, seja ele natural ou cesárea. É um momento que requer cuidados, pois há uma série de readequações do próprio corpo e do emocional ao longo do puerpério.

É importante lembrar que, em muitos casos, o pai não é incluído no papel de alguém que também está em sofrimento. Assim, por vezes, fica encarregado dos cuidados da mãe e do bebê, não recebendo a atenção da equipe como pai - uma figura tão importante neste contexto quanto a mãe.

A empatia e o cuidado humanizado fazem a diferença, tanto para a criança, quanto para os pais, que vivenciam a internação e, por tantas vezes, são privados de exercer o cuidado do filho. De acordo com Tamez (2002), incluir a família nos cuidados com o recém-nascido na UTIN pode fortalecer o vínculo mãe-pai-bebê e diminuir a ansiedade dos pais, bem como empoderá-los no papel materno/paterno, como ilustra o recorte:

"Eu consegui limpar a bundinha dele, entendeu? [...] Ali,, no caso, a enfermeira me auxiliou: "ó tem que limpar assim e assado". Era uma coisa que eu sempre imaginava que em casa eu ia fazer." (Luís)

O tempo de hospitalização ocasiona muito estresse à família e a equipe médica pode amenizar os impactos, acessando os pais de forma sensível e acolhedora, além de manter uma comunicação clara e acessível (Souza et al., 2009). Julia trouxe isso em sua fala:

"Eles foram bem sinceros e a gente dizia pra elas que a gente preferia a verdade do que um dia chegar lá e ter acontecido uma coisa [...] A gente perguntava e eles falavam [...] por mais que doía muito, mas era a realidade que a gente estava vivendo." (Julia)

A forma como as informações são recebidas também depende, em parte, de como a notícia foi comunicada (Salazar & Duarte, 2017). É extremamente importante que a comunicação entre a equipe e a família ocorra de uma maneira humanizada, levando em conta a situação frágil na qual os pais se encontram. Diante da dificuldade de aceitação da realidade, os pais podem distorcer as informações recebidas, tornando-as incondizentes com as verdadeiras circunstâncias, não conseguindo compreender o que está acontecendo ou, ainda, criar esperanças irrealistas, o que pode tornar esse momento ainda mais impactante para o casal (Baldini & Krebs, 2010; de Souza et al., 2009).

Como é possível notar a seguir, a humanização é fundamental no processo de internação, pois, mesmo em um momento de muito sofrimento, Julia e Luís conseguiram ter mais tempo com Pedrinho:

"Como ele tava piorando muito, daí eu perguntei, pro médico se ele autorizava o Luís a entrar e liberaram pra gente ficar o tempo que a gente quisesse (na UTIN)[...]." (Julia)

É imprescindível, para os pais que vivenciam a possibilidade da perda real do seu filho, poder estar o máximo de tempo possível junto do bebê. Esse tempo e a experiência dos pais no que tange às funções paternas, ou seja, exercer o papel de cuidadores, podem fazer muita diferença no processo de elaboração do luto, quando a perda acontece (Tamez & Silva 2017).

O casal entrevistado enfatizou, ainda, a importância dos profissionais da Psicologia na UTIN, que, por vezes, os auxiliaram a ver além dos aparelhos e encontrar o seu bebê.

"[...] E isso a gente sentia quando vocês [Psicologia] estavam por perto, porque aí ela disse assim: "tu viu, mãezinha, olha o sorriso dele?!" E às vezes a gente, no auge daquela emoção, do sofrimento tu nem para pra reparar essas coisas." (Julia)

"Só que daí tu tá ali e vocês [Psicologia] vêm conversar com nós, né. Tu acaba olhando diferente. É que nem tu falou: é tentar mostrar um olhar diferente, sair um pouco daquele automático e começar a reparar um pouco mais nos detalhes." (Luís)

A internação na UTIN causa naturalmente um emaranhamento nos sentimentos maternos e paternos que por vezes, dificulta a formação do vínculo, a interação e o reconhecimento do bebê tão esperado. É normal que as preocupações com as informações clínicas prendam os pais, já que são elas que dizem como o bebê está se desenvolvendo. Apesar disso, deve-se lembrado a eles que "apesar de ser prematuro ou estar com dificuldades clínicas, ali está uma criança no início do seu desenvolvimento e que precisa sobretudo de que seus pais lembrem de tudo que sempre desejaram e ela" (Braga & Morsch, 2003, p. 54).

