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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005
ARTIGOS
A realidade como questão em Heidegger e Winnicott
Reality as a question in Heidegger and Winnicott
Caroline Vasconcelos Ribeiro*
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO
Com este artigo pretende-se investigar como, para Heidegger, o problema da realidade é colocado sem recurso tradicional à intuição interna, ou seja, não é colocado em moldes metafísicos, mas retomado como problema ontológico a partir da analítica existencial do Dasein. Pleiteia-se, também, apontar o quanto a psicanálise winnicottiana nos lega uma forma não metafísica de entender a experiência humana, na medida em que não a reduz a um campo de relações pulsionais entre objetos internos e externos, em que não entende a representação como única forma de acesso à realidade. A intenção é, então, investigar como o problema da constituição da realidade se impõe como questão necessária, tanto na crítica winnicottiana à metapsicologia quanto na crítica heideggeriana à metafísica.
Palavras-chave: Heidegger, Winnicott, Realidade, Metafísica, Metapsicologia.
ABSTRACT
With this article we intend to investigate how for Heidegger the problem of the reality is considered without the traditional resource to the internal intuition, that is, it is not considered in metaphysical aspects, but reassumed as an ontological problem according Dasein's Existential Analysis. Still, we plead as well to point how much Winnicott's psychoanalysis give us a non-metaphysical way to understand the human experience, once it doesn't reduce it to a field pulse relations between internal and external objects, in which the representation is not understood as the only access way to reality. We intend then, investigate how the problem of the constitution of the reality imposed as necessary matter in the Winnicott's criticism to metapsychology and in Heidegger's criticism to metaphysics.
Keywords: Heidegger, Winnicott, Reality, Metaphysical, Metapsychology.
O problema ontológico da realidade é explicitamente tematizado no §43 do tratado Ser e Tempo (1927), não por acaso intitulado "Dasein, mundanidade e realidade".No parágrafo em questão, Heidegger propõe a investigação dos seguintes temas: a) Realidade como problema do ser e da possibilidade de comprovação do mundo "externo"; b) Realidade como problema ontológico; c) Realidade e Cuidado (Sorge). Ao desenvolver tematicamente esses tópicos, o filósofo articula a discussão ontológica acerca da realidade com a crítica à tradição metafísica no que diz respeito ao acesso (conhecimento) do mundo externo e à própria concepção de mundo como objeto da representação. Uma vez confeccionada essa tarefa, resta-lhe pensar a realidade no interior da analítica do Dasein,1 visando comprovar que "realidade não é apenas um modo de ser entre outros mas que, ontologicamente, acha-se num determinado nexo de fundamentação com Dasein, mundo e manualidade" (Heidegger [2001, p. 201] 1995, §43 p. 267).2
Winnicott, por sua vez, reivindica a necessidade de se travar uma discussão acerca dos vários sentidos de realidade no capítulo de Natureza humana (1988) intitulado "Desenvolvimento emocional primitivo", mais especificamente no tópico "A filosofia do `real'".Quanto aessa tarefa, alerta-nos - em Da pediatria à psicanálise (1958a, p. 227) - que se trata de uma "questão de dimensões colossais". A magnitude dessa tarefa deve-se ao fato de que, para Winnicott, a relação com a realidade não é algo previamente garantido, mas se configura como aquisições conquistadas ao longo do amadurecimento humano, tendo, em cada momento, sentidos diferentes. Na medida em que a relação com o real não se dá de maneira unívoca, a questão da realidade na psicanálise winnicottiana é levantada levando em conta estágios primitivos do acontecer humano nos quais o acesso representacional não está garantido. Sobre este aspecto, Loparic acrescenta:
Tudo se passa, portanto, como se, em Winnicott, a realidade, tanto a do objeto como a do sujeito, estivesse posta em questão, como se o real em geral deixasse de ser acessível, "dável" de uma maneira unívoca. Tentemos explicar melhor essa idéia. No início da vida humana, os objetos reais não estão lá para serem representados e amados ou odiados, isto é, acessados por relações cognitivas e apetitivas. Essas relações pressupõem, diz Winnicott, mecanismos mentais de que um lactente não dispõe. (Loparic 1995, p. 52)
Visto que a psicanálise winnicottiana não toma como óbvia uma constituição psíquica que, necessariamente, estabelece relação com a realidade representável, colocar o problema da realidade implicará lançar mão de uma teoria que não está contemplada pela metapsicologia tradicional. A esse respeito, afirma Dias:
Tendo fundado seu campo de reflexão na dinâmica interna do psiquismo e dando por suposto o sentimento de real e a capacidade para o estabelecimento de relações com a realidade externa, restava apenas analisar a qualidade pulsional das relações e não a sua existência e a realidade, assim como a existência e a realidade do bebê e do mundo externo.[...] A história, para a psicanálise tradicional, é a do desenvolvimento das funções sexuais, tendo como enredo básico o complexo de Édipo. Para Winnicott, contudo, há uma pré-história na qual o pequeno indivíduo, que já é um ser humano passível de ser afetado pelo ambiente, ainda não chegou a si. (2003, p. 82)
A partir do exposto anteriormente, pode-se afirmar que, no pensamento de Winnicott e de Heidegger, a colocação da questão da realidade implica tanto uma discussão com a tradição quanto a re-colocação do problema no interior de uma nova teoria, no âmbito de um novo olhar sobre as relações estabelecidas entre o ente humano e a realidade. Mesmo que em Heidegger a questão seja fundamentalmente ontológica e em Winnicott esses problemas sejam pensados na esfera da psicanálise (uma ciência ôntica), pretende-se apontar aqui que, para esses dois pensadores, o problema da constituição da realidade se impõe como questão necessária, uma vez que entendem que as trocas estabelecidas entre o homem e o mundo não se restringem ao campo da representação, dos atos psíquicos. Nesse sentido, nosso texto pretende seguir a seguinte linha investigativa: 1. o problema ontológico da realidade em Heidegger e a crítica à tradição metafísica; 2. a "re-colocação" do problema da realidade a partir da constituição fundamental do Dasein, desde o fenômeno do ser-no-mundo; 3. a crítica heideggeriana à metapsicologia freudiana; 4. a realidade para a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal e os limites da metapsicologia.
O problema ontológico da realidade em Heidegger e a crítica à tradição metafísica
Apesar de a problematização explícita acerca da realidade aparecer no tratado de 1927 apenas no §43, não podemos afirmar que antes desse momento esse tema não havia sido abordado nessa obra. Se, para Heidegger, levantar a questão ontológica sobre a realidade implica investigar nossos modos de lidar com o mundo, com o intuito de assegurar qual desses modos é o mais originário, podemos dizer que o problema da realidade perpassou toda a tarefa empreendida ao longo dos parágrafos anteriores, qual seja, a tarefa de estabelecer a constituição do Dasein como ser-no-mundo, tendo como guia os encontros estabelecidos com o ente intramundano, o ser-com-os-outros e consigo mesmo.
Heidegger ([2001, p. 202] 1995, §43 p. 268) enfatiza que, para colocar explicitamente o problema da realidade, a discussão deve atrelar-se, necessariamente, ao problema do "mundo externo", visto que "somente com base num acesso adequado ao real é que se faz possível uma análise da realidade". Porém, convém perguntar: como a tradição metafísica ateve-se a essa questão? Em outros termos: qual é, para essa tradição, o modo fundamental de acesso ao real? No §43, Heidegger responde categoricamente que, "desde sempre, o conhecimento intuitivo foi considerado o modo válido de apreensão do real" (id.).
Nessa assertiva observa-se que Heidegger usa a expressão "modo válido de apreensão", enfatizando, assim, que essa tradição não levanta a questão sobre os modos de acesso ao real, mas sobre o modo válido, cuja função é validar e assegurar, mediante apresentação de provas, a comprovação da existência do "mundo externo". Em conseqüência disso, a problemática filosófica passa a girar em torno da questão da "prova da presença das coisas fora de mim" e do modo como este "mundo externo" se re-apresenta na consciência.
