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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versión impresa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.23 no.2 São Paulo jul./dic. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v23i2p157-174 

10.11606/issn.1981-0490.v23i2p157-174

ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

 

Quem manda também sofre: um estudo sobre o sofrimento de gestores no trabalho

 

Those who give orders also suffer: a study on suffering in managerial work

 

 

Marcela Rucireta Germano Moretto1; Valquíria Padilha2

Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto, SP, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Baseado principalmente na Psicodinâmica do Trabalho, este artigo resume uma pesquisa que objetivou conhecer as causas de sofrimento no trabalho gerencial; identificar como gerentes percebem o sofrimento e o prazer em seu trabalho e quais as principais causas de prazer laboral. Foram feitas entrevistas semiestruturadas com gerentes de posições hierárquicas e setores distintos, no interior paulista. A interpretação das entrevistas deu-se pela Análise dos Núcleos de Sentido (ANS). Identificamos sete núcleos de sentido para entender as vivências de sofrimento e prazer no trabalho gerencial e identificar suas causas: a) Prescrição do trabalho; b) Culto às metas e desempenho; c) Relações interpessoais; d) Carga de responsabilidade; e) Autonomia; f) Reconhecimento e g) Equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Confirmamos que há sofrimento laboral dos/das gerentes.

Palavras-chave: Prazer e sofrimento no trabalho, Sofrimento no trabalho gerencial, Psicodinâmica do trabalho.


ABSTRACT

Based on the Psychodynamics of Work, this article summarizes a research that studied the causes of suffering in managerial work; to identify how managers perceive suffering and pleasure in their work, and what are the main causes of labour pleasure. Semi-structured interviews were conducted with managers of different hierarchical positions in companies from different sectors, in the countryside of the state of São Paulo. The interpretation of the interviews was made through Meaning Core Analysis. We identify seven meaning cores used to understand the experiences of suffering and pleasure in managerial work and identify their causes: a) Prescribed work; b) Worship of goals and performance; c) Interpersonal relationships; d) Responsibility burden; e) Autonomy; f) Acknowledgment, and g) Balance between work and personal life. We confirm that managers present labor suffering.

Keywords: Pleasure and suffering at work, Suffering in managerial work, Psychodynamics of work.


 

 

Introdução

De modo geral, é possível sugerir que sujeitos que ocupam cargos gerenciais, principalmente em empresas privadas, costumam desfrutar de alguns benefícios, como maior remuneração, relativa autonomia e maior poder, pelas oportunidades decisórias e de mando típicas dos cargos de chefias. Mas estariam os gerentes blindados contra o sofrimento gerado pelo trabalho? Compreendemos que quando há vivência de prazer no trabalho, não significa que não haja sofrimento e vice-versa. Concordamos com Dejours (2006), Araújo (2008) e Navarro e Padilha (2007) que o trabalho é ambivalente, pois pode causar infelicidade, alienação e doença mental ao mesmo tempo em que autorrealização, prazer e saúde.

Existem estudos brasileiros sobre as fontes de tensão em cargos de liderança e gestão e o estresse ocupacional de gestores que revelam expressiva incidência de estresse nessas funções (Braga & Pereira, 2011; Melo, Cassini & Lopes, 2011; Paula, 2013; Pereira, Braga & Marques, 2008, 2014; Pereira, Lanna & Coelho, 2014). Porém, há uma percepção dos gerentes de que fatores que geram mal-estar (pressões, sobrecarga, escassez de tempo e fadiga) são inerentes ao trabalho e, portanto, passam a ser naturalizados e justificados (Melo et al., 2011). Encontramos poucas pesquisas que tratam especialmente do tema prazer e sofrimento de gestores.

A pesquisa que originou este artigo teve como objetivo conhecer as principais causas de sofrimento gerado pelo trabalho gerencial. Os objetivos secundários foram identificar como os gerentes percebem o sofrimento e o prazer no trabalho e quais são as principais causas de prazer no trabalho. Entre as pressuposições da pesquisa, consideramos que as principais causas de sofrimento no trabalho de gerentes incluem: a) a sobrecarga, comprometendo o equilíbrio entre trabalho e vida privada; b) a pressão para apresentar resultados e alta carga de responsabilidade; c) "frieza" nas relações interpessoais no trabalho; e d) distanciamento entre o trabalho real e o prescrito.

Para atingir os objetivos, além do levantamento bibliográfico sobre prazer e sofrimento no trabalho de gerentes (embasado, principalmente, na Psicodinâmica do Trabalho3), fizemos um estudo de abordagem qualitativa, com entrevistas semiestruturadas aprofundadas com cinco gerentes4 de posições hierárquicas variadas, em empresas públicas e privadas de diferentes setores, em uma cidade do interior paulista.

Fizemos menção também a alguns estudos sobre estresse na função gerencial, que embora não pertençam à base teórica da Psicodinâmica do Trabalho, nos auxiliaram a construir as pressuposições sobre causas de sofrimento no trabalho gerencial.

Ressaltamos que, por economia linguística, optamos por usar termos como gerente e gestor no gênero masculino, sem com isso coadunarmos com discursos preconceituosos ou misóginos.

 

Gestão contemporânea e sofrimento no trabalho

Administrar é o trabalho que envolve combinar e dirigir o uso de recursos para atingir determinados objetivos de uma organização, o que inclui planejamento, liderança, organização e controle (Hampton, 1983). Gestão refere-se a "cuidar para que a produtividade, eficiência e eficácia na utilização de recursos sejam cada vez maiores ou, alternativamente para que os efeitos nocivos sejam minimizados, atenuados ou (idealmente) expurgados" (Bendassolli, 2009, p. 8). Tradicionalmente, o termo gestão remete a controle, ordem e racionalidade (Gaulejac, 2007; Motta, 2004). Porém, o ambiente organizacional é frequentemente descrito como repleto de conflitos e paradoxos (Aguiar, 2013; Gaulejac, 2007; Motta, 2004; Shapero, 2011; Westley, 2011). Administrar é tomar decisões em vários tipos de situações – sendo que certas decisões apresentam um risco ou urgência maior, o que pode exigir forte implicação pessoal do gestor, gerando estresse (Laroche, 2017).

Um cargo gerencial implica trabalhar em ritmos intensos, lidar com conflitos, contradições, cargas de trabalho inesperadas e preocupações constantes que invadem o tempo livre, dando a sensação de que há sempre trabalho a fazer e decisões urgentes a tomar, afetando o equilíbrio entre vida profissional e pessoal e a qualidade de vida (Aguiar, 2013; Lima, 1995; Motta, 2004; Serva & Ferreira, 2006; Westley, 2011).

