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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005
ESTUDO DE CASO
O uso da consulta terapêutica na clínica da tendência anti-social
The use of therapeutic consultation in the treatment of anti-social tendency
Roseana Moraes Garcia
Doutoranda em Psicologia Clínica - PUC-SP
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar uma consulta terapêutica com uma menina de oito anos que começou a furtar na escola. Para isso, expõe-se brevemente as idéias de Winnicott sobre tendência anti-social, delinqüência e consultas terapêuticas.
Palavras-chave: Tendência anti-social, Furto, Delinqüência, Deprivação, Consultas terapêuticas.
ABSTRACT
The intention of this article is to present a therapeutic consultation whith a eight years old girl who was stealing in the school. For this purpose we explain the Winnicott thinking upon antisocial tendency, deliquency and therapeutic consultations.
Keywords: Antisocial tendency, Delinquency, Deprivation, Therapeutic consultations.
A tendência anti-social
A teoria e a clínica desenvolvidas por D. W. Winnicott sobre a tendência anti-social foram elementos fundamentais na construção da sua teoria do amadurecimento pessoal que estava começando a tomar corpo no final dos anos 30. Seu trabalho com crianças anti-sociais possibilitou-lhe confirmar a importância do ambiente na constituição do indivíduo e mudar o enfoque intrapsíquico da psicanálise tradicional para o enfoque interpessoal da psicanálise winnicottiana. Com essas descobertas, segundo Loparic (2001b, pp. 7-58), Winnicott operou uma mudança paradigmática na psicanálise, nos moldes de Thomas Kuhn.
Durante todo o tempo em que Winnicott esteve trabalhando e refletindo sobre a sua prática com crianças anti-sociais, parece que uma questão muito central norteava essa reflexão: ele não acreditava que a delinqüência pudesse ser compreendida, na sua origem, nem em termos de fatores externos grosseiros, como os definidos pela psicologia acadêmica, nem por fatores internos ou constitucionais, como os definidos pela psicanálise tradicional. Mas, então, como resolver a questão do surgimento da tendência anti-social em crianças cujos lares pareciam ser suficientemente bons, sem recorrer aos fatores internos e constitucionais? O desenvolvimento dessa reflexão levou-o a perceber que a falha ambiental que leva à tendência anti-social não era necessariamente grosseira, que poderia ser extremamente sutil e, muitas vezes, passar desapercebida por um observador menos atento às sutilezas das relações mais primitivas. Era preciso então, olhar de perto, verificar os detalhes da relação mãe-bebê e tentar captar aí uma quebra, uma transformação. Winnicott formulou essa questão baseado em seu material clínico, da seguinte maneira: as crianças que apresentavam tendência anti-social tinham tido no início um ambiente suficientemente bom, que lhes propiciou viver, pelo tempo necessário, a ilusão de onipotência. Ou seja, a mãe capacitou essa criança a encontrar objetos criativamente. Essa ilusão de onipotência, com o tempo, transformou-se na capacidade de acreditar em... e acabou por estabelecer uma crença. Em virtude de uma retirada ou mudança repentina dos cuidados com os quais contava, a criança sofreu uma quebra do apoio - ou seja, da fé, da crença. Essa quebra, muitas vezes, não é visível a olho nu, nem configura ambientes "maus": uma mudança de humor nos modos de ser da mãe com o nascimento de outro filho, por exemplo, ou uma cirurgia que ela teve de fazer e ficar ausente por um tempo. Se essa alteração se prolonga por tempo demasiado para a capacidade da criança de manter inalterada a confiança no ambiente interno já incorporado (crença), isso passa a representar um trauma e a criança torna-se apática e desesperançosa. Além disso, faz parte da caracterização da tendência anti-social o fato de que essa mudança ou retirada repentina nos cuidados fornecidos para a criança - denominada deprivação (deprivation) pelo autor - acontece num momento do amadurecimento no qual ela já tem noção de que a falha foi ambiental. Se o padrão de cuidado inicial, que continha confiabilidade retorna, a esperança da criança também retorna. É exatamente aí que aparecem os atos anti-sociais.
