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Natureza humana

versión impresa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.2 São Paulo dic. 2003

 

ESTUDO DE CASO

 

Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica: a história de Vítor

 

The elements of pure masculine and pure feminine in the clinical setting: The Victor´s History

 

 

Cecilia Luiza Montag HirchzonI, II; Maria Cecilia Schiller Sampaio FonsecaI, III; Maria Lúcia de Toledo Moraes AmiralianIV

I Membro associado da SBPSP
II Membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientae
III Membro efetivo da SBPRJ
IV Docente do Instituto de Psicologia da USP e Doutora em Psicologia Clínica do IPUSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O propósito deste artigo é discutir os elementos masculino puro e feminino puro descritos por Winnicott como formas de "relações de objeto". Eles são elementos básicos para o "ser" e o "fazer", e uma condição primária para a vida criativa, considerada pelo autor como uma proposição associada à saúde. Em seu ponto de vista, a criatividade primária representa uma atitude em direção à realidade externa que resulta em ser e sentir-se vivo, em sentir que a vida vale a pena. É também opinião do autor que, embora o desenvolvimento das diferenças de gênero seja a chave para a constituição das identidades masculina e feminina, os elementos masculino e feminino puros devem estar presentes e integrados em todo ser humano. É discutido um caso clínico baseado sobre essas premissas, que se mostram muito úteis na compreensão da dinâmica do paciente.

Palavras-chave: Elemento masculino puro, Elemento feminino puro, Ser, Fazer, Mulher, Criatividade primária.


ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss the pure male and pure female elements described by Winnicott as forms of "objects relationships". They are basic elements for "being" and "doing", and a primary condition for creative living considered by the author a universal proposition associated to health. In his view, primary creativity, represents an attitude towards external reality that results in being and feeling alive, that is, in feeling that life is worth living. It is also author's opinion that, although the development of gender differences is a key to constitution of male and female identities, the pure male and female elements must be present and integrated in every human being. A clinical case is discussed based on these premises, wich proved very helpful in understanding of the patient's dynamic.

Keywords: Pure male element, Pure female element, Being, Doing, Woman, Primary creativity.


 

 

Winnicott coloca-se como um psicanalista preocupado especialmente com a compreensão do ser humano e seu processo de desenvolvimento. "Desenvolvimento é a minha especialidade", diz ele na palestra "Este Feminismo", de 1964, e é dessa maneira que se propõe compreender o caminho percorrido por homens e mulheres desde a concepção até a morte.

O eixo central de sua teoria é o processo de amadurecimento, a continuidade do ser. O seu foco é no aspecto sadio do desenvolvimento, onde considera até a morte natural "como a derradeira marca da saúde" (Winnicott 1988, p. 30). Saúde para ele significa não apenas ausência de doença, como algumas vezes é conceituada, mas sim uma condição que possui em si um aspecto positivo. O desenvolvimento inclui a compreensão das falhas e ausências que tanto podem impedir como propiciar que ele seja pleno.

Dentro desse processo de amadurecimento, escolhemos nos deter nos elementos masculino puro e feminino puro, que consideramos uma abordagem de grande originalidade na obra de Winnicott. A constatação da existência desses elementos ocorre numa sessão onde, após longo tempo de trabalho com um paciente, surge uma situação inusitada.

Relata que esse paciente, apesar de sucessos em sua vida e outras análises anteriores, não se sente satisfeito. Continua na análise atual em busca de algo que ainda não encontrara.

A sessão a que se refere passa-se em torno da "inveja do pênis", como se fosse vivida por uma menina e não por um homem adulto, casado e com uma vida profissional ativa. Isso surpreende Winnicott, que se vê interpretando "Estou escutando uma garota. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou escutando uma garota e falando com uma. Estou lhe dizendo: você está falando sobre inveja do pênis". Enfatiza que isso não tem nada a ver com homossexualidade (Winnicott 1989a, p.135).