No §13 de Ser e Tempo Heidegger diz que desde a perspectiva tipicamente moderna, sempre está pressuposto um "em mim" e um "fora de mim". Sendo assim, podemos entender por que o problema da realidade para essa tradição reverbera, de maneiras variadas, as questões: "como é que este sujeito que conhece sai de sua `esfera' interna e chega a uma outra `esfera'externa? [...] como se deve pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecer, sem precisar arriscar o salto numa outra esfera?" ([2001, p. 60] 1995, p. 99).
É nesse clima de dilemas epistemológicos que Kant denuncia o "escândalo da filosofia e da razão humana em geral", qual seja, o fato de não se dispor de uma prova definitiva, capaz de garantir a certeza da existência das coisas fora de nós. Contudo, para Heidegger, o escândalo da filosofia não "reside no fato dessa prova ainda não existir e sim no fato de sempre ainda se esperar e buscar essa prova". Segundo ele, "tais expectativas, intenções e esforços nascem da pressuposição, ontologicamente insuficiente, de algo com relação ao qual um `mundo' simplesmente dado deve-se comprovar independente e exterior" ([2001, p. 203] 1995,§43 p. 271).
Ora, nesse modo gnosiológico de colocar a questão da realidade (de apreensão do real) está pressuposta a idéia de mundo como algo simplesmente presente, dado exteriormente a mim e substancialmente diferente de mim. Essa substância diferente e externa ao meu eu é denominada por Descartes res extensa, visto que a extensão é a atribuição primordialmente necessária à substância finita, corpórea. Como, então, seria a via de acesso adequada para o "que, enquanto extensio, Descartes identifica com o ser do `mundo'?" ([2001, p. 95] 1995,§21 p. 142). Heidegger responde:
A única via de acesso autêntica para esse ente é o conhecimento, a intelectio, no sentido do conhecimento físico-matemático. O conhecimento matemático vale como modo de apreensão dos entes, capaz de propiciar sempre uma posse mais segura do ser dos entes nele apreendidos. Em sentido próprio só é aquilo que tem o modo de ser capaz de satisfazer ao ser acessível no conhecimento matemático. Este ente é aquilo que sempre é o que é; por isso ao experimentar o modo de ser do mundo, o que constitui seu ser propriamente dito é aquilo que pode mostrar o caráter de permanência constante (...). (Id.)
Consoante a citação acima, podemos dizer que, no modo moderno de ater-se ao real (inaugurado por Descartes), algo só é um ente na medida em que é representado por um intelectio nos moldes do conhecimento físico-matemático. Sendo assim, a "coisa" presente se "a-presenta" para um representar e somente para isso. O cogito é a força de representação, de "re-apresentar" tudo o que se mostra e se apresenta lançado diante do sujeito. Isso que se apresenta e se opõe ao sujeito é, por sua vez, denominado objeto. O sujeito (intelectio) é visto, portanto, como o fundamento de compreensão da realidade, transformando a certeza no critério de verdade, quer dizer, na medida do real.3
No pensamento moderno, a objetividade torna-se a via de acesso ao que se apresenta, ao que se mostra como real. Não importa o viés epistemológico em que se pensam as relações sujeito-objeto, sujeito-mundo; o que se mantém nas diversas direções epistemológicas é a pressuposição da existência prévia de um sujeito desmundanizado e do mundo como ente físico-matemático. Esse modo de apreensão do real não se restringe apenas a representá-lo como objeto, pois, uma vez que a física de Galilei instituiu o entendimento da natureza "como uma ininterrupta conexão de movimentos e pontos de massa" sujeita a leis universais, o real que se apresenta ao sujeito passa a ser algo passível de mensuração, manipulação e cálculo (Heidegger [1987, p. 265] 2001, p. 225).4 Sendo assim: "O que se pode calcular de antemão, antecipadamente, o que pode ser medido é reale apenas isso" ( Heidegger [1987, p. 23] 2001, p. 47).
O estatuto de realidade só é delegado àquilo que é objeto de uma representação calculável e mensurável; assim, através da emissão de juízos verdadeiros, o sujeito irá determinar o que é o real, isto é, os entes, atendo-se a estes, enquanto objetos, com o intuito de manipulá-los e dominá-los, tornando-se mestre e possuidor da natureza.5
A essa "dis-posição" (Befindlichkeit) moderna em relação ao real subjaz a concepção de que o pensamento - e por que não dizer, a ciência - torna-se a fonte hegemônica de desvelamento da verdade. Mais que isso, ao impor o conhecimento representacional como única via de acesso ao mundo, a ciência "consegue fazer valer o seu propósito de oferecer e administrar a verdade sobre o verdadeiramente real" (Heidegger, [1987, p. 123] 2001, p. 121).
Entretanto, vale perguntar: será mesmo o conhecimento a primeira via de acesso ao mundo, ao real? Será que o problema da realidade deve ser colocado exclusivamente no campo epistemológico das relações sujeito-objeto? Será que toda relação do ente humano com o mundo se reduz ao pólo do sujeito desmundanizado que objetifica um "mundo externo" previamente constituído?
Tais indagações nos encaminham ao segundo tópico deste texto.
A "re-colocação" do problema da realidade a partir da constituição fundamental do Dasein, desde o fenômeno do ser-no-mundo
No segundo capítulo de Ser e Tempo, Heidegger imbui-se da tarefa de pensar o ser-no-mundo como a constituição fundamental do Dasein, visto que a analítica existencial deste ente que nós mesmos somos é tarefa preliminar para alcançar o desiderato final de seu projeto: a interpretação do tempo como horizonte possível para toda e qualquer compreensão do ser em geral ([2001, p. 1] 1995, p. 24). A analítica existencial visa à investigação dos modos de ser do Dasein, isto é, seu modo de existir, suas estruturas existenciais, opondo-se e distinguindo-se da ontologia clássica, que circunscreve como âmbito legítimo de investigação a atribuição de categorias como via de acesso à natureza essencial daquilo que permanece como substrato imutável em tudo que é "simplesmente dado" (Vorhanderheit).
Ora, se a tradição busca algo substancial e estático, deve interpelar os entes que não tenham o modo de ser do Dasein, afinal este ente que nós mesmos somos não é algo invariante. Enquanto este ente existe em perpétua "atividade" de "ter que ser", os entes simplesmente dados apenas subsistem como coisas inertes, acabadas. Diante de tal modo de ser, somos convidados a reconhecer que não há uma substância humana confeccionada e acabada; portanto, estamos diante de um ente precário que a todo instante tem que escolher esta ou aquela possibilidade de ser.6
Daí afirmar-se que o Dasein é aquilo que ele pode ser. Esse poder-ser não é uma capacidade abstrata e ilimitada que confere a esse ente uma vida sem restrições, mas se configura como um modo de ser de um ente concreto, desde sempre lançado num mundo determinado, cuja essência é fundamentalmente ação; isso equivale dizer que o homem só é na medida em que está sendo, na medida em que sua ação se dá numa ocupação com os entes, seja trabalhando, pensando, estudando ou até mesmo nada fazendo. Nesse agir, o Daseinnecessariamente compreende ser, com ele se comporta. Esse ente descobre a si mesmo através do manuseio cotidiano com as coisas que lhe vêm ao encontro no mundo.
Trata-se, contudo, de entender a característica da relação estabelecida entre o Daseine o mundo, quer dizer, seu modo de ser em um mundo. Se estivéssemos tematizando um ente que não tem o seu modo de ser, por exemplo, uma cadeira, poderíamos dizer que esta está dentro de uma sala, que está dentro de um prédio, que está dentro de uma cidade, que está dentro do mundo. O ente em questão tem o modo de ser do que é simplesmente dado (de uma coisa dentro do mundo) ou tem o modo de ser da manualidade como um ser-à-mão numa conjuntura de serventia. O Dasein, entretanto, não pode ser pensado como uma coisa corporal-espiritual inclusa no mundo, como se fosse mais um ente a compor o todo do mundo. Se por mundo Heidegger entende o horizonte em função do qual se abrem as possibilidades de ocupação do Dasein - e o ser desse ente é constitutivamente um poder-ser -, podemos dizer que o mundo não existe fora desse, como também, esse ente não existe sem mundo; trata-se de uma relação de co-pertinência, ou seja, o Dasein não se constitui primordialmente como se o fosse um sujeito prévio que sai da esfera da sua interioridade para alcançar o que lhe é externo - o mundo.