A vivência de sofrimento e prazer no trabalho está associada à carga psíquica do trabalho, que não é mensurável, pois tem caráter qualitativo, subjetivo e dinâmico. O trabalho pode aumentar ou diminuir essa carga, ou seja, pode ser fonte de tensão e/ou via de descarga de energia e de relaxamento. O trabalho é fatigante, fonte de tensão e desprazer quando há acúmulo de energia psíquica e as vias de descarga são fechadas. Quando a energia acumulada transborda, acarreta efeitos negativos na saúde física e/ou psíquica. Em oposição, um trabalho é equilibrante quando permite ao sujeito a diminuição da carga psíquica – por exemplo, quando o trabalhador possui autonomia e controle, as atividades são livremente escolhidas e organizadas ou as vias de descarga de energia são adaptadas às suas necessidades (Dejours, 1994a, 1996, 2004).

Ao enfrentar tensão no trabalho, as pessoas conseguem manter um quadro de normalidade, mas isso não necessariamente configura ausência de sofrimento (Dejours, 1994b). O "sofrimento é inevitável e ubíquo", e a compreensão do sofrimento no trabalho tem como objetivo não anulá -lo, mas transformá-lo (Dejours & Abdoucheli, 1994, p. 137).

O sofrimento é caracterizado pela presença de um ou mais sentimentos, tais como "medo, insatisfação, insegurança, estranhamento, desorientação, impotência diante das incertezas, alienação, vulnerabilidade, frustração, inquietação, angústia, depressão, tristeza, agressividade, impotência para promover mudanças, desestímulo, desânimo, sentimento de impotência, desgaste emocional e/ou físico, desvalorização, culpa, tensão e raiva" (Mendes & Morrone, 2010, p. 32).

Pereira (2003) considerou como indicadores de sofrimento de gerentes o desgaste e a insegurança, e como indicadores de prazer a gratificação (associada aos sentimentos de realização e identificação com o trabalho) e a liberdade (relacionada à sensação de ter domínio e ser livre para organizar o próprio trabalho).

"A vivência de prazer, é caracterizada por sentimentos de reconhecimento, identificação, orgulho pela atividade em si, realização e liberdade" (Mendes & Morrone, 2010, p. 32). O reconhecimento é uma questão-chave nas vivências no trabalho, pois o indivíduo recebe retribuição simbólica por seus esforços e vivências de sofrimento à medida que sua contribuição para a organização é legitimada (Dejours, 2006, 2012). O reconhecimento como retribuição simbólica transforma o ser ao reconhecer sentido em sua realização e, assim, transforma sofrimento em prazer (Dejours, 2012). Em estudo de Paiva, Esther, Pires e Melo (2006) sobre gerentes do setor hoteleiro, as vivências positivas aparecem relacionadas a autonomia, status, prestígio e liberdade de acesso aos superiores.

Com base em Dejours (1994a, 1994b), Dejours e Abdoucheli (1994), Dejours e Jayet (1994) e Pereira (2003), conclui-se que sofrimento no trabalho é uma vivência única de um sujeito (dotado de características e experiências particulares anteriores ao contato com as situações de trabalho), que: a) se dá em um espaço intersubjetivo; b) surge com o aumento de carga psíquica no trabalho, dada a exposição a pressões e conflitos; c) produz efeitos nas dimensões psíquica e física do indivíduo; e d) de forma dinâmica, impacta as situações e relações de trabalho.

Várias causas podem ser apontadas como desencadeadoras de sofrimento no trabalho, estando em grande parte atreladas à organização do trabalho e às relações interpessoais (Aguiar, 2013; Dejours, 1994a, 1994b, 2006; Dejours & Abdoucheli, 1994; Dejours & Jayet, 1994; Lima, 1995; Mendes & Morrone, 2010; Pereira, 2003).

A organização do trabalho age como limitadora do desejo do trabalhador em relação à escolha e organização de suas atividades e relações de trabalho (Dejours, 1994a). Ela refere-se à divisão do trabalho (divisão de tarefas e o modo operatório prescrito) e às relações interpessoais no trabalho, como divisão de responsabilidades, hierarquia, controle e poder (Dejours & Abdoucheli, 1994). O sofrimento patogênico surge com o bloqueio da relação do indivíduo com a organização do trabalho (Dejours, 1994b).

Vale lembrar que desde quando Dejours ainda falava de Psicopatologia do Trabalho (na década de 1980) até os dias de hoje, com a Psicodinâmica do Trabalho, ele se preocupa em compreender quais são os processos psíquicos que o trabalhador mobiliza quando se confronta com a realidade do trabalho5. Nos anos 1980, focava a atenção para os processos defensivos dos trabalhadores (individuais e coletivos) contra o sofrimento e para como as organizações desenvolvem formas de explorar esses sistemas defensivos a seu favor (Dejours, 2016).

Lima (1995) sugere que a relação dos gerentes com os subordinados é frequentemente desprovida de verdadeiro afeto, sendo a empatia de caráter instrumental, um meio de melhorar as relações de trabalho e a produtividade dos demais trabalhadores. A falta de liberdade para manipular a própria organização do trabalho e o enfraquecimento da cooperação e das relações humanas no trabalho fortalecem o individualismo e a solidão no ambiente de trabalho, desencadeando sofrimento em todos os níveis hierárquicos de uma organização (Dejours, 1994b; Lima, 1995).

Paiva et al. (2006, p. 133) evidenciam que "agradar o subordinado e cobrá-lo no desempenho de suas funções torna-se um dilema vivenciado na função gerencial". Entre as dificuldades no trabalho gerencial, apontam restrições financeiras e de planejamento, dificuldade na promoção da integração entre pessoas e equipes, conflitos interpessoais, dificuldade de agradar clientes, pressão, sobrecarga e dificuldades relacionadas a expectativas de superiores. Os conflitos mais recorrentes na função gerencial apontados eram relacionados à conciliação de diferentes interesses, a problemas específicos do setor, à gestão de pessoas e ao alcance de metas.

Gerentes sofrem também pela sensação de injustiça devido à falta de reconhecimento por seus esforços (Aguiar, 2013; Dejours, 2006). A falta de reconhecimento por colegas, líderes, clientes, amigos e familiares é uma das fontes de sofrimento para o trabalhador (Mendes & Morrone, 2010).