Assim, Winnicott pôde perceber que o ato delinqüente mais tardio tem a mesma natureza daquele, bem mais primitivo, em que a criança rouba uma moeda da bolsa da mãe. Diz ele:
(...) tive de inventar a expressão "tendência anti-social", para reuni-la com a criança que furta um tostão do bolso de alguém ou que tira alguns bolinhos, a que tem perfeito direito, da despensa. Quis unir isso com as tendências que podem conduzir à delinqüência [...] Trata-se de algo importante, e a vida foi diferente para mim após isso, porque agora sabia o que fazer com meus amigos que me estavam trazendo suas crianças por estas apresentarem uma tendência anti-social em um lar perfeitamente bom. Descobri que antes de os lucros secundários aparecerem, isto não era algo difícil de tratar, mas sim fácil, ainda que não em todos os casos. Acho que isso foi uma contribuição. Não conheço ninguém que estivesse realmente fazendo isso então, e, se houvesse, gostaria de saber. (1989f, p. 439)
Nesse relato, Winnicott mostra-nos como construiu seu conceito de tendência anti-social, que é mais amplo do que o de delinqüência, pois foi às raízes do problema, abrangendo a origem do distúrbio. Constatou também, clinicamente, a relativa facilidade em tratar - a própria mãe ou a família pode encarregar-se dessa terapia - o que poderia vir a ser uma delinqüência quando ela ainda se encontra perto da origem e bem antes de qualquer ganho secundário se estabelecer. Essa descoberta é de importância fundamental para se pensar as questões de prevenção da delinqüência e, como o próprio Winnicott reconheceu, essa sua contribuição foi totalmente original. O valor dessa abordagem está em que, se os atos anti-sociais forem compreendidos e atendidos tão logo se tornem manifestos, poderão ser tratados, de um modo mais fácil e, provavelmente, não se cristalizarão em delinqüência. Isto significa que a delinqüência é uma tendência anti-social que não foi tratada adequadamente, ou seja, a delinqüência já é uma defesa anti-social organizada. Ela poderá ter diferentes graus, e no seu extremo mais grave tornar-se uma psicopatia.
Winnicott constatou que, na raiz da tendência anti-social, há sempre uma deprivação, que é
(...) a perda de algo bom que foi positivo na experiência da criança até uma certa data, e que foi retirado; a retirada estendeu-se por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a lembrança da experiência. (1958c, p.131) [...] é uma característica essencial que o bebê tenha atingido a capacidade de perceber que a causa do desastre reside numa falha ou omissão ambientais. (Ibid., p. 135)
Essa formulação é muito semelhante à das psicoses, porque, quando a criança perde algo bom por um tempo maior do que pode tolerar, a sua vivência é de uma agonia impensável, pois ocorre uma quebra na sua continuidade de ser e o seu processo de amadurecimento fica interrompido por uma deficiência do ambiente facilitador. A diferença com relação à psicose é que, no caso da tendência anti-social, o indivíduo, já sendo capaz de perceber que a falha veio do ambiente, não é aniquilado por ela.
Em outras palavras, a criança estava vivendo num ambiente suficientemente bom, que, repentinamente se transformou e deixou de oferecer apoio na área que ela mais necessitava em função da tarefa maturacional na qual ela estava envolvida no momento. Quando isso aconteceu, ela perdeu algo que fazia parte da sua crença. Essa perda se constituiu num trauma. A partir daí, guarda o sentimento de ter sido roubada. Ocorreu uma mudança abrupta, que alterou toda a sua vida e da qual ela se dá conta - nem sempre de maneira consciente e, muitas vezes, apenas com relação a versões posteriores do trauma - mas, se lhe forem dadas condições especiais ela será capaz de chegar ao trauma original.1
Uma descrição completa da deprivação inclui: as condições anteriores ao trauma, o ponto exato do trauma - e do prolongamento da condição traumática - e as condições posteriores a ele. Um exemplo de uma situação traumática desse tipo é a mãe se ausentar por um período de tempo maior do que aquele em que a criança pode manter viva a sua lembrança. Diz Winnicott que
(...) em decorrência de uma separação excessivamente longa, a personalidade de uma criança pode ser completamente alterada através da interferência ambiental, e pode ser estabelecida a base para um distúrbio de caráter que não poderemos corrigir. (1993b, p. 149)
A criança que sofre esse tipo de trauma vive uma agonia impensável e o sofrimento é entendido por Winnicott, como "um estado de confusão, de desintegração da personalidade, um cair para sempre, uma perda de contato com o corpo, uma desorientação completa, e outros estados dessa natureza" (1968e, p. 77).