O paciente responde aliviado: "Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa garota seria chamado de louco". Ao que Winnicott responde: "Não é que você tenha contado isto a alguém; sou eu que vejo uma garota e escuto-a falar, quando na verdade há um homem em meu divã. O louco sou eu".

O alívio provocado era devido a haverem chegado, na transferência, a uma vivência que acompanhava o paciente por toda a sua vida. Era por tocar numa cisão que muito cedo se estabelecera dentro dele, na busca de ajustar-se a uma expectativa de sua mãe. Esta havia desejado que ele, seu segundo filho, fosse menina e o havia visto e tratado como tal. Essa situação tão precoce o levou a incorporar a "loucura da mãe", mantendo essa cisão quase total entre ser menino e menina, sentindo-se "louco". Quando Winnicott assume e traduz a loucura da mãe, provoca o alívio mencionado e novos rumos na condução de sua análise.

Encontra-se então Winnicott diante da tarefa de procurar entender e elaborar o que se passara, já que havia se deparado com algo novo, que não tinha pensado até então e que não tinha nenhuma referência em outros autores. A partir daí começa a formular suas idéias sobre o que seriam esses elementos feminino e masculino puros.

Afirma que não é um conceito novo na psicanálise a idéia da predisposição para a bissexualidade: existem elementos masculinos e elementos femininos em todo ser humano. A originalidade de seu pensamento está na concepção de elemento feminino puro e elemento masculino puro como modalidades de relação de objeto, definindo-as como independentes da pulsão, tal como esta é entendida nos textos freudianos.

É importante ressaltar que a teoria de desenvolvimento de Winnicott não se apóia na teoria da libido, como proposta por Freud. Ele interpreta a teoria da sexualidade sob outras luzes e propõe um novo paradigma à psicanálise (Loparic 1996). Winnicott apóia-se no amadurecimento pessoal, em que contempla como aspectos fundamentais as tarefas de constituição do si mesmo (self ) e de sua interação com o ambiente.

Há uma tendência inata denominada continuidade do ser, espécie de mola propulsora, que permite ao ser humano percorrer um caminho que o impele de uma dependência absoluta à busca da independência.

Winnicott parte da concepção de que no início da vida há uma dependência absoluta, em que o bebê não se diferencia do seio: ele é o seio. Embora, do ponto de vista do observador externo haja a mãe e seu bebê, do ponto de vista do bebê, o que existe é uma unidade existencial: o bebê é o seio que o alimenta, o colo que o sustenta, as mãos que o acariciam. É o mundo do objeto subjetivo, onde ainda não se constituiu a externalidade. Nas primeiras mamadas não há diferença entre o eu e o não-eu, há um estado de indiferenciação.

Para que o bebê vá prosseguindo o seu caminho em direção à independência, é necessário que a mãe apresente repetidamente o seio, de uma forma a que Winnicott se refere como "monótona", ou seja, repetitiva, mas com prazer (não insípida). Essa situação propicia ao bebê a possibilidade de criar esperança, de ter confiança, de poder acreditar no mundo, o que permite a crescente separação e a vivência da sua dependência. A mãe que está à disposição de seu bebê, permitindo que ele seja, estaria vivendo esse tipo de relação de objeto chamada elemento feminino puro: ambos estão sendo.

Nesse momento há a identificação primária do bebê com sua mãe e a identificação com aquela que é abre caminho para a constituição do si mesmo e do sentimento do real. A identidade com o elemento feminino puro é condição fundamental para todas as identificações futuras que ocorrem na vida de cada um.

A partir do ser, o bebê pode ir fluindo no seu continuar a existir, dando seqüência às tarefas do processo maturacional. Há um emergir do si mesmo (self) e do sentido de identidade primária. Nessas primeiras relações o bebê vive a ilusão de onipotência e a mãe suficientemente boa coloca o que o bebê cria no lugar e no tempo em que necessita. O bebê sente-se um deus criando o mundo. Os fatos do mundo vão adquirindo sentido para ele, preparando para, gradativamente, ir suportando a desilusão, a frustração de que o mundo existe antes de tê-lo "criado". Essa atitude da mãe permite que a experiência primária de criação vá sendo internalizada, constituindo-se numa fonte interna do viver criativo.