No Hospital Sapiranga, a equipe de Psicologia acompanha todos os casais que chegam a UTIN. Durante os atendimentos e assistência prestada, um dos principais objetivos é auxiliá-los a identificarem o bebê, como seu filho. As frustrações frente a esse nascimento tão diferente, as angústias e inseguranças presentes nesse processo também são acolhidos.

Os pais idealizam as características do filho, as semelhanças que herdarão dos pais, tornando-o real desta forma em sua imaginação (Fleck, 2011). O nascimento prematuro e as condições clínicas que levam os pais a estarem com seu filho na UTIN proporcionam uma realidade bastante diferente da que foi imaginada. Nessas situações, o casal pode vivenciar um processo de luto do filho imaginário, que era perfeito e saudável. Por isso, a psicologia é tão importante na UTIN, podendo trabalhar e acolher o luto dos pais, auxiliando na construção de um vínculo com o bebê real.

A partida de Pedrinho

A vivência de perder uma pessoa amada envolve muita dor. Esse sentimento pode ser ainda mais impactante diante da perda de um recém-nascido (RN). Apesar de ser extremamente difícil, sentir e viver as emoções do processo de luto permite que os enlutados consigam dar um novo significado ao vazio que fica depois da perda. Worden (2013) descreve sobre o processo de luto, explorando os aspectos do luto normal. Dentro disso, há inúmeros comportamentos e sentimentos que podem surgir, sendo os sentimentos os mais comumente expressos a tristeza, a raiva, culpa, ansiedade, solidão, cansaço, desamparo, choque, saudade, alívio, entre outros que podem surgir de forma menos comum.

Por ser um momento de dor intensa, algumas pessoas podem buscar formas de anestesiar o sofrimento. Julia e Luís relataram que poderiam usar medicamentos, mas que consideraram não ser necessário, demonstrando compreensão sobre os processos de elaboração do luto, como se observa no relato de Julia: "A Dra. até disse pra mim tomar medicação e coisa e tal e eu não queria, porque eu acho que a gente tem que sentir aquele momento e o que eu sinto não é nada depressivo." Destaca-se que o casal foi acompanhado pelo serviço de psicologia durante toda internação de Pedrinho.

Nesse sentido, vivências consideradas inerentes à vida humana passam a ser patologizadas e evitadas em uma sociedade na qual o processo de luto tende a ser abreviado (Veras, 2015). Julia relata que chegou a ser questionada por familiares sobre o seu processo de luto ainda não ter passado: "O meu irmão me disse assim: 'tu não ainda não superou? Tu precisa de medicação". Todavia, trata-se de sentimentos inerentes ao luto, como descrito por Kubler-Ross (2017). A autora descreve as fases do luto em 5 etapas, sendo elas a negação, raiva, barganha, depressão e aceitação (Kubler-Ross, 2017). Posteriormente, Kessler, que trabalhou com Kubler-Ross incluiu uma sexta etapa nas fases do luto que denominou, encontrando sentido na perda (Berinato, 2020). Essas fases não ocorrem obrigatoriamente com todas as pessoas e não há, necessariamente, uma ordem exata.

Quando o casal tem uma rede de apoio, aumentam as chances de ambos superarem, juntos, a dor e frustração que pode surgir do sentimento de falha em seus papéis como mãe e pai (Morelli & Scorsolini-Comin, 2016). Após a perda do filho, Julia e Luís buscaram se fortalecer mutuamente, o que ficou evidente, durante toda entrevista, quando frequentemente se complementavam e buscavam a confirmação do outro durante as falas: "Eu e o Luís sempre fizemos tudo juntos. A gente nunca fez nada sozinho." (Julia).

Um dos fatores que podem dificultar a elaboração da perda é a permanência do bebê no hospital do nascimento ao falecimento, o que também ocorreu com essa família. Em função da gravidade do seu quadro clínico, Pedrinho não chegou a ir para casa, não usou seu quarto, suas roupinhas, não foi apresentado à sua família nem ao mundo, tornando mais difícil confirmar sua existência para a família e o grupo social. No caso de Julia e Luís, o ritual de despedida foi a forma que encontraram de mostrar e provar a existência real de Pedrinho, mesmo em circunstâncias tão difíceis.

