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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versión impresa ISSN 1516-3717versión On-line ISSN 1981-0490

Cad. psicol. soc. trab. v.13 n.1 São Paulo  2010

 

Artigos originais

 

O trabalho é projeto de vida para os jovens?1

 

Is work a life project for young people?

 

 

Sandra Korman DibI; Lucia Rabello de CastroII

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro
IIInstituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo em vista as transformações nas macroestruturas e seus impactos sobre a forma como os indivíduos – jovens ou não – relacionam-se com o trabalho e o futuro (especialmente o profissional) nas sociedades capitalistas, este artigo analisa a maneira como os jovens universitários de estratos médios do Rio de Janeiro atuam e se posicionam diante da demanda de se tornarem produtivos, bem como o lugar e as condições de construção de um projeto profissional no contemporâneo. Utilizou-se o paradigma metodológico de pesquisa-ação, cuja abordagem empírica constituiu-se de uma intervenção junto a jovens estudantes de duas universidades, no âmbito de uma disciplina especificamente criada para se discutir o projeto de vida profissional. Entre os principais resultados desse estudo, destacam-se as mudanças relativas à construção de um projeto profissional baseado em princípios de racionalização, antecipação e adequação. O projeto passa a ter algum sentido se entendido como forma de construção, interlocução e representação de desejos de realização dos indivíduos, num processo que os leva a reexaminarem suas possibilidades e limitações, e sua própria posição diante da vida. Neste reexame as incertezas dos jovens diante das novas engrenagens produtivas são apreendidas como fonte de compreensão da inter-relação que estabelecem com a conjuntura social, e não apenas como algo que deva ser corrigido ou eliminado.

Palavras-chave: Juventude, Trabalho, Inserção profissional, Projeto profissional, Subjetividade.


ABSTRACT

In the context of long-standing macro-structural transformations and of their impact on how individuals – young or not – relate themselves to work and to their professional future in capitalist societies, this article analyses how young undergraduate students of the middle classes in Rio de Janeiro, respond to the societal demand of becoming professionally active and productive. It also focuses on the conditions which allow for the construction of a professional future. A methodological paradigm of action-research was used, whose empirical approach involved an intervention project in which these young people studying at two different universities were invited to discuss their professional project in a discipline oriented towards this aim. Among the results of the project could be found changes concerning the construction of a professional future based on principles such as, rationalization, anticipation and modeling. It was observed that the professional project begins to make sense once it is understood as a form of construction, interlocution and representation of the objectives and desires of the individuals, a process that leads them to revisit and examine their possibilities and limitations, as well as their subjective position in life. Alongside this examination, young people's uncertainties concerning macro productive mechanisms and outcomes can be understood as a source of help to position them in the overall productive conjuncture, rather than something to be corrected or eliminated.

Keywords: Youth, Work, Labor market integration, Career planning, Subjectivity.


 

 

Nos últimos vinte anos, o trabalho com jovens em universidades públicas e privadas do Rio de Janeiro tem possibilitado a observação de o quanto o momento da conclusão do curso e da inserção no mercado de trabalho é experimentado como uma crise que se intensifica com o passar do tempo e à medida que esses sujeitos entram em contato com as importantes alterações nas dinâmicas de produção e de trabalho. Vários eventos dão indícios desse momento crítico: o adiamento da formatura, o trancamento da matrícula ou a transferência para outros cursos, as oscilações sobre a escolha da graduação em curso, a nítida impressão de estar no curso errado, dentre outros. Essa inquietação acompanha até mesmo os que chegam ao fim da graduação no tempo previsto e, algumas vezes, já com estágios realizados. A iminente conclusão do curso parece mobilizar os jovens, que se questionam: “o que realmente farei depois de formado?”.

Dessa forma, este artigo analisa os diversos fatores que atravessam e influenciam a construção da trajetória profissional dos jovens, buscando elucidar a maneira como esses sujeitos apreendem sua inserção futura no complexo cenário das engrenagens produtivas. Considerando as transformações nas macroestruturas e seus impactos sobre a forma como os indivíduos – jovens ou não – relacionam-se com o trabalho e o futuro (especialmente o profissional) nas sociedades capitalistas, o estudo tem como fio condutor a maneira como os jovens atuam e se posicionam diante da exigência de se tornarem produtivos, bem como o lugar e as condições de construção de um projeto profissional no contemporâneo.

Observa-se que essa tensão, com as dúvidas, inquietações e questionamentos que a caracterizam, ocorre quando supostamente os jovens dariam início à sua vida produtiva. Tal situação pode suscitar inúmeras interpretações e, destaca-se, aqui, a de que grande parte dos jovens não esteja preparada ou disponha de recursos para correlacionar a experiência da graduação com o início da vida profissional. A iniciação profissional parece postergada para o término do curso superior, enquanto a graduação é vivenciada como a continuidade do Ensino Médio, como ilustra o depoimento2 de um estudante de Comunicação Social:

É interessante porque, depois da pré-escola, veio direto o Ensino Fundamental e ninguém me perguntou se eu queria continuar estudando [risos]. Mas, sério, ninguém perguntou se eu queria mudar de colégio; apenas me mudaram. Depois, para o Ensino Médio, aconteceu a mesma coisa; tudo numa linha, em série. De repente, para tudo, corta essa sequência e, agora, vem a tal coisa do “qual o curso você vai fazer?”; “qual a sua futura profissão?”; “agora tem que pensar meu camarada!”. E pelo jeito agora, que estou me formando, tenho que pensar mais ainda. Lá em casa, já falaram que eles vão segurar tudo até a formatura e depois é comigo mesmo. Só que o emprego, agora, não está fácil, não vem mais naquela sequência. Não tem mais nada, que eu saiba que venha depois (M, 24 anos).

A afirmação “agora tem que pensar, meu camarada!”, dirigida a esse jovem universitário, faz supor que, anteriormente, ao final da graduação, a atividade de pensar e fazer escolhas não se impunha como uma necessidade tão grande, e que agora passa a valer como um dos requisitos para se conseguir um emprego, um sustento e, consequentemente, o ingresso no mundo adulto. A necessidade intensificada de pensar e escolher, ao final da graduação, muitas vezes coincide com a anunciação – mesmo que não explícita – de que tudo “passará a ser com ele mesmo”. Tais questões são indícios de que, com a aproximação do momento da inserção profissional, os jovens universitários se deparam com uma nova dinâmica nas suas biografias, na qual o tempo deixa de ser aquilo que simplesmente passa e o futuro, o que seguramente chega.