O bebê começa a perceber a distinção entre o eu e o não-eu; o ego mais organizado, que se diferencia e se separa pode agora pôr em ação o elemento masculino puro, que é ligado ao fazer. É o fazer emergindo do ser primordial. Como diz Winnicott: "Após ser - fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo" (Winnicott 1971g, p.120). Estamos falando de criatividade como Winnicott a considerou: uma proposição universal ligada à saúde, significando uma atitude em relação à realidade externa que implica estar vivo, ou seja, um sentimento de que a vida vale a pena ser vivida.

Em "Vivendo de modo criativo", uma das suas últimas conferências (1970), ao definir criatividade, o autor afirma:

Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e ter um sentimento de existência, não da forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica, a partir da qual operar.

Em conseqüência, a criatividade é o fazer que emerge do ser, que indica que aquele que é, está vivo. (Winnicott 1986h, p. 31)

Diferencia essa criatividade da criação de obras de arte, sendo esta uma forma mais elaborada, diferenciada. Esse ato criativo, próprio do artista, tem uma especificidade que foge ao nosso tema neste momento. Para existir a criatividade, o elemento feminino puro seria o primordial, próprio da fase de fusão com a mãe.

Essa abordagem é diferente de outras teorias psicanalíticas, nas quais a origem da capacidade criativa se situaria em estágios e mecanismos mais avançados de desenvolvimento mental. Para Freud, a capacidade criativa seria uma sublimação de pulsões instintivas que não podem se realizar como tais. Para Melanie Klein, seriam reparações de aspectos agressivos ligados à culpa na posição depressiva. Em Winnicott, a criatividade tem a característica de ser primária, constitutiva, determinante de saúde e amadurecimento.

Retomando a questão do fazer, temos que falar dos instintos, pois o elemento masculino puro não só se apóia, mas pede ação mobilizada pelo instinto. A partir do momento em que começa a experienciar os instintos como próprios, vê-se o ser humano diante de uma nova tarefa, que é como lidar e integrar ao si mesmo (self) a vida instintiva. Essa vivência no próprio corpo, assim como as diferenças biológicas dos sexos, tem papel fundamental. As diferenças anatômicas e hormonais entre os sexos são obviamente determinantes de como será o contato, tanto com a sexualidade em si, como com o mundo. Ao seguir o seu curso começam a aparecer as diferenças relativas ao gênero: características mais marcadamente masculinas ou femininas. É um tema importante para futuras reflexões.

Nos primórdios do desenvolvimento, o bebê não precisa atender às suas necessidades, pois a mãe é quem vai atendê-las. À medida em que vai amadurecendo, o si mesmo (self), agora mais definido, o Ego já com a função que diferencia o eu do não-eu, vai sendo capaz de sentir as necessidades como próprias, buscando atendê-las. Quando há falhas nesse processo, surgem dissociações entre o sere o fazer. Uma das conseqüências é a perda do viver criativo, o "si mesmo" (self) passando a ser aquele que está sempre respondendo e se adaptando à realidade externa, em detrimento do "si mesmo" (self) verdadeiro.

Outro conceito de grande utilidade clínica, próximo a este, apontado por Winnicott no processo de amadurecimento e separação, foi observado no caso clínico de Vítor, relatado adiante. Winnicott afirma que, apesar da dessemelhança entre os sexos, há uma semelhança básica em relação à questão primordial da dependência absoluta, que o leva a propor "um fenômeno separado que denominamos Mulher... que é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher" (Winnicott 1986g, p. 150).

Podemos agora refletir sobre a questão da diferença entre os sexos, partindo de como cada um deles vai elaborar essa dependência absoluta de uma mulher. Isso é de fundamental importância para o desenvolvimento da identidade de cada sexo. O homem, para ser "si mesmo" e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher, de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação - pode manter-se identificada com essa Mulher.

Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora.

Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem - sua condição básica é a de ser um: o provedor, aquele que faz. É uma função que ocupa tanto no âmbito familiar, quanto social e profissional: tudo se agrupa em torno desse fazer/ prover.