Quando Pedrinho faleceu, já estavam impostas as medidas de isolamento social em função da pandemia por COVID-19. Diante disso, um contexto que já é restrito ficou ainda mais, limitando inclusive as visitas do pai a UTIN. Pedrinho não foi visto por nenhum familiar, além dos pais. O momento do funeral também é percebido como uma forma dos pais exporem, para eles mesmos, a vida do filho.

"Mesmo que ele tava inchado, mesmo que ele passou por tudo que ele passou, eu acho que as pessoas precisam ver, porque ele existiu [...] Eu disse pro Luís: "é mais uma curiosidade, a palavra certa disso, mas tu imagina uma pessoa. E como tu vai imaginar se tu nunca viu?" (Julia)

Ao ouvir essa fala, o pai complementou: "É, isso! Porque ah, aqui é a foto dele, mas tu viu ele, tu sabe como ele é, é mais por..." (Luís). Essas vivências, nascimento, período no hospital e perda do Pedrinho, parecem ter propiciado um crescimento pessoal e como casal em Julia e Luís. Apesar do sofrimento, o casal demonstra estar evoluindo de forma positiva, no caminho de dar um novo significado à vida do filho, como ilustram as falas: "O Pedrinho ele veio assim e transformou nossa vida, muito, muito mesmo! Às vezes, pode ser uma coisa de Deus sabe, que vocês evoluem como pessoa." (Luís). "Nesse sentido que eu e o Luís a gente sempre diz que o Pedrinho ensinou muita coisa pra gente. Não só o Pedrinho, mas as coisas que a gente lutava, que a gente vivia, pra levar pra vida." (Julia).

Suarez, Sousa e Caldas (2020, p. 27) falam que "superar a morte de um filho é transcender a dor, transformando- a em uma aprendizagem significativa, fazendo do luto a realização de um valor, de um sentido e de si uma referência da vida".

O aconchego de lembrar do filho a partir do Memory Box

Cada momento é único e precioso quando o início e o fim da vida são tão próximos. No dia do falecimento de Pedrinho, a equipe entregou ao casal o Memory Box e, durante a entrevista, a mãe demonstrou uma percepção positiva sobre o ato: "É uma coisa que a gente tem dele, se não tivesse, o que a gente teria? [chora] Porque é tudo tão restrito."

Um dos poucos estudos já realizados sobre o Memory Box apresenta a iniciativa como uma forma simbólica de guardar o que foi precioso e especial nesse vínculo, uma vez que as memórias afetivas também podem ser preservadas (Luiz et al., 2020). Sobre a apresentação do Memory Box, os pais relatam que:

"Eu não lembro o nome dela, da psicóloga, mas ela me disse que embaixo do armariozinho tinha a caixinha onde nós podia colocar nossas mensagens pro Pedrinho, que seria bom escrever sobre ele." (Julia)

Julia e Luís comentaram que consideram a atitude da UTIN, de confeccionar o Memory Box, como algo bastante positivo, sendo citado como um caminho para formar novos vínculos, além de fazê-los sentir o carinho e apoio de outras pessoas, como demonstram os recortes a seguir: "Ai, eu achei o máximo, porque quando algumas pessoas me perguntavam alguma coisa dele [do Pedrinho] assim, eu sempre dizia: 'Hoje eu vi o umbiguinho do Pedrinho. Hoje eles tiraram a touca e ele é carequinha! [fala animada]" (Julia).

"Essa caixinha de lembranças cria um vínculo de amizade com as outras pessoas também [...] porque as outras pessoas tiraram um tempo para escrever algo pra nós, isso pro pai e pra mãe marca muito. Pode passar anos, tempo e aquele concreto tá ali, fica junto." (Luís)

Em estudo de Luiz et al., (2020), verifica-se que a equipe também se beneficia quando consegue entregar algo que poderá ajudar os pais no momento da perda. Trata-se de um gesto que simboliza a entrega de uma materialidade aos pais. É como se o Memory Box aliviasse, também aos profissionais, o sofrimento dos pais que vão embora de "mãos vazias" após o falecimento da criança. Nesse sentido, a gratidão dos pais à equipe que cuidou do bebê é redirecionada. Se não há como celebrar a cura do corpo, o agradecimento é dirigido à salvação das memórias, como demonstram as falas de Julia e Luís: "É que na hora tu nunca vai pensar de fazer uma coisa assim, de guardar lembranças [...]alguém pensou em fazer e alguém tá guardando aquelas lembranças pra ti." (Luís)