Quando a agonia impensável vivida durante a deprivação consolida-se como numa realidade inescapável, diz Winnicott, a criança acaba por tornar-se submissa, inofensiva e sem esperança. Para quem cuida dela isso pode ser muito cômodo, mas para ela significa sofrimento. Todavia, a criança pode ter a sorte de encontrar um ambiente favorável, por exemplo, a mãe reconhece a falha e a "mima"2 durante um certo período de tempo, cercando-a de cuidados especiais. Nessas circunstâncias, a criança começa a voltar a confiar que o ambiente possa ser capaz de compreender e acolher o seu problema. Um tal ambiente permite que a esperança renasça, e assim, os atos anti-sociais podem começar a ocorrer para testar a confiabilidade do ambiente. Esses atos anti-sociais nada mais são do que um pedido de socorro, para que alguém reconheça e a ajude a recordar-se "do momento da deprivação ou da fase em que a deprivação consolidou-se numa realidade inescapável" (id.).
A esperança e o sentido do impulso que levam a criança a buscar o estado de coisas que existia antes da deprivação são características essenciais da tendência anti-social e, para que haja cura, devem ser reconhecidas pelo ambiente. Se os sinais de surgimento da tendência anti-social forem desperdiçados por intolerância ou incompreensão, a criança não terá condições de desfazer o medo da agonia impensável ou da confusão que ela viveu antes de se tornar desesperançada, e não poderá retomar o seu amadurecimento.
Outro aspecto importante relativo à tendência anti-social é que crianças que roubam ou que praticam algum ato destrutivo, geralmente, quando inquiridas, negam tê-los cometido, e isso aparenta ser feito por elas sem o menor sinal de culpa e sem nenhum senso de responsabilidade. Aos olhos do inquiridor, isto pode parecer uma cínica mentira, mas para ela é, totalmente, verdadeiro. O que acontece? Na sua clínica, Winnicott percebeu, inúmeras vezes, que crianças anti-sociais apresentavam, regularmente, uma dissociação na personalidade. "Dissociação é um termo que descreve uma condição da personalidade relativamente bem desenvolvida, na qual há uma excessiva falta de comunicação entre os diversos elementos" (1988, p.159).
Isto é, o aspecto do si-mesmo que cometeu o ato anti-social está dissociado da personalidade total. Não existe, portanto, uma comunicação entre os dois. Se houver uma pressão para que ela confesse o delito, inclusive mediante apresentação de provas, provavelmente, ela o fará, mas isso, diz Winnicott, lhe custará "deixar essa área de ser verdadeira e transferir-se para uma outra espécie de integração na área intelectual do funcionamento do ego" (1966c, p. 263). Com a confissão, haverá uma integração, mas somente a nível intelectual, a criança será "capaz de saber, compreender e recordar [...]. A culpa é agora admitida, mas não é sentida" (id.). Do ponto de vista do inquiridor, isto pode parecer satisfatório, mas a criança não foi compreendida e nem ajudada. Esses atos não podem ser confessados porque a criança agiu sob compulsão e com a parte da personalidade que está dissociada.
A criança que comete um ato anti-social não está consciente do que realmente está fazendo. Todavia, estar ela inconsciente não significa que essa inconsciência seja fruto da repressão. Aqui, não se trata de inconsciente reprimido, mas de dissociação.
A negação do ato anti-social, pela criança, ainda significa que ela está aflita e buscando ajuda, pois esse ato é praticado sob compulsão e ela não tem a menor noção de porque age assim. O seu sentimento é de loucura. O que a criança necessita é de alguém que a compreenda e a ajude nesse estágio, em que ela é ainda uma pré-delinquente. A compulsão está ligada à esperança que a criança tem de ter reconhecido o débito do mundo para com ela.
Como vimos anteriormente, é nos momentos de esperança que a criança deprivada agita seu ambiente para que este reconheça e compense o dano cometido, isso é feito através de acting-out. O indivíduo não pode comunicar, de outra forma, o seu sentimento de ter sido lesado. Portanto, o acting-out tem valor positivo na cura da tendência anti-social.