Já podemos observar no menino as brincadeiras mais ligadas ao lutar, brigar, competir - atividades ligadas à ação - enquanto nas meninas, elas se expressam nos diferentes papéis associados ao ser: ser mãe, ser filha, ser mulher. A título de ilustração, poderíamos usar como metáforas: para a mulher, um caleidoscópio, com constantes rearranjos; e, para o homem, a figura geométrica de um poliedro, que mesmo mostrando os diferentes lados, mantém a mesma configuração.

Apesar dessas diferenças, o elemento feminino puro e o elemento masculino puro têm que estar presentes e integrados em todo ser humano, homens e mulheres que, como já dissemos, é a condição primordial do viver criativo.

 

Com um pé em cada canoa

Passaremos a discutir o caso clínico de Vítor, em que esses conceitos se mostram elucidativos no entendimento da sua dinâmica.

Vítor é um homem de 48 anos, que é atendido há aproximadamente seis anos. Profissional liberal, intelectualmente brilhante, exerce o seu trabalho em duas especialidades distintas, sobressaindo-se em cada uma delas.

Está em seu segundo matrimônio e, entre os dois, teve múltiplos relacionamentos. Tem um filho de 13 anos do primeiro casamento, que mora com a mãe, com o qual convive minimamente, em razão "das múltiplas atividades em que me envolvo" (sic).

É o primogênito de uma prole de cinco filhos, seguindo-se a ele três irmãos e uma irmã caçula. Sempre foi o preferido da mãe, que exerce a mesma profissão que a dele. Com o pai, pessoa bem-sucedida do ponto de vista financeiro, atualmente aposentado (e por isso desvalorizado pela esposa, que continua ativa em sua profissão), vem se dando cada vez melhor: aproxima-se afetivamente, mas sofre muito ao ver sua decadência física.

O relacionamento familiar é visto como muito ruim: a mãe, figura dominante na família, sempre se considerou infeliz no casamento, mostrando-se eternamente carente e queixosa; ocorrendo o mesmo sentimento também em relação aos filhos.

Desde o início da análise, Vítor dá sinais de seu talento e competência. Domina vários idiomas e é freqüentemente convidado a participar de congressos, tanto no Brasil, quanto no exterior, nos quais se sai invariavelmente bem. Desempenha também uma carreira acadêmica em que vem galgando rapidamente os diferentes escalões.

O exercício de sua profissão sempre foi desdobrado em vários segmentos paralelos, aos quais dedica concomitantemente um esforço desmesurado. O tema de estar "com um péem cada canoa" é um assunto que se apresenta desde o início do contato com a analista e tem sido abordado sob muitos vértices.

No relacionamento com a analista, vem desenvolvendo um contato cada vez mais próximo e afetivo, que foi tomando o lugar de uma atitude inicial reticente, desconfiada e arrogante. No entanto, ainda temeroso dessa aproximação, ausenta-se com freqüência. Ao mesmo tempo, sempre solicita reposições de horário, procurando adaptar a terapeuta às suas necessidades. Apresenta aspectos de sedução e manipulação, procurando colocá-la no papel de espectadora que o admire e aplauda. Hoje esses comportamentos podem ser entendidos como formas de testar e se reassegurar do interesse por ele. Embora sejam reconhecidos progressos na vida de Vítor, esses aspectos mostram-se praticamente imutáveis.

A preocupação com a saúde do pai tem se acentuado, revelando projetivamente, através dele, aspectos seus, de fragilidade e decadência, que o apavoram. A busca incessante pelo sucesso apresenta-se freqüentemente como antídoto a essa percepção, num círculo vicioso que o aprisiona progressivamente. Preso na imensa teia que tece para si mesmo, avaliando-se através de níveis de realização extremamente rígidos, exterioriza cada vez mais essa exigência implacável consigo próprio.