É importante destacar que, durante a hospitalização em UTIN, o bebê não pode usar nenhuma roupa ou pertence pessoal. Assim, os itens de uso exclusivo do bebê, coisas que, possivelmente, não receberiam tanta atenção dos pais, assumem um papel central. O casal enfatiza, em diferentes momentos, a importância de ter algo que foi de Pedrinho ou utilizado por ele durante os seus dias de vida, quando citam os objetos mais significativos:

"Eu não sei por que, mas é o umbiguinho e depois é os pezinhos. É como se eu tivesse vendo ele, sabe? Sentir o cheiro dele, das coisas dele [fala chorando]. Tanto é que as últimas meinhas eu não consegui lavar, porque parece que ele tá mais presente comigo." (Julia)

Teodózio, Barth, Wendland & Levandowski (2020) realatam que a falta de objetos e lembranças simbólicas do bebê pode dificultar o processo de luto dos pais. Tal entendimento vai ao encontro da fala do casal entrevistado no que se refere à importância dada aos pertences de Pedrinho.

A falta de exposição pública, de mostrá-lo ao mundo e às pessoas que também esperaram por ele, é um sentimento que perpassa os pais que perderam seus filhos recém-nascidos, antes mesmo de irem para casa. A intensidade e o significado dessa concretização são ilustrados no seguinte recorte: "A verdade é que tu falar do pé do Pedrinho é uma coisa, agora tu ter, é, o tamanho dele pintado numa folha [pausa] é o real." (Luís)

De acordo com Aguiar (2016) para os pais, o filho é real desde o momento em que descobre a gestação. O bebê pode estar presente nas conversas e há indicações de sua existência, mas ainda não é. Luís traz em sua fala a importância desses objetos: "Não é imaginação. Aí tu vê, ó, a coisa física na tua mão: "'ah mas era grande... não, era pequeno'. Agora, tu ficar imaginando existe uma grande diferença, né!? Tu ter a realidade e a imaginação.".

Além de possibilitar as lembranças de Pedrinho, o manuseio dos objetos e memórias também facilitou as recordações pessoais e dos momentos vividos junto com o filho no hospital, como ilustra o recorte a seguir:

"Imaginar como ele era gordinho, como ele tinha bastante voltinha nos pezinhos, e o umbiguinho dele a gente via porque ele tava sem roupinha, então dava pra ver, ahh o umbiguinho tá secando [...]" (Julia)

Mesmo após a morte de um filho, a oportunidade de conferir uma identidade e de ter lembranças do bebê são formas que vêm sendo utilizadas a fim de que os pais possam reconhecer a legitimidade de um filho (Rodrigues et al. 2020). O exposto é corroborado pelas falas de Julia e Luís ao longo de grande parte da entrevista. Durante a conversa, retomaram constantemente a importância de ter objetos físicos e lembranças com Pedrinho.

O casal relatou que, durante a internação, contava a amigos e à família sobre o desenvolvimento de Pedrinho e que o Memory Box fez parte desse processo de compartilhamento e cuidado de um para outro. "Não foi uma coisa que a gente guardou. Foi uma coisa que a gente compartilhou" (Julia). Os objetos parecem auxiliar os pais enlutados a construírem uma narrativa de quem Pedrinho era, para quem não pode conhecê-lo.

Rodrigues et al. (2020) afirmam que, por vezes, o sofrimento não é validado socialmente pela falta de contato social da família e amigos com o bebê. Assim, há casos em que essa ausência torna o sofrimento solitário para os pais. Esse fato pode justificar o porquê de Julia e Luís compartilharem as lembranças de Pedrinho como uma forma de torná-lo mais real.

Depois da morte de Pedrinho, o uso do Memory Box passou a ter um papel diferente na vida dos pais. "Eu acho que é um aconchego, uma coisa que tu tem ali, de presente, uma coisa física [...] que tu tem e te ameniza [... ] Porque quando dá saudade, aquilo vai te confortar" (Julia). O pai complementa: "Um conforto, né." (Luís)

Apesar de ter sido percebido como um conforto e um aconchego para momentos de saudade, ressalta-se que cada pessoa tem seu tempo para lidar com as lembranças de diferentes formas. O espaço de cada indivíduo deve ser respeitado até que o mesmo se sinta preparado e à vontade para manusear os objetos.