 

A demanda de se tornar produtivo e pensar no futuro

As problemáticas descritas motivaram a criação da disciplina “Planejamento de Vida Profissional” na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)2, em 2001, como forma de atuação e de um melhor delineamento dessas questões. A disciplina buscou oferecer aos jovens um espaço para a reflexão acerca do panorama atual do mundo do trabalho e dos modos de inserção e realização produtiva, e para a criação de referências para a organização de suas potencialidades e expectativas, a fim de refletirem e “se pesquisarem”. Como universitários – em sua maioria com idades entre 19 e 25 anos, pertencentes às classes média e alta e residentes na cidade do Rio de Janeiro – vivenciam o próprio período da graduação? Como reagem diante das imposições de que o futuro deva ser pensado, idealizado, construído? E como assimilam as ideias de investir o tempo ou o cuidado em não perder tempo?

A representação material de tal experiência culminou na construção de uma metodologia de projeto profissional proposta aos jovens, essencialmente, como uma ferramenta de interlocução. Diante de um futuro que parece nebuloso e da imprecisão de si mesmo, o projeto profissional deixa de ser exercício de antecipação ou previsão que impõe a exatidão do que se deseja como condição para que o processo possa ser iniciado. Na criação da disciplina, o projeto profissional se apresenta como uma possibilidade de expressão e representação de desejos e objetivos. É implementado por meio de técnicas de dinâmicas de grupo, grupos de discussões e exercícios criados para esse fim, com base na observação longitudinal dos principais impasses dos jovens quanto à questão da inserção produtiva e que fazem parte dos seus recursos metodológicos.

Destacam-se como pontos estruturantes da metodologia: i) o levantamento do conjunto de experiências dos sujeitos; ii) a interpretação dos contextos (econômico, social, produtivo, cultural) onde o jovem se insere; iii) a investigação e atualização das suas redes sociais de pertencimento; iv) a reflexão sobre os diferentes atravessamentos (educação, mercado, família, mídia) do projeto profissional; v) a projeção de etapas de um projeto profissional como ferramenta de mediação e reflexão, que organiza e confere uma maior compreensão sobre as ações presentes e cotidianas.

Entre 2003 e 2007, a disciplina foi aplicada 20 vezes na PUC-Rio, como disciplina optativa e multidisciplinar da graduação, e seis vezes na UFRJ, como laboratório do Ciclo Básico da Escola de Comunicação (ECO), para um total de 595 alunos agrupados em 26 turmas. Na PUC-Rio, as turmas eram multidisciplinares, havendo maior incidência de estudantes provenientes dos cursos de Engenharia, Comunicação Social, Psicologia, Direito, Administração, seguidos por Economia, Pedagogia, Serviço Social, Letras e Filosofia. A maior parte das turmas é composta por alunos de diferentes períodos, havendo, no entanto, uma concentração maior de alunos do quinto período em diante, além de uma permanente participação de formandos, equivalendo a 20% de cada turma. Essa experiência serviu de campo empírico para uma investigação sobre a relação desses sujeitos com o trabalho, e o lugar do projeto na construção das trajetórias profissionais no contemporâneo, realizada como parte da tese de doutoramento em Psicologia de uma das autoras (Korman Dib, 2007).

A metodologia empregada baseou-se no paradigma da pesquisa-ação crítica como estratégia de investigação e elaboração de conhecimento teórico-prático. A partir de um mergulho na práxis do grupo em estudo, a pesquisa-ação crítica “considera a voz do sujeito, sua perspectiva e seu sentido” (Franco, 2005, p. 486). Usou-se, como fonte privilegiada para a coleta de dados e delineamento da pesquisa, o discurso dos 595 alunos registrado nas atividades, relatórios e avaliações da disciplina, por vezes, com o apoio fundamental dos monitores do curso. Isso implicou na construção coletiva do percurso de investigação e em uma permanente reavaliação dos seus processos e propósitos, como é previsto por e Andaloussi (2004) e Thiollent3 (2004), entre outros, ao discorrerem sobre características da pesquisa-ação. A permanência prolongada da pesquisadora qualificada no campo serviu como critério de confiabilidade (Mazzotti & Gewandsznajder, 1998, p. 172).

 

Vida, tempo e projeto profissional

O termo projeto, como é hoje reconhecido, surgiu em meados do século XX e, embora tenha sofrido atualizações ao longo de sua história, consolidou-se modernamente, como significante para intenção, objetivo, planejamento, programa, buscando corresponder às preocupações e expectativas do tempo técnico, o tempo do trabalho. O projeto, seja ele individual ou coletivo, vai encontrar seu fundamento na forma como os indivíduos e a sociedade se relacionam com o tempo e o devir – daí o estudo dessa relação ser relevante na reflexão sobre as condições de construção de um projeto profissional entre os jovens universitários.

Em seu sentido moderno, o projeto se apresenta como instrumento para reorganizar o passado e antecipar, racionalmente, o futuro. A ideia de se ter um projeto para a vida (pessoal, profissional) se confunde com a própria formação da identidade moderna, como um princípio organizador ou edificador das biografias (Berger, 1977). O tempo, a reger a relação do sujeito moderno com o devir, mostra-se linear, previsível e de longo prazo. A trajetória biográfica é apreendida como o espaço/tempo, para onde as diferentes etapas devem se organizar em um movimento contínuo e linear. O curso da vida é encarado como “sequência sistematizável, ordenada segundo os princípios de complexidade e aperfeiçoamento constantes” (Castro, 1998, p. 29).

Nessa sequência, a transição – mudança ou ultrapassamento definitivo de status – passa a servir como modelo normativo para a construção das trajetórias biográficas. Tradicionalmente, a ideia de transição tem como eixo principal a passagem da condição de dependência financeira, característica da infância e adolescência, para a de independência, claramente associada à vida adulta. A passagem das fases vai se referenciar em marcos e eventos balizadores como a conclusão dos estudos, o exercício de uma atividade produtiva remunerada, a saída da casa dos pais, a constituição de família própria (Leccardi, 2005a).