A tendência anti-social pode ser mais facilmente tratada quanto mais perto estiver do seu ponto de origem. Quando ela se manifesta no bebê por ele estar causando um incômodo que começa a parecer excessivo para a mãe, e esta reconhece sua falha e torna-se uma terapeuta, proporcionando uma fase de cuidados especiais para o seu bebê, na qual atende suas reivindicações, muito provavelmente esse "tratamento" feito por ela terá sucesso. E assim, igualmente, para todas as idades durante a infância. Quando uma criança sofre deprivação e o ambiente reconhece imediatamente e passa a ressarcir, com cuidados especiais, a dívida para com ela, a chance dela ser "curada" é muito grande. Contrariamente a isso, se o ambiente não reconhece a perda infligida, isso pode levar a criança a desenvolver uma delinqüência que, com os ganhos secundários, afasta-a cada vez mais do trauma original, tornando cada vez mais difícil a sua cura.
Para Winnicott, geralmente, os pais são bem-sucedidos em curar seus filhos de deprivações, antes que eles tenham começado a obter ganhos secundários e "isso fornece a chave para a esperança que o clínico pode ter quanto a conseguir a cura da tendência anti-social" (1971b, p. 230).
As consultas terapêuticas
Uma modalidade de atendimento psicoterápico desenvolvida por Winnicott que mostrou grande eficácia no atendimento de crianças anti-sociais foram as consultas terapêuticas. Elas foram criadas devido ao tipo de demanda, que, aliás, caracteriza o serviço público: grande número de pessoas procurando ajuda, poucos profissionais, famílias que não têm condições de arcar com um longo tratamento, etc. Segundo Winnicott, as consultas terapêuticas "têm uma importância que a psicanálise não possui, ao atingir a necessidade e pressão sociais nas clínicas" (1971b, p. 10).
As consultas consistem de uma ou mais entrevistas (não mais que três, em geral), nas quais pode se usar o jogo dos rabiscos. Nessas entrevistas, o terapeuta encontra-se e se mantém na posição de objeto subjetivo e, portanto, numa situação em que tem uma maior oportunidade de estar em contato profundo com a criança. Isso propicia que a criança confie que será compreendida e, então, possa comunicar-se a nível profundo com o terapeuta. Se essa comunicação ocorrer - e ela pode ocorrer num nível pré-verbal - pode haver uma mudança que a leve a retomar seu processo de amadurecimento pessoal. No caso da tendência anti-social, muitas vezes a consulta terapêutica é extremamente eficiente, curando o problema, pois o sofrimento foi comunicado para alguém que ouviu e entendeu. Lins descreveu muito bem como se dá a comunicação numa consulta terapêutica entre a criança e o terapeuta; diz ela:
No momento em que se atinge um clima de confiança - que Winnicott chama de momento sagrado - estabelece-se uma comunicação que leva a criança a exprimir criativamente suas fantasias, sua problemática, seus sonhos. O terapeuta recebe essa comunicação e a reenvia ao seu paciente de maneira igualmente criativa. Assim, nessa espécie de intimidade - para empregar outra expressão cara a Winnicott - o ato espontâneo aparece e o jogo dos rabiscos conduzirá os dois parceiros à zona de angústia original da criança. A espontaneidade possibilita o imprevisto, a surpresa; pode ser intensa a tensão que então se estabelece. (Lins, 1998, p. 58)
Segundo Winnicott, de nada adianta, para a criança, saber que sofreu deprivação, numa história contada por outra pessoa. Isto seria uma apreensão meramente teórica, o que pode ser muito simples para uma criança inteligente, mas que não altera em nada o sentimento de ter sido lesada que ela carrega consigo. O verdadeiro valor terapêutico "está na descoberta desses problemas na consulta terapêutica com a criança" (1971b, p. 230). É claro que existe um grande número de casos anti-sociais mais graves - casos em que o distúrbio já se estabeleceu e que dizem respeito, em geral, àqueles indivíduos que não contam com um ambiente que se disponha a ser terapêutico - em que esse tipo de atendimento não se aplica, mas para aqueles em que a criança vive em um ambiente relativamente bom, ele quase sempre é eficaz. Para Winnicott, a consulta terapêutica é eficaz se, em primeiro lugar, acontece uma comunicação a nível profundo e o terapeuta é capaz de reconhecer a comunicação central que contém o trauma original, mesmo quando este surge na forma de uma versão posterior, e em segundo, se existe uma família disposta a oferecer cuidados especiais, enquanto forem necessários. Nesse caso, Winnicott orienta a família e a acompanha em sua tarefa.
