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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versión impresa ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.23 no.2 São Paulo jul./dic. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v23i2p129-142
10.11606/issn.1981-0490.v23i2p129-142
ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES
Laços de cooperação forçada entre agentes prisionais e apenados no intramuros prisional
Forced cooperation ties between prison and convicted agents in prison intramuros
Eneida Santiago1; Patrícia Aparecida Bortolloti2; Amanda Garbim Bana3
Universidade Estadual de Londrina (Londrina, PR, Brasil)
RESUMO
Neste artigo, discutimos a dinâmica dos laços de cooperação entre dois grupos em convívio obrigatório no contexto carcerário: agentes prisionais e apenados. A partir da perspectiva metodológica e analítica da psicodinâmica do trabalho, resgatamos conteúdos de um espaço grupal formado há cerca de 4 anos por agentes que se debatiam entre os descompassos entre o trabalho prescrito e o trabalho real no cotidiano da vigilância prisional. Como resultado, identificamos que os laços cooperativos internos aos grupos e entre os grupos assumem papel estratégico na gestão da complexidade do trabalho, em um cenário permeado por riscos e descompassos entre o planejado e o realizável nas atividades de um cotidiano marcado por precariedades, superlotação e servidores insuficientes. Enquanto fenômeno articulado, a cooperação forçada entre agentes e apenados impõe o desafio de colaborar com alguém em quem não se confia, o que produz desestabilizações e comprometimentos significativos à saúde mental dos servidores, além de elevar vulnerabilidades individuais e coletivas.
Palavras-chave: Prisão, Cooperação, Psicodinâmica do trabalho, Trabalho real.
ABSTRACT
In this article, we discuss the dynamics of the cooperative ties between two groups of obligatory conviviality in the prison context, prisoners and inmates. From the methodological and analytical perspective of Psychodynamics of Work, we retrieve contents from a group space, about 4 years, with agents debating the mismatch between prescribed work and real work in prison surveillance daily life. As a result, we identified that the cooperative ties within groups and between groups play a strategic role in managing the complexity of work in a scenario permeated by risks and mismatches between planned and achievable activities of daily life marked by precariousness, overcrowding and servants insufficient. As an articulated phenomenon, forced cooperation between agents and prisoners imposes the challenge of collaborating with someone who is not trusted, which produces significant destabilizations and compromises to the mental health of the civil servants, in addition to raising individual and collective vulnerabilities.
Keywords: Prison, Cooperation, Psychodynamics of work, Real work.
Introdução
O sistema penitenciário brasileiro baseia-se na privação de liberdade, sob o discurso da lógica reeducadora para posterior (re)integração dos egressos à sociedade. Parte fundamental desse processo são os agentes de segurança penitenciários que, em seu trabalho nos estabelecimentos prisionais, são a personificação de propósitos e procedimentos de disciplinamento, vigilância e controle.
Temos produzido, nos últimos anos, interrogações quanto às condições a que os trabalhadores de vigilância prisional estão expostos, assim como suas experiências subjetivas e objetivas no cotidiano laboral. Todavia, o trabalho no cárcere ainda é uma perspectiva pouco estudada, o que nos impulsiona a mais uma vez olharmos analiticamente para essa categoria profissional, agora colocando sob a lupa os laços cooperativos estabelecidos entre agentes de segurança e apenados como estratégias de gestão do cotidiano no intramuros da prisão. Como alicerce para nossas discussões, está a compreensão de uma inseparabilidade entre trabalho e vivências subjetivas (Dejours, 2004), com o trabalhar tendo papel fundamental na vida e na saúde das pessoas, produzindo implicações e desdobramentos diversos tanto na realização do trabalho quanto nas vivências fora dele. Tal perspectiva se sustenta nos conceitos e estudos da psicodinâmica do trabalho.
A importância de investigar o trabalho prisional se fundamenta no reconhecimento de que o trabalho de um agente penitenciário é rigidamente sistematizado, tanto com relação às aptidões requeridas quanto às atividades a serem realizadas (Governo do Estado do Paraná, n.d.; Santiago, Silva-Roosli & Di Osti, 2017), ao mesmo tempo em que sofre de invisibilidade social (Barcinski & Cúnico, 2014; Santiago et al., 2017; Scartazzini & Borges, 2018), todas condições que colocam desafios à organização da dinâmica psíquica para os ocupantes desses postos, produzindo danos à saúde física e subjetiva deles (Fernandes et al., 2002; Lourenço, 2010; Santiago et al., 2017; Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná, 2016).
Pautando-se por essas considerações iniciais, esclarecemos que o presente artigo objetiva delinear e discutir os laços de cooperação constituídos entre agentes de segurança (operadores de vigilância) e apenados (sujeitados à vigília) como estratégia de enfrentamento do trabalho real no intramuros prisional. Para tal reflexão, resgatamos conteúdos de um espaço grupal de acolhimento e escuta com agentes de uma unidade prisional fechada planejada e conduzida a partir das perspectivas da psicodinâmica do trabalho. Nossa hipótese é de que tais laços colaborativos produzem, para a saúde mental dos trabalhadores, comprometimentos psíquicos advindos do descompasso entre as exigências do trabalho e os arranjos institucionais constituídos para sua realização. Contemplar o universo prisional e os servidores que diariamente adentram seus muros justifica-se pela reduzida produção do conhecimento sobre o cotidiano dos trabalhadores penitenciários, em especial, dos agentes de segurança (Fernandes et al., 2002; Lourenço, 2010; Santiago et al., 2017).
As discussões de tais questões estão organizadas da seguinte forma neste texto: inicialmente, fazemos teorizações sobre as compreensões e implicações individual, coletiva e social do trabalho e da cooperação no trabalho. Em seguida, fazemos uma breve apresentação do sistema penitenciário brasileiro enquanto contexto de inserção e atuação profissional de servidores na função de vigilância prisional. Por fim, tecemos considerações a partir de dados sobre a interpenetração entre cooperação e (des)confiança como estratégia de gestão individual e coletiva dos riscos e tensionamentos do trabalho no cárcere.