O emprego e todo seu corolário trazem elementos de permanência que influenciam, decisivamente, a relação dos indivíduos com o devir. Em um cenário previsível e com garantias, o sujeito se encontra em posição privilegiada para explorar o futuro e prever, controlar e ordenar os seus movimentos. O projeto de vida encontra sua ancoragem em formas institucionalizadas estáveis, em função das quais se podem traçar e alcançar objetivos e metas, assim como definir e desenvolver os cursos de ação para atingir esses fins.

Entretanto, nas últimas décadas, profundas transformações4 culturais, sociais, econômicas, políticas e tecnológicas vêm alterando a forma como os indivíduos se relacionam com o tempo, o trabalho e o devir. As condições de construção de um projeto para a vida pessoal/profissional vêm se modificando substancialmente.

Como muitos estudos e autores apontam, o desemprego afeta particularmente os jovens. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2007), os jovens representam 44% dos desempregados no mundo; na América Latina e Caribe, a taxa de desemprego entre indivíduos com idade entre 15 e 24 anos é de 16,6%, quase o dobro da taxa da população geral da região, que é de 7,7%. No Brasil, eles também representam a metade dos desempregados, segundo o relatório (OIT, 2007), que também revela que, por aqui, 52% dos jovens empregados trabalham sem carteira assinada, engrossando as crescentes estatísticas do mercado informal.

O desemprego, as dificuldades no acesso ao mercado de trabalho e, especialmente, ao primeiro emprego, vão atingir todos os jovens, de formas e intensidades diferentes, acarretando variadas modalidades de exclusão e vulnerabilidade, conforme as diferenças que os sujeitos apresentem quanto a gênero, raça, nível de instrução, localização geográfica e classe social. Nesse aspecto, os jovens pertencentes aos estratos mais pobres são os mais frontalmente atingidos pelo desemprego e pelas mudanças no mercado de trabalho. Contudo, como os estudos analisados revelam, os jovens de classe média e alta também se veem afetados.

Quadros (2004a) adverte que as famílias das camadas superiores são/foram afetadas, direta ou indiretamente, pela perda de renda, pelo crescente desemprego ou pela precarização das ocupações. Assim como Pochmann (2000), Quadros (2004a, 2004b) salienta que a crise em que se engendra o desemprego vem afetando, sobretudo, aqueles que investiram em educação, independentemente do estrato social a que pertençam; mesmo com a ampliação da base da população com nível superior completo, que passou de 3,2 milhões, em 1981, para 10,8 milhões, em 2002, a renda desse grupo caiu cerca de 25%. A queda nos rendimentos também foi mais acentuada entre os que possuíam terceiro grau completo, alcançando 25% nesse período, enquanto a renda média global dos demais caiu apenas 4,6% (Quadros, 2004b).

A despeito do fato de apenas 9% dos jovens brasileiros com idade entre 18 e 24 anos estarem no Ensino Superior (IBGE/PNAD, 2004), os dados apresentados por Pochmann e Quadros fornecem indícios de que, embora não tenha perdido, em hipótese alguma, o seu valor, a educação formal – notadamente a formação superior – deixa de acenar como garantia para a obtenção de uma vaga no mercado de trabalho ou de um salário mais alto. Camarano, Mello, Pasinato e Kanso (2004), que pesquisaram jovens brasileiros, destacam que a formação institucionalizada “como uma condição já garantiu, no passado recente, a certeza de ascensão social para muitos jovens” (p. 6). Contudo, observam que, se por um lado, há indícios de que a escolarização não seja mais suficiente para a inserção profissional e a obtenção de um status de reconhecimento e realização na escala social, por outro se mantém como condição necessária para o incremento das probabilidades de algum tipo de localização profissional.

Esses fenômenos, somados a outros como o desemprego e a flexibilização/precarização das relações de trabalho, passam a compor um complexo arranjo de incertezas a afetar os sujeitos produtivos ou em vias de se tornarem produtivos, sinalizando que uma série de garantias – ou que eram percebidas como tais – não mais se verificam. Mesmo que essas garantias, como crenças, tenham existido apenas no imaginário de boa parte dos sujeitos, como creem alguns autores, o fato é que, depois de tantas décadas, reagimos a elas como se fossem naturais, eternas e inerentes à humanidade (Rosembaum, 2003). E é importante observar, como faz Pochmann (2005), que a filosofia de vida da classe média tende a se fundamentar no ideário da ascensão social, com a sua “contínua busca tanto da elevação de sua participação relativa nos bens e serviços da sociedade como no maior nível de prestígio e status social”.

Não à toa, Pochmann (2005) e Quadros (2004c) argumentam que são os filhos das classes média e alta que vivem essa tensão de forma mais dramática. O alto investimento direcionado a esses jovens – cursos de idiomas, prática de esportes, curso superior, intercâmbios, viagens etc. – coloca-os em situação aparentemente privilegiada em relação aos demais. Contudo, diante dos dados aqui analisados, cabe questionar se os privilégios, traduzidos em facilidades no acesso a recursos e informações, estariam sendo confundidos com efetivas oportunidades de inclusão e desenvolvimento profissional.

Embora não constituam um grupo homogêneo, os jovens de classes média e alta são também afetados pelas profundas mudanças no mercado de trabalho e desemprego e têm que responder às expectativas que são, proporcionalmente, geradas quanto ao seu futuro. E essas respostas serão mensuradas pela qualidade de suas ações e decisões no presente, especialmente na medida em que incrementem as possibilidades de inserção produtiva. A luta para não ser excluído do processo de integração social vai atingir todos os jovens, independentemente da condição socioeconômica em que se encontrem (Waiselfisz, 2004).

 

As incertezas como um posicionamento frente a um cenário complexo

Nos últimos 20 anos, especialmente nos últimos oito anos, de maneira mais sistemática, o envolvimento com jovens em fase final da graduação, em busca por inserção produtiva, possibilitou observarmos a reverberação das novas dinâmicas produtivas como o desemprego, a vulnerabilidade e a falta de garantias sobre o futuro profissional. A experiência com jovens universitários de classes média e alta pôde constatar que as transformações aqui discutidas exercem impactos expressivos nas possibilidades de esses indivíduos ascenderem ao mercado de trabalho, bem como nas suas modalidades de integração em diferentes escalas. Entretanto, destaca-se, aqui, uma forma de impacto que nem sempre é percebida: os recursos que os jovens dispõem para pensar e delinear uma trajetória profissional futura. Diante de tantas evidências dos impactos sobre os processos de inserção profissional dos jovens, o que se pôde observar como perspectiva dominante sobre o futuro profissional foi uma progressiva expressão de uma aparente ausência de projetos e de recursos para construção de uma visão de um futuro que lhes dê sustentação.