O uso da consulta terapêutica nos casos de tendência anti-social é uma tentativa de chegar, junto com a criança que sofre, ao momento da sua deprivação, que havia ficado dissociado de sua personalidade total, e integrá-lo. Muitas vezes isso é conseguido e a criança simplesmente pára de apresentar comportamentos anti-sociais, de maneira definitiva.
Vou passar agora a relatar um caso atendido por mim, no qual, após uma única consulta terapêutica, Luana parou de furtar.
Luana
Fui procurada pela mãe de Luana, pois a escola a havia chamado por causa dos furtos da filha, que vinham acontecendo no último mês. Ela estava aflita com a questão, mas tinha sensibilidade suficiente para perceber que a filha estava passando por problemas difíceis.
Em geral, prefiro fazer a primeira entrevista com a criança, mas, no caso de Luana, fiz a primeira entrevista com a mãe. Isto porque, quando me ligou, ela estava propensa a consultar um psiquiatra infantil, em virtude de ter recebido da escola a orientação de que os comportamentos de Luana poderiam ser fruto de um desequilíbrio de caráter orgânico (bioquímico). Expliquei-lhe pelo telefone que, no meu entender, os comportamentos de Luana tinham origem psíquica e pedi-lhe que viesse ver-me antes de procurar pelo psiquiatra infantil.
Primeira entrevista com a mãe
Por ocasião dessa entrevista com a mãe, Luana tinha oito anos e sua irmã, cinco. Ela relata que o pai das duas meninas é estrangeiro e que Luana nasceu e viveu até os seis anos no país de origem do pai. Nessa idade, seus pais se separaram e a mãe voltou ao Brasil com as duas filhas.
Quando nasceu a sua segunda filha, estando a família em país estrangeiro, a mãe sentiu-se muito sozinha e sobrecarregada com os cuidados das meninas, pois seu marido lhe dava pouco apoio. Ela contou, ainda, ter ficado bastante deprimida nessa ocasião, o que prejudicou seu relacionamento com as filhas.
Após um ano da sua volta para o Brasil, a mãe começou um namoro com um senhor que tem uma filha um pouco mais velha que Luana. Esse homem, segundo a mãe, melhorou muito a sua vida e a vida das filhas, pois elas se sentiram mais cuidadas e mais seguras com a presença e o modo de ser dele. É provável que, tendo a mãe se sentido mais amparada, tenha então conseguido passar mais segurança às filhas.
Nesses dois anos de Brasil, Luana e sua irmã viram o pai por duas vezes, todavia falavam com ele pelo telefone com alguma freqüência.
Segundo sua mãe, Luana teve um desenvolvimento satisfatório. Aos três anos quando nasceu sua irmã, teve muito ciúme desta, mas conseguiu superar e hoje apesar de brigarem, elas se gostam muito. A separação do pai e sua volta para o Brasil deixaram Luana bem triste e, desde que aqui chegou, ela engordou bastante.
No mês anterior à consulta, a mãe começara a notar que Luana trazia da escola lápis e borrachas diferentes dos seus e quando a questionava sobre a origem dos mesmos ela respondia que ganhava das colegas. A mãe também achou calcinhas e camisetas que não eram de Luana debaixo do seu colchão e, quando a mãe lhe perguntou de quem eram as peças de roupa, ela não soube explicar. Nesse momento, a professora de natação entrou em contato com a mãe para informar que estavam sumindo roupas do vestiário feminino e que uma das alunas disse ter visto Luana colocá-las na sua mochila. A direção da escola também chamou a mãe para relatar que Luana estava furtando suas colegas e que alguma providência precisava ser tomada. Na semana em que a mãe me procurou, Luana havia furtado uma agenda escolar de uma colega, arrancado dela as páginas usadas, e escrito de próprio punho na página de rosto: "Luana, amo você, não esqueça disso, mamãe". Este fato mobilizou profundamente a mãe, que veio então em busca de ajuda. Tanto a mãe como a escola não tiveram nenhuma atitude moralista para com os furtos de Luana, tendo conseguido entender que ela precisava de ajuda (apesar de a escola ter analisado o comportamento de uma perspectiva organicista). Pareceu-me que a mãe de Luana tinha sensibilidade suficiente para ajudá-la nesse momento, reconhecendo intuitivamente suas falhas anteriores para com a filha e permitindo, inclusive, que esta pudesse fazer uma regressão.