Aguiar (2013) aponta como fonte de sofrimento a busca constante pela perfeição no desempenho e o culto à performance, na medida em que o gestor não é capaz de controlar totalmente o comportamento de seus subordinados e que ele também é passível de falhas. Para Gaulejac (2007), esse tipo de vivência de sofrimento é agravado quando devem suprimir a própria subjetividade para propagar o discurso organizacional em busca da perfeição. A forte cobrança para alcançar os resultados prescritos pode ser acompanhada por pressões e insegurança quanto ao futuro profissional.

Conforme Mendes e Morrone (2010), estudos brasileiros apontam fatores propiciadores a vivências de sofrimento no trabalho, distribuídos nas dimensões: organização do trabalho, condições do trabalho e relações interpessoais. Os fatores propiciadores de sofrimento que compõem a organização do trabalho são: a) características da tarefa (fragmentação das atividades, procedimentos repetitivos, imprevisibilidade, risco de vida, imposição de ritmos, ausência de prescrição da tarefa, rigidez na condução da atividade, ausência de priorização) e b) gestão do trabalho (pressão para atingir metas, hierarquização rígida, ausência de participação nas decisões, supervisão coercitiva, falta de flexibilidade e/ou autonomia, grandes transformações na organização, conflitos entre valores pessoais e organizacionais e maiores exigências por qualificação).

Em relação a "condições do trabalho", apontam como fatores de sofrimento: a) sobrecarga (excesso de carga de trabalho, jornadas de trabalho extensas e insuficiência de pausas e repouso); b) indisponibilidade de recurso material e humano; c) ambiente de trabalho (instalações físicas precárias, falta de ventilação, ruídos, temperatura alta, exposição a riscos físicos, químicos, biológicos e psíquicos); d) política de remuneração (baixa remuneração e falta de política de benefícios); e e) insatisfação com a empresa. No que tange às relações interpessoais, apontam os fatores de sofrimento: a) relação entre pares (má qualidade nas relações de confiança e/ou de cooperação e falha na comunicação) e b) relações com o cliente/usuário (insatisfatórias e/ou violentas, ambivalência da relação e identificação com a problemática dos usuários).

Pereira et al. (2008) apontam como principais causas de estresse de gerentes a cobrança por resultados, metas abusivas, dificuldade de administrar o tempo, sobrecarga de trabalho e dificuldades nas relações interpessoais. Como causas de tensão excessiva associada ao trabalho gerencial, listam a dificuldade em manter equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, sensação de falta de tempo para melhorar a qualidade de vida e a vivência de várias contradições: ter que ser inovador, mas respeitando normas da organização; "vivenciar conflitos por perceber-se em sobrecarga e não ter como questionar, por exercer função de confiança (gerencial)"; "sentir que os resultados estão de bom tamanho, mas não poder manifestar essa percepção para a organização, tendo que solicitar à equipe resultados ainda mais desafiadores" e "ter dificuldade de conciliar a necessidade de trabalhar em modelo participativo e a necessidade de isolamento, em função da competitividade" (Pereira, et al., 2008, p. 188).

 

Metodologia

Tendo esse conjunto de reflexões como referencial, a pesquisa empírica foi de cunho qualitativo6 e teve como sujeitos três homens e duas mulheres que exercem função gerencial em diferentes áreas e posições hierárquicas7 de empresas privadas e públicas de grande porte, em uma cidade do interior paulista. Como foi garantida participação sigilosa aos entrevistados, os denominamos com letras e seus gêneros foram ocultados8.

Os participantes foram escolhidos por critério de conveniência e disponibilidade para participar da pesquisa, com base em indicações. Inicialmente, docentes da universidade na qual o estudo foi realizado indicaram contatos de gerentes para participarem e a eles foram pedidas mais indicações, caso quisessem sugerir alguém para participar. Cinco pessoas foram contatadas via e-mail. Na mensagem padrão, descrevemos o tema, os objetivos da pesquisa, o método e fizemos o convite para a participação em forma de entrevista individual com duração estimada em torno de uma hora. Quatro dessas pessoas contactadas participaram da pesquisa (entrevistados A, B, C e E) e a outra não retornou o convite. O quinto participante (entrevistado D) foi indicado pelo participante A, no dia de sua entrevista. O convite foi feito pessoalmente, com as mesmas informações passadas aos demais via e-mail, e a entrevista realizada logo em seguida. Não houve grandes dificuldades para conseguir as participações na pesquisa e agendamento das entrevistas. Todos os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido9. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra.

 

 

Quatro entrevistas ocorreram no ambiente de trabalho durante o expediente e uma ocorreu fora do expediente10. Destaca-se que a escolha do local e horário das entrevistas foi de acordo com a disponibilidade e as preferências dos participantes.

As entrevistas duraram em média 55 minutos (A, B, C). Tivemos duas exceções: uma entrevista que durou 25 minutos (entrevistado E – o qual foi bastante sucinto) e uma entrevista que durou uma hora e 30 minutos (entrevistado D). O roteiro foi seguido de maneira completa em todas as entrevistas.

O roteiro foi elaborado com base em orientações de Mendes (2007a, 2007b), com dados de perfil e perguntas para identificar as condições e exigências do trabalho e as vivências de prazer e sofrimento. Acrescentamos perguntas que buscaram identificar particularidades sobre prazer e sofrimento no trabalho gerencial. Foi feita uma entrevista para pré-teste de roteiro com uma docente da universidade em que a pesquisa foi realizada, a qual já exercera cargo de gerência no passado e respondeu às perguntas com base nessa ocupação. Não consideramos essa entrevista nas análises, obviamente, pois ela foi realizada apenas para identificar possíveis redundâncias no roteiro e calcularmos o tempo médio da entrevista.

A análise das entrevistas foi baseada na Análise dos Núcleos de Sentido (ANS), indicada por Mendes (2007b), e na Análise de Núcleos de Significação (Aguiar & Ozella, 2006).

A ANS consiste em desmembrar os discursos e agrupar seus conteúdos evidentes e recorrentes em categorias chamadas núcleos de sentido. A nomeação e definição desses núcleos é feita com base nos conteúdos verbalizados nas entrevistas (Mendes, 2007). Aguiar e Ozella (2006) propõem análise de núcleos de significação para compreender os sentidos presentes nos discursos, apontando que a compreensão do sujeito na pesquisa vai além do que é dito por ele, tornando-se necessário interpretar o discurso como fruto de subjetividades e processos simbólicos, culturais, sociais e emocionais que interferem na formação do pensamento do sujeito.