No caso dos universitários pesquisados na aplicação da disciplina Planejamento de Vida Profissional, a impossibilidade de idealizar, ou até mesmo de pensar em projetos futuros, foi justificada pelos jovens de várias maneiras, em especial, como algo decorrente do fato de no presente não saberem o que querem ou o que desejam para o futuro. Como um representante de um conjunto de incertezas, o não-saber foi expresso de diversas formas: não saber o que se quer e deseja; não saber qual carreira seguir; não saber se escolheu o curso certo; não saber se gostará de se envolver com a mesma atividade ao longo dos anos; não saber quais seus objetivos profissionais e planos para o futuro e não saber como se inserir profissionalmente no mercado de trabalho. O problema maior, aparentemente, não estava no recrudescimento do mercado, uma vez que os jovens não se viam atingidos diretamente, mas, sim, em algo que se apresentava como anterior. Era como se a maior questão residisse em uma generalizada impossibilidade de construir algo para si e de decidir sobre o futuro em meio a tantas incertezas.

Tal revelação, na prática, coincide com ações que passaram a fazer parte da trajetória dos jovens, como a permanência prolongada na universidade – sob a forma de adiamento da formatura em um ou mais semestres; trancamento ou transferência de curso; realização de dois cursos simultaneamente ou a pretensão de novos cursos ao final do primeiro e a evasão. No aspecto subjetivo, coincide com a descrição de uma sensação de angústia diante da ideia de futuro como algo que não lhes pertence ou lhes é marginal, na medida em que não veem possibilidades de atuar sobre ele. Os jovens, em diferentes períodos, ou até mesmo estando para se graduar, pareciam desejar descobrir o que queriam realmente.

Ah, essa é a pior parte. Agora pegou. Eu me matriculei na disciplina exatamente porque eu não sabia o que queria. Só que eu ainda não sei. E ainda estou pensando em fazer outro curso! Como é que dá para agora chegar e planejar. Só dá para planejar quem minimamente, sabe o que quer. É básico isso (F, 21).

Logo, levantou-se a hipótese de que a proposta da disciplina não pudesse ter como foco ou restringir-se ao estudo dos diferentes mercados e as estratégias de se adaptar ou a eles responder. Esse estudo, então, busca compreender melhor o que se passa na confluência de dois mundos – o dos jovens que frequentam a universidade e o das engrenagens produtivas em funcionamento. Com esse fim, ele se volta para as narrativas produzidas pelos jovens que revelam o “vivido”, quando solicitados a se posicionarem sobre o passar do tempo ou qualquer outro tipo de pressão, bem como quando solicitados sobre o sentido e a intencionalidade do seu processo de formação universitária que, neste caso, concentram-se nas variações sobre um mesmo tema: o não-saber.

 

Outros modos de apreender o não-saber dos jovens

O planejamento é uma dimensão importante na construção da biografia dos sujeitos (Leccardi, 2006); no entanto, cabe analisar e questionar a forma, o lugar e, especialmente, as circunstâncias de um projeto profissional na construção da inserção profissional dos jovens contemporâneos.

Assim, parte-se da problematização crítica de que o projeto profissional possa manterse orientado por imperativos de racionalização, antecipação e adaptação, em face das incertezas e imprevisibilidades do contemporâneo. Por outro lado, é possível explorar outro entendimento do projeto como um operador mais efetivo para o delineamento das questões referentes às atuais configurações do trabalho e à própria inserção produtiva. Esse entendimento passa pela apreensão do projeto como prática subjetivante busca, por meio do estabelecimento de diálogos do sujeito com diversas instâncias da sua vida, fornecer instrumentos para que ele construa um sentido para sua trajetória profissional. Dentro dessa perspectiva, o não-saber, como algo que prepondera nas falas dos jovens, oferece-se como um relevante condutor para apreensão de como os jovens se posicionam e constroem suas impressões sobre o mundo do trabalho.

O não-saber, como um aspecto recorrente nos discursos dos jovens, embora varie sobre a perspectiva de que “não se sabe algo”, parece refletir, muito mais, uma posição identitária caracterizada por um lugar existencial que denota uma ausência de recursos subjetivos para daí se mover. E, embora em alguns momentos o não-saber pareça se referir a uma mesma coisa pode estar referido a diferentes instâncias.

Durante a disciplina, quando confrontados com a ideia de realização de um projeto profissional, o não-saber pôde ser apreendido sob dois eixos centrais de questionamentos ou problemáticas, que se reforçam mutuamente e que são, aqui, registrados da maneira exata como foram expressos pelos jovens: “como planejar se eu não sei o que quero?” e “para que planejar se não depende de mim?”.

No primeiro eixo, as incertezas e indefinições se manifestaram acerca dos próprios desejos e quereres, da inusitada situação em que se exige pensar sobre isso e sobre como se daria a sua transição para a vida adulta. No segundo eixo, a proposta de se pensar num projeto profissional naufraga diante de fatores que são narrados como externos e pouco precisos.

Dessa forma, “não saber se poderá se dedicar ao que gosta”, “se conseguirá emprego” ou “se passará numa seleção para estágio” sugerem níveis distintos de questionamentos em relação a “não saber do que gosta”, segundo o relato de alguns dos jovens.

Olha, eu ficaria super feliz se o meu problema fosse: “Ah! Não sei se vou ter emprego nessa área que eu quero tanto; não sei se conseguirei passar naquela seleção; não sei se vou gostar disso o resto da vida”. Quem dera! Acho que o meu caso é muito pior. Eu não sei do que eu gosto. Pode isso?

Embora o “não saber o que se quer” e o “não poder pôr em perspectiva qualquer visão de futuro” apresentem-se, hoje, como problemas críticos para aqueles que se encontram no momento de tomar decisões acerca de sua vida profissional, como também para aqueles que os acompanham, as diferentes nuances5 do não-saber possibilitam abertura para outras análises. Em tais análises, as incertezas não figuram como algo que deve prontamente ser eliminado ou reparado, mas como campo de atualização e aprofundamento.