Nesta primeira consulta, elucidei a mãe sobre o modo como eu entendia (à luz da teoria winnicottiana) a questão do furto, o que ela compreendeu bastante bem, pois estava altamente mobilizada com o que Luana havia escrito na página de rosto da agenda furtada. Alertei-a sobre a possibilidade de Luana precisar regredir, requerendo cuidados especiais e uma maior dedicação por parte dela. Ela reconheceu que, de algum modo, isso já estava acontecendo, pois Luana andava requisitando, e muito, a sua atenção. No entanto, ao atender as demandas da filha, ela tivera medo de não estar agindo certo, impedindo a filha de crescer. Disse estar muito aliviada com as minhas colocações, achando que faziam todo sentido e que podia, sim, atender a essas reivindicações da filha.
Alguns obstáculos apareceram quanto à possibilidade de uma análise para Luana naquele momento. Além de morarem num bairro muito distante do meu consultório e de Luana freqüentar uma escola em período integral, dificultando os horários disponíveis, a mãe disse-me estar financeiramente num momento delicado. Ante esses fatos, achei que se a consulta terapêutica fosse eficaz, a mãe, com apoio meu, poderia ajudar Luana nessa fase. Percebi também que era de extrema importância para essa mãe cuidar ela própria da filha.
Consulta terapêutica com Luana
Luana é uma menina bastante bonita, com cabelos bem longos e cuidados e um pouco gordinha. Veio para a consulta terapêutica acompanhada da mãe. A consulta durou em torno de uma hora e meia. Sem dificuldade entrou comigo na sala de atendimento, quando sua mãe lhe disse que ficaria aguardando por ela na sala de espera. Propus-lhe um jogo do rabisco, o que ela prontamente aceitou. Sentamo-nos uma em frente à outra com pedaços de papel e uma caixa de giz de cera. Luana escolheu um giz azul e ela mesma escolheu, para mim, um verde.3
Rabisco meu que Luana transformou num ponto de interrogação
Perguntei para Luana se ela sabia o motivo de sua consulta, ao que ela respondeu que não sabia ao certo, mas que sua mãe havia lhe dito que eu poderia ajudá-la. Tomei este desenho como algo favorável ao aprofundamento de suas questões na consulta terapêutica, pois Luana, apesar da dúvida, estava expressando alguma esperança em ser compreendida.
Rabisco dela que transformei numa mulher com seios
Nesse tipo de trabalho, o terapeuta permite-se ser espontâneo, o que para Winnicott não provoca nenhuma interferência com o processo da criança. Além disso, Winnicott ressalta que as pessoas têm o direito de ter as mais diversas opiniões sobre o que leva o terapeuta a utilizar este ou aquele tema nos seus próprios desenhos, mas não é isso o que interessa e sim a comunicação do terapeuta com a criança (1971b, p. 190).
Meu, que ela transforma numa menina à beira de uma piscina
Enquanto fazia esse rabisco, Luana disse que gostava muito de nadar e que fazia natação na sua escola.
Meu, que ela transformou num caracol
Comentamos sobre o fato de os caracóis levarem suas casas nas costas. Perguntei sobre sua mudança para o Brasil e ela não me respondeu. Talvez tenha ignorado a pergunta porque, nesse momento, estava mais interessada em fazer seu rabisco e numerar os desenhos, ou talvez porque esse fosse um tema penoso para ela. Abstive-me de qualquer comentário sobre isso.
Dela, que transformei num bebê
Meu, que ela completou dizendo ser sua cama, na qual ela estava deitada com seus bichinhos de pelúcia. Ela vai desenhando e contando sobre eles: o urso que se chama Ted, a Branca que é uma "eguinha", o Clifford, que é o cachorro e a Julie, que é uma cachorrinha
Nesse momento, vendo que Luana comunicava, com esse desenho, muitas coisas de sua intimidade, achei que começávamos a nos aprofundar e perguntei-lhe se tinha dificuldades na hora de dormir e ela me responde que algumas vezes tinha medo (não soube precisar medo de que), mas que ia todos os dias com todos os seus bichinhos para a cama. Disse gostar mais do Ted, e que o tem há muito tempo. Perguntei-lhe sobre sonhos e ela respondeu que sonhava, mas que não estava se lembrando de nenhum sonho naquele momento. (Sua mãe posteriormente me disse que ela levava os bichinhos para a cama quando era bem menor, com dois, três anos e que fazia muito tempo que não dormia com eles. Eu podia, então, ficar atenta para alguma coisa importante nessa idade de dois ou três anos que fora atualizada no desenho da cama com os bichinhos.)