Trabalho e cooperação
A psicodinâmica do trabalho se constitui como uma perspectiva teórica e metodológica alicerçada na psicanálise, na sociologia do trabalho, na psicologia e na ergonomia, propondo-se a apreender e analisar as relações entre trabalho e subjetividade, incentivando análises e intervenções que contribuam para a construção e manutenção da saúde mental daquele que trabalha, apesar das possíveis dinâmicas da organização e das condições de trabalho que possam dificultar o processo. Visando à coletividade de trabalho, e não os indivíduos de forma isolada, para a psicodinâmica o trabalho é compreendido como aquilo que demanda o engajamento do corpo e da subjetividade, assim como a mobilização de nossa capacidade enquanto trabalhadores de pensar, sentir e reagir ao que nos é solicitado e imposto (Dejours, 2004). Desta forma, a psicodinâmica do trabalho não objetiva realizar "atos terapêuticos individuais, mas intervenções voltadas para a análise da organização do trabalho à qual os indivíduos estejam submetidos. Especialmente para as estratégias construídas coletivamente para dar conta do trabalho prescrito, evitando o sofrimento e buscando o prazer" (Merlo & Mendes, 2009, p. 143).
Para além da questão financeira que o trabalhar propicia, aspecto fundamental em si, o trabalho também disponibiliza um espaço de inventividade entre o saber-fazer do sujeito e as regras norteadoras para a realização de qualquer atividade. Independente da ocupação ou da atividade laboral a que se dedica, não há, quando consideramos os modos operatórios de uma tarefa, seguimento rígido e obediente. Trabalhar envolve imprevistos que podem ser, por exemplo, provenientes de mudanças no ordenamento e na distribuição das atividades, de materiais insuficientes, ausentes ou quebrados que impactam a cadência das tarefas e de relações com clientes e companheiros de trabalho que colocam limitações na predição. Os desvios das diretrizes desenhadas, em contrapartida, impulsionam o desenvolvimento, por parte daqueles que fazem o planejamento e a gestão do trabalho, de estratégias de controle para a recondução das tarefas, tentando evitar os desarranjos, mas podendo causar, como desdobramento, constrangimentos no cotidiano do trabalho (Dejours, 2004; Lancman & Uchida, 2003; Merlo & Mendes, 2009).
A descrição e projeção das atividades produtivas a partir de regras que organizam um "como se deve fazer" configura o que se denomina de trabalho prescrito (Brito, 2008). Em oposição, as condições concretas e efetivamente possíveis para a realização de tarefas evidenciam o trabalho real (Daniellou & Béguin, 2007; Dejours, 2004). Desta forma, trabalhar é fruto da indissociabilidade entre trabalho prescrito e trabalhador real e, ao mesmo tempo, do preenchimento da lacuna entre os dois, que exigirá, descobertas e inventividades (Dejours, 2004, 2012).
No entanto, apesar de compor todo e qualquer processo de trabalho, quanto maiores as discrepâncias entre o estritamente previsto e o concretamente realizado, maior será o impacto para o trabalhador. Sentimentos de impotência, incompetência, ruptura de esperanças de realização são apenas alguns dos sofrimentos afetivos que podem ser nascentes da impossibilidade de cimentar e aproximar tais polos opostos. As vivências de sofrimento não podem ser vistas, no entanto, como pontos finais de um processo, mas como potencializadoras de resistência e, mais uma vez, de invenções, com objetivos de transformar o que faz sofrer por meio do que Dejours (2004) nomeou de inteligência. Tal movimento não necessariamente possibilitará recriações suficientes, já que há limites, trazendo a provocação sobre como o sujeito pode promover a manutenção do equilíbrio psíquico a fim de manter sua história e identidade, evitando descompensações diante de um contexto de trabalho adoecedor (Dejours & Abdoucheli, 1994).
O coletivo, pela via de dinâmicas de cooperação, surge, nessas circunstâncias, como importante possibilidade de enfrentamento do real, ao articular saberes de registros individuais com registros coletivos (Dejours, 2004). A permeabilidade de saberes, nascente no coletivo de trabalho, torna-se pré-condição para a cooperação eficiente, ou seja, aquela que dinamiza e potencializa a complexidade de uma atividade. O coletivo de trabalho
é construído com base em regras que não são apenas técnicas, o que é denominado de coletivo de regras. Tais regras organizam as relações entre as pessoas e têm uma dimensão ética que remete à noção do que é justo ou injusto, não constituindo normas ou esquemas de regulação (Mendes, Costa & Barros, 2003, p. 2).
Considerando as várias pessoas no contexto laboral, completar as lacunas que as invariabilidades impõem ao real se torna possível pela via do resgate e compartilhamento de conhecimentos, suportes e orientações, condições que, no todo, se ampliam, reduzindo os riscos e facilitando sua gestão (Figueiredo & Athayde, 2005).
Conceitualmente, cooperação consiste em laços construídos com outros indivíduos para somar experiências e, assim, gerir uma realidade. Nos cenários do trabalho, cooperar exerce papel estratégico para lidar com os desafios de um cenário laboral, importância que se evidencia quando reconhecemos que a eficiência de um coletivo de trabalho não é medida pela consideração das atividades individuais, mas por um todo que é muito mais que a soma de partes. No entanto, cooperar requisita, necessariamente, a construção de vínculos de confiança em prol de uma coletividade que, para se efetivar, solicitará que uma parte do que nos é individual seja abstraída (Dejours, 2012). "A cooperação supõe, de fato, um compromisso que é ao mesmo tempo sempre técnico e social. Isto tem a ver com o fato de que trabalhar não é unicamente produzir: é, também, e sempre, viver junto" (Dejours, 2004, p. 32).