Partimos das seguintes pressuposições: a) há sofrimento na vida laboral dos gestores, apesar de, normalmente, ocuparem cargos de maior poder e autonomia e de maiores salários/incentivos em comparação a demais cargos na mesma empresa; b) o sofrimento estaria atrelado a certa "frieza" ou impessoalidade típica das relações humanas no trabalho11; c) há sofrimento decorrente de pressão por alta performance, de alta carga de responsabilidade e do distanciamento entre o real e o prescrito; d) a sobrecarga, que compromete o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, gera sofrimento; e e) o sofrimento pode decorrer dos paradoxos inerentes ao cargo (ao mesmo tempo em que se tem maior autonomia, há sobrecarga de trabalho e maior tensão quanto à obtenção de resultados; ao mesmo tempo que se tem maiores incentivos e salários e possibilidade de ter melhor qualidade de vida, há pouco tempo livre para aproveitar sua vida pessoal e conviver com outras pessoas queridas, além das que podem existir no ambiente laboral).

 

Análises

Ao analisarmos as entrevistas transcritas, identificamos sete núcleos de sentido para entender as vivências de sofrimento e prazer no trabalho: a) Prescrição do trabalho; b) Culto às metas e ao desempenho; c) Relações interpessoais; d) Carga de responsabilidade; e) Autonomia; f) Reconhecimento; e g) Equilíbrio entre trabalho e vida pessoal.

Prescrição do trabalho

Vimos que a prescrição do trabalho de gestores está voltada essencialmente para resultados e entregas. Eles recebem demandas de clientes ou superiores, com liberdade para determinar como serão atendidas e prescrever o percurso. Os entrevistados mostraram visão positiva sobre a falta de prescrição, que, ao contrário do esperado, não representa necessariamente uma fonte de sofrimento, uma vez que pode ser um meio para exercerem autonomia e controle sobre o próprio trabalho.

Quanto ao distanciamento entre o trabalho prescrito e o real, os gestores deparam-se com diversos imprevistos e lacunas entre o que planejam e o que acontece. Observamos que isso pode ser fonte de sofrimento à medida que se veem imputados a agir diante do trabalho, de transformar os imprevistos em situações que lhes sejam favoráveis. Quando desacompanhados de sensação de impotência, os imprevistos se mostraram como fonte de prazer, pois proporcionam sensação de dinamismo, falta de monotonia e aprendizado. Segundo Dejours (1994a, 1994b), Dejours e Jayet (1994) e Mendes e Morrone (2010), a organização do trabalho aparece atrelada ao sofrimento quando o sujeito perde liberdade, autonomia e flexibilidade.

No trabalho de todos os entrevistados, percebemos que a autonomia se sobressai à sensação de impotência diante da prescrição de suas atividades, rotinas e imprevistos relacionados à rotina. Ou seja, eles demonstraram ter autonomia para manipular os imprevistos, replanejar suas atividades e as dos subordinados, conforme os recursos disponíveis, de modo a minimizar problemas e/ou alcançar os resultados demandados. Observamos, portanto, prevalência da autonomia sobre a divisão de tarefas e o modo operatório prescrito. Além disso, todos os entrevistados demonstraram ter contas a prestar e resultados a entregar para superiores ou, até mesmo, para órgãos fiscalizadores, como é o caso do gestor hospitalar. Com isso, destacamos que essa autonomia de prescrição do trabalho dos entrevistados refere-se ao percurso de divisão de tarefas e responsabilidades, e não necessariamente aos projetos e resultados que serão entregues, como veremos no próximo núcleo de sentido referente às metas.

Culto às metas e ao desempenho

Notamos forte presença do culto às metas e da cultura da performance na função gerencial (Bendassolli, 2003; Ehrenberg, 2010; Gaulejac, 2007; Wood & Paula, 2010) e grande afinidade dos gestores com as características associadas a essa cultura, como desejo de progredir e culto da qualidade e excelência, fortalecendo a atração por essa ideologia, e também ênfase em persistência e resiliência, reforçando a inspiração em um sujeito heroico que empreende e conquista a vitória e seus objetivos (Bendassolli, 2003, 2005).

A cultura da performance e as características associadas a ela não necessariamente geram sofrimento aos gestores. A alta demanda por apresentar resultados e as metas podem fazer com que eles se sintam desafiados ao perceberem-nas como oportunidades para alcançar reconhecimento e sucesso. De um lado, os entrevistados mostraram que as metas são benéficas ao permitirem ver de forma mais clara o planejamento, o percurso e o sentido das ações realizadas e, depois, alcançar reconhecimento e recompensas pelo trabalho. Podemos pensar na relação narcísica que o gestor pode estabelecer com a organização, como nos mostra Ronchi (2016) ao afirmar que o ambiente organizacional é profícuo para a valorização do heroísmo e da narrativa performática que faz apologia à excelência.

De outro lado, vimos que o culto às metas pode gerar sofrimento à medida que elas se distanciam de seu papel enquanto guia para as atividades, quando deixam de ser estimulantes ao parecerem intangíveis e abusivas e quando transparecem injustiça em relação às cobranças (Gaulejac, 2007; Mendes & Morrone, 2010; Pereira et al., 2008). Isso ocorre com o Entrevistado C, único que relatou explícito sofrimento decorrente de metas:

A cobrança é feita, pelo menos onde estou, de uma maneira muito intensa e com antigos gestores, até assédio a gente teve, assédio moral … O que me chateia muito são as cobranças que a gente recebe em relação ao cumprimento de metas. Isso me gera ansiedade, sofrimento, mal-estar (C.).

Notamos também que vivências negativas associadas às metas/resultados estariam relacionadas à discrepância entre recursos disponíveis e resultados demandados, acompanhada da impossibilidade de negociar mais recursos.

Outro aspecto é o papel dos demais trabalhadores em relação ao cumprimento das metas dos gestores, os quais precisam garantir que outros as cumpram. Nesse sentido, observamos incômodo e/ou conflitos interpessoais pela falta de comprometimento que percebem por parte de outros trabalhadores.

O nível de autocobrança por parte dos entrevistados não necessariamente gera sofrimento, mas pode fazê-lo quando o sujeito diz ultrapassar seus limites pessoais para atingir metas estabelecidas.