Em suma, podemos dizer que o Dasein não existe primeiro, para só depois se relacionar com o mundo, mas que existe enquanto ser-no-mundo, sendo homem e mundo co-originários. O Daseinsó é sendo no mundo. Esta é a constituição fundamental do ser deste ente que nós mesmos somos. Sendo assim, Heidegger afirma no §13 do tratado de 1927 que: "não é o conhecimento que cria pela primeira vez um `commercium' do sujeito com o mundo e nem este `commercium' surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo do Daseinfundado no ser-no-mundo" ([2001, p. 62] 1995, p. 102).
É a partir dessa perspectiva que se pode afirmar que o conhecimento representacional não é um modo de ser fundante da relação do Dasein com o mundo, mas é um modo derivado, pois o representar pressupõe um ente desde sempre sendo no mundo. A abertura (das Offene) de mundo não é introduzida pela representação objetificante, ao contrário, é pressuposta.
Como seria, então, o modo mais originário da relação do Dasein com o mundo?
Heidegger afirma que o mundo mais próximo do Dasein é o mundo circundante (Umwelt), o mundo que libera os entes no modo mais imediato e cotidiano de sua existência - a ocupação. Uma vez que esse é o modo característico de ser do Dasein na cotidianidade, podemos dizer que os entes, as coisas, vêm primeiramente ao nosso encontro como algo para isto ou aquilo, como algo que se encontra à mão e que surge articulado aos nossos modos de comportamento prático - alvo dessa ou daquela forma de ocupação. É assim que um par de sapatos, por exemplo, pode servir como algo a ser pintado, no caso da tela de Van Gogh, pode representar um objeto de defesa para uma pessoa aflita diante de um inseto asqueroso, pode ser a meta da criação de um estilista de moda ou até mesmo ter a conotação de um objeto de desejo para um fetichista. Enfim, o ser da coisa se constitui numa referência a este ou aquele modo de se comportar do Dasein.
Sendo assim, cabe afirmar que o nosso comportamento não se dirige primeiramente à nudez de algo simplesmente dado para depois nele colar um valor; lidamos com os entes sempre em função de possibilidades de ocupação, o que quer dizer que os entes não vêm ao nosso encontro como objetos puros que devemos determinar teoricamente, mas, de início e na maioria das vezes, se apresentam como algo que serve para isto ou aquilo, como algo que é considerado pré-teoricamente a partir de sua serventia. É por essa razão que Heidegger considera os entes que são alvos de uma ocupação não como seres simplesmente dados, mas como entes que estão dentro do mundo (intramundanos), como um ser-à-mão (Zuhandenheit) para uma ocupação; como algo que descubro no próprio agir - como aquilo que os gregos denominavam pragmatas - e que recebe em Ser e Tempo a denominação instrumento (Zeug).7 Tal denominação tem o intuito de evidenciar o caráter prático do ser-no-mundo, considerando o instrumento não como substancialidade em si, mas algo que se revela disponível para o manuseio numa trama de relações no mundo circundante; com isso contatamos que, primordialmente, não tratamos os entes a partir de uma relação teórica, como se fossem objetos de conhecimento ou suporte de predicamentos. Quer dizer: o estar familiarizado com o instrumento não exige transparência teórica.
Em sua crítica à forma como a filosofia moderna pensa a relação sujeito-objeto, Heidegger denuncia que para esta tradição, mesmo de diferentes formas, o acesso primeiro às coisas é dado pela representação. Como se o Dasein, de início e na maioria das vezes, tratasse o mundo a partir da distância da percepção objetificante. Esse modo de lidar com o mundo é apenas um modo, não o único, muito menos o mais originário. Essas considerações heideggerianas sobre o ser-no-mundo põem em xeque essa tradição moderna que assenta a constituição do mundo sobre a mente humana, que representa tudo. Loparic nos lembra que:
Segundo Heidegger, a mente pura é um conceito legítimo, constituído no cartesianismo a partir de considerações metodológicas e epistemológicas em torno dos fundamentos das ciências físico-matemáticas. Mas esse conceito não pode ser usado numa solução do problema transcendental. Ele não é adequado para a descrição dos modos de ser do ente que perfaz a constituição do real. Sem ser uma coisa física, o sujeito da constituição do mundo é, não obstante, um sujeito concreto, que tem um corpo, que vive no espaço e tempo públicos e atua no meio das coisas e na companhia dos outros homens. Em resumo, o ente que constitui mundo, enquanto perfaz a constituição, sempre está aí no mundo. (1982, p. 153)
A "re-colocação" da questão da realidade através da perspectiva do ser-no-mundo atrela esse problema ontológico aos modos de compreensão de ser do Dasein. Entretanto, dizer que o Daseintem o privilégio de compreender o ser não implica, necessariamente, dizer que sempre dispomos de um conceito explícito sobre seu sentido, fruto de uma elaboração teórica; trata-se, antes, de uma compreensão que se apóia na lida prática com os entes disponíveis, na relação co-originária em que homem instaura mundo e é por ele instaurado; por conseguinte, antecede a qualquer exposição predicativa e teórica do conceito de ser.8
Uma vez que o Daseinsó existe na medida em que compreende ser, a realidade depende necessariamente dessa compreensão. Esta afirmação não subordina a preexistência das coisas reais à compreensão do Dasein. As coisas reais são independentes deste ente, mas a compreensão da realidade, do ser, não. Nos Seminários de Zollikon (1987), Heidegger exemplifica este fato ao recordar resultados de pesquisas da ciência natural. Após a medição de substâncias radioativas presentes na crosta terrestre, pesquisas atestam a existência da Terra há mais de dois bilhões de anos, bem como o aparecimento do primeiro homem há apenas 50 mil. O filósofo, decerto, não questiona o fato de a Terra estar simplesmente presente há pelo menos dois bilhões de anos, mas afirma que a realidade, enquanto modo de compreensão do ser da Terra, está diretamente atrelada à compreensão do Dasein. Pois, "de fato, apenas quando o Daseiné, ou seja, a possibilidade ôntica da compreensão do ser é, `dá-se' (es gibt) ser" (Heidegger [2001, p. 212] 1995, §43 p. 279). Dessa forma, trata-se da dependência da realidade e não do real, em relação ao ser-no-mundo. Afinal de contas "um fato é algo real, mas não a realidade. A realidade não é um fato senão ela teria de ser verificável como um camundongo ao lado de outra coisa" (Heidegger [1987, p. 198] 2001, p. 177).