Todos os contextos de trabalho possuem especificidades; no entanto, em alguns a dimensão dos riscos e da complexidade se ampliam, assumindo dinâmicas bem particulares. Por isso, coloca-se a necessidade da problematização das singularidades em suas condições e engendramentos para que laços de cooperação se estabeleçam, bem das ações esses laços respaldam e legitimam . Caroly, Loriol e Boussard (2006), em pesquisa qualitativa sobre a cooperação no trabalho da polícia francesa, com especial atenção aos laços entre homens e mulheres e entre policiais mais novos e policiais mais velhos, concluíram que o ofício de policial depende basicamente de três elementos: possibilidades de construção de experiências para além das diretrizes técnicas de atuação, das condições do trabalho coletivo de acordos e trocas entre policiais de distintos gêneros e distintas idades e de meios de construção e preservação da saúde mental, em que a cooperação é elemento primordial, em especial de situações de atuação avaliadas como críticas. Guardia e Lima (2019), a partir de pesquisa qualitativa sobre o trabalho em situação de alto risco de equipes de manutenção em redes de energia, identificaram que relações de cooperação e confiança são construídas no cotidiano laboral, mostrando-se centrais diante das complexidades das atividades. Como conclusão, afirmaram que a fragmentação do grupo fragiliza a gestão coletiva dos riscos, expondo todos a eles, o que poderia afetar a saúde e a integridade física do grupo. Como medidas para se ter maior segurança no trabalho, ações preventivas precisariam incorporar o saber-fazer próprio dos trabalhadores, integrando-as nas normativas das atividades. Lancman e Jardim (2004) fizeram uma investigação qualitativa sobre o impacto do trabalho na saúde mental de técnicos de controle de tráfego da Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo. Nas discussões, as autoras trouxeram a perspectiva de que, para lidar com as defasagens entre trabalho prescrito e trabalho real, os operadores usam artifícios que solicitam pactos de confiança frágeis entre os pares e os superiores, que, em certa medida, contribuem para o seguimento das atividades, mas não conseguem superar as variabilidades e evitar as falhas. Gerador de conflitos, esses artifícios desestruturam a cooperação, esgarçam a solidariedade e alimentam a desconfiança, impedindo que os esforços empregados sejam visibilizados e reconhecidos, ocasionando adoecimentos.
Trazer tais análises sobre os laços de cooperação para o contexto de trabalho na vigilância prisional se justifica por este congregar elementos que, apesar de variabilidades na composição de um quadro geral na realização cotidiana das atividades de trabalho, apresentam uma singularidade: a obrigatoriedade de serem realizadas em um compartilhamento de espaços enclausurados dos servidores com os apenados.
Trabalhar encarcerado
O sistema penitenciário brasileiro é constituído por instituições e instâncias diversas, entre as quais os estabelecimentos prisionais, que assumem como norteador a execução penal e objetivam efetivar a sentença ou decisão criminal de forma a proporcionar, conforme discurso oficial, uma harmônica reintegração social dos condenados (Brasil, 1984). Em 2016, em todo o território nacional, havia 1.440 estabelecimentos prisionais com distintas destinações. Parte fundamental dos estabelecimentos prisionais, e em maior quantidade entre os servidores, são os agentes de segurança penitenciário. No Brasil, servidores voltados às atividades de custódia e vigilância totalizavam quase 100 mil servidores, entre efetivos, comissionados, terceirizados e temporários, representando 74% de todos os profissionais do sistema prisional (Departamento Penitenciário Nacional, 2017).
As atividades laborais de responsabilidade dos agentes incluem ações práticas e organizativas da instituição, como realizar vigília e revistas corporais de apenados e visitantes assim como das celas, coordenar o trânsito interno dos presos como a saída para o banho-de-sol e atividades educativas e profissionalizantes , identificar e combater arrebatamentos, motins e fugas, entre outras ações. Além disso, os servidores também atuam em processos não prescritos totalmente, que solicitam iniciativa e tomada de decisão frente aos imprevistos que permeiam a ampla e imprecisa exigência de ter que zelar pela ordem e segurança dos apenados e da instituição (Brasil, 1984). São da ordem do inesperado na prisão a mediação das relações entre apenados, impedindo desentendimentos e brigas que possam oferecer riscos à integridade física de presos e servidores e identificar irregularidades e movimentações atinentes à fuga, amotinamentos e rebeliões (Governo do Estado do Paraná, n.d.). São procedimentos disparados e articulados pela dinâmica da suspeição, em que desconfiar dos apenados se torna ferramenta fundamental para o cotidiano do trabalho. A suspeita alimenta sensações de estar ameaçado constantemente, correndo riscos de sofrer cerceamentos que podem levar a embates, muitas vezes, físicos. Ao considerarmos a realidade prisional pela ótica dos agentes, percebe-se como os apenados são fortemente representados como antagonistas, como aqueles que contribuiriam para a elevação dos riscos, das vulnerabilidades e das quebras de segurança no presídio, ou seja, como aqueles que agravam a distância entre trabalho prescrito e trabalho real (Santiago et al., 2017).
De forma analítica, os agentes penitenciários podem ser compreendidos como a representação mais visível do aparelho estatal repressor e disciplinador que é a prisão, sendo convocados a personificarem discursos e processos que a instituição objetiva exercer. Outra nuance também a ser considerada é a de que os agentes, ao se inserirem cotidianamente no intramuros prisional, são submetidos à mesma lógica institucional imposta àqueles que ali cumprem medida penal, o que significa compreender que ser um trabalhador da vigilância prisional é realizar suas funções em uma realidade encarcerada (Santiago, 2019), já que não possuem autonomia para transitar na instituição, ficando, em determinados postos de trabalho, enclausurados no mesmo espaço físico com os apenados que estão custodiando.