Não observamos diferenças importantes nas vivências dos gestores entrevistados de empresas públicas, mista e privada quanto ao tema das metas. Tanto na empresa pública em que trabalham A e D quanto na empresa pública em que trabalha E, há metas e diretrizes a serem cumpridas, assim como em empresas privadas e mistas. A empresa de A e D possui fortes evidências da gestão gerencialista no setor público (Gaulejac, 2007) como parte de um processo de modernização do serviço público, o que a aproxima de modelo de gestão de empresas privadas – com a expressiva adoção de metas para medir produtividade e tecnologias para atendimento. A e D reforçam que atendem a diversas metas, sendo elas classificadas em metas corporativas, setoriais e individuais. Além disso, há a medição de padrão de qualidade por meio de pesquisas externas e vários indicadores. Eles veem a adoção de metas positivamente e como algo importante para a manutenção do padrão de qualidade dos serviços.

Na empresa de E, um hospital público, além do cumprimento de metas, há prestação de contas para diversos órgãos, como secretaria de saúde, órgãos fiscalizadores e tribunal de contas, além de uma série de auditorias durante o ano. Ou seja, mesmo nas empresas públicas vimos que há forte cobrança por metas e uma série de processos de auditoria e medição de padrões de qualidade. Com exceção da empresa em que trabalha o entrevistado C, um banco de economia mista, nas demais empresas dos entrevistados, observamos processos participativos para a definição de metas. Dependendo do tipo de meta, participam os gestores entrevistados e/ou seus subordinados.

O entrevistado B conta:

Definimos formalmente metas de gestores, ou seja, a empresa acompanha minhas metas e eu participo de sua elaboração. Faço o mesmo com minha equipe, mas é um processo extraoficial. Ou seja, eu faço porque eu acho que é o melhor jeito de gerir e não porque o processo da empresa me força a isso. Eu acredito que é essencial o planejamento de metas em conjunto com o seu responsável. Essa é a melhor forma de medir e estimular o desempenho (B.).

Nesse caso, B possui metas relacionadas à sua área de atuação na empresa privada.

A natureza das metas apresenta diferenças. No caso das empresas públicas abordadas, elas estão mais relacionadas ao atendimento de clientes e serviços oferecidos. Por exemplo, a empresa de A e D considera metas como tempo de atendimento e quantidade de pessoas atendidas por dia, entre diversas outras. No caso do entrevistado C, o banco não tem apenas metas de atendimento, mas também ênfase em metas financeiras. Assim, podemos observar algumas distinções na natureza das metas entre empresas públicas e empresas mistas/privadas. Também observamos diferença na cobrança pelas metas, que se mostrou mais forte em relação ao banco, o que pode não necessariamente estar ligado ao setor privado ou misto, mas à área de atuação da empresa (setor bancário).

Relações interpessoais

Vimos que as relações com os subordinados são de característica técnica e com carga de impessoalidade. Dois aspectos chamam a atenção: o instrumentalismo nas relações interpessoais no trabalho e a necessidade de exercer autoridade através da adesão dos trabalhadores, sendo necessário incorporar normas e ideologias da empresa para transmiti-las a eles (Gaulejac, 2007; Lima, 1995; Paiva et al., 2006).

Dejours (2012) diz que a cooperação implica renúncia à expansão da singularidade em prol do viver junto. A cooperação reprime, em parte, a própria inteligência e subjetividade no confronto do indivíduo com o real (outros modos, vontades, experiências). Conflitos surgem, mostrando que a renúncia suposta pela cooperação nem sempre é consentida – o que gera sofrimento e triunfo do individualismo, ameaçando a cooperação. Assim, a cooperação não é marcada apenas pela mobilização em prol do coletivo, mas também por renúncias consentidas ou não. Nesse contexto, vimos que a suposta falta de adesão por parte dos outros trabalhadores é possível fonte de sofrimento para os gerentes, confirmando que ter maior poder organizacional em relação ao demais não necessariamente significa obter dos outros tudo aquilo que se quer (Lima, 1995).

O entrevistado D mencionou diversas vezes como os conflitos e a falta de comprometimento de outros trabalhadores lhe gera desgaste. O entrevistado E, por sua vez, reforça que o comprometimento e adesão dos subordinados geram prazer. Diz que sua maior fonte de prazer no trabalho é o reconhecimento dos clientes e sente grande prazer ao ver que os clientes são bem atendidos, mesmo que sua equipe tenha problemas e não esteja 100% satisfeita. O gosto pelo reconhecimento ou pela idealização do reconhecimento podem estar ligados ao desejo narcísico de ser amado e de ser percebido como um sujeito de qualidades e virtudes (Ronchi, 2016).

Sobre a relação dos gerentes intermediários/operacionais com seus líderes, vimos relações de parceria e apoio que proporcionam vivência de reconhecimento e prazer no trabalho. Sobre sua relação com o líder, o entrevistado E diz que "essa relação que a gente tem de continuidade, parceria, acho que muda o peso do trabalho, tira o peso do trabalho".

Para o entrevistado D, uma grande dificuldade encontrada foi passar a liderar seus pares, o que lhe gerava muita pressão – os conflitos interpessoais se intensificam com a função gerencial. Para ele, existe um estigma em relação aos cargos de gestão que faz com que os subordinados se sensibilizem mais com as cobranças do que se sensibilizariam se fossem cobrados por pares. Um dos efeitos que conflitos interpessoais geraram em seu comportamento foi um certo distanciamento das pessoas em seu trabalho e certa insensibilidade, evidenciando vivências de sofrimento no trabalho devido a conflitos interpessoais (Dejours & Jayet, 1994; Gaulejac, 2007).

Bendassolli (2011), Lima (1995), Motta (2004) e Paiva et al. (2006) afirmam que a função gerencial está sujeita a lidar com conflitos de interesses com outros trabalhadores. Com a fala do entrevistado D, podemos interpretar que o distanciamento por parte dos gerentes em suas relações interpessoais no trabalho não se dá necessariamente por frieza, insensibilidade ou falta de afeto, mas sim como mecanismo de defesa contra o sofrimento e resguardo para evitar ou mitigar conflitos. Assim, impessoalidade, frieza e distanciamento entre as pessoas não necessariamente geram sofrimento para os gestores. Por sua vez, conflito entre as pessoas, falta de adesão e não reconhecimento aparecem como fontes de sofrimento (Aguiar, 2013; Bendassolli, 2011; Dejours, 1994b, 2006; Gaulejac, 2007; Mendes & Morrone, 2010; Pereira, 2003).