A analista se vê, nesses momentos, vivenciando sentimentos de incapacidade que, à semelhança de Vítor, mostram a inundação de impotência e, por vezes, de uma certa irritação em que os dois submergem. Essa identificação que de início confunde, vai aos poucos se tornando mais clara e se dissipando.

É nesse contexto que são colocadas as seguintes questões: "Vítor, estamos fazendo este trabalho há tanto tempo. Por que será que em toda sessão você me conta suas proezas no trabalho, suas façanhas com todas essas mulheres? Será que você acha que eu ainda não sei disso e por isso precisa repetir pra eu registrar? O que será que tenta provar com isso? Por que será que o nosso trabalho não muda essa situação?"

A partir dessas considerações, apresentaremos momentos de sua análise que ilustram alguns aspectos que pretendemos discutir.

Na sessão que se sucede à comunicação dessas questões, Vítor está na porta esperando, o que é surpreendente, pois habitualmente se atrasa. Sobe a escada e já vai falando: "Não dormi esta noite", e, ao sentar no divã, em tom irônico: "é porque a minha família é muito especial".

- Especial?

- É. Meu pai teve um problema cardíaco, está com anemia e teve que se internar no hospital - passei a noite com ele e não pude dormir. (Conta a seguir que tanto a mãe quanto os irmãos não tomaram nenhuma providência até sua chegada). Quando cheguei, vi que tinha que levá-lo ao hospital imediatamente.

Sua forma de falar é mais fluente e espontânea do que a habitual: está mais livre e não é sentida pela analista a necessidade de aplausos de sua parte, que tem caracterizado grande parte dessa relação. Pensamos que, no momento em que é reconhecida e comunicada a situação de cumplicidade, é vivenciada uma maior discriminação entre a analista e o paciente. Pode ser mais espontâneo e perceber-se melhor - ser si mesmo.

A falta de liberdade é uma característica de Vítor. Ela manifesta-se no estar sempre tendo que fazer coisas. Esse fazer tem um duplo aspecto: ao mesmo tempo em que traz realizações, sente-se "especial", sente-se submetido ao peso da responsabilidade não compartilhada e à conseqüente sensação de aprisionamento - não pode ser si mesmo.

Em outro momento dessa mesma sessão, quando esse tema vai sendo trabalhado, fala sobre o modo de se tornar notável / ser notado em sua família: "(...) a Geni (irmã caçula) é muito complicada: muito frágil, tinha mais dificuldade no relacionamento com a minha mãe. Mas eu vou te dizer uma coisa: todos os irmãos teriam ficado como a Geni. Eu só me saí bem porque me defendi: procurei ser o melhor em tudo (pensativo). É, mas isso custou muito e ainda custa... Sabe o que aconteceu ontem?" Comenta a seguir o clima tenso de uma reunião do congresso que está organizando, à qual, apesar do pai doente, teve de comparecer, dando ênfase a aspectos seus de eficiência na resolução de problemas. Faz uma pausa e começa a falar de Norberto, um amigo, presidente de uma empresa - que foi mandado embora e pelo telefone.

O fazer torna-se para ele uma exigência implacável: o único modo, a seu ver, de ter assegurado o seu lugar na família e, talvez, hoje, no mundo. Só tem lugar produzindo, às custas muitas vezes de se ausentar de si mesmo, das suas emoções.

Não pode sofrer pelo pai doente, não pode estar quieto, recolhido, vivendo os seus sentimentos: não pode ter o repouso do ser.

Não tem opção: é o "melhor" ou "é mandado embora e pelo telefone". Com isso, o senso do existir que busca alcançar escapa-lhe continuamente, torna-se o executor de si mesmo e passa a ser vítima de um processo em que até a própria criatividade traz angústia, porque está basicamente a serviço do outro.

Falando ainda do seu trabalho, diz:

- É, o Daniel diz que o Sacep (uma sociedade profissional que Vítor dirige) não dá certo porque eu não tô lá - passo por lá como um raio. Ainda agora vou para uma reunião pra discutir 200 trabalhos que já foram enviados pro congresso. Vamos ter que ler todos para escolher quinze deles.