Na lógica organizadora e mantenedora de ser e estar no universo prisional, há arranjos colaborativos que se constroem e se propagam entre os agentes, entre os apenados e entre estes e os primeiros. A arquitetura desses acertos constitui dimensões complexas e específicas do trabalho na prisão. Os laços formais de cooperação entre os agentes se concretizam na organização institucional pela composição do que é chamada de "equipe de segurança". Essas equipes são constituídas por número variável de agentes, dependendo do turno e do local de atuação, e contam com um chefe formalmente definido. Os membros de uma equipe dependem uns dos outros para, em essência, gerir as tarefas coletivas, como as que envolvem quebras de segurança, as mais temidas pelos servidores e as que mais solicitam estratégias de confiança e cooperação como articuladores de mecanismos de segurança individual e coletiva, em que a agilidade do acionamento de normas de enfrentamento à ocorrência se torna determinante. Como estratégia de gestão da complexidade das tarefas coletivas, o manual do agente penitenciário (Governo do Estado do Paraná, n.d., pp. 7-8) versa sobre o que denomina de "articulações":
O trabalho de um Agente deve estar articulado, num estabelecimento, com o trabalho dos outros Agentes que ali também atuam: um deve ter o apoio e cobertura do outro ... não deve o Agente isolar-se no seu setor. Deve procurar se inteirar de novas instruções, novas ordens ... para que se possa fazer entender com facilidade nas emergências. O Agente deve lembrar-se de que, na segurança, ele é o elo de uma grande corrente, que só tem valor articulado com os demais elos. Um elo sozinho representa 0 (zero).
Os poucos, mas já representativos, estudos que tratam do trabalho no cárcere convergem ao afirmarem que o agente de segurança penitenciário tem seu cotidiano de trabalho permeado de medos, riscos de comprometimento de sua integridade física, exposição às tensões constantes e desgastes orgânico e psíquico (Lourenço, 2010; Santiago et al., 2017; Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná, 2016; Vasconcelos, 2000). Nos últimos anos, o aumento do número de pessoas encarceradas no Brasil da ordem de 707% entre 1990 e 2016 (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2017) , sem a proporcional contratação de agentes penitenciários, tem produzido esgarçamentos dos arranjos constituídos para enfrentar as pressões pela operacionalização do trabalho cotidiano, intensificando mais ainda os desgastes.
A partir desse cenário, assumimos neste texto o intento de produzir questionamentos sobre os laços de cooperação estabelecidos no universo prisional como estratégias de enfrentamento do real do cotidiano de trabalho na prisão por meio da articulação de saberes individuais e saberes coletivos, o que objetiva lidar com os desafios que as atividades de vigilância impõem aos que ali atuam. Tornaremos pertinentes, neste texto, os laços cooperativos entre agentes e apenados que, apesar de não formalizados, são (re)constituídos ou ampliados a partir do estabelecimento dos novos arranjos institucionais, devido à exacerbação da precariedade do contexto de trabalho.
Desenho metodológico
Para nossas reflexões, resgatamos conteúdos de um espaço grupal de acolhimento e apoio aos agentes penitenciários de uma unidade penal fechada. Tal grupo constituiu uma das estratégias de intervenção utilizadas em um projeto integrado de pesquisa e extensão universitária, com duração total de cerca de quatro anos, que tinha como foco a atenção à saúde do servidor do sistema penitenciário.
Pautado pelo referencial da psicodinâmica do trabalho e suas proposições de escuta clínica, no espaço grupal debateu-se sobre o trabalho real em contraposição ao trabalho prescrito no cotidiano da atuação profissional na prisão. O grupo constituiu um território de compartilhamento das vivências do trabalho no cárcere, com encontros no intramuros do presídio com frequência semanal ao longo de cerca de três anos. Em seu enquadre, foi um grupo aberto e heterogêneo em que os trabalhadores podiam participar conforme seu desejo e disponibilidade. Tal estratégia foi constituída devido às especificidades da instituição e da preocupação sobre como contemplá-las no planejamento e condução dos encontros. Algumas das especificidades foram as organizações das jornadas de trabalho de 12 horas trabalhadas por 36 horas de descanso, condição da maioria dos agentes que os condicionavam à variabilidade de dia e horário do regime de trabalho, não estando na instituição nos mesmos períodos a cada semana. Havia restrições de participação concomitante de muitos trabalhadores da mesma equipe de segurança ou dos mesmos postos de atuação, o que poderia fragilizar alguns procedimentos de segurança institucional. Alguns encontros foram desmarcados previamente ou em seu início imediato por comprometimento de protocolos internos de segurança, o que impedia a entrada dos profissionais da psicologia no local ou, ainda, outras condições institucionais que exigiam a suspensão das atividades, como a revista geral das celas sem prévio agendamento. Cada encontro foi articulado com um começo, meio e fim, em que o que seria conversado no dia poderia ser sugerido tanto pelos trabalhadores quanto pelas coordenadoras, conforme acordado no coletivo. As participações no grupo variaram entre seis e oito agentes por encontro, esclarecido que o combinado era de que o grupo aconteceria com a presença de pelo menos dois deles.
A oferta aos trabalhadores de tal espaço grupal tinha o objetivo de promover a circulação e (re)elaboração das vivências cotidianas do trabalho encarcerado por meio das reflexões e construções de entendimentos sobre as atividades de cada sujeito, mas também, e sobretudo, do coletivo. Após o início dos encontros, de forma muito rápida e intensa, relatos de incômodos e sofrimentos foram compartilhados. Discursos que, em certa medida, entendemos que também estavam aprisionados no silêncio veladamente e implicitamente pactuado entre os trabalhadores do que podia, ou não, ser dito ou discutido no cotidiano das grades do cárcere.
Entre as diversas formas de sofrimentos relatadas, destacamos algumas devido à recorrência com que se fizeram presentes nos discursos dos trabalhadores: o medo de serem mortos ou tomados como reféns em motins e rebeliões; o receio de serem atacados fisicamente; os riscos de contaminação biológica no trato com os apenados como hepatite e tuberculose pela precariedade ou falta de equipamentos de proteção individual em quase todas as funções de vigilância; o sentimento de enclausuramento; a exposição a ameaças recorrentes à própria vida e a de familiares; e a percepção de que estavam desenvolvendo uma naturalização dos episódios de violência física que presenciavam ou nos quais precisavam intervir. Além disso, relataram a impressão de estarem em um processo de insensibilidade progressiva diante de situações no intramuros que anteriormente os afetariam, como precisar atuar em um ambiente em que está o corpo de um apenado assassinado enquanto se aguarda a retirada deste pelas instâncias responsáveis como ocorreu com alguns dos trabalhadores em determinado momento. A percepção dos agentes penitenciários era de que o trabalho no cárcere se alicerçava em um cotidiano de medo, desamparo, abandono, vulnerabilidade e episódios de intensa violência, todos elementos de um complexo e dinâmico cenário em que um sempre vir a ser violento dividia espaço com tarefas esvaziadas de sentidos, repetitivas e tediosas.