Em resumo, podemos dizer que um ente só é acessível se a compreensão de ser se dá. Essa compreensão, por sua vez, de início e na maioria das vezes, não é uma atitude teórica de um entendimento que visa à emissão de juízos, à predicação, enfim, à construção de uma sentença teórica proposicional. Vimos anteriormente que não é a representação que garante a primeira via de acesso ao mundo. Daí podemos depreender que, contrariamente à visão da tradição moderna, o ente humanonão é um sujeito desmundanizado previamente constituído que se aventura a apreender o real - o mundo - objetificando-o. A realidade, ao invés disso, deve ser compreendida originariamente desde a ocupação (pré-teórica) com os entes intramundanos. Desse modo:
No ocupar-se e apenas nele, é que encontramos inicialmente os entes intramundanos os quais, em virtude desse modo de descobrimento, têm o caráter de coisas-à-mão, de utensílios. A utensilidade dos utensílios não é algo adicionado às coisas da natureza, no sentido de Descartes, mas, pelo contrário, o seu discriminante ontológico primeiro, o seu ser originário. (Loparic 1991, p. 22)
Visto que o Dasein não se reduz a uma mente que maquina e o mundo a uma estrutura físico-matemática disponível apenas pela via da objetificação, cabe-nos a pergunta: como deveria se constituir, a partir da ótica heideggeriana, uma ciência ôntica que tivesse como alvo o entendimento do existir humano e das suas relações com o mundo?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que, a partir do momento em que uma ciência toma o homem como um pólo constituído e o mundo como objeto de representação, ela já está fora do âmbito do ser-no-mundo, da co-pertinência homem-mundo, pressupondo pólos estanques e independentes. Esquecendo-se que a mente objetivante pressupõe o Dasein e não o contrário. Além disto, Heidegger nos alerta que não só o mundo é irredutível à apreensão nos moldes físico-matemático, mas, principalmente, o ente humano. Sendo assim, o tododo Daseinnão é passível de representação e a dinâmica de seu existir não consegue ser abarcada em mensurações, nem submetida a leis universais de causalidade.
Nos Seminários de Zollikon, Heidegger faz uma reflexão sobre as ciências que meditam sobre o homem e suas patologias psíquicas, denunciando o quanto estas são servis ao modelo fisicalista, assentadas, desse modo, nos sistemas da metafísica moderna. Aqui nos interessa, especificamente, o olhar heideggeriano sobre a psicanálise freudiana, discutido no próximo item.
A crítica heideggeriana à metapsicologia freudiana
Pretende-se discutir aqui, a partir de Heidegger, que a psicanálise freudiana é devedora da tradição moderna, concebendo, em sintonia com essa tradição, a representação como única via de acesso à realidade.
Freud enfatiza em algumas passagens de sua obra o quanto o conceito de pulsão é cardeal no arcabouço de sua teoria. Em A pulsão e seus destinos (1915a), Freud insiste na necessária presença da representação psíquica ligada às excitações endossomáticas, fonte das pulsões. Sendo assim, a pulsão
(...) nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo. (Freud [1915a] 1995, p. 127)
Uma vez tecida essa breve definição do termo, Freud presta-se a examiná-lo a partir de sua pressão (Drang), sua finalidade, seu objeto e sua fonte. Quanto à pressão (Drang) de uma pulsão, refere-se ao seu fator motor, à "quantidade de força (Kraft) ou a medida de trabalho que ela representa" ([1915a] 1995, p. 127).
Num importante estudo sobre o conceito de Trieb (pulsão) na psicanálise e na filosofia, Zeljko Loparic (1999a) enfatiza que foi a metafísica moderna que se encarregou de colocar "as forças" entre os princípios fundamentais das coisas, além de entendê-las exclusivamente pelo o modo da representação.
Como vimos, desde Descartes a realidade de algo está atrelada à sua possibilidade de representatividade. Mas, lembra-nos Loparic, é com Leibniz que a representação fica necessariamente acoplada ao apetite, enquanto ação do princípio interno que faz a passagem de uma representação à outra. A partir dessa ótica, a essência mesma de cada coisa passa a ser pensada como apetite representante, cujo modo de realização é a impulsão ou pressão (Drang). Sendo assim:
Quando fala de representante representacional da pulsão e de suas cargas, Freud, no essencial, não faz outra coisa do que retomar o conceito leibniziano de apetite representante, desenvolvido na tradição do subjetivismo cartesiano. A sua teoria das pulsões pertence, portanto, à tradição metafísica ocidental que se iniciou com a teoria cartesiana da substancialidade como representatividade por um sujeito e se firmou com a tese de Leibniz de que a essência de cada ente é determinada pela força motora e pela representação controladora. (Loparic 1999a, p. 115)
No interior da tradição leibniziana e da metapsicologia, fica patente que as relações entre a força e o apetite-representante (em Freud, pulsão) são de causalidade, no sentido de um movimento causado pela pressão (Drang). Heidegger (1991, p. 89) nos lembra que essa noção da causalidade está fundamentada no princípio leibniziano da razão suficiente,para o qual nada é sem razão, sem uma determinação primeira. Quer dizer: a razão como "aquilo" para onde não se pode mais regredir no encadeamento causal. Para o filósofo de Ser e Tempo, esse princípio é válido no âmbito das ciências naturais, cuja busca é pela causa desencadeadora de movimento de seqüências num determinado processo da natureza. A natureza fica, assim, subordinada ao conjunto de leis das relações de causa-efeito. Por isso, Heidegger nos alerta:
As tentativas de explicação dos fenômenos humanos a partir de pulsões tem o caráter metódico de uma ciência, cuja matéria não é o homem, mas sim a mecânica. Por isso, é fundamentalmente discutível se um método tão determinado por uma objetividade não-humana pode mesmo ser apropriado para afirmar o que quer que seja sobre o homem qua homem. (Heidegger [1987, p. 217] 2001, p. 192)
Portanto, qualquer tentativa de explicar o existir humano por leis físicas da causalidade acaba por concebê-lo exclusivamente como coisa objetificada. Sabemos que o princípio de causalidade impera na metapsicologia freudiana não só no que diz respeito à Drang, que mobiliza as pulsões, como também na busca da causa de um sintoma psíquico e na explicação de que as lacunas na consciência são geradas por forças oriundas da repressão. A explicabilidade da continuidade das conexões causais é sempre pressuposta.
Heidegger, nos Seminários de Zollikon, argumenta que Freud, ao deparar-se com as lacunas na consciência, tentou encontrar a qualquer custo "algo" que ordenasse a seqüência das conexões, para tanto, "ele precisa inventar o inconsciente, no qual tem de haver a ausência de lacuna de conexões causais". Contudo, para o filósofo, esse postulado não é haurido das próprias manifestações anímicas, mas sim das ciências naturais modernas (Heidegger [1987, p. 260] 2001, p. 222).
No texto O Inconsciente (1915b), Freud enfatiza que a prova da existência do inconsciente é justamente as lacunas em alto grau na consciência, tanto dos seres humanos sadios como dos doentes. Esse modelo de entendimento das vivências humanas se acomoda confortavelmente no seio da metafísica moderna, reduzindo o ente humano a um aparelho psíquico submetido a leis causais. Uma vez que o inconsciente seja estipulado como fator causal, o homem passa a ser tomado como um objeto causalmente explicável. Por isso, a atitude clínica do analista deve ser a de fazer o caminho de volta do sintoma à etiologia primeira da doença, buscando "o elo de ligação na cadeia de associações" (Freud, [1896], 1995, p. 193).
Para que se possam formular explicações dinâmicas sobre a etiologia das neuroses, torna-se necessário, então, postular a existência de processos inconscientes que, apesar de não estarem prontamente acessíveis na experiência consciente, regem como força fundamental o funcionamento psíquico. Portanto, o inconsciente, apesar de incognoscível, presta-se à explicação de fenômenos psicológicos observáveis e passíveis de conhecimento, como se os "estados inconscientes" pudessem ser traduzidos para categorias de representação consciente. Devido a essa assertiva, Freud (1915b) faz referência à teoria kantiana dos limites da razão pura, opondo o inconsciente ao fenômeno percebido a partir da intuição sensível a priori,comparando-o à coisa em si, que podemos pensar, mas não conhecer pelas categorias do entendimento.