 

Modalidades subjetivas do não-saber

Não saber de si

Não saber do que gosta ou o que deseja realizar profissionalmente, por se identificar com muitas coisas ou com nada, de forma preponderante, parece coincidir e se intensificar com a aproximação da formatura e do momento de inserção profissional. Tais incertezas se manifestam nas seguintes expressões: (i) “não sei do que eu gosto”; (ii) “não sei exatamente o que quero”; (iii) “não sei qual área seguir”; (iv) “não sei a que me dedicar, porque eu gosto de muitas coisas”; (v) “não sei o que fazer, porque até agora não vi nada que desperte o meu interesse”.

Essa cadeia de incertezas surge diante da necessidade de definir a área em que, efetivamente, os jovens desejam atuar, de procurar um estágio ou emprego e, em se integrando ao mercado de trabalho, conseguir responder por sua autonomia. E a cadeia de respostas que ela suscita envolve fazer escolhas e tomar decisões, tendo como base um mundo que, agora, se expressa sempre volátil e provisório. Apesar disso, o momento de inserção profissional, em meio a incertezas, costuma evocar a estranheza dos que acompanham os transcursos juvenis – como se a tarefa de saber de si fosse a contrapartida mínima exigida do sujeito jovem que se encontra no final de uma graduação.

De acordo com os depoimentos dos sujeitos pesquisados, o não-saber concentra-se muitas vezes sobre a escolha do curso em andamento ou em período de conclusão, não sendo raro encontrar turmas multidisciplinares em que 80% dos alunos afirmam terem dúvidas sobre estarem no “curso certo”. Há ainda aqueles que supõem não terem feito a melhor escolha sem, no entanto, saber o que fazer com esse fato. São algumas expressões dessa modalidade de dúvida: (i) “não sei se é esse o curso que deveria estar fazendo”; (ii) “não sei se continuo o curso, mesmo sem estar gostando de nada e, depois, faço algo com que eu me identifique mais”; (iii) “não sei se não deveria estar fazendo outro curso junto com esse”; (iv) “não sei se faço outra graduação depois dessa ou alguma especialização, que eu também não sei em que seria”; (v) “não sei se faço o que gosto ou o que dá dinheiro”.

As expressões dos jovens universitários de classe média e alta sugerem que eles não conseguem precisar o que desejam, como condição para a continuidade de suas biografias. E isso permite diferentes ângulos de leitura. Algumas abordagens teóricas (Furlong & Cartmel, 1997; Giddens, 1998; Mörch, 2003; Rodrigues, 2001), ao tentarem lançar luzes sobre fenômenos ligados às trajetórias profissionais no presente, correlacionam tais fenômenos a uma imposta adesão à cultura da urgência, superação e excelência que, por meio de diferentes discursos sociais, apresenta-se como um mantra contemporâneo. Tal adesão requer o ajustamento dos jovens (e não apenas deles) ao que Rodrigues (2001) chama de círculo vicioso, no qual tanto as possibilidades de êxito quanto as de fracasso produzem angústia, porque “mantêm a necessidade de não parar, como forma de buscar alguma segurança frente à incerteza”.

As falas dos jovens aqui pesquisados, de diferentes maneiras, trazem evidências de uma cultura em que já não é mais possível parar em inúmeros aspectos (Rodrigues, 2001). Não se pode e nem se deve parar de fazer cursos de idiomas e de tecnologias, de se especializar, de fazer intercâmbios, de enviar currículos e participar de seleções. O grande mercado de qualificações é tão próspero quanto diversificado – com verdadeiras linhas sequenciais de produtos – e diante deles os sujeitos parecem compelidos a escolher, uma vez que o futuro parece se constituir como resultado destas adesões.

Porém, por meio das incertezas, parece ser possível parar, interromper a sucessão ordenada dos acontecimentos e, como consequência, eventualmente parar diante dos episódios ou das opções de mobilidade biográfica. O não-saber, por um lado, implode o caráter de automatismo do aperfeiçoamento contínuo e o que seria esperado do processo de formação, inserção e desenvolvimento profissional. Mas poderíamos aventar a possibilidade de que o nãosaber esteja expressando um saber diferenciado que, por outro lado, rompe com a dinâmica do referido círculo vicioso, ao menos na esfera da formação?

Essa esfera, hoje, é regida de maneira imperiosa pela ideia da educação prolongada e especializada como solução para manter os jovens ocupados ou como um salto ou fuga, raramente encarados como retrocesso. Alguns autores, como Furlong e Cartmel (1997), ao analisarem determinados vieses do ensino superior, comparam-no à categoria de um bem de consumo. A contínua renovação é requerida e, ao mesmo tempo, viabilizada por meio de uma cadeia de produtos e serviços que se propõem a contemplar a cultura da urgência, superação e excelência, como possibilidade de neutralizar os efeitos das incertezas e vivenciar o progresso de forma inexorável.

Muitas vezes, quando questionados sobre possíveis opções ou ações diante das suas dúvidas, os jovens ponderam: “se apenas ter realizado um intercâmbio ainda seja algo distintivo”; “se devem aprender o mandarim, porque em breve o domínio do inglês e do espanhol não será suficiente”; “se devem iniciar o mestrado o mais rápido possível para não perderem tempo, ou fazer um MBA profissionalizante ou procurar trabalho”; “se a pósgraduação numa universidade estrangeira de primeira linha não seria um diferencial a ser buscado”.

O imaginário dos jovens que buscam tal qualificação é passível de ser comparado ao de um consumidor num shopping center, só que, neste caso, o indivíduo se encontra diante da massificação e, ao mesmo tempo, explosão das mais variadas modalidades de experiências e produtos educativos (Giddens, 1998). Na mesma linha, Mörch (2003, p. 53) chega a comparar a vida dos jovens a um supermercado: “os jovens são treinados para agir como clientes e vão 'às compras' para escolher 'coisas' relacionadas com muitos aspectos de suas vidas, tais como educação e relações sexuais”.

O “como se tornar...” e o “como fazer para...” constituem a fonte de inspiração recorrente na formatação de cursos, serviços e publicações em escala planetária. Boa parte deles está comprometida com a produção das mais diferentes verdades sobre os jovens, os novos processos de inserção e desenvolvimento profissional e a necessidade de fazerem as escolhas certas e, consequentemente, destacarem-se ou terem o lugar assegurado num ambiente hostil e sem qualquer garantia.