Nas entrevistas com os gerentes A e D, de empresa pública, observamos que não há autoridade direta sobre todos os trabalhadores da empresa e sobre admissões e demissões devido à estrutura organizacional típica da empresa. O entrevistado A afirma que não tem autoridade para admissão ou demissão em determinados departamentos da empresa. Assim, constrói autoridade por meio de parcerias – seguindo uma estrutura organizacional matricial, em que os líderes de departamentos possuem autoridade técnica sobre os serviços, enquanto os entrevistados A e D coordenam os serviços/atendimentos para atender as metas e diretrizes da empresa como um todo.

O entrevistado D conta que qualquer problema com funcionários precisa ser comunicado à outra empresa pública que administra o departamento de Recursos Humanos. É essa empresa que orienta e toma decisões acerca de admissões, advertências e demissões de funcionários. Assim, notamos uma maior restrição dos gerentes na gestão de conflitos interpessoais nessa empresa pública do que em empresas privadas, onde geralmente os gestores têm maior autonomia para manipular/tomar decisões acerca do quadro de funcionários. Nesse contexto, o entrevistado D reforça o desgaste gerado quando há falta de comprometimento por parte de outros trabalhadores.

Embora a empresa em que trabalha o entrevistado E também seja pública e haja interveniência de uma organização privada, ele não mencionou nada sobre restrições quanto a advertências e demissões dos funcionários na entrevista. Apenas destacou o comportamento positivo dos funcionários no atendimento aos clientes, como mencionado anteriormente. Essa temática também não foi mencionada nas entrevistas de B e C (empresa privada e empresa mista, respectivamente). Por isso, não é possível generalizar conclusões sobre autonomia dos gerentes em relação à gestão de pessoas nas organizações públicas e privadas.

Carga de responsabilidade

Os entrevistados demonstraram enxergar que as maiores cargas de responsabilidade que têm em relação a subordinados são naturais da função gerencial. O entrevistado E afirma que é um benefício de cargos gerenciais sentir-se responsável por algo e "fazer acontecer".

Vimos que a alta carga de responsabilidade, acompanhada de sensação de poder agir, de ter controle sobre as situações, é fonte de prazer. A carga de responsabilidade pode representar a oportunidade de ser sujeito ativo no trabalho e driblar sensações de impotência, atreladas ao sofrimento. A visão dos gestores de que alta carga de responsabilidade é algo positivo remete a Gaulejac (2007), ao dizer que a organização se associa à onipotência, expansão, perfeição e excelência, apresentando-se como meio de satisfazer desejos e canalizar angústias.

Por outro lado, vimos que quando associada à responsabilidade pelo trabalho de terceiros e à falta de adesão – dado que o gestor não é capaz de controlar totalmente o comportamento dos subordinados e deve responder pelas metas deles –, a carga de responsabilidade também pode gerar vivências de sofrimento. A isso se soma a sobrecarga de atividades para o gestor (Aguiar, 2013; Mendes & Morrone, 2010; Pereira, 2003; Pereira et al., 2008).

Autonomia

A autonomia para prescrever suas atividades é considerada prazerosa pelos entrevistados. A autonomia para participar da definição de metas é vista como positiva, enquanto a não participação, negativa. Aparece associada a vivências de sofrimento no trabalho a falta de autonomia devido a normas e burocracias da organização, tanto em relação a recursos para realizar atividades quanto à tomada de decisões sobre o quadro de funcionários e conflitos interpessoais. Quatro dos entrevistados demonstraram vivências negativas quando têm sua autonomia engessada. A falta de autonomia pode gerar sensação de impotência diante do trabalho, provocando vivências de sofrimento (Dejours, 1994a, 1994b; Dejours & Jayet, 1994; Mendes & Morrone, 2010). O entrevistado E comenta que "as frustrações basicamente são as mesmas. Das expectativas que você gostaria de ter liberdade".

Destaca grande apreço pela oportunidade de participar de decisões da empresa, mesmo com autonomia engessada:

Essa participação nas discussões, nas decisões, o compartilhamento, é o essencial. Desde que estou aqui, compartilho com o diretor geral de todas as decisões que são tomadas. Essa participação, esse compartilhar faz 100% da diferença (E.).

Não observamos sofrimento ou prazer diretamente atrelado à posição hierárquica ocupada pelos gestores, não sendo possível estabelecer uma relação direta. Porém, ficou claro que quanto mais alta é a posição hierárquica, maior autonomia se tem para manipular recursos, metas e diretrizes. Quanto aos gestores operacionais, vimos com particularidade a possibilidade de maior sobrecarga de tarefas operacionais – já que esses podem precisar executar atividades da operação, e não apenas gerir a execução.

Reconhecimento

Notamos que o reconhecimento que vem de gerentes superiores é mais explícito, frequente e, geralmente, formalizado – expresso em algum tipo de recompensa como promoção, ganho financeiro ou autonomia/permissão para participar de decisões na empresa. Enquanto isso, o reconhecimento proveniente dos subordinados é menos explícito e se manifesta de forma essencialmente subjetiva. Os gestores destacaram unanimemente sentir forte reconhecimento do seu trabalho pelos seus superiores e acham difícil saber se seu trabalho é reconhecido por pares e subordinados. O reconhecimento apareceu como fonte de prazer no trabalho também quando ele vem de pessoas externas à organização, como clientes, sendo uma expressiva fonte de prazer para os gerentes.

Equilíbrio entre trabalho e vida pessoal

Notamos que a preocupação constante com o trabalho é unânime entre os entrevistados e que a fronteira entre trabalho e vida pessoal é bastante porosa (Aguiar, 2013; Bendassolli, 2005; Gaulejac, 2007; Lima, 1995; Motta, 2004; Pereira, 2003; Serva & Ferreira, 2006; Westley, 2011).

Para o entrevistado E, a preocupação constante com o trabalho é natural e voluntária: "estou ligado 24h, independentemente de onde esteja … Acho que isso é uma opção, é o meu jeito de trabalhar".

O entrevistado D diz que a falta de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal já fora mais prejudicial para ele, mas que ainda é uma questão bastante complicada. Ele diz:

Hoje estou fazendo um exercício danado, danado para não levar quase todas as coisas daqui para casa … já interferiu bastante no meu relacionamento com a família, a ponto até de eu quase me separar por conta do trabalho (D.).