Não é à toa que Heidegger afirma veementemente que a metapsicologia de Freud é a transferência da teoria kantiana da objetividade para o homem (Heidegger [1987, p. 260] 2001, p. 222). Sobre o tributo que o conceito freudiano de inconsciente paga ao sistema kantiano, Loparic afirma:
Embora não possamos decidir qual é a verdadeira natureza dos estados psíquicos inconscientes nem conhecer qualquer uma de suas eventuais propriedades, podemos projetar sobre essas coisas em si todas as determinações pelas quais caracterizamos as coisas para nós, a saber, os fenômenos. Em particular, podemos tratar os estados inconscientes como se fossem causas, ânsias, isto é, como se fossem entidades dinâmicas. Depois de ter subsumido os estados inconscientes às categorias kantianas, mais precisamente, à teoria kantiana da consciência, Freud se vê autorizado a concluir que, sim, "sobre vários desses estados latentes temos que dizer que eles só se distinguem dos conscientes justamente pela supressão da consciência". (1999a, p. 118)
Uma vez situada a filiação filosófica de Freud, resta-nos resgatar a pergunta norteadora deste artigo: qual a concepção de realidade vigente na metapsicologia freudiana?
Ora, se Freud é herdeiro de uma tradição moderna que assenta o modelo físico-matemático como a única via de se fazer ciência, não poderemos esperar de sua concepção de real algo que subverta esse legado de seu tempo. Por isso, Heidegger afirma que "só é real e verdadeiro aquilo que pode ser subordinado a ininterruptas conexões causais de forças psicológicas, na opinião de Freud" ([1987, p. 7] 2001, p. 36).
Em A perda da realidade na neurose e psicose (1924), Freud atém-se às formas que o id veicula para exprimir uma rebelião contra o mundo externo, apontando que há uma tentativa de evitar o contato com um fragmento doloroso de realidade, na neurose, e um repúdio da realidade, seguido de um remodelamento autocrático de criação de uma nova realidade mediante a alucinação e delírio, na psicose. Freud salienta que:
Em uma psicose, a transformação da realidade é executada sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com ela - isto é, sobre os traços de memória, as idéias e os julgamentos anteriormente derivados da realidade e através dos quais a realidade foi representada na mente. [...] provavelmente na psicose o fragmento de realidade rejeitado constantemente se impões à mente, tal como o impulso reprimido na neurose, e é por isso que, em ambos os casos, os mecanismos também são os mesmos. (Freud, [1924], 1995, p. 207; os itálicos são meus)
Não nos interessa destacar no trecho citado o índice de lealdade do ego em relação ao mundo real ou sua dependência ao id, tampouco o nível de perda da realidade na neurose e na psicose, e seus devidos substitutos. Trata-se de ressaltar que Freud, ao se referir à realidade, fala de idéias, memória e julgamentos representados na mente, reduzindo os modos de acesso à realidade aos modos passíveis de representação. Até mesmo na psicose está pressuposta a capacidade de representação. Como se o contato com o domínio do representável estivesse desde sempre garantido como algo natural. Para Freud, o que está em questão não é o modo como se constitui os sentidos de real, mas apenas o nível de lealdade ao mundo externo partilhado. Em outras palavras: o quanto o funcionamento psíquico está sendo regulado pelo princípio de realidade. Esta última entendida univocamente como algo representável. Nesse sentido, Loparic acrescenta:
Em Freud, assim como em Descartes e em Kant, o real é definido como aquilo que é representável de uma certa maneira. O problema de saber por que e como o real veio a ser constituído a título de algo representável simplesmente não é colocado. A pergunta sobre o sentido de realidade, da chegada à realidade ou do contato com a realidade não se colocava. A realidade estava lá, tal como dada na representação. Todas as perguntas admissíveis versavam exclusivamente sobre o destino de relações entre um sujeito e os seus objetos. (1995, p. 50; os itálicos são meus)
Uma vez que a datidade9 representativa da realidade é considerada como garantida, resta como problema saber como se atingem os objetos, sejam eles internos ou externos, bons ou maus. Por isso, o problema de Freud em A pulsão e seus destinos (1915a) é saber em relação a qual objeto a pulsão atinge sua finalidade e empreende seus investimentos, de modo a obter satisfação. Contudo, por mais variados que possam ser esses objetos que servem para a satisfação - sejam eles dados na percepção ou na fantasia - eles têm em comum o modo de datidade: a representação. Mas, aprendemos com Heidegger que a representação objetiva não é a primeira forma de relação do Daseincom o mundo, com o real. Portanto, a própria problematização sobre realidade externa/realidade interna e sobre eu/não-eu pressupõe, desde sempre, o ser-no-mundo imerso na lida cotidiana, tratando os entes intramundanos não a partir da distância objetiva e proposicional, mas por sua serventia. Afinal, de início e na maioria das vezes, relacionamo-nos com um ser-à-mão e não com representações.
Visto que o Dasein não é propriedade de uma subjetividade representante, a ciência que pretende reduzi-lo a um campo de forças pulsionais, a um feixe de conexões causais, estará, no mínimo, obscurecendo a constituição ontológica desse ente.
Em função desses reducionismos, Heidegger polemiza nos Seminários de Zollikon: "será que em toda construção freudiana da teoria da libido o homem está mesmo aí?" ([1987, p. 271] 2001, p. 192).
Fica patente que, para Heidegger, a metapsicologia freudiana, por ser devedora da metafísica que este filósofo pretende desconstruir, não atinge o ser humano de maneira genuína. Mais que isso: a redução do homem a cadeias de atos psíquicos não só não dá conta de pensar a dinâmica do existir humano, como também encobre a possibilidade de pensá-lo mais originalmente.
Entretanto, seria possível uma ciência ôntica sobre o existir humano que não fosse servil à metapsicologia e, conseqüentemente, à metafísica? Seria factível atingir um rigor científico abrindo mão da exatidão do determinismo fisicalista, da restrição do real ao representável? Sobre isso, Heidegger pontua:
Mas nem toda ciência rigorosa é necessariamente exata. A exatidão é apenas uma forma determinada do rigor de uma ciência, pois só há exatidão quando o objeto é colocado de antemão como algo mensurável. Entretanto, se há coisas que por natureza resistem à mensurabilidade, então toda tentativa de medir sua determinação pelo método de uma ciência exata é impertinente. ([1987, p. 173] 2001, p. 158)
Dado que o Dasein é um ente que resiste à mensurabilidade, resta-nos, então, procurar uma psicanálise não escravizada pelas leis da causalidade, pela dicotomia sujeito representante/objeto representado, pelo determinismo fisicalista, pela herança leibniziana do conceito de força, enfim, uma psicanálise que não tome como garantido o acesso representacional à realidade.
A realidade a partir da teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal e os limites da metapsicologia
Pretendemos, neste tópico, apontar que a concepção winnicottiana de realidade não se restringe ao imperativo da tradição moderna, que reduz o real ao representável. Portanto, será indicado que, para Winnicott, a realidade externa compartilhada não é uma aquisição desde sempre garantida, mas um conquista que pode ou não se dar. Por isso, o olhar desse pediatra não incide sobre a cena paradigmática da psicanálise tradicional, qual seja, o triângulo edipiano - que pressupõe a representatividade - mas, especialmente, sobre momentos mais primitivos do acontecer humano, a saber, a "cena" fundamental o lactente nos braços da mãe-ambiente.
Partindo do princípio que nessa etapa inicial do amadurecer humano a experiência comunicação mãe-bebê é pré-verbal e pré-representacional, as descrições sobre essa experiência não podem se assentar no campo semântico da psicanálise tradicional, pois, como vimos, o campo conceitual desta pressupõe a representatividade, seja no conceito de pulsão, na noção de realidade ou na explicação do aparelho psíquico como conexão causal. Atentando para o "lugar" da vida humana onde o contato silencioso precede o domínio do dizível, onde o saber cuidar realizado pela mãe não é da ordem das categorias do entendimento, Winnicott lança-nos num terreno epistemológico que admite a precariedade do exemplar humano, lembrando-nos que a continuidade de ser e que a separação eu-mundo não são uma garantia natural. Isto equivale a dizer que os dramas do ente humano não se reduzem às suas escolhas objetais e satisfações pulsionais, pois estes implicam um sujeito integrado, constituído enquanto uma unidade. Winnicott volta-se para o bebê, cuja tarefa primordial é a conquista do contínuo sentimento de estar vivo. Nessa tarefa, o bebê não é mobilizado por pulsões rumo aos objetos externos ou internos, nem lida com o real a partir da representatividade.