Falar sobre o fenômeno da cooperação no cotidiano de trabalho não foi proposto como objetivo principal em nenhum dos encontros grupais ocorridos ao longo dos anos. No entanto, os vínculos frágeis, mas complexos, entre trabalhadores da segurança e apenados foram uma temática constante nas conversas. Por isso, foi por nos sentirmos provocados a refletir de forma mais aprofundada sobre os possíveis laços de cooperação no cárcere, dando visibilidade a eles, que este artigo se desenhou.
Resultados e discussões
Cooperação e confiança no cárcere como mecanismos de segurança coletiva
A partir dos relatos, percebemos que as vivências dos agentes prisionais no cárcere se configuravam através de dinâmicas individuais e coletivas. Não havia tarefa a ser realizada ou procedimento a ser cumprido que não implicasse, direta ou indiretamente, os apenados. Desta forma, assumimos que falar em coletivo no intramuros prisional significava, necessariamente, contemplar servidores e presos. Tal compreensão nos convocou a pensarmos sobre a existência e a qualidade dos laços entre esses grupos, interrogando as relações e possíveis descompassos entre o que o meio prescreve para o andamento institucional adequado em paralelo às condições concretas de realização.
A prisão estabelece como obrigatório o convívio enclausurado entre agentes da vigilância e apenados. São horas diárias e sucessivas de negociações verbais e aproximações físicas. Pelos relatos feitos nos encontros grupais, percebemos o quanto tal convívio era parte primordial e de grande complexidade e adversidade no trabalho da vigilância prisional, sendo normativo quanto às suas formas e limites. No entanto, o trabalho real desafiava o seguimento do que fora friamente concebido, provocando um questionamento: quais os desafios, para os agentes de segurança, da gestão eficiente e segura dos descompassos entre trabalho prescrito e trabalho real?
O termo "seguro", como acima colocado, não é utilizado como expressão figurativa, mas literal. Entre as condições deletérias do trabalho no cárcere está a superlotação, que produz impactos nas condições de ser e viver no cárcere tanto dos presos quanto dos servidores. Para os apenados, a superlotação degradava o convívio devido às celas com capacidade máxima extrapolada, atendimentos institucionais como de psicólogos, médicos e assistentes sociais insuficientes, espaços educativos como salas de aula lotados ou inexistentes, condições estruturais e ambientais insalubres e elevados números de adoecimentos de presos (Barcinski & Cúnico, 2014; Departamento Penitenciário Nacional, 2017). Para os servidores, essas mesmas condições acirravam as tensões e podiam aumentar as incidências de quebras de segurança, como motins e rebeliões (Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná, 2016).
Nas últimas décadas, a contratação de novos agentes de vigilância não acompanhou o crescimento da população prisional, produzindo o fenômeno de acentuado desequilíbrio entre esses grupos (Departamento Penitenciário Nacional, 2017). Diretrizes de políticas criminais e penitenciárias nacionais e internacionais indicam ser desejável para a segurança física e patrimonial de cada unidade prisional a proporcionalidade de custódia de 1 agente de segurança para cada 5 apenados (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 2009). Dados oficiais de 2017 indicam que, naquele momento nos estados brasileiros, a média entre agentes e apenados era de 1 para 8,2 Pernambuco era o estado com maior desproporcionalidade, 1 para 35 (Departamento Penitenciário Nacional, 2017). Representações do sindicato dos agentes de segurança penitenciária em diferentes unidades federativas constantemente denunciam graves violações às recomendações de proporcionalidade, como, por exemplo, em Curitiba (PR), onde, no início de 2019, um presídio tinha 11 agentes para custodiar 720 presos (1 agente para 65,45 apenados) (Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná, 2019). Tais dados, apesar de significativos, ainda podem ser mais preocupantes, já que eles consideram o número total de servidores da vigilância de um presídio, sem distribuí-los ou diferenciá-los a partir de variáveis como sistemas institucionais de turnos e plantões dos trabalhadores, faltas e afastamentos por licenças diversas como licença prêmio e saúde dentre outros. Ao abarcar essas outras dimensões, a proporcionalidade entre agentes e apenados pode ser maior ou menor em alguns turnos ou horários da jornada de trabalho (Santiago et al., 2017), agravando os impactos da superlotação no cotidiano da vigilância prisional.
Parte das atribuições dos agentes penitenciários é a de realizar movimentações de presos entre os diversos espaços da unidade por meio de ações de contagem e revista de apenados para, por exemplo, a saída deles para o banho de sol, o acompanhamento no trânsito, a permanência em atividades e atendimentos e, ao final, o recolhimento ao local de origem com nova revista formal (Governo do Estado do Paraná, n.d.). Em tal mobilidade, ultrapassava-se por vezes uma dúzia de grades e cadeados, com significativa proximidade física entre agentes e presos, inclusive com contato, como durante as revistas. Havia rígidas normativas para esses procedimentos; no entanto, manter o respeito às regras e a segurança institucional ou, como os servidores dizem, "segurar a cadeia" exigia negociações para se evitar desarranjos, já que a "cadeia era uma panela de pressão", ou seja, requeria atenção para se manter o equilíbrio, já que a nocividade seria inerente ao contexto. Como esclarecido nos encontros grupais, parte da capacidade de negociar seria desenvolver o olhar atento, astuto, para conseguir ler os presos e facilitar a identificação daqueles que seriam mais propensos a romper o equilíbrio por meio da desobediência às regras. A gestão da mobilidade dos apenados elevava a possibilidade dos imprevistos, que podiam facilmente explodir em violência; por isso, perceber os mais propensos à ruptura do equilíbrio significava, em contrapartida, perceber os seus opostos. Entretanto, a constituição de laços colaborativos com os presos foi citada como parte fundamental na condução dos processos de trabalho na vigilância.