Ao vê-lo novamente enchendo-se de atividades, é colocada a questão: "E por que, além de organizar, também tem que selecionar os trabalhos?"

- "Porque é uma equipe, porque são 12 pessoas que eu convidei! É que na comissão de seleção tem muitos que mandaram trabalhos... (com um ar de descoberta). Eu posso dizer que os trabalhos deles vão ser mandados junto com os melhores - que essa é a vantagem de estar na seleção!"

Produz incessantemente, produz na expectativa de não precisar do outro, mas esse objetivo parece se esgotar dentro dele. Sobrecarrega-se e precisa de reconhecimento. Precisa do outro para restaurar a sua autovalorização. Isso põe em marcha um círculo vicioso que não pode parar. Parar seria abrir espaço para a relação afetiva, para a relação de dependência.

Procura livrar-se do sentimento de dependência e se autobastar; mas, ao se colocar no papel de provedor, cria vínculos em que os outros se tornam dependentes de si e continua a se sentir aprisionado, evidenciando comportamentos que na verdade funcionam como se fossem dois extremos num mesmo contínuo.

A questão da dependência é, a nosso ver, nuclear em Vítor e causa de permanente angústia nas relações interpessoais. No relacionamento com as mulheres, isso aparece com clareza: são muitas, mas não pode estar com nenhuma, mantendo relações fragmentadas e superficiais.

Falando do papel da esposa em sua vida afirma: "Ela é a âncora - a âncora é aquela que segura o navio no chão. Se ela não está, o navio fica à deriva, mas também pode ir para vários lugares. Ela também é importante: o barco à deriva pode pegar maremotos, se perder (pausa). Sabe, ontem peguei um negócio e fiquei com a mão melada. Eu detesto - acho que não gosto de grude em mim... Outro dia ela disse que achava que eu não gosto dela e foi justamente quando lhe dei um colar".

Refletindo sobre o que ele diz, a analista coloca a questão de se teria dado o colar porque gosta dela. Responde não saber e fica pensativo. É proposta então a idéia de que, se admitir que gosta, vai se ligar muito e aparecer o seu grande temor da dependência, que o leva a estar sempre com múltiplos relacionamentos, ao que responde:

- "Mas assim não é melhor? Tenho três mulheres!"

Procura se sair triunfante fugindo do enfrentamento do seu grande impasse ante a dependência. Ao perceber, a analista pensa que ele mesmo não acredita em suas próprias palavras e pergunta: "Ou será que teme não ter nenhuma?".

Suas relações afetivas são marcadas por intensas dificuldades: tem poucos amigos. Com os homens, ressente-se da pouca proximidade, sendo que esta se estabelece prioritariamente no plano profissional. Com as mulheres, apesar de buscar estar cercado por elas, seu relacionamento é sempre oscilante e compartimentado - aproxima-se e afasta-se. Usa aspectos diferentes seus com cada uma - ora é o amante, ora é o conselheiro sentimental ou o mentor profissional. A sedução e o desejo de tornar os outros dependentes de si passam a ser recursos a serem usados reativamente, na tentativa de controle, principalmente das pessoas do sexo feminino. Todas essas defesas, porém, revelam-se inócuas, na medida em que não preenchem as suas reais necessidades e o prendem cada vez mais na armadilha de suas próprias manobras.

Quando a ligação é mais estável, como no casamento, aparece de modo claro uma alternância entre a dependência absoluta e o medo da dependência. Precisa estar com a mulher, mas mantêm outras para prevenir um possível abandono e desamparo ("quando me separei, quase morri").

Estar só lhe é insuportável. Se a esposa se ausenta, tem que procurar estar com outra ou preencher-se com alguma atividade de imediato. Exercita essa mesma atitude na relação com a analista, atribuindo a ela uma função mágico-protetora: "Quando você sai de férias, tudo de ruim acontece comigo". É a repetição da função âncora - se a analista se ausenta, fica à deriva. Quando volta, tende a faltar, precisando ser procurado para retornar às sessões. É uma nova repetição, em que procura fugir da dependência, sentida intensamente no período de ausência.