Por incidir seu olhar para esse estágio primitivo da natureza humana, Winnicott (1964a) entende o bebê como uma organização em marcha, cuja batalha inicial não é da ordem dos investimentos libidinais e sim, da conquista do sentimento de ser. Em A criatividade e suas origens esse autor aborda a condição de possibilidade dessa conquista para tudo o que há de vir; diz ele: "Após ser - fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo" (Winnicott [1971g] in: 1975).10 Desse modo, conclui-se que o sentimento de estar vivo não se deve exclusivamente ao fator constitucional ou biológico, mas a uma conquista contínua que implica um ambiente facilitador.11
No texto A integração do ego e desenvolvimento da criança, Winnicott ([1965n] in: 1983) afirma que os lactentes humanos só podem começar a ser sob certas condições. Se o começar a ser não é garantido exclusivamente pelo organismo biologicamente vivo, devemos perguntar pelo que possibilita esse começo.
Dado o estado de dependência absoluta do bebê humano, para que este comece a ser, apropriando-se do sentimento de ser real, faz-se absolutamente necessário um ambiente facilitador para essas conquistas. A integração é dada, então, pelo cuidado ambiental, por isso Winnicott diz "que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro" ([1988] 1990, p. 137).12 Quem tem essa função de unificar algo que inicialmente não é integrado é uma mãe que sabe cuidar por se identificar com o bebê a partir de sua própria experiência de ter sido cuidada, uma mãe que, pela constância dos cuidados físicos, vai conjugando o que, na relação, mostra-se em pequenas doses: cheiros, toques, sons. Trata-se da mãe suficientemente boa.
Em função da imaturidade do bebê, a mãe não é percebida como um objeto externo; no entanto esses "pedaços da técnica de cuidar são gradualmente reunidos e formam o único ser que posteriormente será chamado mãe" (Winnicott [1958a] 2000, p. 224). É apenas gradualmente que esses cuidados serão experienciados como algo de um ambiente facilitador separado do bebê. De início eles são absolutamente necessários, de modo que o bebê que não teve esse cuidado suficientemente bom talvez nunca consiga integrar-se. Nesse momento arcaico da vida humana, o "ambiente - que de início é a mãe, ou melhor os modos de ser da mãe - é parte do bebê, indistinguível dele" (Dias 2003, p. 130).
Winnicott pontua que, através da técnica de cuidar, a mãe conjuga "pedacinhos simplificados de mundo" trazendo-o "em formatos compreensíveis" ([1958a] 2000, p. 229). Contudo, essa compreensão não é um ato mental, da ordem do entendimento, mas uma doação de sentido pré-representacional. É como se as dispersas vivências sensório-motoras do bebê fossem reunidas (contornadas) pelo ambiente rumo a uma continuidade de ser integrada. Só depois é possível ter a capacidade de percepção objetiva da separação eu-mundo.
Por conseguinte, a relação bebê-ambiente (em forma de cuidados maternais) não é composta de pólos previamente constituídos e distintos; não é uma relação objetal, mas ocorre como unidade mãe-bebê. Essa relação deve ser marcada pela acolhida da mãe no que se refere às necessidades desse outro que ainda não se constituiu integralmente como um EU separado. A esse respeito, esclarece Dias:
No início da vida, o ambiente é subjetivo e, neste sentido, não é externo nem interno. Enquanto subjetivo o ambiente participa ativamente da constituição do si-mesmo [do self do bebê] e não é, meramente uma influência externa. É somente no decorrer do processo de amadurecimento que a criança poderá chegar no sentido de externalidade. (2003, p. 66)
O termo subjetivo é utilizado por Winnicott no seguinte sentido: nas primeiras relações com o ambiente, é como se o bebê, através de suavitalidade, o experienciasse como "algo" criado por ele. Portanto, esse termo não é usado para acentuar a dicotomia sujeito-objeto. Caberia à mãe suficientemente boa construir para o bebê a possibilidade de habitar nesse "mundo subjetivo", esse mundo que ele "acredita" criar espontaneamente a partir de sua motilidade. Sobre essa capacidade criativa do bebê, Winnicott aponta como momento emblemático o que ele denomina primeira mamada teórica. Trata-se da experiência de amamentação na qual o bebê encontra algo (mãe-seio) que ele não percebe objetivamente como objeto externo, mas como criado por ele. Sobre essa ilusão de que o seio e o sentido que ele tem na vivência foram criados pelo bebê em sua experiência excitada, declara:
Creio que não será inadequado dizer que o bebê está pronto para se criativo. Haveria a alucinação do objeto, se houvesse material mnemônico para ser usado neste processo de criação, mas isso não pode ser postulado considerando-se que é a primeira mamada teórica. Aqui o ser humano encontra-se na posição de estar criando mundo. O motivo é a necessidade pessoal. ([1988] 1990, p. 122)
Nota-se que, no trecho citado, Winnicott cunha a expressão primeira mamada teórica, referindo-se não a uma experiência de alucinação do objeto regida pela pulsão oral, mas a um contato mútuo de comunicação mãe-bebê, cuja marca maior deve ser o favorecimento da capacidade do bebê de criar o seio, criar o mundo. O autor está interessado significativamente na provisão ambiental e não nas vicissitudes da pulsão errática, convidando-nos, desse modo, a ingressar "nas águas profundas da mutualidade que não se relacionam diretamente com as pulsões ou com a tensão instintual" (Winnicott [1970b] 1994, p. 199). Atender a esse convite implica ater-se a esse momento pré-verbal de comunicação no qual o bebê cria um mundo subjetivo graças à capacidade da mãe-ambiente de se permitir ser criada, ser descoberta. A mãe que se adapta a essa necessidade do bebê faz com que ele sinta que o mamilo e o leite encontrados são frutos de seu próprio gesto. Para tanto, é preciso estabelecer uma certa constância ambiental, de modo ao bebê não se surpreender toda vez que realizar seu potencial criativo, sua ilusão de onipotência. Em outros termos: é preciso, nesse momento, evitar ao máximo as intromissões da realidade externa, insubordinada ao mundo subjetivo do bebê, pois só assim se pode garantir sua frágil continuidade de ser, conquistada paulatinamente.