Dowbor (2001), ao examinar as diferentes possibilidades de entendimento do que acontece com os jovens e o mundo do trabalho, observa que nunca houve tantos estudos, análises e cifras e, ao mesmo tempo, “nunca se esteve tão confuso” (p. 14). Da mesma forma, pode-se supor que, proporcionalmente, nunca se produziu tantos saberes e serviços na linha do “como” solucionar as dificuldades de inserção produtiva e aplacar as dúvidas dos jovens. Ao mesmo tempo, nunca estes expressaram tantas incertezas.

As falas dos jovens reproduzidas aqui sugerem que o transcurso da escola para o trabalho envolve escolhas complexas ou que são percebidas como complexas. Vale pontuar, ainda, que grande parte dessa complexidade se deve ao fato de imaginarem que tais escolhas correspondam a efeitos duradouros, permanentes e determinantes das possibilidades de conseguirem se inserir profissionalmente, ter mobilidade e um desejável estilo de vida futuro, agindo, também, como se o que estivesse em jogo fosse a própria identidade profissional.

Além das dúvidas que expressam as complexas nuances do “não sei do que eu gosto”, evocando a dimensão de suposto autoconhecimento, destaca-se o não-saber em relação ao passar do tempo. Uma impermanência do querer foi verificada nas falas dos jovens universitários, emblematicamente, pelo “não sei se eu gostarei disso/de algo para o resto da vida”.

Não saber do futuro

Algumas falas denotam contentamento e identificação com a realidade presente, mas uma profunda apreensão quanto ao futuro. Não se trata de não saber do que se gosta, no presente, ou de não se identificar com a graduação em curso, mas de não poderem assegurar que a experiência de identificação com a carreira em formação se mantenha de forma prazerosa ou interessante com o passar dos anos. Algumas expressões recorrentes são destacadas: (i) “não sei se me vejo tendo que trabalhar com isso para o resto da vida”; (ii) “eu posso dizer que estou gostando do que estou fazendo lá no estágio, mas é apenas uma parte de um processo muito maior”; (iii) “não sei se não poderia ter outras áreas mais interessantes, mas que ainda não experimentei”; (iv) “eu gosto de trabalhar, em me envolver com quase tudo nessa área, mas quando penso no 'prá sempre'...”; (v) “não sei o que eu gostaria de fazer quando me formar, uma coisa é gostar das matérias e, outra, é o dia-a-dia”; (vi) “não sei se pretendo trabalhar no que estou me formando ou apenas usar este conhecimento”.

Foi possível perceber o peso da escolha, no presente, uma vez que os jovens não poderiam garantir a sua continuidade como opção no futuro. Sabiam que gostavam ou tinham interesse em algo hoje, mas receavam que isso não se desse ao longo dos anos. Percebiam inclinações em determinadas áreas, mas que em nada se coadunavam com outras áreas em que também possuíam interesse, como o fato de serem músicos e estarem cursando engenharia, por exemplo. Evidenciavam possuir determinadas habilidades como fruto de experimentações, e ao mesmo tempo questionavam que muitas outras poderiam estar sendo deixadas de fora, só porque ainda não as tinham experimentado.

Pode-se questionar, aqui, se tal impermanência ou variedade do querer, como a sua volatilidade, não poderia estar de acordo com a profundas transformações no mundo do trabalho? Se, cada vez menos, as trajetórias biográficas se apresentam como percursos lineares, sequenciados e previsíveis da juventude para a vida adulta, da escola para o mercado de trabalho, qual a gravidade em não se assegurar a constância dos interesses e desejos atuais? As fronteiras entre as fases da vida, assim como os marcos e eventos que referenciam e balizam as mudanças entre etapas, parecem se fragmentar materialmente, quando os referenciais externos se enfraquecem ou deixam de existir e, simbolicamente, quando deixam de apontar o sentido das coisas e de serem valorizados pelos indivíduos.

A quebra no encadeamento lógico e linear, entre as etapas da vida, vem sendo vivenciada em diferentes dimensões e modalidades pelos indivíduos e, especialmente, pelos jovens, que vivem (ou viviam) o signo da transição. Nos anos de 1950 e 1960, o estatuto de adulto era, costumeiramente, alcançado pela ultrapassagem de fases tais como o fim do percurso educativo, o início de uma atividade profissional e a constituição de uma nova família. Hoje, contudo, observa-se uma significativa desconexão entre essas fases e o ultrapassamento ou mudança de status, com o surgimento de novos episódios demarcadores das trajetórias dos jovens com duração e intensidades variáveis (Cavalli & Galland, 1995; Guerreiro & Abrantes, 2004; Pais, 1993).

Para Guerreiro & Abrantes (2004), embora as mudanças estruturais venham alterando, significativamente, os percursos biográficos dos jovens, o tornar-se adulto ainda tende a ser referenciado na obtenção de autonomia financeira, que, na maioria dos casos, passa pela necessidade de se ter uma ocupação de modo permanente, que assegure um rendimento compatível. Dessa forma, torna-se imperativo saber de si e do futuro. Contudo, em que se pese a integração do jovem ao mercado de trabalho, observa-se que as trajetórias educacionais nem sempre levam a empregos e que, diante de formas instáveis e vínculos precários de trabalho, a obtenção de uma vaga, por si só, não parece assegurar o processo de autonomização6.

Pesquisadores como Camarano et al. (2004), Chisholm (2001a), Orr (2001), Pais, Cairns e Pappamikail (2005) destacam que, entre outras consequências, essas mudanças vêm resultando na incompletude do processo de autonomização dos jovens, que passa a ser, recorrentemente, entrecortado por episódios de dependência e no adiamento concreto do estatuto de adulto, que, agora, tende a se dar num estágio mais avançado, especialmente para segmentos populacionais mais favorecidos, chegando a tangenciar os 30 anos, por exemplo.

É possível perceber, então, que, embora seja imprescindível saber de si e dos desejos de realização futuros, estes saberes não parecem suficientes para a continuidade biográfica dos jovens. A um dado momento, os jovens se veem atravessados por variáveis externas que podem condicionar ou moldar as suas escolhas e perspectivas profissionais. Assim, além das dúvidas já destacadas, as falas dos jovens pesquisados expressaram, em alguma medida, descrédito sobre a importância de se conhecer e se posicionar em relação ao futuro, diante das circunstâncias apreendidas como imponderáveis. Dessa maneira, o “para que planejar se tudo pode mudar e não depende só de mim” expressa suspeitas não apenas em relação a instâncias pessoais e ao futuro, mas também em relação ao ambiente.