Em estudo sobre a saúde dos agentes penitenciários no estado do Rio de Janeiro, Vasconcelos (2000) identificou que, apesar das prescrições do trabalho, a rotina do servidor da vigilância prisional se organizava principalmente a partir dos acordos estabelecidos com o coletivo de presos, em que a experiência do agente se tornava fundamental para a avaliação dos indivíduos com os quais este laço poderia ser firmado. Varella (1999, p. 112) também citou a necessidade de alianças para o "bom andamento da prisão" em seus ensaios sobre suas experiências de cerca de 13 anos como médico da Casa de Detenção de São Paulo, desativada em 2002.
Acordos coletivos para a cooperação entre agentes e presos, apesar de informais e quase sempre implicitamente firmados, teriam a função de contribuir para a manutenção de um cotidiano mais seguro para todos. Segundo os agentes, os detentos com mais idade e mais tempo de prisão eram aqueles com os quais a maioria dos laços eram constituídos. Com experiência acumulada em mais de uma década de cumprimento de pena, estes apenados afirmavam saber o quanto a violência no intramuros poderia colocar todos em vulnerabilidade e, ainda, denunciavam o engodo de muitos presos mais jovens, em idade e tempo de cadeia, que acreditavam que um desacordo ou uma discussão entre presos ou entre presos e agentes poderia ser controlado sem explodir em violência generalizada. Por serem os presos mais velhos, estavam em posição privilegiada no coletivo para negociarem pacificações em um universo conflitivo em sua lógica e organização e diversos foram os relatos dos agentes quanto a amotinamentos que se findaram pela interferência de presos mais velhos. Nessas condições, ganharam-se evidências de como a cooperação se colocava como estratégia para desarmar armadilhas desarticuladoras do contexto, assumindo a importante função de "fazer a cadeia andar".
Como se constrói a dinâmica de consentimento para participação em uma rede de cooperação? Para Dejours (2004), no contexto de trabalho, a anuência em cooperar, apesar de não ser facilmente dada por todos, supõe a renúncia pelo trabalhador de uma parte de sua inteligência e de sua subjetividade. Na origem do consentimento estaria presente ao menos uma de duas variáveis possíveis. A primeira seria quanto ao sofrimento nascente dos conflitos pela exacerbação do individualismo no contexto laboral, o que impossibilitaria condições sociais e éticas favoráveis para que dimensões individuais encontrassem nas relações de trabalho um espaço potente para a ampliação e a transformação da vida. Aderir à cooperação se colocaria como tentativa de conjurar tais sofrimentos individuais pela adesão às dinâmicas coletivas de compartilhamento. Como uma segunda variável, estaria a construção do reconhecimento do outro, dos pares e do social, a partir da visibilidade que o trabalho ganha, bem como sua importância e suas contribuições, possibilitando que o trabalhar, muito mais do que o trabalhador, fosse aclamado e valorizado. Consentir em cooperar seria beneficiar-se de sentimentos de pertencimento a um coletivo, a uma equipe, a uma ocupação. Assim, pelas contribuições que a dinâmica do reconhecimento e do pertencimento propiciariam seria possível o estabelecimento de relações de cooperação com indivíduos com quem não se tem simpatia.
a cooperação é uma modalidade essencial para a socialização e a integração a uma comunidade de pertencimento. Se considerarmos a contribuição que a cooperação pode dar no registro individual e no registro social, poderemos compreender por que é possível constituir-se uma solidariedade fundamental entre a experiência subjetiva que se procura e a implicação coletiva na vontade de dar uma contribuição às condições éticas do viver junto (Dejours, 2004, p. 33).
Os laços de cooperação entre agentes e presos mais velhos revelavam-se como auxiliadores na gestão dos descompassos e riscos do cotidiano prisional, aproximando-se da segunda variável descrita por Dejours (2004). Entretanto, se cooperar favorecia o atendimento da organização e das condições de trabalho para o desenvolvimento adequado das atividades, um conflito instaurava-se quando os servidores refletiam sobre esse processo: a existência da contradição em participar de uma rede de cooperação com indivíduos percebidos como antagonistas e, no cenário carcerário, como aqueles dos quais se devia suspeitar. Contradição que produzia constrangimentos e injunções que se tornavam forças desestabilizadoras (Dejours, 2012; Lancman & Uchida, 2003).
Outro fenômeno no trabalho dos agentes penitenciários foi a existência do que denominaremos de apenado-trabalhador. A demanda não suprida por mais agentes produziu, nos últimos anos, um fenômeno cada vez mais recorrente nas unidades prisionais brasileiras: a alocação de apenados em funções de apoio institucional para cobrir lacunas impostas pela falta de servidores e pelas condições concretas de trabalho, o apenado-trabalhador. Apesar de o trabalho dos encarcerados ser previsto na Lei de Execução Penal (Brasil, 1984), podendo gerar o recebimento de salário e a remissão de um dia da pena para cada três dias trabalhados, a alocação de presos em atividades como faxina de corredores e galerias, manutenção predial, distribuição de marmitas aos demais aprisionados e outras ações, pouco contribuiriam, em nosso entendimento, para sua capacitação e inserção futura no mercado de trabalho a partir de finalidades educativas e produtivas das atividades, como orienta a legislação. A presença do apenado-trabalhador em alguns espaços físicos da prisão os colocava em maior proximidade física com os servidores, sem limitações de grades, como, por exemplo, quando os agentes precisavam transitar pelo corredor em que a limpeza era realizada.
A proximidade física no cárcere, as normativas de atividades e funções do trabalho prisional, a precariedade das condições estruturais e relacionais de atuação e os descompassos institucionais da superlotação colocavam, de sobremaneira, a necessidade do estabelecimento dos laços de cooperação entre agentes penitenciários e apenados.