O entrevistado C diz que a preocupação constante com o trabalho lhe gera sofrimento e que não possui equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho:

Eu sou muito competitivo. Essa minha carteira sempre está entre as primeiras, mas isso me causa um sofrimento muito grande. Eu sou muito ansioso, não paro de pensar nisso, eu penso nisso inclusive nas férias, final de semana, feriado, antes de dormir … Então, eu tenho oscilações de momentos de felicidade, momentos de cansaço, de insatisfação, mesmo (C.).

Os entrevistados C e D comentaram sobre como o trabalho invade a vida pessoal e gera uma sensação de escassez de tempo. O entrevistado D diz que "passamos muito tempo com quem trabalhamos, pouco tempo com a família e nenhum tempo com nós mesmos".

Os entrevistados A e B afirmam que preocupações com trabalho invadem suas vidas pessoais, mas que conseguem moderar bem o equilíbrio entre vida pessoal e privada. Sobre isso, o entrevistado B comenta:

Acho que é inerente ao cargo, porque no final das contas, você é responsável pela entrega de uma equipe. Mas eu tento … Não sei se tento exatamente fazer alguma coisa em relação a isso, mas eu tento sempre lembrar que eu fiz o meu melhor, porque eu sinto que eu sou uma pessoa que me cobro muito, então eu me dedico bastante e que se der algum problema, a gente consegue resolver (B.).

O entrevistado B levanta ainda uma questão sobre como a cidade em que trabalha e as condições de vida também afetam esse equilíbrio entre vida pessoal e trabalho. Sobre isso, ele afirma:

Hoje ele é muito bom e que ele já foi muito ruim. Quando eu morei em São Paulo, eu trabalhava 12-14h por dia … São Paulo é uma cidade que é muito difícil de morar, não é igual aqui, que com um salário relativamente ok você já vive bem. Você tem que ganhar muito, muito bem pra ter uma qualidade de vida parecida com aqui em relação a São Paulo, porque senão vai morar no fim do mundo e para se deslocar é muito difícil (B.).

Assim, notamos que os gestores naturalizam o fato de o trabalho invadir seu tempo livre (Zaratini & Padilha, 2010). Vimos que há sofrimento à medida que o sujeito não consegue amenizar essas preocupações e obter equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e quando a falta de equilíbrio prejudica as relações familiares e gera sensação de não ter tempo para si.

 

Causas de sofrimento e prazer

Com base na análise, observamos quatro principais causas de sofrimento no trabalho gerencial: a) falta de adesão por parte dos demais trabalhadores, que pode intensificar conflitos interpessoais, gerar sobrecarga de tarefas e aumentar a sensação de impotência; b) incapacidade de lidar com preocupação constante em relação ao trabalho e moderar o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, gerando sensação de impotência diante da própria vida; c) discrepância entre os resultados demandados e os recursos disponíveis para alcançá-los e a cobrança percebida como injusta; e d) o engessamento da autonomia do gestor, por normas e metodologias da empresa que limitam a prescrição das próprias metas/projetos e seu poder de decisão. No Quadro 2, sintetizamos as causas de prazer e de sofrimento de gestores identificadas.

 

 

Considerações finais

A partir das causas de sofrimento e prazer no trabalho identificadas, pudemos tanto confirmar quanto rejeitar parcialmente as pressuposições do início da pesquisa. De um lado, confirmamos que há sofrimento na vida laboral dos gestores. De outro, observamos que o sofrimento no trabalho não está necessariamente atrelado à "frieza" e à impessoalidade nas relações interpessoais no trabalho, mas os conflitos interpessoais e a falta de adesão por parte dos demais trabalhadores destacam-se como causas recorrentes de sofrimento no trabalho gerencial. A percepção de sobrecarga e de falta de equilíbrio entre vida pessoal e profissional e a incapacidade de estabelecê-lo foi confirmada como causa de sofrimento no trabalho gerencial.

Outra confirmação foi que o sofrimento pode decorrer de paradoxos inerentes ao cargo: a) ao mesmo tempo que se tem maior autonomia sobre suas próprias atividades e poder sobre a organização em comparação com os demais trabalhadores, há sobrecarga de trabalho e maior tensão quanto à obtenção de resultados e b) ao mesmo tempo que se tem maiores incentivos e salários e, assim, possibilidade de ter melhor qualidade de vida, há pouco tempo livre para aproveitar a vida pessoal – conviver com pessoas queridas que estejam fora do ambiente de trabalho e cuidar de si mesmo.

A suposição de que a pressão por alta performance e alta carga de responsabilidade são causas de sofrimento foi parcialmente confirmada. Esses fatores geram sofrimento quando acompanhados de percepção de injustiça em relação às cobranças, de sobrecarga ou de dificuldades relacionadas a ser responsável pelo desempenho de outros, que nem sempre mostram adesão e comprometimento para cumprir as metas. Não necessariamente a alta carga de responsabilidade em si gera sofrimento, podendo até mesmo ser prazerosa.

Por fim, a suposição de que o sofrimento pode ser causado pelo distanciamento entre o real e o prescrito foi confirmada, mas com ressalvas. Os gestores que entrevistamos demonstraram não necessariamente se incomodar com imprevistos e mudanças na rotina e no planejamento. Porém, o distanciamento entre os resultados demandados e os recursos para alcançá-los surgiu como fator propício para vivências de sofrimento.

Os sete núcleos de sentido encontrados, que por diversas vezes se interligam, revelam a complexidade da relação sofrimento-prazer-trabalho e confirmam análises feitas por Dejours (2006) e Dejours e Abdoucheli (1994), quando afirmaram que a) o trabalho é essencialmente ambivalente, causador de infelicidade e adoecimento ao mesmo tempo em que causa autorrealização e aprendizado e b) o trabalho é espaço de construção de sentido e identidade. Os entrevistados demonstraram essa visão do trabalho como atividade paradoxal, construtiva e necessária.

Notou-se um verniz de naturalização nas vivências de sofrimento no trabalho (Dejours, 2006; Melo et al., 2011). Porém, os gestores não apresentaram indiferença sobre o tema, reforçando que a naturalização associada à percepção do sofrimento no trabalho "é interpretada como o resultado de uma composição entre o sofrimento e a luta (individual e coletiva) contra o sofrimento no trabalho" (Dejours, 2006, p. 36).