Visto que o bebê toma o ambiente como algo criado por ele, o sentido que lhe é dado certamente não é da ordem da representação compartilhada. Aqui vemos uma forte diferença entre a psicanálise tradicional - que pensa a realidade univocamente como representação - e a teoria winnicottiana, que acentua que o primeiro sentido de real, ou seja, a realidade subjetiva, é criado pelo gesto espontâneo do bebê em sua criatividade originária.13 É claro que, do ponto de vista do observador, nada foi criado, apenas encontrado. No entanto, o fenômeno que interessa a Winnicott não é o acessível ao observador que objetifica, mas essa experiência primitiva de ilusão que é condição de possibilidade para futuras percepções objetivas do real. Pois:
Como todas as outras potencialidades humanas, a criatividade originária que cria o mundo e os vários sentidos do real deve poder ser exercida desde o começo da vida; caso contrário, ela fenecerá e o indivíduo não será capaz de dotar o mundo de significado pessoal. Para que o bebê possa exercê-la, inicialmente, é preciso que a apresentação de objetos seja feita de tal maneira que, ao mesmo tempo o lactente estabelece uma relação com esses objetos, ele é mantido na ilusão de onipotência, ou seja, ele cria o que necessita sem nenhuma consciência da ajuda que lhe possibilita este feito. (Dias 2003, p. 170)
Contudo, se a mãe interdita esse gesto criativo do bebê, haverá uma quebra da continuidade de ser; logo, a futura experiência perceptiva da realidade externa ou interna estará comprometida, podendo, inclusive, nunca acontecer. Portanto, podemos dizer que em Winnicott, como em Heidegger, o acesso representacional à realidade é derivado e não fundante. Dito de outra maneira, o acesso ao domínio da representatividade pressupõe modos mais primitivos de ilusão criadora. Sendo assim:
Os objetos a que o indivíduo tem o acesso por intermédio do contato primário que resulta da ilusão criadora chamam-se subjetivos e são caracterizados por um sentido de realidade individual específico, que precede o sentido de realidade dos objetos percebidos do mundo externo e que se preservam enquanto o indivíduo estiver vivo. [...] A relação com essa realidade subjetiva das coisas precede qualquer separação entre sujeito e objeto. Ela é anterior à ação e à representação, condições da vida sob a égide do princípio de realidade, entenda-se: da realidade externa que caracteriza os objetos do mundo externo. (Loparic 1995, p. 54)
A capacidade materna de adaptação às necessidades variáveis do bebê, além de permitir a este a ilusão criativa, condição de possibilidade para um futuro contato com a realidade externa, permite-lhe a experiência de repetição e constância, introduzindo-o no tempo, ao temporalizar suas vivências através da monotonia e da continuidade. Desse modo, quando a mãe atende ao bebê ela não está evitando uma frustração de um desejo objetal, mas a interrupção na continuidade de ser. O bebê não sabe, objetivamente, sobre a presença real desse outro que é a mãe, mas, gradativamente, vai sentindo a permanência do cuidar, com as "marcações" do tempo de respiração da mãe, da amamentação, da excreção, dos toques. Enfim, vai criando uma crescente familiaridade com a rotina que lhe permitirá "acreditar" e "confiar" que seu gesto espontâneo criou o mundo e que esse mundo estará sempre ali. Se, ao invés dessa provisão da mãe-ambiente, o bebê for exposto a uma série de interrupções, fatalmente sua continuidade estará sendo posta em risco. Daí decorre que, no lugar de uma espontaneidade, encontraremos reatividade, reações a intrusões e descontinuidades. Winnicott (1989a) afirma que, dependendo da intensidade dessas rupturas, o bebê é lançado numa agonia impensável que impede sua continuidade de ser, seu sentimento de real, que está "construindo" aos poucos. Só uma mãe atenta, identificada com seu filho e que se ajusta aos ritmos dele, oferecendo-lhe constância, será capaz de evitar a quebra da continuidade de ser paulatinamente conquistada pelo bebê.
Se a mãe é suficientemente boa, permite ao bebê viver espontaneamente a alternância entre suas tensões instintuais - referentes ao seu estado excitado (marcado pelo gesto espontâneo, pela motilidade de "encontrar algo" numa vivência de comunicação e mutualidade) - e seu estado tranqüilo, em que impera um relaxamento, uma quietude contornada por um colo que dá segurança. Esse manejo (handling) que oferece contorno às dispersas sensações sensório-motoras do bebê, diz Winnicott, possibilita a primeira morada ao lactente, uma morada onde os braços da mãe e o corpo do bebê são sentidos como uma única coisa. O handling seguro da mãe faz com que o lactente elabore imaginativamente suas funções somáticas, dando sentido aos seus movimentos e sensações corporais, criando, conseqüentemente, as bases para que o potencial humano herdado se estabeleça enquanto continuidade de ser e para que o sentimento de ser real possa assentar-se no soma, garantindo a conquista da personalização - entendida como o oposto da cisão psique-soma.14 Winnicott, então, acrescenta:
O começo daquela parte do desenvolvimento do bebê que estou chamando de personalização, ou que pode ser descrita como uma habitação da psique no soma, tem que ser encontrado na capacidade que a mãe ou a figura materna tenham de juntar seu envolvimento emocional, que originalmente é físico e fisiológico. ([1989a] 1994, p. 205)
A partir do exposto, fica patente que, para Winnicott, o alojamento da psique no corpo não é algo garantido geneticamente, mas uma conquista da saúde emocional, podendo, inclusive, ser ameaçada ao longo da vida. Tal conquista implica, necessariamente, uma provisão ambiental, pois não nascemos nos sentindo donos de nossa massa anatômica; inicialmente ela nos é estranha, cabendo-nos a tarefa de nos alojar nessa anatomia, fazendo-a corpo próprio e dando sentido ao seu funcionamento.
Se o sentimento de real, de habitar o próprio corpo, não é garantido pelo potencial herdado, também não é a experiência de situar-se no espaço e no tempo. Integrar-se no tempo e no espaço é também uma conquista inerente a tarefa de continuar vivo. Feitas essas considerações, podemos entender que a realidade percebida a partir da representatividade, pelo tempo e espaço, não é um a priori. Há, para Winnicott, um extenso caminho a ser percorrido rumo à percepção objetiva da realidade, cuja conquista não pode ser tomada como óbvia. Mais uma vez, fica evidente a não filiação winnicottiana à metafísica moderna e à metapsicologia freudiana.
Repetimos: em Winnicott encontramos uma longa jornada a ser percorrida pelo lactente: que vai do mundo subjetivo, passa pela integração no tempo e no espaço, pelo alojamento no corpo, para, finalmente, chegar ao universo representacional da realidade objetivamente percebida. Nesse ínterim, o bebê acessa um espaço próprio, um espaço potencial, que não é exclusivamente subjetivo nem totalmente subjugado aos ditames da realidade externa. Trata-se da transicionalidade, situada intermediariamente entre a onipotência da ilusão criadora e a imposição objetiva da realidade. Nesse sentido, Winnicott afirma:
Reivindico aqui um estado intermediário entre a inabilidade do bebê e sua crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade. Estou portanto, estudando a substância da ilusão, aquilo que é permitido ao bebê e que, na vida adulta, é inerente à arte e à religião, mas que se torna marca distintiva de loucura quando o adulto exige demais da credulidade dos outros, forçando-os a compartilharem da ilusão que não é própria deles. ([1971a] 1975, p. 15)
Quando elementos de desilusão são inseridos na vivência do bebê, ele terá de haver-se com o mundo externo, porém, não o faz sendo servil, mas preservando a continuidade da ilusão. É assim que os bebês investem uma importância especial nos "objetos" eleitos como aqueles que estão no meio do caminho, na transição entre o mundo externo insubordinado e a ilusão. Sejam eles os paninhos, os ursinhos, os travesseiros, o fato é que esses objetos transicionais cumprem a função de postergar o abandono do controle mágico do mundo. Winnicott aponta que a transicionalidade emerge no início da quebra da unidade mãe-bebê, inaugurando, assim, a primeira distância experienciada pelo lactente, chamada pelo autor de espaço potencial. O objeto transicional situa-se exatamente aí, nesse espaço, simbolizando tanto a separação quanto a união com o que está sendo separado. A esse respeito, Dias enfatiza:
Para que a transição aconteça, para que a transicionalidade se configure como tal, é preciso que o bebê esteja criando um novo espaço, um novo mundo. O que o amadurecimento promove é a capacidade inerente a todo ser humano de criar mundos e transitar entre eles. Neste momento está sendo criado o espaço potencial, a terceira área de experiência; o lugar que, se formos saudáveis podemos viver [...] (Dias 2003, p. 238)
Se formos saudáveis, saberemos brincar e criar a ilusão a partir do que se impõe objetivamente, transformando um cabo de vassoura no cavalo do Zorro ou criando uma obra de arte. Essa experiência engendra a dinâmica da criação na transição entre o real objetivamente dado e o fruto da potência criativa da ilusão, acentuando nossa saúde, porque desvela justamente a nossa precariedade - dá terreno legítimo a ela; afinal, todo brincar tem tempo de validade, pois a área de ilusão não se mantém ad infinitum.15 A ilusão se abre, cria possibilidades e se fecha, evidenciando nossa finitude. Não é à toa que Winnicott elege o brincar como experiência emblemática da natureza humana, pois, além de demarcar nossa finitude, deflagra que não lidamos com o real como se fosse um fato bruto, portanto, que não somos servis a um único modo de acesso, a representação compartilhada; de outro modo, um pedaço de madeira não poderia ser tomado como um carrinho de Fórmula 1.