Diante de um período de vida tão breve, as lembranças têm sido um conforto para os pais deste estudo - as memórias são tudo que resta a eles (Shelkowitz, Vessela, O'Reilly, Tucker & Lechner, 2015). Além de auxiliá-los nos momentos de saudade, o Memory Box ganha um significado ainda maior: esses objetos são a prova real da existência de Pedrinho, mesmo para aqueles que nunca o viram. "É a prova de existência. Não é mais um conto, uma história. A parte concreta dele é muito importante ao longo da história. Talvez pros outros filhos não, mas pra mim e pra Julia (mãe), pra gente que viveu essa história, pra gente é muito importante. É que nem eu fosse botar ele numa caixinha e tu sabe que ele tá ali" (Luís).

Os momentos na UTIN serão as lembranças que ficarão para este casal, que poderão auxiliá-los no processo de luto, dependendo da qualidade e humanização com que foram acolhidos e atendidos pela equipe multiprofissional no hospital. Felizmente, a unidade de saúde onde Pedrinho foi hospitalizado até o momento da sua morte prestou uma assistência humanizada e acolhedora, permitindo que Julia e Luís construíssem lembranças positivas com seu filho. Transcorrido quase um ano desde a morte de Pedrinho, os pais seguem recorrendo aos momentos que tiveram com ele. Foi possível perceber, no momento da entrevista, que o casal busca lidar com a saudade do filho através das recordações e memórias dos breves momentos vividos em sua companhia. Assim, o Memory Box parece ser uma importante forma de viver seu luto.

 

Considerações Finais

Através deste estudo, fica evidente que as lembranças podem influenciar de forma positiva o processo de luto, considerando as peculiaridades de cada perda, especialmente a situação aqui estudada, que se refere ao luto pela perda de um filho recém-nascido.

Sobre a introdução do Memory Box na vida do casal durante a hospitalização, Julia e Luís relatam como algo especial e cuidadoso por parte da equipe, demonstrando agradecimento pela oportunidade de manter esses registros. No período de internação, os pais estão muito atentos ao estado clínico do bebê, às melhoras e pioras, e todas as angústias que vêm junto desses acontecimentos. Visto isso, mostra-se a relevância dessa estratégia de humanização, apresentada aos pais como um modo de guardar lembranças do bebê.

Tendo em vista que a utilização do Memory Box ainda é uma estratégia de humanização recente e pouco utilizada, foi importante investigar de que forma os pais têm utilizado os pertences recebidos. Destaca-se que esses objetos vêm auxiliando os entrevistados de diferentes formas, mas principalmente como um meio de lembrar detalhes, compartilhar sobre ele com pessoas que não o conheceram ou ainda como prova de sua existência real. Ter algo físico, que represente detalhes reais, como tamanho, cheiro e forma, também foi considerado importante.

O processo de luto pela perda de um filho naturalmente é um processo de muita dor. Todavia, quando o falecimento acontece tão próximo ao nascimento, algumas peculiaridades entram nesse luto, tais como a falta de lembranças com o bebê e as próprias questões de ser pai e mãe. Como o luto é um processo singular para cada um, Julia e Luís têm percepções e usam os objetos do Memory Box de maneiras distintas.

É importante levar em consideração que os pais, apesar de terem passado pela mesma perda, sentem e vivem o processo de luto de diferentes formas e isso também pode auxiliar na compreensão de impressões e sensações diferentes quanto ao uso dessa estratégia de humanização. Apesar disso, o casal reforça a importância de ter os objetos usados pelo filho e avaliam o Memory Box como um presente que representa, para eles, a vida de Pedrinho.

A partir da vivência de Julia e Luís, pode-se dizer que o Memory Box tem sido um elemento importante no processo de luto e percebe-se que, após um ano da perda do filho, o casal se mantém unido, conversando com frequência sobre a criança, lidando com sua dor, mas, ao mesmo tempo, retomando a vida e planejando uma nova gravidez.

Por fim, sugere-se novos estudos envolvendo o uso dessa estratégia de humanização com um número maior de pessoas, com vistas à maior compreensão e subsídios acerca da implementação dessa prática.

 

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Thaís Caroline Guedes Lucini - Psicóloga graduada pela Universidade Feevale.
Carmen Esther Rieth - Psicóloga, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e professora do curso de graduação em Psicologia da Universidade Feevale

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