Certa dificuldade dos gestores em falar sobre suas vivências de sofrimento no trabalho foi uma limitação percebida – a qual acreditamos poder ser motivada pela falta de reflexão prévia sobre o tema e por não conhecerem o entrevistador; além de que o tema, per se, é intimista e profundo. Acreditamos que a realização de mais entrevistas com os mesmos gestores poderia ter estabelecido maior confiança e ter quebrado algumas resistências, além de ter fomentado a reflexão dos entrevistados sobre o assunto e possibilitar coleta mais rica sobre as vivências.

Outra limitação da pesquisa foi a ausência de escuta coletiva – recorrente nas pesquisas fundamentadas na Psicodinâmica do Trabalho –, não realizada pela falta de conveniência e disponibilidade dos participantes.

Pelas leituras que fizemos de pesquisas realizadas sobre gestores, percebemos que cinco gestores não necessariamente tenha sido uma quantidade insuficiente de entrevistados, porque nossos resultados tangenciam muitas das conclusões a que outros pesquisadores chegaram. Ademais, não há preocupação com representatividade estatística em pesquisas qualitativas (Heloani & Lancman, 2004; Miles & Huberman, 2003).

Para pesquisas futuras, destacamos a necessidade de aprofundar sobre os núcleos de sentido identificados, sobre o impacto dos diferentes tipos de estrutura organizacional, níveis hierárquicos e setores macroeconômicos nas vivências subjetivas dos gestores, e de se fazer o recorte de gênero e geração (idade). Podem ainda ser investigados possíveis nexos de causalidade entre o tempo de exercício na função de gestor e vivências de prazer e sofrimento no trabalho. No horizonte de tantas possibilidades, também seria interessante aprofundar as análises feitas aqui comparando gestores com não gestores e gestores do setor público com gestores do setor privado. Seria interessante também desenvolver uma pesquisa para considerar as experiências anteriores de gestão e não apenas o contexto de trabalho atual, pois os gerentes podem ter vivenciado experiências nos setores público e privado ao longo da carreira . Outro possível estudo que poderia trazer contribuições para essa temática poderia considerar as vivências de gestores de empresas familiares, considerando tanto os que fazem parte da família proprietária do negócio quanto os que não fazem.

 

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Endereço para correspondência:
marcelarucireta@gmail.com
valpadilha@usp.br

Recebido em: 22/12/2019
Revisado em: 19/10/2020
Aprovado em: 20/10/2020

 

 

1 https://orcid.org/0000-0001-6548-6943
2 https://orcid.org/0000-0002-5564-6517
3 Embora saibamos que o campo de estudos em Psicodinâmica do Trabalho é amplo e tem disputas de interpretações diversas, no exterior e no Brasil, escolhemos essa escola como referência principal neste estudo porque entendemos que ela contribui quando elege o sofrimento e as relações entre prazer e sofrimento no trabalho como campo essencial de interesse. Enriquece nosso estudo sobre gestores quando entende que as vivências de prazer e sofrimento no trabalho estão em relação com a organização do trabalho, ou seja, reconhece a existência de uma estrutura social para a análise da subjetividade. Hoje, percebemos uma crescente disposição de diálogos frutíferos entre os autores da Psicodinâmica do Trabalho, das Clínicas do Trabalho, da Psicologia Social do Trabalho e da Psicossociologia do Trabalho.
4 Na intenção de identificar os Núcleos de Sentido para análise das falas, usamos o critério de saturação para estabelecer a quantidade de entrevistados, sabendo que, por não se tratar de uma pesquisa quantitativa, não há tratamento estatístico das informações. A questão foi estudar a relação do sujeito com o trabalho e propor causas de prazer e sofrimento no trabalho gerencial, o que se torna viável com poucas entrevistas em profundidade.
5 A realidade do trabalho compreende as condições de trabalho (pressões físicas, químicas, segurança, ritmo de trabalho e jornada), as relações de trabalho (laços humanos no trabalho) e a organização do trabalho (divisão de tarefas e de pessoas, hierarquia e controle). Os processos psíquicos mobilizados quando os sujeitos entram em relação com a realidade do trabalho podem ser as neuroses, psicoses, sofrimentos, doenças físicas e mentais, prazer, fadiga, alcoolismo, depressão e suicídio, conforme Dejours, Abdoucheli e Jayet, 1994.
6 Concordamos com Heloani e Lancman (2004, p. 80) quando defendem a escolha da pesquisa qualitativa no campo da Psicodinâmica do Trabalho, afirmando que "quando a pesquisa tem por objetivo descortinar os sentidos e significados que as pessoas utilizam ao se depararem com o mundo e o que se procura é a compreensão do fenômeno em sua totalidade, a opção pela abordagem qualitativa parece-nos a mais adequada".
7 Conforme Chiavenato (2003), os níveis administrativos considerados foram: institucional (nível mais elevado, responsável pelos planos estratégicos e controle geral da organização), intermediário (nível com os gerentes de meio de campo, que alinham as estratégias do nível institucional à operação da empresa) e operacional (nível administrativo mais baixo, responsável pela administração da execução de tarefas na empresa).
8 Embora reconheçamos que fazer o recorte de gênero poderia enriquecer o debate, optamos por não desenvolver análises nesse sentido, já que preferimos focar em outros temas e desenvolvê-los com um pouco mais de profundidade, respeitando os limites de páginas de artigo nesta revista. Além disso, pela pesquisa ter sido feita em uma cidade pequena, preferimos não correr o risco de que qualquer entrevistado pudesse ser identificado.
9 Não foi necessário solicitar aprovação ao Comitê de Ética visto que a pesquisa não implicou nenhuma realização de experiência com humanos. A instituição à qual pertencemos não exige aprovação do Comitê de Ética quando são feitas apenas entrevistas.
10 No que tange aos interesses desta pesquisa realizada, não percebemos nenhuma diferença importante que poderia decorrer do fato dos entrevistados estarem em seu local de trabalho ou na residência durante a entrevista.
11 Quando mencionamos a palavra "frieza", estamos nos referindo à impessoalidade que pode ocorrer nas relações de trabalho, especialmente num contexto de objetificação dos sujeitos e sequestro das subjetividades, associado aos modelos de gestão do Toyotismo, conforme Faria e Meneghetti (2007). Numa abordagem frankfurtiana, é possível ainda compreender a "frieza" como o não se importar com o outro, indiferença, não se envolver com os outros ou "não estar nem aí", conforme Gruschka (2014).

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