Cooperação e confiança: a construção de uma cooperação forçada
No cárcere, quanto maiores os descompassos entre trabalho prescrito e trabalho real, mais a cooperação era solicitada, tornando-se um operador fundamental da gestão da vigilância e custódia prisional. Todavia, quanto mais laços de cooperação estivessem presentes, maior seria a exigência de entrosamento e confiança em prol de uma coletividade. Por isso, trazemos mais uma questão para reflexão: como se operava o estabelecimento de vínculos de cooperação entre agentes penitenciários e apenados?
Importa-nos destacar que a proximidade física e o compartilhamento de espaços não eram suficientes para transmutar antagonismo em cooperação, pelo contrário. A exigência de laços entre os distintos grupos aqui tratados alimentava constrangimentos nos servidores por impor uma dinâmica de relações que, de sobremaneira, tornou-se muito importante para a manutenção do funcionamento institucional. Laços que eram cooperativos por solicitarem a soma de experiências individuais para dar conta das imprevisibilidades na gestão coletiva de uma realidade, mas eram impostos e artificiais, por isso aqui os nomeamos por "cooperação forçada".
Os laços de cooperação forçada na prisão se evidenciaram nas falas dos servidores, que identificaram esse fenômeno como nocivo e desestabilizador. Uma das dimensões desses laços seria o critério utilizado pela instituição para a atribuição aos apenados-trabalhadores das funções que realizariam em contextos de circulação de pessoas, como os corredores e outros espaços de trânsito. A atribuição era pautada pela avaliação dos chefes de segurança, em conjunto com a direção da unidade, se aquele que era considerado para assumir a função era um "preso de confiança", expressão de uso corrente no cárcere. Os presos de confiança eram identificados como aqueles com bom comportamento na prisão e condenação por ocorrência não violenta. Por diversas vezes, os agentes denunciaram a ambiguidade de como um apenado poderia ser de confiança, bem como os riscos físicos e psíquicos inerentes do compartilhamento de alguns contextos de trabalho em um viver junto (Dejours, 2004) com os presos, permeado por especificidades.
Na emersão de um motim ou rebelião, o agente penitenciário deveria, segundo as normativas, identificar o problema, controlar e isolar a área, solicitar apoio e acionar o alarme sem expor a si ou a terceiros (Governo do Estado do Paraná, n.d.), tendo o suporte do agente mais próximo, o que poderia ser determinante para conter a situação de forma eficiente e rápida e, assim, também preservar a própria integridade física e a de outros. Dito de outra forma, a segurança do agente na tarefa de agir sobre esse contexto está intrinsecamente atrelada à capacidade de execução coordenada e coletiva de múltiplas pequenas tarefas. Algo especialmente temido entre os trabalhadores era estar próximo de um apenado-trabalhador na arrebentação de ocorrências de quebra de segurança, porque, ao dividir o espaço físico com este, os servidores deixavam de contar com o apoio de outros agentes ou tinham o suporte prejudicado, ficando expostos e, também, à mercê de serem atacados por esse preso próximo, condições que impunham ao agente o aumento considerável da complexidade da já difícil tarefa a ser realizada: conter a rebelião.
Como gerenciar um trabalho em que, no enfrentamento das imprevisibilidades, a soma das experiências individuais para a cooperação coletiva precisaria ser feita com indivíduos com quem o entrosamento e a confiança não existem? Cooperação e confiança são conceitos próximos, mas distintos. Luhmann (1988) defende que confiança pode ser uma premissa da cooperação, mas também pode ser sua consequência. Assim, pode haver cooperação sem confiança; entretanto, é a existência desta última que faz com que a complexidade do trabalho seja apreendida, permitindo o manejo eficiente dos riscos e incertezas inerentes às tarefas a serem executadas. A necessidade da cooperação entre agentes e apenados-trabalhadores, mesmo sem a existência de confiabilidade, contribui para que sejam construídas respostas à complexidade do trabalho. No entanto, a forte mobilização subjetiva para que os acordos cooperativos ocorressem acabava por potencializar aspectos danosos à saúde dos trabalhadores. Mesmo com as tarefas realizadas, o contexto de trabalho insidioso e permeado por riscos permanecia e impunha aos servidores a solicitação de prontidão para vários focos de atenção e investimentos de energia e de ação, tais como manter-se atento ao apenado a seu lado com quem se coopera, mas não se confia , dar suporte aos outros agentes, e manejar e produzir enfrentamentos à crise diante de si. Todas estas dimensões de um cenário de alta volatilidade e de imprevisibilidade em que encontrar respostas à complexidade das tarefas a serem realizadas, por meio do estabelecimento de laços cooperativos, não significa, de modo algum, transformação do trabalho, tão pouco das relações que cenário propicia ou exige. "Se a avaliação individualizada de performance coloca em concorrência todos contra todos ... então a cooperação da qual falamos é destruída, assim como o viver junto" (Dejours, Barros & Lancman, 2016, p. 233).
Um agente relatou certa ocorrência envolvendo um colega da sua equipe de segurança. Em meio a um motim, este agente ficou encurralado no corredor de um pavilhão do presídio junto a um apenado-trabalhador. Próximos a eles, mas atrás de grades, presos envolvidos no motim incentivaram verbalmente que este apenado-trabalhador agredisse o agente, o que assim fez, mas, ao prendê-lo, teria se desculpado por precisar atacá-lo. Contido pelo apenado próximo, o agente se tornou refém e assim permaneceu por cerca de meia hora, quando foi liberto ao final do motim, sem maiores ferimentos físicos. Apesar de impactante, infelizmente este relato não fica solitário quando os agentes se dispunham a resgatar exemplos de como cooperar com os apenados se mostrava insidioso e de como não havia engenhosidade que subvertesse a lógica de que, antes de ser um apenado-trabalhador, ele era parte de outro coletivo, com identidade e dinâmicas próprias o de sujeitos encarcerados. Coletivo que, segundo acreditam os agentes, tenderiam a escolher quando pressionados durante situações de crise como a citada acima, já que, na avaliação dos servidores, os dois grupos aqui tratados apresentariam interesses distintos.