As perguntas sobre sonhos durante o jogo dos rabiscos têm alguns objetivos. Um deles é abrir um campo de comunicação mais profundo para a criança, no qual o terapeuta mostra-se receptivo e suportivo desse tipo de comunicação. O outro é que, segundo Winnicott, a criança, através do sonho, integra aspectos traumáticos vividos que ficaram dissociados da sua personalidade. No caso da tendência anti-social, se a criança não é capaz de sonhar, é o furto que surge como atuação (acting-out) desses aspectos traumáticos.
Meu, que ela transforma na família jantando ao redor da mesa: ela, sua irmã, seu pai e sua mãe
Comentou que ela, sua irmã, sua mãe e seu pai costumavam sempre jantar juntos. Senti que falava isso com uma certa nostalgia. Noto que, nesse desenho, as cadeiras estão vazias, mas não faço nenhum comentário.
Dela, que transformei num cuspidor de fogo (seu rabisco aqui poderia estar mostrando uma certa confusão, junto com a esperança de que, se comunicada, a confusão poderia talvez ser compreendida e curada)
Meu, que ela transformou em chuva e poça d'água
Pensei, nesse momento, que estávamos em sintonia. Sua chuva poderia ser para apagar o fogo do desenho anterior; entretanto, também poderiam ser lágrimas de tristeza, ou mesmo as lágrimas de sua mãe, quando ficou deprimida por ocasião do nascimento de sua irmãzinha. Acredito, também, que poderia ser a revelação de uma certa desesperança que a criança deprivada vive depois de a falha ambiental ter causado uma espécie de confusão, antes que condições ambientais favoráveis se estabeleçam, trazendo o retorno da esperança e em conseqüência os atos anti-sociais. Nesse caso, este último poderia ser uma tentativa de negar a esperança nascente que talvez pudesse estar contida no penúltimo, devido ao medo da decepção. Não interpretei nenhuma dessas hipóteses.
Meu, que ela transformou nela própria brincando no escorrega que tinha na sua casa no outro país e que disse ter sido presente do pai
Voltei a perguntar-lhe sobre sonhos. Ela começou a relatar um sonho e o desenhou:
O sonho: "Ela está com seu ursinho Ted. Ela gosta muito dele. Foi seu pai quem deu para ela. O ursinho tem oito anos, como ela, por isso está sujo e rasgado. Ela estava no escorregador com ele e ele caiu. Ela desceu pra pegá-lo e uma abelha a picou. Ela chorou muito de dor, mas o Ted ficou vivo".
Luana conta esse sonho mostrando uma certa ansiedade, mas, apesar da dor sentida por ela com essa "queda", esse sonho mostrou uma esperança, pois muitas coisas foram preservadas (o Ted está vivo). Não interpretei, deixei que o curso da consulta seguisse.
Meu, que ela transformou no que chamou "uma bigorna de 159kg". Enquanto desenhou disse: "Meu pai é forte. Ele consegue levantar 150 kg". Pergunto se pensa nele. "Todo o tempo quando não estou brincando ou vendo tv. Penso no amor dele". Como é isso?, pergunto. "Penso nos brinquedos que me dá e quando me carrega nas costas". Neste momento sua ansiedade é visivelmente grande: "Onde é o banheiro?" Vai ao banheiro. Quando retorna, pergunto se ficou com medo que a mamãe tivesse ido embora, ao que responde afirmativamente. Continua dizendo: "Gosto de subir nas costas do papai, mas a mamãe tem medo que ele me derrube".
Nesse momento, achei que Luana estava me comunicando que seu amor pelo pai de alguma maneira ficara "proibido" pela mãe. Senti que ela estava tendo liberdade para falar desse seu amor pelo pai, mas ainda com medo de machucar a mãe.
Meu, que ela vai transformando e falando: "O nenê está feliz brincando com um carrinho de três rodas. A mamãe dá a mão para ele, mas fica sempre trabalhando no computador. Ele chora quando perde a chupeta, aí fica triste. O papai foi trabalhar".
Aqui, eu interpretei reconhecendo o quanto ela devia ter ficado desesperada e triste quando sua irmãzinha nasceu e sua mãe tinha mudado o jeito de cuidar dela. Disse que ela deve ter se sentido muito sozinha, sem a mamãe e sem o papai.