Não saber das circunstâncias externas

Nesse aspecto do não-saber, as falas dos jovens apontam para a falta de garantias externas como responsável pela imprecisão do momento presente, em que eles não sabem se conseguirão se inserir no mercado por fatores alheios a sua vontade. Como expressões desta modalidade destacam-se: (i) “não sei se conseguirei passar na seleção”; (ii) “não sei se conseguirei um emprego nessa área”; (iii) “não sei como estará o mercado ou a concorrência quando eu me formar”; (iv) “não sei se o que é ensinado aqui é o que vai ser cobrado lá fora, se os professores estão atualizados, por exemplo”.

De variadas formas, os jovens expressam o que já é sabido: o longo e qualificado percurso escolar, embora necessário, não parece assegurar ou corresponder à inserção profissional. As escolhas feitas e os caminhos percorridos até aqui não levam, necessariamente, a um lugar seguro. Agora, não apenas as garantias são suspensas, mas também o automatismo que outrora permeou o processo de se tornar produtivo – concreta ou imaginariamente. Parece faltar correspondência entre investimento e resultado; o retorno, quando não é ausente, é, muitas vezes, desproporcional ao investimento realizado. Da mesma forma, a ideia de projeto profissional deve atentar para tais circunstâncias.

O fato de não saber se conseguirá um emprego e a efetiva permanência em organizações produtivas contemporâneas pode revelar outro tipo de saber. Aquele que reconhece profundas alterações na temporalidade das organizações, não mais previsível e linear e, sim, de curto prazo e apressada (Castells, 1999; Sennett, 2006). O devir nas organizações vê esvaziada sua profundidade temporal: laços frágeis e estruturas enxutas parecem encurtar o horizonte de expectativas e tornar mais precárias as condições de se pensar em carreiras de longo prazo que, orientadas para o futuro, evoquem uma ideia de progresso e continuidade. Longe de ser um fato isolado, isso denota importantes mudanças na maneira como o tempo é experimentado, construído e valorizado na e pela sociedade contemporânea.

Diante da erosão e diversificação capitalística dos modelos referenciais de produção, do enfraquecimento das garantias, do desaparecimento ou renovação de um sem número de profissões, pode-se supor que quem não assegura que o que é ensinado agora seja o exigido mais tarde detém um determinado tipo de saber.

Não são apenas as condições de se pensar em carreiras de longo prazo ou identidades estáveis que se tornaram mais precárias, mas, também, e antes de tudo, as de se exercer algum controle subjetivo sobre o futuro. E é sobre esta questão que a ideia de projeto profissional é aqui destacada, como uma proposta de implicação subjetiva sobre as trajetórias profissionais, por meio de uma ferramenta de interlocução e construção de sentido.

Em linhas gerais, pode-se dizer que, ao invés de um tempo de longo prazo, orientado para um futuro como espaço de projeção do que se quer e da consecução de objetivos traçados no presente, o que há como referência na ideia de projeto aqui pensado aproxima-se do modelo fluido e reflexivo da modernidade líquida (Bauman, 2001), que se volta mais para o presente e evoca menos progresso e mais possibilidades (Sennett, 2006). Tal modelo, além de acolher as diferentes expressões de incertezas dos jovens contemporâneos, deixa-se conduzir pelos complexos itinerários que as imprecisões imprimem nas suas trajetórias. Diante de um futuro duvidoso e de um horizonte temporal comprimido, o presente se mostra como única dimensão confortável e atraente (Leccardi, 2005b; Nowotny, 1992). O que o presente oferece é nítido e imediato em comparação às virtuais benesses de um futuro que pode não chegar. Nessa perspectiva, não é mais o futuro, mas o “presente estendido” – “o lapso temporal suficientemente breve para não fugir ao domínio humano e social, mas também suficientemente amplo para consentir alguma forma de projeção para além no tempo” (Leccardi, 2005b, p. 45) – que passa a abrigar o centro da dinâmica projetiva e a se constituir como nova temporalidade para a ação.

A perspectiva de uma nova temporalidade para as ações ou projeções de inserção e desenvolvimento profissional coincide com os relatos dos sujeitos pesquisados, notadamente ao revelarem que as escolhas lhes parecem efêmeras, transitórias e com pouco sentido. A maneira como se relacionam com as situações de decisões e posicionamentos pode, aqui, ser interpretada como um movimento de (re)conhecimento e de (re)construção das trajetórias, a partir de diferentes dimensões, em que as escolhas são atualizadas e as estratégias reelaboradas a cada “etapa” do percurso vivenciado, à medida em que entram em contato com novos valores referenciais e desenvolvem novas preferências.

Ligada a essa questão, Mörch (2003) observa que “a perspectiva [teórica] da transição parece ter se tornado um modelo normativo, a essa altura, já fora de contexto e de moda, pois tantas mudanças alteraram o status da juventude” (p. 53). Isso se daria não apenas em função das profundas mudanças estruturais, mas, também, das práticas sociais dos jovens que, conforme os estudos contemporâneos sobre o tema apontam para a diversidade de formas de ser jovem (Abramo, 1994; Carrano, 2000; Castro, 2006, 2005, 2004, 2001a, 2001b, 1998; Melucci, 1997; Pais, 1993).

Contudo, não se pretende negar e tampouco diminuir a relevância dos estudos sobre as transições e muito menos que isso se dê em favor de uma ingênua ou apressada positividade das dúvidas e incertezas dos jovens – como se a única alternativa possível, diante de um cenário de imprevisibilidades, fosse se render diante do que foge à possibilidade de ação e previsão – e a única coisa que restasse fosse o não-saber. Mas, se eles não sabem a quem caberia a responsabilidade ou oportunidade de o saber, o que restaria como alternativa aos modelos normativos de transição? Haveria alguma outra opção além de uma incerteza “generalizada” que acaba restringindo ou limitando as chances que os indivíduos possam ter sobre qualquer determinação do curso da vida, acarretando em um aumento do estado de vulnerabilidade? E, em uma perspectiva diferente, que outro tipo de saber poderia ser encontrado nas recorrentes expressões do não-saber dos jovens?