Entretanto, só um pensador descomprometido com os ditames da rigidez físico-matemática tolera o paradoxo de um espaço que não é dentro nem fora. Por isso, ao invés de buscar o conforto metafísico das conexões causais de um aparelho psíquico desde sempre constituído (que lida representativamente com o mundo), Winnicott lançou seu olhar para o que se impõe precariamente como fenômeno originário: seja o bebê em seu mundo subjetivo, seja a criança no brincar que resiste a qualquer categorização nos moldes da tradição metafísica e, por que não, metapsicológica.
Por não ser devedora dessa tradição, acreditamos que a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal apresenta-se como ciência ôntica do acontecer humano pensado a partir da perspectiva heideggeriana. O fio condutor que guiou esta argumentação foi a constatação de que, para Heidegger e Winnicott, a realidade se impõe como questão necessária, visto que as tradições metafísica e metapsicológica se mostram insuficientes para pensar os vários modos de lidar com o real, os vários modos de o ente humano habitar o mundo.
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_____ 1965n: "A integração do Ego e o desenvolvimento da criança". In: Winnicott, 1965b. [ Links ]
_____ 1967b: "A localização da experiência cultural". In: Winnicott, 1971a. [ Links ]
_____ 1970b: "A experiência mãe-bebê de mutualidade". In: Winnicott, 1989a. [ Links ]
_____ 1971a: Playing and Reality. Londres, Penguin Books. Tradução brasileira: José Otávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975. [ Links ]
_____ 1971d: "As bases para o Self no corpo". In: Winnicott, 1989a. [ Links ]
_____ 1971g: "A criatividade e suas origens". In: Winnicott, 1971a. [ Links ]
Winnicott, Donald W. 1986b: Home is where start from. Londres, Pequim Books. Tradução brasileira: Tudo começa em casa. São Paulo, Martins Fontes, 1989. [ Links ]
_____ 1986h: "Vivendo de modo criativo". In: Winnicott (1986b). [ Links ]
_____ 1988: Human Nature. Londres, Winnicott Trust. Tradução brasileira: Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990. [ Links ]
_____ 1989a: Psychoanalytic Explorations. Londres, Karnac Books. Tradução brasileira: Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: carolinevasconcelos@hotmail.com
Recebido em 17 de novembro de 2004
Aprovado em 5 de maio de 2005
* Professora assistente UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) e Doutoranda em Filosofia da Psicanálise - Unicamp
1 Para Heidegger, o homem existe apenas numa relação com o ser; assim, para reunir, numa palavra, tanto a relação do ser com a essência do homem, como também a referência fundamental do homem à abertura ("aí") do ser enquanto tal, escolhe a palavra Dasein, que literalmente significa "ser-aí". Por existir uma certa diversidade na tradução deste termo, optamos mantê-lo em alemão.
2 Para as citações, faremos o uso da tradução brasileira de Ser e Tempo, cotejada com o original em alemão: Heidegger, M. Sein und Zeit, 13ª edição. Tübingen: Max Niemeyer, 2001. Por isso, nas referências, usaremos o número de ambas edições. A que se refere à obra original aparecerá entre colchetes.
3 Cf. Fogel 1986, p. 47.
4 Aqui também faremos referência em colchete à obra original: Heidegger, M. (1987) Zollikoner Seminare. Frankfurt/ M, Klostermann.
5 Vale mostrar aqui uma passagem da sexta parte do Discurso do Método. Escreve Descartes: "Conhecendo a força e as ações do fogo, da água, dos astros, dos céus e de todos os corpos que o cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza" (Descartes 1983, p. 63.)
6 Cf. Pasqua, 1997, p. 20.
7 Entendendo-se o instrumento não apenas como uma espécie de maquinário utilizado para uma função específica de trabalho, mas como tudo de que podemos nos servir, seja uma opinião, um automóvel, um jornal, uma tela, etc. A este respeito cf. Waelhens, 1955, p. 43.
8 No contexto do tratado de 1927, a compreensão (verstehen) é concebida ontologicamente como um modo fundamental do ser do homem que, como abertura de possibilidades, projeta este ente para o seu poder-ser-no-mundo. A compreensão de ser, em que desde sempre nos movemos, não é entendida como atitude intelectual, com vista a uma elaboração teórica de um enunciado que objetive o conceito de ser. Cf.. Heidegger, 1995, §31.
9 Esta palavra não é dicionarizada. Com ela, queremos nos referir aos modos como a "coisa" se dá ao homem, quer dizer, a sua datidade.
10 Citaremos entre colchete a publicação do texto original, fazendo, posteriormente, a referência à obra em que o texto se encontra na tradução brasileira.
11 O tema ambiente facilitador é tão central na obra de Winnicott que, numa reunião da British Psycho-analytical Societyesse autor afirmou"de modo enfático e acalorado: isto que vocês chamam de bebê não existe" ([1958a] 2000,p.165). Tal assertiva aponta para o fato de o bebê não ser uma unidade desde sempre garantida; inicialmente "a unidade é o contexto ambiente-indivíduo" (ibid., p.166). Quer dizer: "sem as técnicas que permitem cuidar do bebê de modo suficientemente bom o novo ser humano não teria chance alguma" (id.). Sobre a importância do ambiente na conquista do sentimento de ser e do desenvolvimento emocional saudável, cf., ainda: o capítulo 10 de Natureza humana (1988), "A integração do ego no desenvolvimento da criança" (1965b); "Ansiedade associada à insegurança" e "A preocupação materna primária" (1958a).
12 Nas citações de trechos de obras de Winnicott, usaremos entre colchete a referência à publicação original, seguido da referência à tradução brasileira. A paginação da citação será a da tradução.
13 A criatividade originária é um tema nuclear no pensamento winnicottiano, ramificando-se na temática sobre a experiência cultural. Nesse sentido, vale a pena acentuar a marcante diferença entre a concepção freudiana e a winnicottiana a respeito da produção cultural. De maneira geral, para Freud, a cultura resultaria da repressão pulsional, na medida em que certo quantum dessa energia poderia ser desviado para fins não-sexuais, gerando o progresso cultural e civilizatório. Dessa forma, a criação cultural consistiria na renúncia progressiva da libido, em sua sublimação (ver Freud 1898, 1905, 1908 e 1939). Em A criatividade e suas origens,Winnicott afirma que a psicanálise tradicional, em sua abordagem acerca da cultura, deteve-se "em observações secundárias e terciárias, ignorando tudo que se poderia chamar de primário" (1971g). O primárioreinvindicado por ele refere-se à experiência de criatividade subjetiva nos primórdios da relação mãe-bebê, quando a este é permitido o sentimento de haver criado o mundo. A conquista do sentimento de estar vivo e o desenvolvimento emocional têm suas raízes nessa experiência inicial de onipotência criativa. Toda criação cultural atrela-se a essa experiência primitiva. Em traços largos, enquanto a psicanálise tradicional detém-se na produção cultural, entendendo-a como sublimação reativa à repressão pulsional, a psicanálise winnicottiana volta seu olhar inicialmente sobre a criatividade originária, sobre o impulso ativo para a conquista do sentimento de estar vivo, que garantirá posteriormente a capacidade de brincar e a experiência cultural (ver Winnicott 1971g, 1967b e 1986h).
14 Em "Sobre as bases para o Self no corpo" ([1971d] 1994), Winnicott esclarece que, com o termo personalização,pretende chamar a atenção para a morada da psique no corpo, em oposição à despersonalização, cuja característica clínica é a sensação de não pertinência ao corpo. Convém explicar o que Winnicott entende por psique para que esta não seja confundida com a mente. Em "A mente e sua relação com o psicossoma", ele afirma que a palavra psique, no contexto de seu pensamento, "significa elaboração imaginativa dos elementos, sentimentos e funções somáticos, ou seja, da vitalidade física" (Winnicott [1954a] 2000).