O importante não é tanto a interpretação, mas Luana ter chegado ao ponto em que se tornou uma criança deprivada e conseguir expressar isso em um desenho. Como diz Winnicott:
Deve-se observar que, nesse trabalho, eu geralmente não faço interpretações, mas espero até que o traço essencial da comunicação da criança seja revelado. Assim, falo sobre o traço essencial, mas o mais importante não é tanto eu falar quanto o fato de a criança ter encontrado alguma coisa. (1971b, p. 79)
Aqui, provavelmente, Luana integrou o desespero sentido quando foi deprivada pela depressão da mãe com o nascimento da irmã, pois não voltou a furtar depois dessa consulta terapêutica.
O útimo desenho de Luana, feito a partir de um rabisco meu, foi um navio batendo num iceberg. Ela quis levá-lo para casa.
Compreendi esse desenho como uma comunicação de que muitas coisas, além da sua tendência anti-social, teriam que ser tratadas. Para isso, seria necessária uma análise que, naquele momento, não tinha possibilidade de ser viabilizada.
Segunda entrevista com a mãe
Vi a mãe novamente na semana seguinte à consulta de Luana. Os furtos haviam cessado, mas Luana tinha assumido um comportamento regredido, querendo ser tratada como muito mais nova e, às vezes, como um bebê, falando em "tatibitate" e ficando caprichosa, exigindo ser atendida prontamente. Tendo compreendido as necessidades de Luana, a mãe contou que a vinha "mimando", permitindo que ela tivesse esses comportamentos regredidos. Estava satisfeita em poder estar proporcionando à filha esses cuidados e, com isso, contribuindo para a sua melhora. Perguntei-lhe sobre os bichinhos de Luana e ela confirmou que há muito tempo não fazia uso deles, mas que quando era mais nova dormia com todos na cama. Confirmou também a sua paixão por piscinas. A mãe havia conversado na escola, pedindo a compreensão para as dificuldades da filha. Mantive posteriormente contatos telefônicos com a mãe, nos quais ela me relatou que Luana estava aos poucos podendo abandonar seus comportamentos regredidos, mas que estava muito mais solta e feliz.
Comentários
Este caso de tendência anti-social pôde ser revertido com uma única consulta terapêutica. Depois da consulta, Luana não efetuou mais nenhum furto e isso já faz praticamente um ano. Não se trata de nenhuma mágica, a não ser que se leve em conta o que, no dizer de Winnicott, é a magia da intimidade e da comunicação profunda entre dois seres humanos. Esse resultado só foi possível porque: a) a consulta permitiu que Luana pudesse integrar a perda repentina dos cuidados maternos, ocorrida aos três anos, devido à mãe ter ficado deprimida por ocasião do nascimento de sua irmã, que havia ficado dissociada da sua personalidade e b) foi-lhe permitido pela mãe que ela regredisse e tivesse as suas necessidades atendidas, por um período de "mimos".
É provável que Luana tenha começado a roubar, aos oito anos, pois sentiu esperança de que a mãe, mais fortalecida por estar namorando um homem ao mesmo tempo sensível e forte, pudesse nesse momento estar em melhores condições de reconhecer sua falha para com ela e compensá-la da perda. Podemos pensar também que a separação dos pais e a vinda de Luana para o Brasil agravaram a sua deprivação anteriormente sofrida aos três anos.
Não descartei, para a mãe, a necessidade de que Luana posteriormente pudesse vir a precisar de análise e me coloquei à disposição para isso. Mas, nesse momento, ante as limitações reais da família e ao meu sentimento de que seria importante, para Luana e para sua mãe, passarem juntas por esse processo, achei melhor utilizar a consulta terapêutica e o apoio à família.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: roseanagarcia@uol.com.br
Recebido em 25 de março de 2005
Aprovado 13 de maio de 2005
1 Esta é uma diferença bastante significativa com relação à psicose, em que a criança, por não estar madura o suficiente, não tem a possibilidade de chegar ao trauma original ou mesmo reivindicar que o ambiente corrija a sua falha para com ela.
2 Mimar aqui significa dar uma oportunidade limitada e temporária para a criança regressar à dependência e à provisão materna inerentes a uma idade anterior à do momento em pauta (1971b, p. 230).
3 Nesse jogo do rabisco foram feitos 48 desenhos, mas aqui só serão apresentados os mais importantes para a compreensão do caso.