Considerações finais

Retomando alguns aspectos da introdução deste trabalho, relacionados ao caso clínico, gostaríamos de tecer mais alguns comentários, que exporemos a seguir.

Levantamos a hipótese de que, nos primeiros contatos com a mãe, houve algum desencontro importante, deixando lacunas no processo de integração de Vítor. Isso nos leva a pensar num estado de angústia materna presente nos momentos iniciais da vida desse paciente, o que teria dificultado a disponibilidade dessa mãe para com ele.

Não podendo ser reconhecido e cuidado suficientemente nas suas necessidades básicas, Vítor teria sido perturbado na sua possibilidade de ser. Não pôde se ver no olhar da mãe. Como não houve esse encontro, Vítor precisou passar a encontrar a mãe. Pelo que aparece em seu material clínico, viu-se diante de uma figura materna exigente, sempre queixosa e que também teve que ser compartilhada com os irmãos que o sucederam, precisando muito cedo se mostrar "o melhor em tudo", o mais especial. As falhas ambientais precoces, provavelmente, não deram a ele condições de surgimento do verdadeiro si mesmo(self). Nessas condições desenvolveu um falso self, com ênfase nos aspectos intelectuais, proporcionando-lhe uma carreira de sucesso, que o gratifica e dá reconhecimento profissional.

Observando mais profundamente o seu comportamento, podemos verificar que, por mais que desempenhe tarefas importantes e preencha a sua vida com atividades, está permanentemente insatisfeito: adia indefinidamente a escolha entre duas especialidades profissionais paralelas que exigem dedicação integral; tenta manter com o sexo oposto vínculos afetivos que se superpõem.

Dissociado muitas vezes, ele se relaciona através de partes de um si mesmo que busca partes do outro. Tem como característica a ambigüidade, o estar sempre "com um pé em cada canoa". Quer cuidar de tudo e de todos. Isso faz com que seja muito produtivo, mas não podendo viver criativamente. Na tentativa de ser, busca preencher o seu vazio através de um fazer hiperativo, que se frustra permanentemente, seja trabalhando de uma maneira incansável, seja relacionando-se com várias mulheres.

Com estas, a sua grande dificuldade parece localizar-se na questão da dependência, o que nos leva a evocar o fenômeno que Winnicott denomina Mulher, referido na introdução do nosso trabalho, isto é, "a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher" (Winnicott 1986b, p.150).

Para desenvolver uma identidade própria, Vítor precisou dissociar e se opor aos seus aspectos femininos, que passaram a ser projetados maciçamente nos relacionamentos parciais com as diversas mulheres. Essa parece ser, primordialmente, a sua forma de exorcisar o fenômeno Mulher, a dependência absoluta dos primeiros momentos de vida e que parece ameaçá-lo principalmente nas suas relações com o sexo feminino.

Nessas condições, a integração dos elementos masculino e feminino, acenaria nesse paciente com a possibilidade de um contato mais verdadeiro consigo mesmo.

Acreditamos que estudar a problemática de Vítor à luz dessa condição básica do ser humano - ser e fazer -, introduzida por Winnicott, propicia novos vértices na sua compreensão.

 

Referências

Abram, Jan, 2000 [1996]: A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro, Revinter.        [ Links ]

Loparic, Zeljko 1996: "Uma Psicanálise não edipiana", in Percurso - Revista de Psicanálise, ano IX, vol. 17, 2º sem.        [ Links ]

Winnicott, Donald W 1971a: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.        [ Links ]

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____ 1986b: Tudo começa em casa. São Paulo, Martins Fontes, 1996.        [ Links ]

____ 1986g: Este feminismo, in Winnicott 1986b.        [ Links ]

____ 1986h: Vivendo de modo criativo, in Winnicott 1986b.        [ Links ]

____ 1988: Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.        [ Links ]

____ 1989a: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.        [ Links ]

 

Endereço para correspondência
E-mail: mltma@usp.br

Recebido em 5 de agosto de 2002
Aprovado em 24 de agosto de 2003