Embora seja incontestável o peso que os jovens relatam sentir a respeito das suas escolhas na definição de suas trajetórias profissionais, busca-se questionar, aqui, a ideia institucionalizada da juventude como fase de escolhas. Assim, acredita-se que seja pouco provável a crença de uma fase específica para isso acontecer (assim como em relação a qualquer outro evento), como algo espontaneamente próprio. Nesse sentido, é reconhecido que a vida, independentemente de uma faixa etária precisa, será atravessada por diferentes decisões e que as dúvidas ou rompimentos de trajetórias não são exclusivos dos jovens.

O que ocorre, no caso dos jovens, é que, como as trajetórias agora resultam de uma diversidade de caminhos entrecruzados, interrompidos e, em muitos casos, bifurcados, supõe-se uma gama maior de escolhas em diferentes dimensões da vida onde antes bastaria “seguir o fluxo”. Contudo, vale pontuar que as possibilidades de escolhas, embora tenham se ampliado muito, permanecem “fortemente condicionadas pelas disposições e condições proporcionadas pelos meios sociais em que os jovens se inscrevem” (Guerreiro & Abrantes, 2005, p. 16), onde se destaca o papel da família, escola, mercado de trabalho e mídia. Por isso, investigar os percursos de inserção profissional em ambiências fortemente ondulatórias, individualizadas e imprevisíveis supõe a articulação de esferas explicativas multidimensionais.

 

Considerações Finais

Percebemos aqui que mudanças culturais, estruturais e institucionais afetaram o mundo do trabalho e da produção nas últimas décadas, ocasionando uma notável despadronização do curso da vida e a fragmentação das trajetórias biográficas. Tais alterações podem ser correlacionadas a transformações na temporalidade social e, também, ao debate sobre a centralidade do trabalho/emprego como pilar na construção das identidades profissionais, individuais e coletivas e como referência ou fio condutor na organização do tempo da vida. A flexibilização – tanto das relações de produção e trabalho, quanto das relações e papéis sociais – faz com que as experiências de vida e trabalho se tornem cada vez mais episódicas e desconexas, introduzindo mudanças no movimento narrativo dos indivíduos.

Uma generalizada situação de desconexão vem afetando não apenas a maneira como os indivíduos e, particularmente os jovens, constroem significados a respeito de si próprios e do trabalho, mas, também, a forma como se relacionam com o futuro e as possibilidades que vislumbram de se implicar e exercer algum controle subjetivo sobre ele e planejar cursos de ação para construí-lo. É sobre essas possibilidades que a ideia de projeto profissional é aqui pensada. O projeto adquire algum sentido enquanto forma de construção, interlocução e representação de desejos de realização dos sujeitos num processo que os leva a xaminarem suas possibilidades e limitações e sua própria posição diante da vida. Nesse caso, ao invés de privilegiar a racionalização do tempo ou a adequação a um real que é dado, a atividade de planejar passa a privilegiar a reflexão sobre o sentido da trajetória profissional para aquele indivíduo que a realiza.

Por isso, o não-saber pode ser entendido como uma rica fonte da apreensão dos jovens na sua inter-relação com a conjuntura social. Esse recurso metodológico tem o intuito de aprofundar o sentido de se propor aos jovens que pensem projetivamente a vida profissional no contemporâneo, de maneira que o não saber o que se deseja, característica desse tempo, não inviabilize ou paralise a perspectiva de se pensar e agir sobre o futuro e, diferente disso, abra possibilidades de novas leituras e modos de participação dos pais, professores, psicólogos e demais agentes envolvidos nos processos de inserção e desenvolvimento dos jovens.

Os diferentes traçados biográficos dos jovens, assim como as posições que assumem sobre a vivência de inserção e desenvolvimento profissional, vêm suscitando instigantes estudos, em meio a acentuadas diferenças culturais, econômicas e políticas. O presente estudo buscou identificar padrões que se oferecem como referência de uma determinada realidade juvenil complexa e singular. As incertezas que jovens contemporâneos expressam e a forma como conduzem as suas trajetórias podem ser apreendidas de diferentes maneiras. No entanto, as trajetórias dos jovens não paralisam diante da falta de consenso sobre esse assunto, assim como de qualquer outro. Elas seguem em ondulações próprias, cadenciadas pelo ritmo da imprevisibilidade, em itinerários não-lineares, com vinculações complexas e movimentos que envolvem avanços e retrocessos, nem sempre nítidos.

Vale pontuar a importância de se considerar tais ondulações e especificidades na construção das trajetórias dos jovens contemporâneos, dada a maneira como a questão apreendida aponta para desdobramentos e ações.

 

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Endereço para correspondência
sandrakorman@uol.com.br, lrcastro@infolink.com.br

 

Recebido em: 10/06/2008
Revisado em: 05/06/2009
Aprovado em: 08/06/2009

 

 

NOTAS

1 Artigo baseado na tese de doutorado de Sandra Korman Dib (2007), desenvolvida no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação de Lúcia Rabello de Castro.
2 Disciplina criada e proposta por uma das autoras (Sandra Korman Dib) ao Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e implementada como disciplina não obrigatória (eletiva) para alunos, de diferentes cursos, com idades que variam entre 19 e 25 anos.
3 Thiollent (2004), um dos artífices da pesquisa-ação no Brasil, a define como um tipo de pesquisa social com orientação empírica, “concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo” (p. 14).
4 Um estudo detalhado sobre essas transformações, embora imprescindível, não é tema deste trabalho. Entre os estudos balizadores sobre essa questão, destacam-se os de Gilberto Dupas (2001) – que apresenta uma relevante análise comparativa entre os postulados de diferentes autores considerados referenciais sobre o assunto –, Ladislau Dowbor (2001), Manuel Castells (2003, 2001, 1999), Robert Castel (1998).
5 No discurso dos jovens, essas nuances se manifestam na forma de diferentes expressões, as quais foram registradas durante a realização de diferentes técnicas de dinâmica de grupo, criadas para a disciplina Planejamento de Vida Profissional, entre os anos de 2003 e 2005, envolvendo os alunos das duas instituições observadas. Essas expressões são aqui referidas entre aspas.
6 Expressão alternativa ao termo “independência”, utilizada por Pais, Cairns e Pappamikail (2005).

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