A obrigatoriedade de cooperarem com os apenados, ou seja, de cooperarem com aqueles dos quais precisam suspeitar, tanto impunha aos agentes impactos na construção e manutenção de sua saúde mental quanto impossibilitava o uso da cooperação como estratégia de enfrentamento do real das condições de trabalho. Assim, considerando as contribuições da cooperação para o registro individual e social, percebe-se como tal obrigatoriedade de cooperação entre agentes e apenados forçosamente corroía a saúde dos servidores, os empurrando para o sofrimento e, deste, para o adoecimento psíquico, além de tornar inviável a construção de condições solidárias e éticas de um viver junto (Dejours, 2004). A partir da compreensão de inseparabilidade entre o trabalhar e a subjetividade, afirmamos que a construção da cooperação forçada entre trabalhadores do cárcere e apenados estabelecia um contexto altamente volátil no intramuros prisional e que, apesar de configurar-se como estratégia suavizadora e mesmo corretiva da precariedade das condições do trabalho carcerário, pouco cumpria esse papel, já que as lacunas que as invariabilidades impõem ao real não eram sanadas e, sim, ampliadas.
O trabalho no cárcere tem suas condições concretas, sua organização e formas de concepção atravessadas por precariedades diversas. Neste contexto, apontamos que os laços de cooperação forçada estabelecidos entre os agentes de segurança penitenciária e os apenados tentavam cumprir, institucionalmente, três funções principais no enfrentamento do trabalho real prisional, dimensões que eram significativamente relacionadas. Na primeira, a cooperação forçada se colocava como estratégia para minimizar as precariedades do trabalho. Todavia, em um mesmo movimento, na articulação para contê-las, tal cooperação as agravam, ou seja, a cooperação obrigatória empurrava os agentes para a sobrecarga no trabalho na tentativa de reequilibrá-lo. Em uma segunda posição, a cooperação servia como remendo para a insuficiência de servidores de vigilância devido a promessa de ampliação do suporte coletivo para intervenções em determinados contextos, como os de quebra de segurança. No entanto, não existe cooperação se não há confiança e, no contexto prisional, os servidores da vigilância eram preparados para suspeitar de tudo e de todos; assim, o jogo de confiar-desconfiar conforme o momento tornava-se subjetivamente desgastante. Por fim, os laços de cooperação davam suporte psíquico. A possibilidade de intermediação dos presos mais velhos em situações de crise reduzia nos agentes a percepção dos riscos. No entanto, o risco concreto não cessava, já que a negociação poderia não ter o desejado desfecho de impedir o agravamento da quebra de segurança. Desta forma, torna-se necessário destacar que a antecipação da violência era tão danosa psiquicamente quanto a própria violência. A espera pelo tumulto, que poderia surgir de qualquer desacordo cotidiano, em concomitância com a suspeição generalizada geravam tensão e ansiedade por mobilizarem de forma constante a subjetividade no processo de detectar, interpretar e reagir o que desafia qualquer dinâmica de manutenção da saúde mental ou de transformação do trabalho para que fosse menos nocivo. Transformação esta apontada como imprescindível para abrandar as adversidades e evitar o adoecimento (Dejours et al., 2016) por meio da conciliação entre saúde dos sujeitos trabalhadores e eficácia das atividades laborais (Daniellou & Béguin, 2007).
A cooperação não é algo que se decreta, mas, sim, que constitui um coletivo (Figueiredo & Athayde, 2005). Por isso, fazemos a leitura de que o desafio para a gestão institucional do presídio era reconhecer que ali o coletivo, como dito, não apenas englobava os trabalhadores, mas também incluía os apenados. Se, nos arranjos para tornar real o que as normativas ditavam, a cooperação se fazia peça-chave, sendo forçada tornava-se produtora de desestabilizações e comprometimentos à saúde mental dos agentes frente à impossibilidade de resistência pela via da transformação do contexto, elevando vulnerabilidades individuais e coletivas por romper aspectos e funções que prometia abarcar.
Algumas considerações
A partir do delineamento feito neste artigo, nota-se como o intramuros prisional é um campo heterogêneo e complexo, com diversos atores sociais obrigados, por prescrições jurídicas e institucionais, a constituírem formas de convivência mútua.
Ao retomar nosso objetivo de delinear e discutir os laços de cooperação estabelecidos entre agentes de segurança e apenados como estratégia de enfrentamento do trabalho real no cárcere, identificamos o que nomeamos por cooperação forçada, fenômeno que nos provocou a refletir sobre a dinâmica do estabelecimento desses laços obrigatórios.
A cooperação é constituída por laços construídos entre indivíduos a partir de seus conhecimentos para gerir coletivamente uma realidade, exigindo confiança e entrosamento entre os pares. Como desdobramento, no cenário prisional, a cooperação forçada se constitui a partir da obrigatoriedade de cooperar com os aqueles em quem não se confia condição esta que tentava minimizar os riscos, porém diminuía apenas a percepção deles, o que produzia constrangimentos, empurrando os trabalhadores para um cenário potencialmente desestruturante psiquicamente. Como fenômeno institucional, a cooperação forçada cumpria funções de apagar os desarranjos entre trabalho prescrito e trabalho real, assim como as precariedades do contexto prisional e suas implicações para a organização e a condução do trabalho dos servidores.
Por fim, afirmamos que as discussões aqui promovidas tentaram dar visibilidade ao universo prisional, ao mesmo tempo em que abarcaram uma realidade dramática do mundo do trabalho em uma dimensão bem específica, a do trabalho de vigilância prisional, que já povoa as agendas de pesquisa de alguns estudiosos, mas ainda precisa ser mais bem explorada em contribuições futuras.
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Endereço para correspondência:
eneidasantiago2@gmail.com
patricia.bortolloti@gmail.com
amanda_bana@hotmail.com
Recebido em: 24/11/2019
Revisado em: 13/07/2020
Aprovado em: 16/07/2020
1 https://orcid.org/0000-0002-5296-4341
2 https://orcid.org/0000-0002-7096-1718
3 https://orcid.org/0000-0002-4884-8591